segunda-feira, 31 de outubro de 2022

  em 




O Brasil como Causa

 

 

“O Brasil é a minha causa”, garantiu Lula após vencer eleições presidenciais, acumulando um recorde de votos, mais de 60 milhões de sufrágios.

 

 

“O Brasil é a minha causa e combater a miséria é a causa pela qual vou viver até o fim da minha vida”, foi o preâmbulo de seu discurso de acolhimento ao resultado proclamado pelo Presidente do TSE, um texto escrito, cuidadoso, um verdadeiro esboço de programa de governo e mais que isso, um manifesto de resgate de um País e das esperanças de seu povo:

 

 

O povo brasileiro quer ter de volta a esperança. É assim que eu entendo a democracia. Não apenas como uma palavra bonita inscrita na Lei, mas como algo palpável, que sentimos na pele, e que podemos construir no dia-dia. Foi essa democracia, no sentido mais amplo do termo, que o povo brasileiro escolheu hoje nas urnas. Foi com essa democracia – real, concreta – que nós assumimos o compromisso ao longo de toda a nossa campanha. E é essa democracia que nós vamos buscar construir a cada dia do nosso governo. Com crescimento econômico repartido entre toda a população, porque é assim que a economia deve funcionar – como instrumento para melhorar a vida de todos, e não para perpetuar desigualdades”.

 

 

Com uma abrangência que foi do local ao global, o discurso propõe uma virada econômica mas não concede ao seu núcleo ético: “construir um país de todos. Um Brasil igualitário, cuja prioridade sejam as pessoas que mais precisam. Um Brasil com paz, democracia e oportunidades”. Ou seja, combater a miséria e zelar pelas necessidades dos mais desassistidos e vulnerabilizados.

 

 

Em consonância com a grande frente democrática que balizou a chamada de pacificação e de resgate dos princípios e valores que devem presidir uma sociedade democrática, Lula desenhou a ampliação dessa expectativa de inclusão política, com a integração entre os diversos nos seus intentos, ao limite de contradições que não sejam antagônicas. “A partir de 1º de janeiro de 2023 vou governar para 215 milhões de brasileiros, e não apenas para aqueles que votaram em mim. Não existem dois Brasis. Somos um único país, um único povo, uma grande nação. Não interessa a ninguém viver numa família onde reina a discórdia. É hora de reunir de novo as famílias, refazer os laços de amizade rompidos pela propagação criminosa do ódio. A ninguém interessa viver num país dividido, em permanente estado de guerra. Este país precisa de paz e de união. Esse povo não quer mais brigar. Esse povo está cansado de enxergar no outro um inimigo a ser temido ou destruído”.

 

 

Depois de seis anos de desconstrução de um projeto igualitário e generoso que havia sido desenhado com o projeto de sociedade inscrito na Constituição de 1988, com a recidiva neoliberal e nos últimos quatro anos, no paroxismo da insanidade necropolítica, o discurso abre um novo horizonte de civilidade, inscrito na decência e no resgate do princípio esquecido do tríduo da declaração de direitos: a fraternidade, sem a qual a liberdade e a igualdade não passam de promessas vazias.

 

 

Diz Lula em seu discurso: “O Brasil não pode mais conviver com esse imenso fosso sem fundo, esse muro de concreto e desigualdade que separa o Brasil em partes desiguais que não se reconhecem. Este país precisa se reconhecer. Precisa se reencontrar consigo mesmo. Para além de combater a extrema pobreza e a fome, vamos restabelecer o diálogo neste país. É preciso retomar o diálogo com o Legislativo e Judiciário. Sem tentativas de exorbitar, intervir, controlar, cooptar, mas buscando reconstruir a convivência harmoniosa e republicana entre os três poderes. A normalidade democrática está consagrada na Constituição. É ela que estabelece os direitos e obrigações de cada poder, de cada instituição, das Forças Armadas e de cada um de nós. A Constituição rege a nossa existência coletiva, e ninguém, absolutamente ninguém, está acima dela, ninguém tem o direito de ignorá-la ou de afrontá-la”.

 

 

Será isso possível? A explosão de alegria que galvanizou multidões Brasil afora  e que na Avenida Paulista aninhou Lula e as lideranças que estão avalizando esse projeto, já é uma demonstração dessa possibilidade, no seu principal eixo, o diálogo empático entre povo e governo.

 

 

De minha parte, continuo otimista sobre essa possibilidade. Durante todo o período de exceção, em meus escritos (muitos aqui neste Jornal Brasil Popular), nunca deixei de manifestar minha confiança nas tremendas reservas utópicas acumuladas no social por suas lutas e por seu aprendizado democrático, fatores que impediram que se consumasse o golpe desencadeado em 2016 e todos os arroubos autoritários conduzidos pelo Presidente da República e por seu entorno miliciano. As afrontas seguidas à Constituição e às instituições. E não só em textos de opinião, nos quais sugeria que o pessimismo devia ser deixado para tempos melhores, aludindo a Gramsci e a Frei Betto. Mas patrocinei petições pedindo a instauração de procedimentos de impeachment, representações ao Ministério Público pedindo a adoção de medidas de salvaguarda ao fiscal da lei e petições diretas de interdição de uma presidência manifestamente incapaz de conduzir com responsabilidade os seus misteres. Também nos meus espaços de militância, notadamente na Comissão de Justiça e Paz da Arquidiocese de Brasília e na Coalizão em Defesa do Processo Eleitoral.

 

 

Logo após o encerramento do primeiro turno, em matéria produzida pelo Sítio do Instituto Humanitas, da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (https://www.ihu.unisinos.br/622664-eleicoes-2022-uma-maioria-democratica-e-uma-direita-forte-e-resiliente-algumas-analises), externei uma opinião, junto a de outros entrevistados, que acabou determinando o enfoque da própria matéria, no sentido de que as eleições revelavam uma forte direita animada por uma governança proto-fascista encarnada no bolsonarismo, mas mostrava uma maioria nítida, de consistência democrática, solidária, universalista, capaz de resgatar o país.

 

 

Reforcei, naquele contexto, que a meu ver prevalece, terminado o segundo turno, com sombras que se projetaram até nas eleições, o desenfreado uso da máquina e de fundos de governo, os incidentes milicianos promovidos por Roberto Jefferson e Carla Zambelli, e ação do DeepState, na tentativa de instabilizar o próprio processo, afetando o TSE: o episódio das inserções de propagandas em rádios e o emprego miliciano e criminoso da Polícia Rodoviária Federal para impedir o direito de voto (episódios criminosos que não podem ficar impunes), em movimentos urdidos nas câmaras dos edifícios da Presidência da República (cf. coluna Lauro Jardim – https://oglobo.globo.com/blogs/lauro-jardim/post/2022/10/operacao-de-hoje-da-prf-foi-tracada-em-reuniao-no-alvorada.ghtml).

 

 

Penso que é na política e na re-educação para a política, seu re-encantamento, que será possível iluminar os desvãos do modelo colonizador das instituições, a começar pelo Estado, que foi transformado em estrutura distribuidora de favores e de restrição de direitos. As eleições vão permitir lançar luzes sobre os subterrâneos e porões, alguns profundos, de uma organicidade clandestina e em muitos aspectos criminosa.

 

 

Será necessário incidir dentro desse “Estado Profundo”, que desloca para sua tessitura influente a competência e o agir dirigente, erodindo a democracia e a promessa legislativa de realização de direitos.

 

 

É claro ser inimaginável alcançar as raízes mais profundas dessa semeadura daninha, até porque elas se espalham para fora e para longe de nosso espaço de ação política. Mas é possível podar alguns de seus ramos.

 

 

A meu ver, o mais urgente e pedagógico é recuar da política de flexibilização do armamento da população brasileira. Aprofundar a análise da história do modo de elaboração das leis que favorecem a aquisição de armas de fogo, bem como colocar em pauta o agravo da situação e o risco que o governo corre em deslocar a segurança para as mãos de seus cidadãos.  Não se trata de aferir por sua gravidade, os casos de feminicídios, homicídios, suicídios e chacinas, mas a derivação, secundária mas não desimportante, em face da desigualdade social, de um tráfico de armamento favorecendo a ilegalidade.

 

 

Assim, não é só a questão da violência, de debater políticas públicas, direito de porte e posse de armas, do Direito Penal; mas, dar-se conta de que o fascismo, o autoritarismo, o discurso autorizativo da violação de direitos humanos, que serve ao milicianismo, à militarização da segurança, à criminalização dos movimentos sociais e da reivindicação por direitos, que bem se presta a infiltrar, inviabilizando, uma tessitura de agências clandestinas para a ação paralela de apropriação possessiva no privado do que democraticamente deve ser a reserva de sustentação equânime da vida bem vivida, com direitos e com dignidade. Daí a relevância do compromisso com a formação dos membros da sociedade brasileira para a cidadania e a democracia de modo a garantir uma convivência fraterna, solidária, respeitosa das diferenças e feliz.

 

 

A resposta internacional já no curso do processo eleitoral em comentários e editoriais de grandes jornais (The Guardian, The Economist, Le Monde, The New York Times); de periódicos altamente respeitados do campo científico (Nature), de estadistas (Primeiro Ministro da Espanha, de Portugal, Prefeito de Roma) e, imediatamente ao resultado dos principais líderes mundiais, entre eles Joe Binden (EUA), Emmanuel Macron (França), Frank-Walter Steinmeier (Alemanha), Valdimir Putin (Rússia), Xi Junping (China), Justin Trudeau (Canadá), Comunidade Europeia, Alberto Fernades (Argentina), Lopez Obrador (México), Gustavo Petro (Colômbia) mostram o reconhecimento da capacidade de Lula para reinserir o Brasil na mesa das grandes negociações globais, e ele próprio confirma isso em seu discurso: “Nas minhas viagens internacionais, e nos contatos que tenho mantido com líderes de diversos países, o que mais escuto é que o mundo sente saudade do Brasil.Saudade daquele Brasil soberano, que falava de igual para igual com os países mais ricos e poderosos. E que ao mesmo tempo contribuía para o desenvolvimento dos países mais pobres”.As manchetes dos principais jornais mundiais celebram a volta do Brasil ao cenário internacional

 

 

Também as manifestações institucionais no Brasil, imediatamente ao resultado, não deixam margem para escapismos, voluntarismos e todo golpismo tenderá a ser isolado. Lula tem condições de traduzir em método de governar o que experimentou com o método de concertar alianças. Sua meta, reconstruir o Brasil, um Brasil ético, com responsabilidade e com compromissos com a verdade na política, na ciência e na fé, conforme as convicções de cada um ou a formulação coletiva das comunidades: “O novo Brasil que iremos construir a partir de 1º de janeiro não interessa apenas ao povo brasileiro, mas a todas as pessoas que trabalham pela paz, a solidariedade e a fraternidade, em qualquer parte do mundo”.Um Brasil, no qual ele diz,  “um rio de águas límpidas vale muito mais do que todo o ouro extraído às custas do mercúrio que mata a fauna e coloca em risco a vida humana; e no qual, “quando uma criança indígena morre assassinada pela ganância dos predadores do meio ambiente, uma parte da humanidade morre junto com ela”.

 

 

(*) José Geraldo de Sousa Junior é professor titular na Faculdade de Direito e ex-reitor da Universidade de Brasília (UnB)


José Geraldo de Sousa Junior é graduado em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal – AEUDF, mestre e doutor em Direito pela Universidade de Brasília – UnB. É também jurista, pesquisador de temas relacionados aos direitos humanos e à cidadania, sendo reconhecido como um dos autores do projeto Direito Achado na Rua, grupo de pesquisa com mais de 45 pesquisadores envolvidos.

 

Professor da UnB desde 1985, ocupou postos importantes dentro e fora da Universidade. Foi chefe de gabinete e procurador jurídico na gestão do professor Cristovam Buarque; dirigiu o Departamento de Política do Ensino Superior no Ministério da Educação; é membro do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil – OAB, onde acumula três décadas de atuação na defesa dos direitos civis e de mediação de conflitos sociais.

 

Em 2008, foi escolhido reitor, em eleição realizada com voto paritário de professores, estudantes e funcionários da UnB. É autor de, entre outros, Sociedade Democrática (Universidade de Brasília, 2007), O Direito Achado na Rua. Concepção e Prática 2015 (Lumen Juris, 2015) e Para um Debate Teórico-Conceitual e Político Sobre os Direitos Humanos (Editora D’Plácido, 2016).

 

 

quinta-feira, 27 de outubro de 2022

 

A Formação das Sujeitas e dos Sujeitos Periféricos. Cultura e política na periferia de São Paulo.

Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito.

 

Tiaraju Pablo D’Andrea. A Formação das Sujeitas e dos Sujeitos Periféricos. Cultura e política na periferia de São Paulo. São Paulo: Dandara Editora, 2022, 288 p.

 

                       

 

Num momento da campanha eleitoral, num debate, veio à tona o tema da periferia. Foi marcante ouvir da direita, por seu candidato, a afirmação convicta de que a periferia é o lugar da marginalidade, da criminalidade, do tráfico, um antro de bandidagem. Enquanto o presidente Lula, alvo da incriminação e que acabara de visitar uma comunidade no Rio de Janeiro, expressava toda a sua compreensão de reconhecimento às subjetividades organizadas em suas comunidades se expressando no ethos de que é o povo trabalhador, protagonista de sua ação emancipadora que se constitui pela cidadania e por sua capacidade instituinte de direitos, conformando o sentido ativo da democracia, não só como forma de governo mas como projeto de sociedade.

Importante, pois, fazer circular essa obra, resultado de uma tese de doutoramento em sociologia, na USP, sob a orientação da caríssima Vera da Silva Telles, cuja obra tem sido uma referência para meus próprios estudos, desde a concepção de O Direito Achado na Rua, ela que é expressamente citada como fonte nutriente da concretização de seus pressupostos centrais: determinar o espaço político no qual as sociabilidades instituintes se manifestam; compreender o protagonismo dos sujeitos coletivos de direito na ação instituinte de direitos; categorizar os achados materializados em sua forma jurídica não necessariamente legislativa, quando não, decididamente, contra-legem. Devo a Vera Telles, assim como a Eder Sader, Maria Célia Paoli, Ana Amélia Silva, Nair Bicalho, Marilena Chauí, o arranque filosófico-sociológico para pavimentar o trânsito entre o conceito de sujeito coletivo e o de sujeito coletivo de direito, no movimento de sua inscrição nos movimentos sociais, conforme está em minha tese de doutoramento (O Direito Achado na Rua. O Direito como Liberdade. Porto Alegre: Sergio Fabris Editor, 2011).

Assim, se apresenta o livro ora Lido para Você, escrito, diz o resumo preparado pela Editora, “por um morador da periferia imerso em experiências coletivas, o livro apresenta como a organização política por meio da arte e da cultura nas periferias foi uma das maneiras como a classe trabalhadora se formou e resistiu aos ataques do neoliberalismo da década de 1990 até hoje. A obra ressalta a importância dos Racionais MC’s e de diversos coletivos culturais para a produção de intelectuais das periferias que formulam uma nova compreensão sobre as quebradas, propondo uma outra cidade e uma nova sociedade a partir das lutas antirracista, antipatriarcal e anticapitalista”.

Por essa razão, vale também apresentar esse escritor, conforme os traços por ele designados na apresentação da obra: “Tiaraju Pablo D’Andrea é Professor da Unifesp/Campus Zona Leste e do Programa de Pós-Graduação Mudança Social e Participação Política da EACH/USP. Coordena o Centro de Estudos Periféricos (CEP). É Pós-Doutor em Filosofia, Doutor em Sociologia da Cultura e Mestre em Sociologia Urbana pela Universidade de São Paulo. Fez estágio doutoral na École des Hautes Études en Sciences Sociales, em Paris, França e foi pesquisador convidado da Université Paris VIII, em Seine-Saint-Denis, França. Atuou como pesquisador no Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap) e na Usina (Centro de Trabalhos para o Ambiente Habitado). Foi mestre de bateria e ajudou a organizar batucadas populares junto a movimentos sociais. Contribui com coletivos de produção artística. É músico e possui dois CDs gravados: Capacetes Coloridos (2007) e Latinoamerisamba (2015). É autor dos livros “40 ideias de periferia: história, conjuntura e pós-pandemia” (2020) e organizador do livro “Reflexões Periféricas: propostas em movimento para a reinvenção das quebradas” (2021), ambos pela Editora Dandara. É morador da zona leste, sujeito periférico, corintiano, maloqueiro e sofredor, graças a deus”.

Em Prefácio, o professor Dennis de Oliveira da Escola de Comunicação e Artes da USP, toma o núcleo de contextualização do Autor – a periferia – para designar que “é nesse lugar que as contradições sociais mais se expressam, com a ausência de qualquer infraestrutura mínima que uma cidade deve oferecer aos seus cidadãos”. Lembrando Milton Santos, toma com ele a compreensão de que mais que em outras dimensões é aí que “o capital estabelece fluxos próprios hierarquizando espaços com a distribuição desigual de recursos disponíveis”. Para logo acentuar que “tal distribuição desigual não é aleatória, mas produto do tipo de fluxo necessário para a reprodução do capital”, e que, assim, “a resistência do povo da periferia contra a precariedade dos espaços periféricos é uma contraposição a esta dinâmica imposta ao capital – em última instância, é um embate contra o capital dentro das condições objetivas que temos nos dias de hoje”. Para o autor do Prefácio “Tiaraju fala logo na introdução que ‘o livro discorre também sobre como o conceito periferia, compreendido como classe e como totalidade particular, foi uma necessidade histórica engendrada fundamentalmente pela denúncia de um genocídio em curso”.

De fato, não fosse um trabalho com a orientação firme de Vera Telles, o Autor numa narrativa escrevivente (mesmo sem aludir a Conceição Evaristo), é criterioso no emprego de categorias, não só a categoria periferia, mas todas que aplica, até culminar com a categoria sujeito/sujeita periféricos. Daí que segundo ele, “a intenção deste livro é contar uma história da desagregação da classe trabalhadora brasileira, paulatinamente derrotada pelo neoliberalismo”, mas que logo (daí que eu não concorde com a afirmação de derrota ou de refluxo para não desconsiderar o contínuo de lutas por emancipação que acumulam reservas democráticas utópicas ativadas no pleito presidencial concluído, revelando, eu disse ao se concluir o primeiro turno, conforme https://www.ihu.unisinos.br/categorias/159-entrevistas/622664-eleicoes-2022-uma-maioria-democratica-e-uma-direita-forte-e-resiliente-algumas-analises), “se reorganizou e produziu lutas principalmente em lugares sociais e geográficos intitulados periferias urbanas”, com o objetivo, ele finaliza, não só de “mudar a história, no sentido mais amplo, mas mudar a própria história”.

Com Tiaraju, nele ênfase ao protagonista que promove transformações por mediação da cultura, eu também tenho me ocupado com a construção do conceito de sujeito coletivo de direito, e se subjetividade ativa, para agir e transformar o mundo. Em Tiaraju, o objetivo é “caracterizar a emergência de um novo sujeito político (o cidadão organizado em movimentos territoriais e urbanos) … portadores da força necessária para mudar os rumos da política e denunciar a miséria vivida pela população”.

O Autor orienta sua reflexão numa epistemologia equilibrada entre duas matrizes teóricas: o marxismo e a antropologia. O inédito de sua formulação é chegar ao que chama de um marxismo favelado, valendo-se de um enunciado de Helena Silvestre, para operar uma “interpretação que coloca em primeiro plano a experiência vivida da classe trabalhadora em dado momento histórico, com suas contradições, dificuldades, erros, acertos, saberes e práticas organizativas”.

A resultante, na interpretação é poder sustentar uma novidade, a de que a produção da existência não opera somente pelo agir consciente da classe, mas também no existencial que não se reduza, como se fez seguidamente, no periférico da vivência confinada a um espaço de simples reprodução da existência social.

Por essa razão, para o Autor, “a classe trabalhadora em movimento é compreendida em sua constituição complexa e heterogênea, dando especial ênfase aos locais onde a essa classe se produz e se reproduz: as favelas e as periferias urbanas”.

Tomando os seus próprios termos: “Não se pode apartar um povo de seu território. Historicamente, no Brasil, muitas lutas e muita organização ocorreram nos espaços de produção e de reprodução da vida – quilombos, aldeias e bairros -, em uma genealogia que se estende e não se dissocia do chão da fábrica…Essa é a nossa busca, tendo como cenário as práticas sociais, econômicas, culturais e políticas das periferias urbanas e das favelas. Tendo como horizonte a luta anticapitalista, antipatriarcal e antirracista”.

Para a professora Daniela Vieira que assina uma orelha do livro, “Os usos e significados do conceito periferia encontram-se atualmente em disputa. Seja na esfera dos movimentos sociais, nas produções culturais ou pelo mercado, há renovação do seu sentido. Não ganha força apenas o lado miserável e violento com o qual a literatura especializada costumava caracterizá-lo. Em meio às vulnerabilidades também florescem perspectivas de vida! Isso se evidencia nas produções culturais que emergem de espaços periféricos a parir dos anos 1990. A complexidade dessa configuração e a tentativa de definir sociologicamente sujeitas e sujeitos periféricos, sintetizando um processo social ainda em curso, é matéria do livro. Tiaraju deslinda o advento do neoliberalismo e a emergência – não isenta de contradições – das produções culturais nesse contexto. A obra mergulha em novas formas de organização social e política, porém, não recai na armadilha da dicotomia; é a um só tempo o registro da ‘nova razão do mundo’ e, igualmente, as possibilidades para a não resignação do futuro”.

De minha parte, a obra, por sua autenticidade, contribuiu para robustecer meu argumento duplo, sobre o espaço ressignificado e sobre as subjetividades instituintes, algo que eu divisara quando participei de banca examinadora na UnB e logo, no prefácio feito a pedido do autor, sobre temática em que essas questões são alinhadas. Refiro-me (vou citar pelo livro já no prelo, pela Editora Lumen Juris), Na Calada da Noite: processos culturais e o Direito achado na noite em Brasília, de Willy da Cruz Moura, desdobrada da Dissertação de Mestrado Cultura e Vida Noturna em Brasília: Poder, espaço, coletividade e o Direito achado na noite (Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos e Cidadania. CEAM/Universidade de Brasília, 2022).

No meu Prefácio aludo aos referenciais, encontrados no trabalho, que vão dar ao Autor, confiança para aventar categorias inéditas como “a noite como espaço”, nessa fortuna crítica que em O Direito Achado na Rua tem levado a alargar, na ação dos sujeitos coletivos de direitos e suas práticas instituintes de novos direitos, a demarcação de novos espaços sociais, para além da metáfora da rua, e assim discernir, ressignificando, espaços críticos como direitos achados na rede, nas águas, nas aldeias, nas florestas, no campo, no cárcere, no manicômio, no armário, no gueto…na noite. Uma construção que dialoga com os sujeitos em seu protagonismo inter-subjetivo quando assumem a titularidade coletiva de direitos.

No estudo de Tiaraju, essa ressignificação se dá no alcance que ele projeta ao tomar a formulação artística do Grupo Racionais MC’s, desde que entraram na cena pública, numa realização de impacto: “O impacto da obra se deve também ao fato dela ser enunciada em três dimensões diferentes: é uma produção artística, por motivos evidentes; é uma análise que confere inteligibilidade às vivências do mundo social, e; é uma pauta política, uma vez que se transformou também em uma formuladora de práticas sociais reproduzidas por grande número de jovens das periferias…os Racionais MC’s foram um elemento catalisador que propiciou a movimentação de uma engrenagem baseada no orgulho de ser periférico e na formação de sujeitas e sujeitos periféricos”. Anoto, com uma referência de reconhecimento, que o Autor se vale de uma oferta interpretativa, especialmente para caracterizar com a autenticidade da autoria para a “compreensão alargada e contemporânea da classe trabalhadora”, por meio da expressão cultural, valendo-se de um recorte analítico construído por GOG, meu amigo rapper. Forte na cena cultural brasiliense, GOG muito contribuiu com o meu reitorado na UnB, para alargar no social o imaginário dos jovens estudantes, nas aulas de inquietação dos períodos de acolhimento e abertura de cada semestre letivo (https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/cidades/2009/03/09/interna_cidadesdf,86805/unb-recebe-2-7-mil-calouros-com-convite-a-ocupacao-dos-espacos.shtmlhttp://ideiaspaposebesteiras.blogspot.com/2009/03/teatro-de-arena-da-unb-vai-renascer-na.html);  GOG, aliás, juntamente com Renan Inquérito fizeram a inserção artística na cerimônia solene de outorga de doutoramento honoris causa a Boaventura de Sousa Santos. No evento foi entusiasmante assistir o arejamento do auditório acadêmico sisudo galvanizado pela performance dos artistas, na cadência de Brasil com P (GOG) e Rap Global, letra do próprio Boaventura e performance de Renan Inquérito (https://www.youtube.com/watch?v=2JznnTsGmg8).

O cerne do trabalho de Tiaraju D’Andrea é conceituar as sujeitas e os sujeitos periféricos, um processo no qual ele desnovela o entrelaçamento “entre um contexto histórico, uma gama de relações sociais e espaciais e um arcabouço conceitual [que é] expressão de uma teia de relações sociais que envolvem e formam os indivíduos em seus espaços”. Esse entrelaçamento é constituído por vários enlaces, cada um deles examinados analiticamente incluindo seus referenciais, mas que são o alinhavo de “contribuições para a definição dos conceitos vivência, habitus (com os contornos que lhe atribui Bourdieu), experiência, subjetividade, identidade e consciência periférica”.

Na elaboração de Tiaraju, considerando a sutileza das muitas distinções que ele deslinda, “a produção de vivências e experiências, das quais o habitus e a subjetividade são resultantes, origina-se de relações sociais e contextos culturais e econômicos em dado espaço geográfico, conformando características próprias de determinado grupo social e tendo como desdobramento uma experiência social compartilhada internamente”, no seu estudo, à quebrada, à favela, à comunidade, ao bairro, em suma, à periferia, que com GOG e os Racionais MC’s, caracterizam o periférico em qualquer lugar.

A categoria sujeito coletivo de direito tal como eu a proponho, designa um construto reconhecidamente desenvolvido com certa anterioridade no Grupo de Pesquisa O Direito Achado na Rua. Há boa documentação confirmando o itinerário do desenvolvimento e de sua aplicação de um modo bem característico e próprio.

Até mesmo no âmbito da iniciação científica, na modelagem do protocolo acadêmico de pesquisa nesse tema, os acréscimos, assim como agora nessa denotação trazida por Tiaraju D’Andrea, com a formulação de sujeitas e sujeitos periféricos, a categoria tem sido rastreada em seus aportes políticos e epistemológicos. Basta ver, nessa perspectiva de iniciação científica, o verbete preparado pelos alunos e alunas da disciplina Pesquisa Jurídica (Curso de Direito da Faculdade de Direito da UnB – Universidade de Brasília, alunos do primeiro semestre), certamente com supervisão de docentes e monitores e que passa a compor a autoria anônima do repositório com o enunciado sujeito coletivo de direito (https://pt.wikipedia.org/wiki/Sujeito_coletivo_de_direito).

Bem composto, numa articulação editorial que teve idas e vindas até ser validado, o verbete compreende um Início, Sujeito nos sentidos filosófico e jurídico, Importância dos movimentos sociais para o sujeito coletivo de direito, História, Definição, Importância para o direito, Estudos científicos, Exemplos práticos, Reforma Agrária e Educação no Campo, O Direito Achado no Ver-o-Peso, Referências e Bibliografia.

Para o que aqui importa, um excerto dessa construção:

O Sujeito Coletivo de Direito é aquele que adquire fundamento jurídico por meio da ação coletiva dos movimentos sociais[1]. Esse conceito envolve o entendimento da atuação dos movimentos sociais, os quais conciliam a bagagem histórica e o conhecimento prático de suas reivindicações no contexto político e social em que se encontram. Dessa forma, os movimentos sociais coletivos são protagonistas nos processos de transformação social.[2]

Segundo o Professor José Geraldo de Sousa Júnior, o importante para a utilização da noção de sujeito na designação dos movimentos sociais é a conjugação entre o processo das identidades coletivas como forma do exercício de suas autonomias e a consciência de um projeto coletivo de mudança social a partir das próprias experiências.[3]

A análise sociológica do conceito sujeito coletivo de direito mostra que o surgimento do sujeito coletivo se realiza em um processo marcado pela carência social, que é percebida como a negação de direitos que provoca uma luta para conquistá-los.[4] A constituição de um movimento social contrário ao clientelismo, característico das relações tradicionais, representa a valorização da participação das camadas subalternas da população na luta pelos seus direitos.[4] Dessa forma, a luta por direitos realizada pelos desfavorecidos social e economicamente representa uma experiência emancipatória.[5]

Nesse contexto, o sujeito coletivo de direito é descentralizado, se afastando da concepção burguesa da subjetividade, pois abandona o caráter marcado pela individualidade, sendo um ser social coletivo.[6] Os novos sujeitos coletivos de direito representam uma forma de direito alternativo, pois se realizam em desencontro ao direito pré-estabelecido na sociedade, o direito positivo.[5]

A análise da experiência da ação dos novos sujeitos coletivos de direito designa uma prática social, que autoriza estabelecer novas configurações sociais, a constituição de novos processos sociais e de novos direitos, que são enunciados por meio da determinação de espaços sociais derivados das novas configurações, além de estabelecer a afirmação teórica do sujeito coletivo de direito.[7]

Diversos estudos práticos têm sido feitos a partir do conceito de sujeito coletivo de direito. Entre eles, destacam-se os estudos na área de moradia pública[8], reforma agrária[9] e saúde pública[10], os quais foram realizados, principalmente, sob a ótica do Direito Achado na Rua.

Conservei a numeração das notas para que possam ser conferidas na leitura direta do verbete. De toda sorte o que vale por em relevo é a definição que os autores e autoras (anônimos), logram esboçar:

A categoria sujeito coletivo de direito foi formulada teoricamente pela primeira vez na XIII Conferência Nacional da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). Nessa conferência, José Geraldo de Sousa Júnior definiu o sujeito coletivo de direito como uma categoria analítica do direito. [22] O termo sujeito coletivo de direito descreve grupos de pessoas reconhecidas perante os ordenamentos jurídicos, a sociedade e a ética quanto a sua capacidade ético-jurídica independente. Os sujeitos coletivos de direito são compostos por diversas identidades subalternas únicas e contrastantes entre si, que caracterizam uma cidadania ativa e participativa e que constroem esta ao reivindicarem seus direitos anteriormente não representados por meio da luta, criando e utilizando espaços sociais já existentes de discussão e ativismo político no processo. Dessa forma, o sujeito coletivo de direito busca a liberdade pelo processo emancipatório [23]

O sujeito coletivo de direito é a representação jurídica do sujeito coletivo, que é propriamente o coletivo reunido, o qual busca a reivindicação de seus direitos por meio dos movimentos sociais.[24] O sujeito coletivo de direito é constituído pelos seguintes elementos: a autoconsciência, a autonomia, a eliminação da alienação, o compartilhamento de um problema em comum, a carência social, a ocupação e a criação de espaços, sejam físicos, culturais e políticos, as manifestações coletivas histórico-políticas (movimentos sociais), o status de transformadores da estrutura política, econômica e social, a aquisição, a mudança e a construção de direitos (transformação jurídica).[25][26]

Observe-se, nessa caracterização, em cuja representação se investem os sujeitos coletivos de direito, uma convergência dos elementos que Tiaraju articula para falar das sujeitas e dos sujeitos periféricos. A apropriação do periférico, nessa franja de ressignificações das configurações que formam o contexto que ainda sustenta a dimensão abrangente do sujeito na conformação de seu lugar numa classe que é delineada desde o mundo do trabalho por antagonismo com o sujeito que se apropria do capital, não ignora a complexidade das várias dimensões da espoliação e da opressão que lhe acicata a consciência do querer ser sujeito.

Já mostrava Nair Bicalho (Novos Sujeitos Coletivos, XV Conferência Nacional da Ordem dos Advogados do Brasil. Conselho Federal da OAB/Anais. Foz do Iguaçu: setembro de 1994), tomando a minha definição de sujeito coletivo de direito como um ponto de partida, de que “não mais falamos apenas em trabalhadores e burguesia, tal como foi o modelo do século passado, pautado na sociedade industrial. Hoje temos uma sociedade muito mais complexa, pois o capitalismo contemporâneo apresenta um embricamento entre as esferas do econômico, do social, do político e do cultural. No caso brasileiro, estamos diante de uma sociedade que gerou esses novos sujeitos coletivos, como resultado da politização de diferentes áreas das relações sociais na vida cotidiana: o mundo do trabalho, a área da saúde, da educação, até os clubes de mães, de futebol e os bairros foram espaços da sociedade que passaram a ser politizados na luta por direitos. Esses são os que que desenvolveram uma prática autônoma de partidos, de sindicatos e do próprio Estado, pautada e definida em uma experiência de solidariedade, no processo de criação de novos direitos”.

Com seu conceito de sujeitas e sujeitos periféricos, Tiaraju traz ao menos cinco pressupostos básicos, cuidadosamente explicados no livro, para sustentar o seu enunciado:  o assujeitamento (a condição ou a situação em que se dá a sua formação), a subjetividade (referida a dimensão de elementos intangíveis que constituem o ser humano, entretanto derivada de experiências compartilhadas), os códigos culturais compartilhados (expressões de formas e modos de vida particulares em determinados espaços), a consciência de pertencimento (entendida como elaboração intelectual que permite a compreensão de uma posição compartilhada a partir de um determinado território) e o agir político (ato de apoderar-se da própria história, tornando-se protagonista político a partir da ação em prol do território).

Nos referenciais de construção da categoria sujeito coletivo de direito, podemos validar esses pressupostos. Desde a dimensão mais abrangente em quanto sujeito coletivo propriamente, tal como o enuncia Nair Bicalho; ou mais próxima a condição de titularidade subjetiva jurídica, como aparece em Mauro Noleto (NOLETO, Mauro. Sujeitos de Direito. Ensaios Críticos de Introdução ao Direito. São Paulo: Editora Dialética, 2021).

Ao me debruçar sobre o livro de Mauro Noleto, para escrever um prefácio a seu convite (a propósito conferir em maior alcance http://estadodedireito.com.br/sujeitos-de-direito-ensaios-criticos-de-introducao-ao-direito/), não pude deixar de estabelecer uma ligação, quase de continuidade, e um trabalho anterior de Mauro: Subjetividade Jurídica. A Titularidade de Direitos em Perspectiva Emancipatória. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1998, que também prefaciei. Nesse texto, de 1998, Mauro já sustentava não ser mais possível aceitar que a questão da titularidade de direitos seja respondida abstrata e formalmente. Em outras palavras, dizer que todos são titulares de direitos fundamentais, como declara a letra da Constituição, não quer dizer que todos exercemos efetivamente os mesmos direitos em igualdade de condições, com a mesma intensidade e simultaneamente, ou seja, nos espaços públicos – na “rua” – em que os direitos se originam, realizam ou são violados existe uma rede intrincada e assimétrica de relações; nessa rede há atritos entre valores e interesses, há conflito social, há projetos de vida diversos e às vezes antagônicos, há desigualdades econômicas, e há também identidades sociais em formação, que carregam sentidos jurídicos concretos para os direitos fundamentais.

Trata-se, em todos esses estudos, entre eles o de Tiaraju Pablo D’Andrea, nesse seu A Formação das Sujeitas e dos Sujeitos Periféricos. Cultura e Poítica na Periferia de São Paulo, evidentemente, de uma experiência emancipatória. Roberto Lyra Filho a havia compreendido neste sentido e, por esta razão, para ele, o direito não pode ser compreendido como mera restrição, senão, tal como ele o entendia, enquanto enunciação dos princípios de uma legítima organização social da liberdade.

E o que será, pois, neste processo, entender o Direito como modelo de legítima organização social da liberdade, base e projeção paras os estudos e pesquisas que constituem a fortuna crítica de O Direito Achado na Rua? É perceber, conforme indica Roberto Lyra Filho, que o Direito se faz no processo histórico de libertação enquanto desvenda precisamente os impedimentos da liberdade não-lesiva aos demais. Nasce na rua, no clamor dos espoliados e oprimidos e sua filtragem nas normas costumeiras e legais tanto pode gerar produtos autênticos (isto é, atendendo ao ponto atual mais avançado de conscientização dos melhores padrões de liberdade em convivência) quanto produtos falsificados (isto é, a negação do Direito do próprio veículo de sua efetivação, que assim se torna um organismo canceroso, como as leis que ainda por aí representam a chancela da iniquidade, a pretexto de consagração do Direito) [ARAUJO, Doreodó (Org). Desordem e Processo – Estudos Jurídicos em Homenagem a Roberto Lyra Filho. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1986].

Nesse eixo teórico insere-se o trabalho de Tiaraju D’Andrea, nessa primorosa edição da Editora Dandara. Sociologicamente sensível ao reconhecimento das novas identidades que se formam no processo jurídico-histórico de luta pela superação dos entraves à emancipação social e à construção de novas sociabilidades, ele está também política e culturalmente apto a não só definir a natureza jurídica do sujeito e da sujeita periféricos emergentes deste processo, como também, enquadrar os dados derivados de suas práticas sociais criadoras de sociabilidades e direitos nomeando as novas categorias que as representam.

 

 

José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil,  Professor Titular, da Universidade de Brasília,  Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua

terça-feira, 25 de outubro de 2022

 

Favelado Não É Bandido

  •  em 



 

Num momento da campanha eleitoral, num debate, veio à tona o tema da periferia. Foi marcante ouvir da direita, por seu candidato, a afirmação convicta de que a periferia é o lugar da marginalidade, da criminalidade, do tráfico, um antro de bandidagem. Enquanto o presidente Lula, alvo da incriminação e que acabara de visitar uma comunidade no Rio de Janeiro, expressava toda a sua compreensão de reconhecimento às subjetividades organizadas em suas comunidades se expressando no ethos de que é o povo trabalhador, que aí vive, o protagonista de sua ação emancipadora que se constitui pela cidadania e por sua capacidade instituinte de direitos, conformando o sentido ativo da democracia, não só como forma de governo mas como projeto de sociedade.

 

A imagem escolhida para ilustrar este artigo, afirma em sua bela plasticidade, que “favelado não é bandido” e convoca a que, tal como o Presidente Lula, se “respeite a favela”.

 

Por coincidência, enquanto essa diferença de compreensão sobre o social se desenrolava na campanha, eu estava lendo para resenhar, um livro muito interessante, resultado de uma tese de doutoramento na USP:A Formação das Sujeitas e dos Sujeitos Periféricos. Cultura e política na periferia de São Paulo, de Tiaraju Pablo D’Andrea, São Paulo: Dandara Editora, 2022, 288 p.

 

O livro foi escrito “por um morador da periferia imerso em experiências coletivas, o livro apresenta como a organização política por meio da arte e da cultura nas periferias foi uma das maneiras como a classe trabalhadora se formou e resistiu aos ataques do neoliberalismo da década de 1990 até hoje. A obra ressalta a importância dos Racionais MC’s e de diversos coletivos culturais para a produção de intelectuais das periferias que formulam uma nova compreensão sobre as quebradas, propondo uma outra cidade e uma nova sociedade a partir das lutas antirracista, antipatriarcal e anticapitalista”.

 

De fato, não fosse um trabalho com a orientação firme de Vera Telles, o Autor numa narrativa escrevivente(mesmo sem aludir a Conceição Evaristo), é criterioso no emprego de categorias, não só a categoria periferia, mas todas que aplica, até culminar com a categoria sujeito/sujeita periféricos. Daí que segundo ele, “a intenção deste livro é contar uma história da desagregação da classe trabalhadora brasileira, paulatinamente derrotada pelo neoliberalismo”, mas que logo (daí que eu não concorde com a afirmação de derrota ou de refluxo para não desconsiderar o contínuo de lutas por emancipação que acumulam reservas democráticas utópicas ativadas no pleito presidencial concluído, revelando, eu disse ao se concluir o primeiro turno, conforme https://www.ihu.unisinos.br/categorias/159-entrevistas/622664-eleicoes-2022-uma-maioria-democratica-e-uma-direita-forte-e-resiliente-algumas-analises), “se reorganizou e produziu lutas principalmente em lugares sociais e geográficos intitulados periferias urbanas”, com o objetivo, ele finaliza, não só de “mudar a história, no sentido mais amplo, mas mudar a própria história”.

 

Com Tiaraju, nele ênfase ao protagonista que promove transformações por mediação da cultura, eu também tenho me ocupado com a construção do conceito de sujeito coletivo de direito, e se subjetividade ativa, para agir e transformar o mundo. Em Tiaraju, o objetivo é “caracterizar a emergência de um novo sujeito político (o cidadão organizado em movimentos territoriais e urbanos)…portadores da força necessária para mudar os rumos da política e denunciar a miséria vivida pela população”.

 

O Autor orienta sua reflexão numa epistemologia equilibrada entre duas matrizes teóricas: o marxismo e a antropologia. O inédito de sua formulação é chegar ao que chama de um marxismo favelado, valendo-se de um enunciado de Helena Silvestre, para operar uma “interpretação que coloca em primeiro plano a experiência vivida da classe trabalhadora em dado momento histórico, com suas contradições, dificuldades, erros, acertos, saberes e práticas organizativas”.

 

A resultante, na interpretação é poder sustentar uma novidade, a de que a produção da existência não opera somente pelo agir consciente da classe, mas também no existencial que não se reduza, como se fez seguidamente, no periférico da vivência confinada a um espaço de simples reprodução da existência social.

 

A obra, por sua autenticidade, contribuiu para robustecer meu argumento duplo, sobre o espaço ressignificado e sobre as subjetividades instituintes, algo que eu divisara quando participei de banca examinadora na UnB e logo, no prefácio feito a pedido do autor, sobre temática em que essas questões são alinhadas. Refiro-me (vou citar pelo livro já no prelo, pela Editora Lumen Juris), Na Calada da Noite: processos culturais e o Direito achado na noite em Brasília, de Willy da Cruz Moura, desdobrada da Dissertação de Mestrado Cultura e Vida Noturna em Brasília: Poder, espaço, coletividade e o Direito achado na noite (Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos e Cidadania. CEAM/Universidade de Brasília, 2022).

 

No meu Prefácio aludo aos referenciais, encontrados no trabalho, que vão dar ao Autor, confiança para aventar categorias inéditas como “a noite como espaço”, nessa fortuna crítica que em O Direito Achado na Rua tem levado a alargar, na ação dos sujeitos coletivos de direitos e suas práticas instituintes de novos direitos, a demarcação de novos espaços sociais, para além da metáfora da rua, e assim discernir, ressignificando, espaços críticos como direitos achados na rede, nas águas, nas aldeias, nas florestas, no campo, no cárcere, no manicômio, no armário, no gueto…na noite. Uma construção que dialoga com os sujeitos em seu protagonismo inter-subjetivo quando assumem a titularidade coletiva de direitos.

 

No estudo de Tiaraju, essa ressignificação se dá no alcance que ele projeta ao tomar a formulação artística do Grupo Racionais MC’s, desde que entraram na cena pública, numa realização de impacto: “O impacto da obra se deve também ao fato dela ser enunciada em três dimensões diferentes: é uma produção artística, por motivos evidentes; é uma análise que confere inteligibilidade às vivências do mundo social, e; é uma pauta política, uma vez que se transformou também em uma formuladora de práticas sociais reproduzidas por grande número de jovens das periferias…os Racionais MC’s foram um elemento catalisador que propiciou a movimentação de uma engrenagem baseada no orgulho de ser periférico e na formação de sujeitas e sujeitos periféricos”. Anoto, com uma referência de reconhecimento, que o Autor se vale de uma oferta interpretativa, especialmente para caracterizar com a autenticidade da autoria para a “compreensão alargada e contemporânea da classe trabalhadora”, por meio da expressão cultural, valendo-se de um recorte analítico construído por GOG, meu amigo rapper. Forte na cena cultural brasiliense, GOG muito contribuiu com o meu reitorado na UnB, para alargar no social o imaginário dos jovens estudantes, nas aulas de inquietação dos períodos de acolhimento e abertura de cada semestre letivo (https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/cidades/2009/03/09/interna_cidadesdf,86805/unb-recebe-2-7-mil-calouros-com-convite-a-ocupacao-dos-espacos.shtmlhttp://ideiaspaposebesteiras.blogspot.com/2009/03/teatro-de-arena-da-unb-vai-renascer-na.html);  GOG, aliás, juntamente com Renan Inquérito fizeram a inserção artística na cerimônia solene de outorga de doutoramento honoris causa a Boaventura de Sousa Santos. No evento foi entusiasmante assistir o arejamento do auditório acadêmico sisudo galvanizado pela performance dos artistas, na cadência de Brasil com P(GOG)eRap Global, letra do próprio Boaventura e performance de Renan Inquérito (https://www.youtube.com/watch?v=2JznnTsGmg8).

 

O cerne do trabalho de Tiaraju D’Andrea é conceituar as sujeitas e os sujeitos periféricos, um processo no qual ele desnovela o entrelaçamento “entre um contexto histórico, uma gama de relações sociais e espaciais e um arcabouço conceitual [que é] expressão de uma teia de relações sociais que envolvem e formam os indivíduos em seus espaços”. Esse entrelaçamento é constituído por vários enlaces, cada um deles examinados analiticamente incluindo seus referenciais, mas que são o alinhavo de “contribuições para a definição dos conceitos vivência, habitus (com os contornos que lhe atribui Bourdieu), experiência, subjetividade, identidade e consciência periférica”.

 

Na elaboração de Tiaraju, considerando a sutileza das muitas distinções que ele deslinda, “a produção de vivências e experiências, das quais o habitus e a subjetividade são resultantes, origina-se de relações sociais e contextos culturais e econômicos em dado espaço geográfico, conformando características próprias de determinado grupo social e tendo como desdobramento uma experiência social compartilhada internamente”, no seu estudo, à quebrada, à favela, à comunidade, ao bairro, em suma, à periferia, que com GOG e os Racionais MC’s, caracterizam o periférico em qualquer lugar.

 

A categoria sujeito coletivo de direito tal como eu a proponho, designa um construto reconhecidamente desenvolvido com certa anterioridade no Grupo de Pesquisa O Direito Achado na Rua. Há boa documentação confirmando o itinerário do desenvolvimento e de sua aplicação de um modo bem característico e próprio.

 

Até mesmo no âmbito da iniciação científica, na modelagem do protocolo acadêmico de pesquisa nesse tema, os acréscimos, assim como agora nessa denotação trazida por Tiaraju D’Andrea, com a formulação de sujeitas e sujeitos periféricos, a categoria tem sido rastreada em seus aportes políticos e epistemológicos.Basta ver, nessa perspectiva de iniciação científica, o verbete preparado pelos alunos e alunas da disciplina Pesquisa Jurídica (Curso de Direito da Faculdade de Direito da UnB – Universidade de Brasília, alunos do primeiro semestre), certamente com supervisão de docentes e monitores e que passa a compor a autoria anônima do repositório com o enunciado sujeito coletivo de direito (https://pt.wikipedia.org/wiki/Sujeito_coletivo_de_direito).

 

Observe-se, nessa caracterização, em cuja representação se investem os sujeitos coletivos de direito, uma convergência dos elementos que Tiaraju articula para falar das sujeitas e dos sujeitos periféricos. A apropriação do periférico, nessa franja de ressignificações das configurações que formam o contexto que ainda sustenta a dimensão abrangente do sujeito na conformação de seu lugar numa classe que é delineada desde o mundo do trabalho por antagonismo com o sujeito que se apropria do capital, não ignora a complexidade das várias dimensões da espoliação e da opressão que lhe acicata a consciência do querer ser sujeito.

 

Com seu conceito de sujeitas e sujeitos periféricos, Tiaraju traz ao menos cinco pressupostos básicos, cuidadosamente explicados no livro, para sustentar o seu enunciado:  o assujeitamento(a condição ou a situação em que se dá a sua formação), a subjetividade (referidaa dimensão de elementos intangíveis que constituem o ser humano, entretanto derivada de experiências compartilhadas), os códigos culturais compartilhados (expressões de formas e modos de vida particulares em determinados espaços), a consciência de pertencimento (entendida como elaboração intelectual que permite a compreensão de uma posição compartilhada a partir de um determinado território) e o agir político (ato de apoderar-se da própria história, tornando-se protagonista político a partir da ação em prol do território).

 

A tese de Tiaraju Pablo D’Andrea, nesse seu A Formação das Sujeitas e dos Sujeitos Periféricos. Cultura e Política na Periferia de São Paulo, evidentemente, de uma experiência emancipatória. Sociologicamente sensível ao reconhecimento das novas identidades que se formam no processo jurídico-histórico de luta pela superação dos entraves à emancipação social e à construção de novas sociabilidades, ele está também política e culturalmente apto a não só definir a natureza jurídica do sujeito e da sujeita periféricos emergentes deste processo, como também, enquadrar os dados derivados de suas práticas sociais criadoras de sociabilidades e direitos nomeando as novas categorias que as representam.

 

Eis, em síntese, o que se disputa na mais importante eleição já travada em nosso País. Contra um projeto necropolítico, que deixa morrer o povo sem proteção na cruel incidência de um vírus letal; que mercadoriza o social transformando o humano e a natureza em recursos para o processo de produção e de acumulação do capital; que aliena o humano do protagonismo político contendo a sua participação na realização de sua própria história e o canibaliza, numa antropofagia que não é apenas simbólica (“eu comeria sim um índio”), erotizando a infância, mercadejando a fé e criminalizando o protesto e a luta por direitos; a saída civilizatória só pode ser um projeto de vida, que confie na participação popular, que reconheça a subjetividade ativa das mulheres, das crianças, das singularidades identitárias, dos apenados enquanto disponham de reservas de dignidade não destituídas pelas sentenças condenatórias, dos povos e das comunidades, das sujeitas e dos sujeitos periféricos, em todos os espaços de esperança até transformá-los em territórios de cidadania.

 

 

(*) José Geraldo de Sousa Junior é professor titular na Faculdade de Direito e ex-reitor da Universidade de Brasília (UnB)


José Geraldo de Sousa Junior é graduado em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal – AEUDF, mestre e doutor em Direito pela Universidade de Brasília – UnB. É também jurista, pesquisador de temas relacionados aos direitos humanos e à cidadania, sendo reconhecido como um dos autores do projeto Direito Achado na Rua, grupo de pesquisa com mais de 45 pesquisadores envolvidos.

 

Professor da UnB desde 1985, ocupou postos importantes dentro e fora da Universidade. Foi chefe de gabinete e procurador jurídico na gestão do professor Cristovam Buarque; dirigiu o Departamento de Política do Ensino Superior no Ministério da Educação; é membro do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil – OAB, onde acumula três décadas de atuação na defesa dos direitos civis e de mediação de conflitos sociais.

 

Em 2008, foi escolhido reitor, em eleição realizada com voto paritário de professores, estudantes e funcionários da UnB. É autor de, entre outros, Sociedade Democrática (Universidade de Brasília, 2007), O Direito Achado na Rua. Concepção e Prática 2015 (Lumen Juris, 2015) e Para um Debate Teórico-Conceitual e Político Sobre os Direitos Humanos (Editora D’Plácido, 2016).