quarta-feira, 24 de novembro de 2021

 

Cartilha antirracista para as carreiras jurídicas

Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito.

 

 

 

 

 

Cartilha Esperança Garcia e Luís Gama. Cartilha antirracista para as carreiras jurídicas. GT LBS Antirracismo. Organização Sarah Cecília Raulino Coly. Brasília:  LBS Advogados, 2021, 18 p.

          Em Coluna anterior – http://estadodedireito.com.br/agenda-2021/ – a partir de brinde de final de ano de Cezar Britto Advogados Associados, dirigido, melhor dizer, coordenado pelo querido amigo Cezar Britto, acabei tendo ensejo para trabalhar um conceito que esbocei, de agenda livro e, na Coluna, discorrer sobre o mimo recebido, bem representativo do conceito, por ser a expressão de sociedade e de mundo do atelier (vou chamar assim) do querido amigo.

            No curso da leitura, centrada na concepção da Agenda 2021, pude fazer muitas derivações sobre as singularidades de diferentes suportes com essa característica: folhinhas, calendários, almanaques, e entre esses, a minha atenção mobilizada pelo Anuário LBS Advogados & Instituto Lavoro. Então, registrei no Lido para Você referido acima: “É notável encontrar tal auto-reflexividade nessas peças inesperadas, agendas e anuários. Vi isso também, no Anuário LBS ADVOGADOS & INSTITUTO LAVORO, orientado por meu querido companheiro de percurso no jurídico e que agora retorna ao doutoramento em Direitos Humanos e Cidadania, na UnB, José Eymard Loguércio.  O Anuário 2020 é um repositório, ao estilo dos repositórios acadêmico-profissionais. Esse o seu conceito. Aponta para o futuro que quer disputar (2021) mas avalia o caminho percorrido, com a lucidez de que aqui e lá são ‘Estranhos Tempos. Tempo único’: ‘Foi um ano em que nos ajudamos, nos solidarizamos, buscamos construir e ter mais conhecimento. Este Anuário 2020 retrata o trabalho de todas e todos da LBS’”.

            Eis que agora, precisamente neste 20 de novembro de 2021, recebo, pela minha rede web, Cartilha Esperança Garcia e Luís Gama. Cartilha antirracista para as carreiras jurídicas. GT LBS Antirracismo. Organização Sarah Cecília Raulino Coly. Sarah, altamente qualificada, profissional e academicamente é sócia da LBS Advogados.

            A edição não poderia ser mais oportuna. Não só porque toma o paraninfado de Esperança Garcia e de Luiz Gama. Ambos, nas circunstâncias dramáticas de suas existências, realizaram projetos de vida nos quais a liberdade, a emancipação, a justiça e o direito se fundiram como núcleo do que pode ser considerado uma exemplaridade para um ofício que a LBS realiza sobejamente: a advocacia.

            A Cartilha recolhe um trecho de carta de Esperança, escrava embora, foi considerada a primeira advogada brasileira (certificação simbólica conferida pelo Conselho Seccional da Ordem, no Piauí):

Eu sou uma escrava de V.S.a administração de Capitão Antonio Vieira de Couto, casada. Desde que o Capitão lá foi administrar, que me tirou da Fazenda dos Algodões, aonde vivia com meu marido, para ser cozinheira de sua casa, onde nela passo tão mal. A primeira é que há grandes trovoadas de pancadas em um ­filho nem, sendo uma criança que lhe fez extrair sangue pela boca; em mim não poço explicar que sou um colchão de pancadas, tanto que caí uma vez do sobrado abaixo, peada, por misericórdia de Deus escapei. A segunda estou eu e mais minhas parceiras por confessar a três anos. E uma criança minha e duas mais por batizar. Pelo que peço a V.S. pelo amor de Deus e do seu valimento, ponha aos olhos em mim, ordenando ao Procurador que mande para a fazenda aonde ele me tirou para eu viver com meu marido e batizar minha filha. De V.Sa. sua escrava, Esperança Garcia.”

            Há pouco, os estudantes de direito da UnB, em mobilização altamente convocatória, com a força de uma argumentação de forte sentido histórico-antropológico-sociológico, e também, com uma presença fenotípica impulsionada pelas cotas raciais implantadas na UnB obtiveram, no Conselho da Faculdade, a alteração da renomeação de seu icônico auditório Joaquim Nabuco, para Esperança Garcia.

            E note-se que o Auditório detinha uma nomeação digna e honorável, homenagem a um reconhecido abolicionista. Mas os estudantes reivindicavam um pertencimento mais autêntico, com legitimidade mais definida de enunciação, que não fosse delegada a quem, elite, branco, proprietário, governante, se substituísse ao sujeito de sua própria emancipação.

            Se orientavam, nesse passo por Lélia Gonzalez (Racismo e Sexismo na Cultura Brasileira), sobre a intenção do falar. Do subalternizado falar: “Ora, na medida em que nós negros estamos na lata de lixo da sociedade brasileira, pois assim o determina a lógica da dominação, caberia uma indagação via psicanálise. E justamente a partir da alternativa proposta por Miller, ou seja: por que o negro é isso que a lógica da dominação tenta (e consegue muitas vezes, nós o sabemos) domesticar? E o risco que assumimos aqui é o do ato de falar com todas as implicações. Exatamente porque temos sido falados, infantilizados (infans, é aquele que não tem fala própria, é a criança que se fala na terceira pessoa, porque falada pelos adultos), que neste trabalho assumimos nossa própria fala. Ou seja, o lixo vai falar, e numa boa”.

            Também Luiz Gama entra na Cartilha e não apenas como ilustração. Mas como formulador. Há referência preciosa ao seu ditado, agora que seu pensamento coligido começa a circular como fonte valiosa. Neste final de ano, a ADUnB, sindicato que organiza os professores da UnB fez brinde aos associados de uma edição da Expressão Popular (Luiz Gama – Antologia. São Paulo, 2021). Recolho de sua Carta ao Mui Ilustre e Honrado Sr Comendador José Vergueiro – p. 29-35, um trecho que ilumina o seu pensamento político: “A democracia é o misterioso verbo da encarnação social, é a alma coletiva da humanidade; fora temerária insânia o pretender comprimi-la nas páginas humildes de uma Constituição”.

            Eis o que venho insistindo em dizer, em muitos textos, e mais recentemente, por ter maior circulação, em entrevista que concedi para o site do Instituto Humanitas da Universidade de Vale do Rio Sinos: “a constituição é a expressão de um processo contínuo em construção de direitos. Se a gente assistir ao apelo do Artigo 5º da Constituição, vai ver que ali tem um elenco grande de direitos, mas a chave de encerramento do artigo é de que nem isso esgota outros direitos que decorram da natureza do regime ou dos princípios que a Constituição adota. Se a natureza do regime é a democracia, então, como lembra Marilena [Chauí], a democracia é o regime que permite a criação permanente de direitos” (http://www.ihu.unisinos.br/entrevistas/526174-a-constituicao-e-a-construcao-de-direitos-entrevista-especial-com-jose-geraldo-de-sousa-junior).

            O índice da obra dá bem a medida de seu conteúdo e alcance:

  1. Introdução

  2. Ingresso nas Carreiras Jurídicas

  3. Políticas Afirmativas

  4. Dados do Poder Judiciário

  5. Na Prática, como Agir Diante de Situações de Racismo ou Injúria Racial?

    • Sou advogado e vou atuar em um processo de racismo ou injúria

    • E nos casos de violência policial

    • Racismo e saúde mental.

 

            Nela, o que transparece é a motivação inscrita numa criação corporativa de ofício, na qual transparece aquele sentido que Padura havia surpreendido, com a licença da ficção, pensando o atelier de um mestre de seu ofício, quando cada nova geração tem obrigação de estudá-lo – claro Padura estava pensando na Lei – para ser capaz de ultrapassar o limite da linha. “Estudar – ele diz sugerindo novas aberturas –  e só aprender, como disse, pelo gosto de fazê-lo?”. Em Hereges (Boitempo), Leonardo Padura, apresenta Elias Ambrosius Montalbo de Ávila, um adolescente fascinado por Rembrandt, que começa a trabalhar em seu atelier e acaba cometendo a heresia de aprender para ultrapassar limites.

           Talvez por isso digam os Organizadores: “somos disruptivos”. O Escritório é mais que um lugar de operadores de uma profissão, o Direito. É uma Corporação, no sentido da medieval corporação de ofício. Assim na forma como a partir do século XII, na Europa, os artífices de diversas atividades começaram a se reunir em organizações que tratavam do conhecimento de determinadas atividades, voltadas para o aprendizado e o compartilhamento do conhecimento dos respectivos trabalhos.

            As Corporações de Ofício eram sim ambientes de aprendizado do ofício e de estabelecimento de uma hierarquia do trabalho. A própria organização interna das Corporações de Ofício era baseada em uma rígida hierarquia, composta por Mestres, Oficiais e Aprendizes. Um modelo que que se ampliou e que alcançou todas as formas de atividades artesanais e intelectuais.

             De fato, como método de dividir as atividades em tarefas, até as universidades (Século XIII) foram organizadas do mesmo modo que as demais atividades artesanais, ou seja, a corporação de ofício. Conforme Jacques Le Goff, “as escolas são oficinas de onde se exportam as ideias, como se fossem mercadorias” (Os Intelectuais na Idade Média. Lisboa: Gradiva, 1984).

           Na Cartilha, o Escritório converte-se em oficina: “Nós, integrantes do GT Antirracismo da LBS Advogados, passamos a nos aquilombar em encontros e reuniões, propondo discussões, reflexões e diálogos sobre pretos e pretas, para todos e todas que se dispusessem a participar. E que grata surpresa olhar para o lado e ver que somos tantos e tantas cores nessa caminhada”.

            Cartilha não é infantilização discursiva enquanto suporte. É um recurso pedagógico. No meu próprio ofício docente, já experimentei combinar o suporte cartilha com a técnica dos quadrinhos. Ali pelos meados do 1980, em projeto de extensão universitária – Projeto Comunitário pela Cidadania – coordenei alunos e alunas da disciplina Direitos Humanos e Cidadania procurando combinar o discurso acadêmico e do senso comum para atuar com trabalhadores em seu empenho político de “conscientização para a consecução da cidadania ativa”. Uma Cartilha Necessária, no formato de histórias em quadrinhos (tudo produzido pelos alunos, foi um esforço de oficina nessa direção).

 

 

 

            Não era uma novidade. Já antes, um dos mais importantes filósofos do Direito, aliás, meu orientador no Doutorado, Luís Alberto Warat, tratou de simplificar para melhor entendimento, o difícil processo de compreender a denominada teoria pura do direito, desde a complexa formulação lógico-positiva de seu criador Hans Kelsen, patrono de todo o positivismo jurídico que é um dos pilares do direito moderno científico-burocrático-legal.

            Os Quadrinhos Puros do Direito, com texto de Warat, em que não faltou a transliteração da norma fundamental kelseneana na carnavalizada (Mikhail Bakhtin), mulata fundamental waratiana, foi útil não apenas para estudantes, mas para muitos docentes que os liam disfarçadamente, para enfim, entenderem (talvez) Kelsen. Os Quadrinhos, com desenhos de Gustavo Feroz Cabtiada, podem ser encontrados na internet, ou na bem cuidada edição das obras completas do autor de A Senhora Dogmática e seus Dois Maridos, editada pela Fundação Boiteux. Para o caso, o volume I – Territórios Desconhecidos: a Procura Surrealista pelos Lugares do Abandono do Sentido e da Reconstrução da Subjetividade (Florianópolis, 2004). O texto original foi editado em Buenos Aires.

           

 

                   

           Não poderia haver modo mais eloquente de marcar o 20 de novembro, por um coletivo jurídico que se engaja na luta emancipatória por direitos, que esse elaborado pela LBS e seu GT Antirracismo. Conforme afirmei em outro lugar (SOUSA JUNIOR, José Geraldo de. Cidadania e Cultura Afro-Brasileira. In Sociedade e Estado. Revista Semestral do Departamento de Sociologias da UnB, vol. 1, nº 1, jun/86), “Num campo peculiar de expressão cultural afro-brasileira, a formação da consciência negra, a reivindicação de ‘direitos humanos dos negros’, o ‘quilombismo’, a existência de movimentos militantes negros definem o ‘lugar’ que esses grupos ocupam na sociedade e demarca a situação especial a partir da qual a questão negra se articula com as lutas gerais da própria emancipação social e humana”.

 

 

 

José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil,  Professor Titular, da Universidade de Brasília,  Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua.55

sexta-feira, 19 de novembro de 2021

 

Uso do Direito Penal para Restringir a Liberdade de Ensinar

  •  em 



Ganha intensidade hoje o uso do Direito Penal e do Sistema Judicial e Extra-Judicial de Repressão como ação política contra adversários e para restrição da liberdade. Nas disputas por poder e das mentalidades. Neste caso, na forma de luta ideológica.

 

 

Por isso, volto a tema que já foi objeto de opinião em artigo no Brasil Popular – https://bit.ly/3HBrqGz – instigado por registros recentes, amplamente divulgados. Primeiro, a demonstração cabal de tentativa de revisionismo histórico, de censura e de apropriação narrativa, com o empenho governamental de capturar o ENEM e o ENADE, para afeiçoar esses importantes instrumentos de avaliação do ensino “à cara do governo e aos seus conceitos”. Em seguida, conforme notícia procedente da Bahia – https://bit.ly/3DE4FiW – de que ação de vereador que pedia a anulação da matéria optativa “Golpe de 2016 e o futuro da democracia no Brasil” ofertada para estudantes da Universidade Federal da Bahia (UFBA), foi negada pela Justiça. Na decisão, em boa interpretação, o juiz afirmou não vislumbrar “qualquer mácula à Constituição, pois a escolha da nomenclatura e conteúdo da disciplina pela Ufba é inerente a sua autonomia didática, científica e administrativa constitucionalmente (e legalmente) prevista no artigo 207 da CF/88”.

 

 

Por fim, gravíssimo, também na Bahia, Uma professora de filosofia da escola estadual Thales de Azevedo, em Salvador, recebeu uma intimação policial após uma aluna prestar queixa na delegacia de que o conteúdo abordado nas aulas seria ‘esquerdista’ (https://bit.ly/3nxskf6).  Segundo a notícia, o departamento jurídico da APLB (associação Docente) foi acionado atendendo o apelo de um grupo de professores do referido colégio que esteve na sede do Sindicato e relatou observar atitudes inamistosas e de perseguição de uma determinada estudante contra uma das professoras de Filosofia por conta da mesma apresentar temática nas aulas referentes a questões de gênero, racismo, assédio, machismo, diversidade, entre outras. O fato, cuja repercussão está mobilizando amplos setores da sociedade que atuam em defesa da Democracia e da Constituição, é agravado porque, após receber a intimação, a professora encontra-se extremamente abalada emocionalmente, necessitando inclusive de ser hospitalizada para atendimento médico de urgência (https://bit.ly/3FwUNYO).

 

 

Volto ao assunto para advertir, tal como noticiei no Brasil Popular, que a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, por meio de especialistas convocados pela Relatoria Especial para a Liberdade de Expressão e a Relatoria Especial sobre os Direitos Econômicos Sociais, Culturais e Ambientais, já preparou um consistente e detalhado documento de Princípios Interamericanos sobre Liberdade Acadêmica e Autonomia Universitária, em consulta para posterior deliberação, com a nítida preocupação provocada pelas denúncias existentes em vários países do hemisfério sobre repressão a coletivos estudantis e sindicatos universitários, e também ao bulling e ao assédio, ataques, reduções orçamentárias a instituições acadêmicas e retaliações de diferentes ordens contra membros da comunidade acadêmica por razões arbitrárias ou discriminatórias, incluindo o uso do direito penal para constranger as pessoas no exercício de sua liberdade acadêmica, algo incompatível com as proteções que oferece o sistema interamericano a esse direito.

 

 

No mesmo diapasão de reiteradas decisões judiciais e do Supremo Tribunal Federal, não se pode admitir sequer, a simples enunciação da possibilidade de interferência no âmbito da liberdade de ensinar – que é uma categoria constitutiva dos direitos fundamentais, a liberdade de consciência de expressão, de comunicação, sem falar daquelas ligadas ao sistema de proteção à educação, que estão tanto na Declaração Universal dos Direitos Humanos quanto na Convenção Interamericana de Direitos, quanto nos protocolos derivados dela, como de São Salvador.

 

 

Esse é o perigo iminente quando o obscurantismo sombrio da exceção na esfera de governo, liberando o fascismo social, açula o guarda do esquina, o que justificou a recusa do vice-presidente Pedro Aleixo de assinar o AI-5, em 1968, ao contrário de seu colega de ministério, coadjutor orgânico da ditadura mandando “Às favas, senhor presidente, neste momento, todos os escrúpulos de consciência.” para a sua irrestrita adesão.

 

 

Os Princípios em vias de adoção pela CIDH, por isso, entre os seus fundamentados enunciados, em definir o âmbito de proteção da liberdade acadêmica, inclui em suas prescrições, aqueles relativos ao princípios de não discriminação, de proteção frente às interferências do Estado, de proteção frente a atos de violência, de inviolabilidade do espaço acadêmico,  de restrições e limitações à liberdade acadêmica, de proibição de censura e excepcionalidade do exercício punitivo estatal,  mas também, de proteção e prevenção frente a ações ou omissões de particulares.

 

 

(*) José Geraldo de Sousa Junior é professor titular na Faculdade de Direito e ex-reitor da Universidade de Brasília (UnB)

 


José Geraldo de Sousa Junior é graduado em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal – AEUDF, mestre e doutor em Direito pela Universidade de Brasília – UnB. É também jurista, pesquisador de temas relacionados aos direitos humanos e à cidadania, sendo reconhecido como um dos autores do projeto Direito Achado na Rua, grupo de pesquisa com mais de 45 pesquisadores envolvidos.

 

Professor da UnB desde 1985, ocupou postos importantes dentro e fora da Universidade. Foi chefe de gabinete e procurador jurídico na gestão do professor Cristovam Buarque; dirigiu o Departamento de Política do Ensino Superior no Ministério da Educação; é membro do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil – OAB, onde acumula três décadas de atuação na defesa dos direitos civis e de mediação de conflitos sociais.

 

Em 2008, foi escolhido reitor, em eleição realizada com voto paritário de professores, estudantes e funcionários da UnB. É autor de, entre outros, Sociedade Democrática (Universidade de Brasília, 2007), O Direito Achado na Rua. Concepção e Prática 2015 (Lumen Juris, 2015) e Para um Debate Teórico-Conceitual e Político Sobre os Direitos Humanos (Editora D’Plácido, 2016).




 

quarta-feira, 17 de novembro de 2021

 

O Sistema e o Antissistema. Três Ensaios, Três Mundos no Mesmo Mundo.

Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito.

 

 

 

 

O Sistema e o Antissistema. Três Ensaios, Três Mundos no Mesmo Mundo. Belo Horizonte: Editora Autêntica, 2021, 78 p.

 

 

                           

         Conforme o release preparado pela Editora, essa obra reúne três ensaios sobre o tema, com distintas visões de seus autores Boaventura de Sousa Santos, Ailton Krenak e Helena Silvestre.

         Em fevereiro de 2021, Boaventura de Sousa Santos publicara, no Jornal de Letras e Ideias, um artigo intitulado “O sistema e o antissistema”. No texto, depois reproduzido em diversos portais no Brasil, o sociólogo falava a respeito de sua preocupação com o crescimento da extrema-direita no mundo.

         Pouco tempo depois, foi contatado por sua amiga Helena Silvestre, escritora afroindígena e militante das lutas por moradia e território. Ela contou ter lido o texto e revelou que tinha uma opinião muito diferente sobre o tema. Foi incitada então pelo português a escrever sobre o assunto, convite que prontamente aceitou, oferecendo-nos assim sobre o tema um olhar diferente, construído a partir de sua vivência na periferia da Zona Sul de São Paulo.

         A essas duas perspectivas somou-se ainda uma terceira, a de Ailton Krenak. O escritor, ativista socioambiental e líder indígena reconhecido nacional e internacionalmente trouxe à obra reflexões oriundas da luta indígena e de seu desejo de imaginar um mundo compartilhado, com todas as diferenças que enriquecem a vida e as potências epistemológicas aprendidas em sua trajetória – como explica em seu texto de apresentação.

         O livro traz, portanto, textos escritos a partir de diferentes contextos sociais, políticos e culturais, por autores de diferentes gerações, com diferentes identidades e histórias de vida, mas irmanados na mesma luta por uma sociedade mais justa, mais igualitária e mais respeitadora da diversidade e da diferença.

         Para lançar o livro a Autêntica preparou uma live, com a autora e os autores, para que apresentassem e expusessem as suas percepções a partir dos ensaios, convidando também a professora Cláudia Cristina Ferreira Carvalho, docente da Faculdade de Educação da Universidade Federal da Grande Dourados/UFGD; coordenadora do Núcleo de Estudos Afro-brasileiro/UFGD e do Centro de Referência em Direitos Humanos do Estado de Mato, para uma leitura crítica dos ensaios. Fui o moderador do debate.

 

            Divulgado amplamente nas redes de transmissão da plataforma youtube, a conversa, em toda a sua extensão e riqueza pode ser acompanhada pelo link https://www.youtube.com/watch?v=9gRuSpR8l7I (Canal Youtube de O Direito Achado na Rua).

            Não obstante falar-se de uma divergência de posicionamentos, ao menos na conversa o que logo se percebeu é existir mesmo uma complementariedade das aproximações. Enfoques acentuados pelas perspectivas dos autores desde as interpelações decorrentes de seus pontos de vista ou da vista a partir dos lugares de observação.

            Se em Boaventura pode-se depreender um binarismo sistema/antissistema presente nas mais diversas disciplinas, das ciências naturais às ciências humanas e sociais, da biologia à física, da epistemologia à psicologia, a racionalidade explicativa da movimentação sistema/antissistema se faz na perspectiva globalizada do mundo (sistema mundo), na dinâmica de expansão do capitalismo em cujo âmbito se formam os impulsos de movimentos e ideologias de direita e de esquerda. Recapitulando as condições temporais e espaciais dessa movimentação, Boaventura a resposta atual de profundo aperfeiçoamento do capitalismo que, com a quarta revolução industrial (inteligência artificial), torna possível desenvolver controles eficazes da população.

            Por isso a sua consideração do balanço direita/esquerda porque ele leva a por em causa a questão da democracia e das institucionalidades que nela são geradas assim como nas organicidades que se constituem na sociedade civil, e indicar a necessidade de se fazer a sua defesa (da democracia.

            Para ele, “a defesa da democracia contra a extrema-direita passa por muitas estratégias, uma de curto prazo, outras de médio prazo”, que compreendem a “ilegalização, sempre que a Constituição é violada, isolamento político e atenção à infiltração nas forças policiais, no exército e na mídia”. Sugere que a médio prazo, “reformas políticas que reenergizem a democracia, políticas sociais robustas que tornem efetiva a retórica de ‘não deixar para trás’, ninguém”.

            Dadas as circunstâncias aceleradas pelo neoliberalismo, o cuidado é prevenir que “acossada pela ideologia global da extrema-direita, a democracia [possa morrer] facilmente no espaço público se não se traduzir no bem-estar material das famílias e das comunidades”.

            Para Helena Silvestre, desde o local (que pode ser também glocal), com uma mirada mais comunitária, o balanço sistêmico/antissitêmico, se dá não no interior da engrenagem do movimento da vida em trânsito vertiginoso produtor de ruínas, mas no antagonismo entre sistema (capitalismo) e antissistema (tudo que se opõe ao capitalismo), o que coloca a necessidade de organização comunitária porque para ela, embora os movimentos de organização popular não [se tenham afirmado] como alternativas consistentes em âmbito nacional ou global ao capitalismo, é neles que se instala a potência de uma aliança em que a esquerda se engaje em defender cotidianamente as existências ameaçadas com a exigência de fazê-lo apenas com seus próprios termos.

            Assumindo que escreve com os olhos dos outros, ela continua a se perguntar: que força produziriam o medo e a insegurança? Esses sentimentos inescapáveis podem ser mobilizados a destruir o que nos ameaça com a destruição?

            Claro que as condições que em todos os tempos, ao menos de modo de localização desde a arquitetura da assembleia depois de 1789, constituídos pelos lados dos girondinos e dos jacobinos, designam o que é esquerda e o que é direita, há algo mais que se possa refletir para além da metáfora topográfica.

            Não constatamos todos, no 7 de setembro, com que força política, educando partidos, corporações, grupos de interesse, a esquerda, os indígenas de braços dados com os povos, as mulheres, a Igreja dos pobres e dos excluídos, o mais simbólico arco de alianças, a grande frente para um projeto de sociedade e de país. Todas as bandeiras reunidas, as feministas, as antirracistas, as identitárias, do campo e das cidades, por reconhecimento e participação, por teto, terra e trabalho, libertarem a praça (a Esplanada) do sequestro do fascismo, que pedia intervenção militar e a dissolução do Congresso e do Supremo Tribunal Federal?

            E no tribunal, que não precisou ser protegido por tanques fumacentos, aparatos dissuasórios, cavalaria, as vozes indígenas, qualificadas pela inclusão universitária, sustentando da tribuna, verdadeiros amici curiae, o mais avançado direito: Cristiane Baré, Ivo Macuxi, Eloy Terena e vestida de encantamento, Samara Pataxó.

            Talvez tenham acendido na memória progressista do Ministro Fachin, o sentido do verdadeiro direito achado nas aldeias, pré-estatal, pré-cabralino, para fixar que não existe isso de marco temporal, mas um direito cogente que não pode ser reduzido pelo estatal, legal que o devem constitucionalmente proteger, que não o criam, apenas o declaram.

            É o que traz Ailton Krenak, com a sua lição “ensinada ao repassar com maestria uma das mensagens compartilhadas por povos originários: a Terra e a Humanidade caminham juntas. Precisamos compreender que somos uma ínfima parcela que compõe a natureza e que, mais do que nunca, está a impossibilitar a vida”.

            Para Krenak o vital “é que possamos nos abrir para outros mundos onde a diversidade e a pluralidade também estejam presentes, sem serem caçadas, sem serem humilhadas, sem serem caladas. E que possamos também experimentar viver em um mundo no qual ninguém precise ficar invisível, ninguém precise ser Garabombo, o invisível (referência ao personagem do livro Garabombo, o Invisível, de Manuel Scorza) no qual possamos ser quem somos, cada um com a sua singularidade, humanos nas suas competências, nas suas deficiências, nas suas dificuldades. E que sejamos capazes também de reciprocidade, que é um lema que deveria estar entre aqueles que propõem que nos juntemos para pensar mundos”.

            Certamente, cuida-se de pensar e discutir, como sugeriu Boaventura na conversa transmitida pela live, nas escolas, nas organizações, nas comunidades, pensar mundos, diz Krenak; ler e escrever com os olhos dos outros, propõe Helena Silvestre, sem perder de vista, aconselha Claúdia Carvalho, alinha abissal que separa os mundos, dos visíveis e dos invisíveis, dos humanos e dos não-humanos, conforme o olhar da esquerda e da direita, dos fascistas e dos democratas.

 

           

 

 

José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil,  Professor Titular, da Universidade de Brasília,  Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua.

sexta-feira, 12 de novembro de 2021

             HUMANIZAR-SE ESTANDO AO LADO DOS POBRES 


"Pensar nos pobres com disponibilidade sensível, é ter em mente o modo como o Padre Lancelotti exercita a sua vocação pastoral, na mais espontânea e misericordiosa disposição de fraternidade", escreve José Geraldo de Sousa Junior, em artigo publicado por Brasil Popular, 10-11-2021.

 

José Geraldo de Sousa Junior é graduado em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal - AEUDF, mestre e doutor em Direito pela Universidade de Brasília - UnB. É também jurista, pesquisador de temas relacionados aos direitos humanos e à cidadania, sendo reconhecido como um dos autores do projeto Direito Achado na Rua, grupo de pesquisa com mais de 45 pesquisadores envolvidos. Professor da UnB desde 1985, ocupou postos importantes dentro e fora da Universidade.

 

Eis o artigo.

 

Participei, nesta semana (dia 8/11), no espaço da Comissão Justiça e Paz de Brasília, de mais uma Conversa de Justiça e Paz, evento mensal que se realiza já há quatro anos, antes presencial e, na conjuntura, de forma remota.

Com meu colega Daniel Seidel, recebemos, uma segunda vez, o padre Júlio Lancelotti. Em ambos os encontros a motivação foi o lançamento da mensagem do Papa Francisco, para o Dia Mundial dos Pobres, neste ano de 2021, marcado para o dia 14 de novembro.

Dia Mundial dos Pobres é uma celebração católica romana, comemorada no 33.º domingo do Tempo Comum desde 2017. Foi estabelecido pelo Papa Francisco em sua Carta Apostólica Misericordia et Misera, emitida em 20 de novembro de 2016 para comemorar o fim do Jubileu Extraordinário da Misericórdia. A cada ano o Papa nos convoca a abrir a nossa sensibilidade para compreender as exigências dos pobres, enquanto esses estejam entre nós e, como anuncia o Evangelho, com a palavra de Jesus: «Sempre tereis pobres entre vós» (Mc 14, 7).

É por isso que pensar nos pobres com disponibilidade sensível, é ter em mente o modo como o Padre Lancelotti exercita a sua vocação pastoral, na mais espontânea e misericordiosa disposição de fraternidade: “Sinto-me humanizado. Eu sinto que estou do lado que Jesus gostaria que eu estivesse”.

Tal como o padre Júlio, com seu avental de serviço e sua marreta simbolizando romper com os obstáculos do egoísmo e da indiferença que desumanizam, assim também deveríamos nos sentir. Para melhor atender ao apelo do Papa Francisco:

“Faço votos de que o Dia Mundial dos Pobres, chegado já à sua quinta celebração, possa radicar-se cada vez mais nas nossas Igrejas locais e abrir-se a um movimento de evangelização que, em primeira instância, encontre os pobres lá onde estão. Não podemos ficar à espera que batam à nossa porta; é urgente ir ter com eles às suas casas, aos hospitais e casas de assistência, à estrada e aos cantos escuros onde, por vezes, se escondem, aos centros de refúgio e de acolhimento… É importante compreender como se sentem, o que estão a passar e quais os desejos que têm no coração. … Os pobres estão no meio de nós”.

Tarefa árdua. Apesar de muito reconhecimento – só em 2021, o padre Júlio recebeu pelo menos três reconhecimentos: o prêmio Zilda Arns, criado pela Câmara dos Deputados em 2017 para reconhecer pessoas e instituições que trabalham ativamente em defesa dos direitos das pessoas idosas; o 7º Prêmio Dom Paulo Evaristo Arns, da Prefeitura de São Paulo, tendo alcançado um número recorde de indicações – 15.598 de um total de 16.643, seguindo um processo de escolha feito por meio de um edital de chamamento público, com um formulário online aberto à sociedade civil; e agora em novembro, o Colar de Honra ao Mérito, a mais alta honraria da Assembleia de SP por sua ação em face da pandemia de Covid-19 e pela defesa de direitos humanos.

Não obstante, há sempre vozes ainda insensíveis que não compreendem a dimensão solidária dessa disposição de humanizar-se, ocultando-se por trás de biombos escamoteadores das frases feitas e das posturas higienizadoras quando não criminalizadoras. Para elas vale a admoestação do ex-Presidente Mujica: “Os setores proprietários dizem que não se deve dar o peixe, mas ensinar as pessoas a pescar. Mas quando destroçamos seu barco, roubamos sua vara e tiramos seus anzóis, é preciso começar dando-lhes o peixe”, ou pelo menos orientar as dotações do orçamento para implementar políticas públicas.

É a que exorta o Papa em sua mensagem: “É decisivo aumentar a sensibilidade para se compreender as exigências dos pobres, sempre em mutação por força das condições de vida. Com efeito, nas áreas economicamente mais desenvolvidas do mundo, está-se menos predisposto hoje que no passado a confrontar-se com a pobreza”.

Daí que o padre Júlio, com o Papa, conforme a sua mensagem, ponham em causa, para além da mobilização das consciências, “o desafio que os governos e as instituições mundiais precisam de perfilhar, com um modelo social clarividente, capaz de enfrentar as novas formas de pobreza que invadem o mundo” pois “se os pobres são colocados à margem, como se fossem culpados da sua condição, então o próprio conceito de democracia é posto em crise e fracassa toda e qualquer política social”.

Por isso o Padre Júlio, no mesmo dia, em sessão convocada pela Câmara dos Deputados para marcar a Fraternidade e Amizade Social1 Ano da Carta Encíclica Fratelli, tenha reivindicado a taxação de grandes fortunas e garantia de água (potável) para os pobres e carentes.

Um carão nos indiferentes, artífices do descarte das periferias sobrantes, mas também uma inspiração que o Papa Francisco talvez tenha encontrado no ano passado quando telefonou pessoalmente para o padre Júlio, ouvindo dele que manter-se sempre junto dos pobres é humanizar-se com eles.

 

 

 

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