quarta-feira, 22 de março de 2023

 

Diversidade e direitos humanos na universidade do futuro

Pensar a diversidade e os direitos humanos na universidade contribui para ampliar os diálogos e a luta por uma sociedade mais equitativa

 

O presente texto deriva de minha contribuição como expositor no encerramento da 9ª Conferência do Fórum de Gestão do Ensino Superior nos Países e Regiões de Língua Portuguesa (FORGES), realizada de 20 a 22 de novembro de 2019 em Brasília, Brasil, na Universidade de Brasília (UnB), tendo como tema central “A integração do ensino superior dos países lusófonos para a promoção do desenvolvimento humano”, com o título: “Uma Universidade Popular para uma Educação Emancipatória”.[1]

Aqui destaco alguns excertos do que está publicado, na medida em que guardam conexão com o tema proposto para esta edição de Ciência & Cultura – “Universidade do Futuro no Brasil” – e mais propriamente com o que trato em meu artigo “Diversidade e Direitos Humanos na Universidade do Futuro”.

Iniciei a minha saudação aos participantes da 9ª Conferência com uma evocação. Presente em Coimbra, na Sala dos Capelos, da vetusta universidade, nos começos da década de 2000, para um Congresso Portugal-Brasil, guardo em mim até hoje o sentimento marcado pela disposição de todos ali presentes, de construir caminhos para a uma história comum: “a história comum que forja a comunidade de culturas e a comunidade de afetos que somos”.[2]

Essas palavras, ditas pelo então presidente do Conselho Diretivo da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, logo a seguir, seu vice-reitor, o professor António José Avelãs Nunes, assinalaram as distinções entre o Portugal português e o Brasil brasileiro, no que tange aos seus caminhos, nas condições daquele congresso. Mas se prestam também para designar as distinções entre o Portugal português e os países que formam a comunidade de povos de língua portuguesa, presentes nesta 9ª Conferência (Angola, Cabo Verde, Macau, Moçambique e certamente entre os participantes, Guiné Bissau, Guiné Equatorial, São Tomé e Príncipe, Timor-Leste) no que tange aos seus próprios e intercruzáveis caminhos, em que pese, lembra Eduardo Lourenço, “cada povo só o é por se conceber justamente como destino”.[3]

 

“A exclusão social crescente é a outra face deste tipo de desenvolvimento perverso ou maligno. E a exclusão social é um dos fenômenos mais dramáticos do nosso tempo.”

 

Temos, sim, os povos que se expressam em língua portuguesa, essa história comum que nos forja enquanto comunidade de culturas e comunidade de afetos, e que nos amalgama a partir de algum momento em nossas próprias histórias. Mas, se temos uma história desde aí comum, o que temos de comum em nossos destinos?

Ao meu perceber, o que há de comum entre nós, desde um momento objetivo de encontro e de qualquer possibilidade de um destino também comum, é o impacto dramático do colonialismo que se impôs sobre nossas identidades e as projeções decorrentes dessa experiência em nossa atualidade pós-colonial afetada econômica e politicamente pelas injunções atuais do ultra-neoliberalismo e pelos desafios de toda ordem como exigências de libertação e de emancipação num processo de ação decolonial.

Sob a perspectiva da condição ultra-neoliberal, sigo pensando num bom português que ajude a interpretar os desafios que se colocam à nossa consideração. Retomo Avelãs Nunes: Nos últimos anos – diz ele – tenho dado alguma atenção à problemática da globalização. Refiro-me ao que costumo chamar a terceira onda da globalização, marcada por um processo acelerado de desenvolvimento científico e tecnológico, especialmente no que toca aos transportes, às telecomunicações e à informática. Para as classes dominantes, para as multinacionais e para o seu estado, pouco importa que milhões de pessoas morram de fome e de doenças provocadas pela fome. O que importa, num quadro como este, é melhorar o poder de compra dos clientes (a pequena camada de ricos) e, se possível, acrescentar uns quantos privilegiados a este núcleo de elite. O que, evidentemente, aconselha a (e pressiona no sentido da) concentração dos rendimentos ainda mais acentuada e desigual.

A exclusão social crescente é a outra face deste tipo de desenvolvimento perverso ou maligno. E a exclusão social é um dos fenômenos mais dramáticos do nosso tempo. Como escreveu um autor, quando se falava de exploradores e explorados, havia que contar com estes, porque os explorados estavam dentro do sistema (sem explorados não pode haver exploradores), enquanto os excluídos estão, por definição, fora do sistema, são inexistentes.

 

“A luta por uma sociedade alternativa pressupõe que a política prevaleça sobre as pretensas ‘leis naturais’ do mercado ou da economia, implicando um espírito de resistência e um projeto político inspirado em valores”.

 

É importante salientar, porém, que a crítica da globalização não pode confundir-se com a defesa do regresso a um qualquer “paraíso perdido”, negador da ciência e do progresso. A saída desta caminhada vertiginosa para o abismo tem de assentar na confiança no homem e nas suas capacidades. Tem de partir da rejeição da lógica de uma qualquer inevitabilidade tecnológica, que nos imporia, sem alternativa possível, a atual globalização neoliberal, uma das marcas incontornáveis dessa civilização fim-da-história.

Assim como essa globalização não é um “produto técnico” deterministicamente resultante da evolução tecnológica, antes é um projeto político levado a cabo de forma consciente e sistemática pelos poderes dominantes, enquadrado e apoiado pelas grandes centrais produtoras da ideologia dominante, também a luta por uma sociedade alternativa pressupõe que a política prevaleça sobre as pretensas “leis naturais” do mercado ou da economia, implicando um espírito de resistência e um projeto político inspirado em valores e empenhado em objetivos que o “mercado” não reconhece nem é capaz de prosseguir.

Todos sabemos, porém, que as mudanças necessárias não acontecem só porque nós acreditamos que é possível um mundo melhor. Essas mudanças hão de verificar-se como resultado das leis de movimento das sociedades humanas, e todos sabemos também que o voluntarismo e as boas intenções nunca foram o motor da história. Mas a consciência disso mesmo não tem que matar o nosso direito à utopia e o nosso direito ao sonho.

Até aqui, discorri seguindo Avelãs.[4] Mas, nesse diapasão, trata-se, pois, de indagar-se de que desenvolvimento se cuida, quando falamos em desenvolvimento. Essa é a questão proposta por Roberta Amanajás Monteiro, em tese defendida na Faculdade de Direito da UnB, sob minha orientação em 2018. Com o tema “Qual desenvolvimento? O deles ou o nosso? A Hidrelétrica de Belo Monte e seus impactos nos direitos humanos dos povos indígenas”, a pesquisadora apresenta exatamente a tensão entre o desenvolvimentismo e os direitos humanos a partir do estudo de caso da construção da Usina Hidrelétrica de Belo Monte e os seus impactos aos indígenas Arara da Terra Indígena Volta Grande e Juruna, da Paquiçamba. A pergunta central de sua tese interpela como ocorre a tensão entre projetos de desenvolvimentismo e os direitos humanos dos povos indígenas, e se os conflitos se inscrevem na matriz colonial de poder. Fundamentada na teoria da Colonialidade do Poder de Anibal Quijano e nos autores do pensamento decolonial, a metodologia eleita por Roberta Amanajás apoiada em investigação empírica, fornece os argumentos da constatação da incidência da ideia de raça no percurso do licenciamento ambiental do empreendimento.

Para a autora, numa aproximação sociológico-jurídica, a compreensão de que é a partir da ideia de raça que é negada a condição de sujeito de direitos e de conhecimento aos povos indígenas, consequentemente dos seus direitos de território, natureza, modo de vida e direito à participação e consulta prévia, a conclusão leva, necessariamente, à expectativa militante de construção de elementos de desenvolvimento a partir dos próprios povos indígenas.

 

“Interpelar a universidade para que ela se abra a novos modos de ingresso e de inclusão de segmentos dela excluídos. Alargar o âmbito das pautas pedagógicas que desenvolve e fazer circular no ambiente do ensino e da pesquisa novos temas, cosmologias plurais, epistemologias mais complexas e um diálogo mais amplo entre os saberes.”

 

Em Avelãs Nunes, a aproximação mediada pela economia política e pela filosofia, e mais propriamente por teorias da justiça, segue uma linha civilizatória que mais se afasta das opções que mercantilizam a vida, enquanto se orienta para projeções que garantam o direito à vida plena, de homens e mulheres de carne e osso sim, porque ideologicamente o nosso percurso colonial separou seres humanos, para distinguir os que se inserem no contrato social os que ficam fora dele, os selvagens, os bestializados, os escravizados, os diminuídos, os segregados, os sobrantes “civilizatórios” todos alienados do humano.

Abri essa linha de problematização exatamente com um autor português, até para ponderar o lugar de Portugal no experimento colonial e indicar que desde esse lugar o modo decolonial é também uma condição para que a libertação e a emancipação sejam possíveis.

Para Paulo Freire, tão marcante em nossa cultura comum, a desumanização não é destino.

 

“A luta pela humanização, pelo trabalho livre, pela desalienação, pela afirmação dos homens como pessoas, como ‘seres para si’, esta luta pela humanização somente é possível porque a desumanização, mesmo que um fato concreto na história, não é, porém, destino dado, mas resultado de uma ‘ordem’ injusta que gera a violência dos opressores e esta, o ser menos. (…) O ser menos leva os oprimidos, cedo ou tarde, a lutar contra quem os fez menos. E esta luta somente tem sentido quando os oprimidos, ao buscarem recuperar sua humanidade, que é uma forma de criá-la, não se sintam opressores, nem se tornem, de fato, opressores dos opressores, mas restauradores da humanidade em ambos. E aí está a grande tarefa humanista e histórica dos oprimidos – libertar-se a si mesmos e aos opressores. (…) Só o poder que nasça da debilidade dos oprimidos será suficientemente forte para libertar a ambos.”[6]

 

Com efeito, embora afirmem Ana Claudia Rozo Sandoval e Luís Carlos Santos[7] que:

 

“a disputa pela realidade é um traço comum dos filósofos, seja ele interpretando, desconstruindo, criando conceitos, mas o que está em causa é disputar a realidade. E para isso colocamos em crise o solo em que se pisa, como um lugar produzido à imagem e semelhança da produção de um discurso que legitimou historicamente a exploração e dominação, e o conflito estabelecido ao buscar filosofar-se caiu na armadilha da representação. Este é um dos primeiros elementos que precisam ser descortinados, a representação. Pois a imagem que se traduziu nos discursos era apenas a europeia. O exercício de pensar-se, o que é próprio da filosofia encontra-se no poço sem fundo, no beco sem saída da armadilha da representação europeia moderna, ocidentalizada na contemporaneidade. A perspectiva decolonial (ou estudos Modernidade/colonialidade) e as filosofias africanas colocam em discussão o epistemicídio e o semiocídio cultural. O conhecimento, e as formas de acessá-lo, e a diversidade cultural no fazer filosófico colocam em evidência outros modos de ser e fazer filosofia. Problemas não considerados filosóficos começam a ser problemas de interesse de outros sujeitos que foram negados pelo sistema mundo eurocentrado”.

 

Todavia, o núcleo de minha argumentação, busca em Boaventura de Sousa Santos sua proposição feita no espaço do Fórum Social Mundial de Porto Alegre uma bem elaborada proposta para a constituição de uma Universidade Popular dos Movimentos Sociais, atenta a essas exigências de um conhecimento emancipatório. Em Boaventura isso significa constituir oportunidades de emancipação que deem conteúdo eficaz a mecanismos do estado de direito, da democracia e dos direitos humanos para que não se contrafaçam em artificialismos enganosos que esvaziem “alternativas positivas geradas por um pensamento alternativo de alternativas e todas as possibilidades epistemológicas, teóricas e metodológicas aptas a realizar a tarefa política de superar a dominação capitalista, colonialista e patriarcal”.[8]

E o faço para salientar que esses pontos correspondem, em seus fundamentos, às expectativas que defendem uma universidade aberta à cidadania, preocupada com a formação crítica dos acadêmicos e mais democrática. Uma universidade, como lembrava Boaventura de Sousa Santos em sua recente visita à UnB, consciente de que “o que lhe resta de hegemonia é o ser um espaço público onde o debate e a crítica sobre o longo prazo das sociedades se podem realizar com muito menos restrições do que é comum no resto da sociedade” e que encontra no exercício da pluralidade tolerante a mediação apta a torná-la uma “incubadora de solidariedade e de cidadania ativa”.

Um modelo assim já se apresenta como proposição interpelante da universidade convencional, desde que ela se abra a, pelo menos, duas condições. A primeira é o dar-se conta da natureza social do processo que lhe cabe desenvolver. Não é condição trivial, porque ela implica opor-se à tentação de mercadorização do ensino e da pesquisa e consequente redução do sentido de indisponibilidade do bem Educação, constitucionalmente definido como um bem público, processo dramático e cruento em curso autoritário em muitos de nossos países, num projeto claramente hostil à ideia de universidade como valor social e ao conhecimento crítico como elemento nutriente de práticas e de pensamentos democrático e emancipatório.

A outra condição, é a de interpelar a universidade para que ela se abra a novos modos de ingresso e de inclusão de segmentos dela excluídos, a exemplo das políticas de ações afirmativas. Possibilita, assim, alargar o âmbito das pautas pedagógicas que desenvolve e fazer circular no ambiente do ensino e da pesquisa novos temas, cosmologias plurais, epistemologias mais complexas e um diálogo mais amplo entre os saberes. (Figura 1)


Figura 1. Políticas afirmativas contribuem para que as universidades se abram a novos modos de ingresso e de inclusão de segmentos dela excluídos, fazendo circular no ambiente do ensino e da pesquisa novos temas, cosmologias plurais, epistemologias mais complexas e um diálogo mais amplo entre os saberes
(Foto: Beto Monteiro/Secom UnB. Divulgação)

 

Ao fim e ao cabo, concluindo com o recorte que trouxe para meu artigo, na temática proposta para esta edição de Cultura & Ciência, pensar Uma Universidade Popular para uma Educação Emancipatória, algo que, a meu ver, transparece nos debates acerca dos compromissos da instituição com a realização dos direitos humanos, é que libertar-se, emancipar-se, dizemos nós em nosso projeto acadêmico que denominamos O Direito Achado na Rua: “não é dom; é tarefa, que se realiza na História, porque não nos libertamos isoladamente, mas em conjunto”. E se ela não existe em si, o Direito de emancipar-se é comumente a sua expressão, porque ele é a sua afirmação histórico-social “que acompanha a conscientização de liberdades antes não pensadas (como em nosso tempo, a das mulheres e das minorias eróticas) e de contradições entre as liberdades estabelecidas como a liberdade contratual, que as desigualdades sociais tornam ilusória e que, para buscar o caminho de sua realização, tem de estabelecer a desigualdade, para nivelar os socialmente desfavorecidos, enquanto ainda existam”.[9]

Pensar a diversidade e os direitos humanos na universidade do futuro é cuidar de problematizar os modos de os conhecer e de os realizar, em razão das lutas para o seu reconhecimento, a partir das quais se constituem como núcleo da expansão política da justiça e condição de legitimação das formas de articulação do poder e de distribuição equitativa dos bens e valores socialmente produzidos.

Em suma, compreender os direitos humanos dentro de “um programa que dá conteúdo ao protagonismo humanista, conquanto orienta projetos de vida e percursos emancipatórios que levam à formulação de projetos de sociedade para instaurar espaços recriados pelas lutas sociais pela dignidade”.[10]


Referências
[1] REVISTA FORGES. n. Especial (2020): NÚMERO COMEMORATIVO DO 10.º ANIVERSÁRIO DA FORGES Publicado em 2020-11-19 (https://revistaforges.pt/index.php/revista/issue/view/8).
[2] Boletim da Faculdade de Direito – STVDIA IVRIDICA 48, Colloquia – 6, Universidade de Coimbra, Coimbra Editora, Conferências na Faculdade de Direito de Coimbra 1999 / 2000.
[3] LOURENÇO, Eduardo. Mitologia da Saudade Seguido de Portugal como Destino. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.
[4] NUNES, Antonio José Avelãs. Neoliberalismo e Direitos Humanos. Rio de Janeiro: Editora Renovar, 2003.
[5] MONTEIRO, Roberta Amanajás. Qual desenvolvimento? O deles ou o nosso? Tese de Doutorado defendida na Faculdade de Direito da UnB, 2018.
[6] FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido, 11ª edição. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2011.
[7] SANDOVAL, Ana Claudia; SANTOS, Luis Carlos. Estudos Decoloniais e Filosofia Africana: por uma Perspectiva Outra no Ensino da Filosofia. Revista Páginas de Filosofia, v. 6, n. 2, p.1-18, jul./dez. 2014.
[9] SOUSA JUNIOR, José Geraldo de. O Direito como Liberdade: O Direito Achado na Rua. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor; SOUSA JUNIOR, José Geraldo de (Organizador). Da Universidade Necessária à Universidade Emancipatória. Brasília: Editora UnB, 2012. SOUSA JUNIOR, José Geraldo de. Movimentos Sociais nos 50 Anos da UnB: Construindo uma Universidade Emancipatória. In RÊSES, Erlando da Silva (Organizador). Universidade e Movimentos Sociais. Belo Horizonte: Fino Traço Editora, 2015.
[10] ESCRIVÃO FILHO, Antonio; SOUSA JUNIOR, José Geraldo de. Para um Debate Teórico-Conceitual e Político sobre os Direitos Humanos. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2016; 2ª reimpressão 2019.

 


Capa. Universidade é local para se discutir direitos humanos e diversidade assim como problemas atuais da sociedade
(Antonio Scarpinetti/ Ascom Unicamp. Reprodução)
José Geraldo de Sousa Junior é professor jubilado (aposentado) da Universidade de Brasília (UnB) com vínculo de pesquisador sênior voluntário, atuando na Faculdade de Direito e no Centro de Estudos Avançados Multidisciplinares (CEAM) em Direitos Humanos e Cidadania. É membro benemérito do Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB) e membro da Comissão Justiça e Paz da Arquidiocese de Brasília.

segunda-feira, 20 de março de 2023

 

Ocupações informais por grupos de baixa renda no Distrito Federal e os obstáculos para a sua regularização

Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito.

 

Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito

Jana Louise Pereira Carrilho. Ocupações informais por grupos de baixa renda no Distrito Federal e os obstáculos para a sua regularização: o caso da Cidade Estrutural – DF. Monografia apresentada à Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (UnB). Brasília, 2023.

 

                                  

 

Sob a coordenação da Orientadora professora Talita Tatiana Dias Rampin e com a participação de minha ex-orientanda a Doutora Ísis Dantas Menezes Zornoff Táboas tive o ensejo de participar da banca examinadora da bem elaborada monografia de Jana Louise Pereira Carrilho, requisito para a obtenção de seu grau de bacharel em Direito.

O escopo do trabalho expresso no resumo formal, alude a pesquisa que:

trata sobre ocupações irregulares e o tratamento dispensado pelo Estado para a sua desmobilização, a partir de uma pesquisa bibliográfica e normativa. Mais especificamente, o texto trata do Caso da Cidade Estrutural que surgiu como uma ocupação de famílias de catadores de lixo, às margens da Via Estrutural, em Brasília, na década de 1960. Na década de 1990 a ocupação experienciou um grande crescimento, o que ensejou uma campanha prolongada do poder público para retirar as famílias. O trabalho então busca investigar e analisar as políticas de Estado mobilizadas para negar a efetividade ao direito à moradia, garantida constitucionalmente. Isso passa por um movimento de transformação da moradia em um ativo financeiro e o Estado acolhe essa lógica. Consideradas as ambiguidades entre o discurso e a prática do Estado em relação à impossibilidade de reconhecimento de ocupações populares em sua área territorial mais valorizada, conclui-se que, mesmo em ocupações em terras públicas, o Estado age como um agente privado, no interesse de promover a especulação imobiliária e de reproduzir privilégios às classes de renda alta. Em contrapartida, demandatários de políticas de direito à moradia se organizam em movimentos populares revelando um sujeito coletivo de direitos, que se impõe contra a realização do direito capturado por interesses privados, alheios ao social.

 

Uma mirada ao sumário já antecipa uma peculiaridade no trabalho, apontando para o que Fábio Sá e Silva em seu artigo Vetores, Desafios e Apostas Possíveis na Pesquisa Empírica em Direito no Brasil, caracteriza como uma nova perspectiva, incentivada pelas diretrizes curriculares da reforma de 1996, forte em orientar o conhecimento jurídico para as práticas sociais que estabelecem a tensão entre o instituinte e o instituído – na medida em que entende o direito como o produto das práticas de movimentos sociais e nas tensões que estas estabelecem com a ordem normativa estatal, vale dizer, aproximar esse conhecimento da realidade social a que ele se dirige (VETORES, DESAFIOS E APOSTAS POSSÍVEIS NA PESQUISA EMPÍRICA EM DIREITO NO BRASIL. Revista de Estudos Empíricos em Direito, vol. 3, n. 1, jan. 2016, p. 24-53).

Referindo-me aos estudos de Fábio, agora a partir de um outro trabalho do diligente professor de Oklahoma (ENSINO JURÍDICO. A Descoberta de Novos Saberes para a Democratização do Direito e da Sociedade, de Fábio Costa Morais de Sá e Silva. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 2007), sua dissertação de mestrado que me coube orientar, na UnB, anoto que, conquanto articule sua leitura pelo triplo enlace epistemológico (esgotamento do positivismo jurídico como conforto racional, alcance do pluralismo jurídico enquanto categoria de análise), metodológico (pesquisa-ação) e político (teorias de sociedade e fundamentos éticos enquanto base para estabelecer modos de determinação do jurídico), Fábio e dos poucos empiricistas (law in action),embora ele não seja de modo algum rotulável nessa designação, conforme se vê já no resumo de seu artigo (Eventual interesse em celebrar ou promover essa condição não deve ocultar os obstáculos históricos e estruturais contra os quais ela foi erigida, tampouco arrefecer o exercício da nossa consciência crítica sobre os desafios com os quais a PED se defronta, p. 24) que escapam a auto-contenção das fronteiras que o  odo de conhecer sociológico impõe ao campo. Com efeito, não se deixa enredar no limite de obejtos empíricos possíveis de descrição segura (Engels: a descrição verdadeira do objeto é, simultaneamente, a sua explicaçã), para aceitar os riscos da cognição de objetos fluidos reivindicados pela hipótese do pluralismo jurídico. Para Fábio, como em Lyra Filho, o Direito é, enquanto vai sendo e o desafio é designá-lo, ontologicamente, no movimento de sua contínua transição (cf. meu Lido para Você sobre esses textos em http://estadodedireito.com.br/a-descoberta-de-novos-saberes-para-a-democratizacao-do-direito-e-da-sociedade/).

INTRODUÇÃO         

CAPÍTULO 1 – A ESTRUTURAL    

1.1. O surgimento e o crescimento da Vila Estrutural         

1.2. A luta pela regularização e as tentativas de remoção  

CAPÍTULO 2 – O DIREITO À MORADIA DIGNA, A REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA COMO INSTRUMENTO E AS POLÍTICAS DE ESTADO PELA (NÃO) CONCRETIZAÇÃO DO DIREITO      

2.1. A moradia entre o direito e a mercadoria         

2.1.1. O direito à moradia, a função social da propriedade e a regularização fundiária de interesse social  

2.1.2. As políticas Estatais para a habitação popular         

2.2. O papel do Governo do Distrito Federal na negativa do direito à moradia à população marginalizada

2.2.1. A Concepção de Brasília e a ocupação do Distrito Federal 

2.2.2. A titularidade pública das terras e o discurso de preservação do projeto urbanístico do plano piloto de Brasília       

2.2.3. A mobilização seletiva do discurso sobre a questão ambiental no Distrito Federal

CAPÍTULO 3 – A LUTA PELA MORADIA E O PAPEL DA SOCIEDADE ORGANIZADA        

CONCLUSÕES         

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

De resto, conforme a graduanda promete, assim como está posto na Introdução, que expõe os elementos da monografia, “o trabalho se propõe a analisar o tema do direito à moradia e a forma como o Estado, mais precisamente o Distrito Federal, tratou e trata as ocupações informais que tomam forma na Capital”:

Para isso, optou-se por se promover um estudo de caso, trazendo o debate da ocupação da Via Estrutural em Brasília, mais tarde chamada cidade Estrutural, cuja história foi marcada pela resistência dos moradores diante de fortes e insistentes investidas do poder público para eliminar a ocupação, que perduraram por décadas.

A escolha do tema encontra razão na perenidade do problema da moradia. Ao longo dos anos, diversas foram as políticas públicas que se afirmaram voltadas à habitação popular, ainda assim, o déficit de moradias no Brasil segue altíssimo. No entanto, levanta-se que dificilmente essas políticas de fato se voltaram para a parcela da população que delas necessitam, uma vez que têm privilegiado o acesso à moradia própria por meio de financiamentos.

Enquanto isso, sem outras alternativas, muitas famílias empobrecidas precisam se habitar em moradias precárias, em ocupações também precárias, já que é preciso se estabelecer em algum lugar. Sem seus direitos garantidos, ainda assim, essas pessoas são lidas como em estado de ilegalidade.

A metodologia elegida para o trabalho se volta à pesquisa bibliográfica e à análise normativa de regras voltadas ao direito à moradia e às possibilidades de regularização de ocupações. Como marco teórico para a questão do embate entre moradia e propriedade privada, utiliza-se a noção de financeirização da moradia e de transformação da moradia em mercadoria a partir da leitura de Raquel Rolnik e Ermínia Maricato.

Quanto à teoria do direito e do direito à moradia, em particular, utiliza-se o marco teórico do Direito Achado na Rua, com expoentes em autores como José Geraldo de Sousa Junior e Roberto Lyra Filho. Assim, parte-se a existência de uma situação de pluralismo jurídico, em que os sujeitos, por meio da ação política e coletiva, podem se contrapor ao direito posto para reivindicar um outro direito, justo, em relação a suas demandas e necessidades.

Nessa mesma chave conceitual, utiliza-se a categoria do sujeito coletivo de direitos para se analisar as organizações populares que nascem da luta pela moradia.

No primeiro capítulo deste trabalho, é descrita a história da ocupação e de crescimento da Vila Estrutural, tratando de introduzir, ainda, outros elementos, importantes para a compreensão das particularidades da ocupação do Estrutural, bem como suas similaridades com outras nascidas em condições parecidas.

No segundo capítulo trata-se do tema do direito à moradia em face das forças pela mercantilização da terra e da sua relação com a ocupação irregular de áreas públicas. Além disso, enfrenta a questão relacionada aos empecilhos à regularização de ocupações informais, no que se refere às políticas de Estado.

Já no terceiro e último capítulo enquadra-se a questão da luta por moradia como uma luta construída coletivamente, produzida pelos sujeitos constituídos também na prática coletiva, como forma de darem voz a suas reivindicações.

 

            Recebo com satisfação a escolha empírica de Jana, associada a melhor linha de estudos de interpretação da história social de Brasília, em relevo o grupo de estudos urbanos e da Coleção Brasília, coordenados pelo professor Aldo Paviani, da UnB. Jana traz à exame a formação e as vicissitudes da Vila Estrutural, configurada na sua descrição e inserida na discursividade que disputa a narrativa e o discurso de apropriação da cidade e de Brasília, como concepção. Uma experiência que ela aprendeu a qualificar, no ensino, atuando como monitora na disciplina que ministro na graduação – Pesquisa Jurídica; e na extensão, no projeto que coordenei por dez anos: AJUP – Assessoria Jurídica Popular Universitária Roberto Lyra Filho, agora orientada por meu colega Antonio Escrivão Filho. Aliás, com colegas que vivenciaram essa experiência Jana é co-autora de texto que a registra – Educação Popular e Práxis Entensionista: a ação da Assessoria Universitária Popular e O Direito Achado na Rua, in SOUSA JUNIOR, José Geraldo de de et al (orgs) O Direito Achado na Rua vol. 10: Introdução Crítica ao Direito como Liberdade. Brasília: Editora UnB/Editora da OAB Nacional, 2021, p. 611-626.

De minha parte, conhecendo menos essa experiência, acolhi como muito valiosos os registros de Jana, que pude comparar com meus próprios estudos sobre o direito à moradia e a sua realização em outro experimento social marcante, o de formação da Vila Telebrasília.

Com efeito, no final de 2008, às vésperas do Natal, o governador do Distrito Federal, em cerimônia pública na Vila Telebrasília, outorgou os títulos de propriedade definitivos aos ocupantes históricos do velho acampamento dos tempos da construção de Brasília. Quase cinquenta anos depois de muita luta, o ato representou o momento culminante de uma história de resistência e perseverança de uma comunidade mobilizada pela conquista do direito de morar.

Não é por acaso que à entrada da Vila, localizada ao final da Avenida das Nações, na Asa Sul, à beira de Lago Paranoá e defronte ao setor de embaixadas, se mantenha instalado uma placa com a inscrição singular: “Aqui tem história!”

Não conheço um registro igual de uma comunidade que se reconheça na identidade de seu protagonismo histórico, mas como professor orientador, em projeto de assessoria jurídica universitária desenvolvido pela Faculdade de Direito da UnB, com o apoio da Secretaria de Direitos Humanos (então vinculada ao Ministério da Justiça), acompanhei por vários anos o percurso dessa luta, em suas diferentes fases, boa parte dela documentada em livro de cuja organização participei, juntamente com meu colega professor Alexandre Bernardino Costa  (Direito à Memória e à Moradia. Realização de Direitos Humanos pelo Protagonismo Social da Comunidade do Acampamento da Telebrasília, Universidade de Brasília, 1998).

Este livro põe em relevo as circunstâncias complexas de diferentes momentos da manifestação de uma consciência de direitos, afirmada na ação da comunidade, afinal inscrita na formação de uma Associação de Moradores, que soube conduzir a unidade de um movimento social constituído como sujeito coletivo de direito e em condições de realizá-lo. Nesse passo, e de forma nítida, pôde-se constatar claramente a ação da coletividade em sua subjetividade mediadora pronta para abrir, como lembra Marilena Chauí, “o Direito para a História e, nessa ação, para a política transformadora”.

Foi desse modo, e em ações semelhantes nas periferias dos espaços urbanos desde os anos 1970, que movimentos sociais com crescente legitimação forjaram a agenda internacional do direito de morar, inscrevendo-o nas declarações de direitos (conforme a Declaração de Istambul, Habitat II, ou Cúpula das Cidades, 1996), para depois projetá-lo nas legislações de zoneamento urbano e, no caso brasileiro, na Constituição Federal, após 1988, por impulso dos movimentos sociais por moradia (tratei disso num texto de 1982, Fundamentação Teórica do Direito de Moradia, Revista Direito e Avesso, Boletim da Nova Escola Jurídica Brasileira, nº 1).

A luta da comunidade da Vila ganhou adensamento nesse trânsito, primeiro como ação política de movimento, depois como construção social de sentido. Destaca-se aí a vitória obtida com a promulgação da lei distrital 161/91, de autoria do deputado Eurípedes Camargo, inicialmente vetada pelo governador e afinal sancionada com a derrubada do veto, aliás o primeiro veto derrubado na história da Câmara Distrital.

Mas a principal vitória da comunidade deu-se, a meu ver, no campo simbólico. Refiro-me ao enfrentamento da objeção de fixação da Vila, apoiada no discurso do tombamento do Plano Piloto como forma seletiva de apropriação da cidade.

Foi nessa circunstância que a comunidade da Vila reivindicou uma dimensão social para configurar o Plano de Brasília, ao lado das escalas arquitetônica, monumental e bucólica, estabelecendo, para além de sua condição de urbs e de civitas, bela, moderna e funcional, concebida na genialidade do projetista, uma verdadeira polis, construída pelo protagonismo social, inscrito na História, dando a Brasília a dimensão que lhe faltava, a escala humana.

Retomei essa linha de interpretação, ainda com Alexandre Bernardino Costa, conforme o nosso Brasília, urbs, civitas, polis: moradia e dignidade humana, texto que abre como capítulo 1, a Parte 1 – O Direito Achado na Rua e uma Perspectiva Crítica para o Direito Urbanístico, da obra referência adotada por Jana Carrilho para servir de fundamento teórico de seu estudo e repertório para os principais conceitos que adota em sua análise: Introdução crítica ao direito urbanístico [recurso eletrônico] / organizadoras e organizadores, José Geraldo de Sousa Junior… [et al.]. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2019. 496 p. – (Série O Direito Achado na Rua; vol. 9). Formato: PDF.     ISBN 978-85-230-0930-4. 1. Direito à cidade. 2. Movimentos sociais. 3. Direito urbanístico. I. Sousa Junior, José Geraldo de (org.). II. Série. CDU 34:711(81). Para aferir, ver meu Lido para Você http://estadodedireito.com.br/introducao-critica-ao-direito-urbanistico/.

Assim que Jana conclui ter a sua pesquisa possibilitado analisar “a forma com que o Estado trata as ocupações irregulares em seu território, em atenção à inserção de movimentos assim na luta pelo direito à moradia, compreendido como uma luta articulada por sujeitos coletivos de direito, que veem ser negada, constantemente a sua cidadania plena, a partir de leis e políticas públicas excludentes e segregacionistas”.

Nesse passo, mostrando “que a luta pelo direito à moradia se encontra inserida em um regime de orientação capitalista, voltado para o lucro bem mais do que para a consecução do bem comum. Esses interesses, por sua vez, são capazes de contaminar o Estado, tornando-o mais um agente na espoliação de bens públicos e na promoção da especulação imobiliária que expulsa a população pobre das regiões centrais”.

Para a Autora, “foi possível perceber que os argumentos levantados pelo Estado para busca pela eliminação de ocupações irregulares como era o caso da Estrutural não correspondem, necessariamente, a uma preocupação com o bem comum ou com o patrimônio público, mas, antes com uma identificação, por parte do Estado, com os interesses do mercado imobiliário. O Estado comporta-se como um agente ativo na perpetuação da especulação imobiliária e, portanto, contra um planejamento urbano inclusivo, que garanta o direito da população à moradia bem como a outros direitos sociais”.

Em ensaio ainda inédito que preparei para o livro em fase de edição: O Direito Achado na Rua. Sujeitos Coletivos de Direito: Só a luta garante os Direitos do Povo!, volume 7 da Coleção Direito Vivo. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2023, resgato o percurso de construção da categoria, num texto de Introdução com o título O Sujeito Coletivo de Direito: uma Categoria Fundante de O Direito Achado na Rua.

Ali considero a categoria “sujeito coletivo de direitos”, mostrando que ela é gerada pela realidade vivenciada pelos movimentos sociais e aprendida pelo Direito Achado na Rua. Sua sintetização teórica pode ser conferida em minha tese, intitulada “Direito como Liberdade: O Direito Achado na Rua. Experiências Populares Emancipatórias de Criação do Direito” sendo, até hoje, uma obra de referência no campo do direito e mobiliza gerações de estudantes, advogadas e advogados populares, membros das carreiras do estado, movimentos sociais, sociedade civil e todas e todos que lutam pela transformação e democratização de nossa realidade.

Assim, é muito pertinente, a conclusão de Jana, com base em sua pesquisa, de que “sujeitos coletivos de direito, conformados por movimentos populares mobilizados pelas lutas da experiência cotidiana partilhada, surgem no contexto da produção do direito em oposição ao direito oficial que, na verdade, lhes nega direitos. Esses sujeitos não se portam como meros objetos da política urbana, mas reivindicam o seu papel na sua produção, de modo a garantir que a cidade atenda aos seus interesses”.

O certo é que, digo no meu ensaio, o País se re-inventa e nesse processo de “rearranjo institucional e fortalecimento de uma agenda coletiva de resistência e luta”, são os movimentos sociais, neles inscritos os sujeitos coletivos de direito também se reorganizam e se atualizam em seu protagonismo, “não porque estavam desorganizados”, afirmam Clarissa Machado de Azevedo Vaz e Renata Carolina Corrêa Vieira (Sujeito Coletivo de Direito e os Novos Movimentos Sociais: a luta por direitos de acesso à terra e território, in Série O Direito Achado na Rua, vol. 10: Introdução Crítica ao Direito como Liberdade. Brasília: Editora UnB/Editora OAB Nacional, 2021)), mas porque se “reinventam nas formas de protestos, unificam pautas e sujeitos” para construir futuros e organizar legitimamente a liberdade social por meio de suas múltiplas estratégias de emancipação.

 

 

 

 

José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil,  Professor Titular, da Universidade de Brasília,  Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua.

quinta-feira, 16 de março de 2023

 

O Judiciário poderia ter definido a incapacidade de Bolsonaro para governar?

  •  em 



Respondendo afirmativamente à questão posta neste artigo, o presidente da Academia Paulista de Direito, Desembargador aposentado no Tribunal de Justiça de São Paulo Alfredo Attie Junior, afirma contundentemente que sim – https://www.youtube.com/watch?v=kH5UT9w__5c. Sua resposta se localiza num quadro de proposições para pensar a função e a formação do Supremo Tribunal Federal, no Brasil, hoje: (Proposta de Alfredo Attié para uma renovação da justiça e sua conexão com a democracia –https://www.brasil247.com/blog/a-justica-no-brasil-democratico-e-a-necessaria-participacao-popular-nas-indicacoes-para-cortes-superiores). Nesses dias, enquanto este artigo está sendo publicado, Attie está em Austin (Texas), na sua universidade, apresentando proposta jurídica por um Constitucionalismo Internacional.

 

Dezenas de pedidos de impeachment, alguns noticiados no Brasil Popular (https://www.brasilpopular.com/grupo-de-juristas-apresenta-novo-pedido-de-impeachment-de-jair-bolsonaro/) e mesmo no Supremo, instaurações de ADPFs, com reconhecimento e injunções estabelecidas pelo Tribunal para remediar estado de coisas inconstitucional (https://www.brasilpopular.com/saude-e-vida-descaso-que-gera-um-estado-de-coisas-inconstitucional/),reconhecidas pela Corte, na desídia da ação governamental, principalmente em face da pandemia, abriram ensejo para estancar e responsabilizar (https://www.brasilpopular.com/falta-alguem-na-cpi/).

 

Eu próprio, que assinei algumas dessas petições, agora, com Márcio Sotelo, Márcia Semer, Juarez Tavares e Patrick Mariano, esboçamos uma opinião que deve ser em breve publicada, pensando o STF e o debate em curso sobre as futuras escolhas para o compor.

 

Evitando a discussão ad hominem, para nós, importante nesse debate, é que o candidato ao cargo tenha a exata dimensão de quão trágica foi a última década no país para o sistema de justiça brasileiro quando se tem como parâmetro a dignidade humana, o enfrentamento da desigualdade e a contenção do Estado policial. Segue aviltante a degradação das condições carcerárias e seletividade do sistema penal, assim como a todo vapor o superencarceramento. Em relação às desigualdades sociais, a chamada razão neoliberal impôs à justiça uma conivência com políticas econômicas que retiraram direitos, rifaram o patrimônio público, aprofundaram abismos sociais e contribuíram para o apagamento e exclusão de milhões de brasileiros e brasileiras, com o agravamento das crises sociais, políticas, ambientais e da própria democracia.

 

Um tanto dessas preocupações e na esgrima desses conceitos, é que com o mesmo Alfredo Attie Junior, Alberto Zacharias Toron, Fabio Roberto Gaspar, o saudoso Roberto Romano da Silva, falecido após a propositura da ação, Renato Janine Ribeiro, Pedro Bohomoletz de Abreu Dallari, em peça subscrita pela Advogada Roberta de Braganca Freitas Attie, propusemos Ação Cível Originária no Supremo Tribunal Federal, com a finalidade de ter o afastamento do Presidente Jair Bolsonaro, por ter perdido a capacidade de governança, numa atuação letal contra o povo brasileiro, em múltiplos âmbitos de sua gestão necropolítica.

 

O inteiro teor da petição, pode ser conferido em https://www.conjur.com.br/dl/acao-stf-avalie-bolsonaro-capacidade.pdf. Com cuidadosa fundamentação, no caso, como dissemos, tratou-se de considerar como se pode decretar a interdição de um supremo mandatário que não tem os requisitos cognitivos mínimos para continuar no cargo. É nosso entendimento que deve ser provocada a Justiça, assim o Supremo Tribunal Federal, para que estatua sobre o caso. Não se trata, sublinhamos, de julgamento por crime de responsabilidade ou por crime comum, casos previstos na Constituição e para os quais se requer a prévia autorização parlamentar, justamente porque a interdição se pede, não por crimes, mas pela incapacidade do Presidente de entender o que é certo ou errado, ou seja: ele, por incapacitado, haverá de ter a extensão de sua imputabilidade verificada. Não o acusamos de crimes, sequer o acusamos. Estamos observando apenas queele não pode exercer, e de fato não está exercendo, o cargo no qual foi empossado. Sua incapacidade está exclusivamente na impossibilidade de exercer o cargo e a função de Presidente da República – âmbito e limite da presente pretensão, que não trata de outros aspectos de sua vida e de sua personalidade, nem no plano civil nem no criminal.

 

Curioso é que a ação, proposta e distribuída em maio de 2021, teve andamento simplesmente ordenatório, e só agora no dia 28 de fevereiro corrente (data de publicação), recebeu manifestação decisória, na forma de despacho pelo relator ministro Gilmar Mendes: Diante do exposto, nego seguimento a petição, tendo em vista a ausência de interesse de agir, ante a perda superveniente do objeto e a inadequação da via eleita. Publique-se. Brasília, 24 de fevereiro de 2023.

 

É certo a perda do objeto, felizmente em decisão soberana popular, em processo eleitoral dramático, que pôs cobro a um mandato nefasto, nas eleições presidenciais de outubro de 2022. Não pela manifestação judicial que deixou o feito hibernar nos escaninhos, num acomodado laissezfaire, laissezaller, laissezpasser. Mas será certo afirmar, numa justificação retrovisora, que houve inadequação da via eleita?

 

Com efeito, anota-se no despacho, que aliás, resume os principais pontos lançados na petição: Ainda que assim não fosse, verifica-se que o pedido e manifestamente incabível, posto não competir ao Supremo Tribunal Federal analisar a matéria ora aventada. Efetivamente, o peticionamento com a finalidade de avaliar elementos relacionados puramente ao estado da pessoa, na espécie consistente na suposta incapacidade civil relativa do ex-Presidente da República, Jair Bolsonaro, não se encontra dentre as hipóteses de cabimento de ação originaria perante esta Corte Constitucional, conforme disposto no art. 102, I, da Constituição Federal.

 

Não há como insurgir-se contra a decisão por conta do fundamento da perda de objeto, nesse caso pela mobilização social que se materializou nas eleições. Mas não é possível deixar na sonolência essa forma gravitacional de deixar um tema candente exaurir-se enquanto dormimos. Em discussão na Universidade Federal de Goiás sobre a Efetividade dos Direitos Humanos e Construção da Cidadania em Tempos Sombrios, pude beliscar a dormência que nos imobiliza (ver aqui em Jornal Brasil Popular https://www.brasilpopular.com/brasil-bolsonarista-e-um-brasil-de-figurante-algumas-analises/), para exatamente convocar à atitude que não se acumplicie. Porque, lembrando Darcy Ribeiro, também seremos culpados se nos entregarmos à rendição conformista, a esse estado de coisas, verdadeiramente inconstitucional.

 

A consideração de que o pedido [seja] manifestamente incabível, posto não competir ao Supremo Tribunal Federal analisar a matéria ora aventada é um biombo consistente para afastar o conhecimento da matéria em face da competência originária do Tribunal?

 

Ora, boa parte da petição foi desenvolvida no sentido de fundamentar o cabimento e a competência da ação originária. Não fosse isso, o Supremo tem sido pródigo na criação até mesmo em plano legislativo, como se legislador fosse, concretizando inovações no campo da aplicação do Direito, numa manifestação contínua dos princípios mihifactum, dabotibiius e iuranovitcuria.

 

Notadamente quanto segundo aforismo (iuranovitcuria), é certo que se impõe ao juiz, independentemente do modo como se proceda a sua enunciação, conhecer o direito e investigá-lo de ofício e, tomá-lo na sua cognição (cf. https://www.migalhas.com.br/coluna/cpc-na-pratica/353115/iura-novit-curia-e-o-principio-do-contraditorio). Não foi assim que se chegou ao instituto hoje corrente do reconhecimento do estado de coisas inconstitucional?

 

Por isso que devemos ousar refletir sobre os problemas que assolam a população, construir alternativas políticas e econômicas para a superação do cenário atual, questionando, com Darcy, “que culpa temos, enquanto classe dominante, no sacrifício e no sofrimento do povo brasileiro. Somos inocentes? Quem, letrado, não tem culpa neste país dos analfabetos? Quem, rico, está isento de responsabilidades neste país da miséria? Quem, saciado e farto, é inocente neste país da fome?”.

 

Nem nós, na sociedade, nas nossas entidades e organizações, nem as autoridades em seus espaços institucionais, queremos ser cúmplices desse desgoverno e da prática de um já extenso rol de crimes de responsabilidade (leia-se o discurso do presidente do STF). E não é necessário esperar 2022. Pois, atenção, o jacaré está crescendo debaixo da cama. Conforme afirmei em artigo publicado no Jornal Brasil Popular (“Alimentar Crocodilos Esperando Ser Devorado por Último“ – https://www.brasilpopular.com/alimentar-crocodilos-esperando-ser-devorado-por-ultimo/), começa a perceber-se já em ambientes, e também no Supremo Tribunal Federal, antes impropriamente corteses, que alguém leu o discurso de Churchill, que em 1940, no crescimento da ameaça nazifascista, advertindo que o apaziguador e o colaboracionista (passador de pano) são aqueles que alimentam crocodilos esperando ser devorados por último.

 

 

(*) José Geraldo de Sousa Junior é professor titular na Faculdade de Direito e ex-reitor da Universidade de Brasília (UnB)


José Geraldo de Sousa Junior é graduado em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal – AEUDF, mestre e doutor em Direito pela Universidade de Brasília – UnB. É também jurista, pesquisador de temas relacionados aos direitos humanos e à cidadania, sendo reconhecido como um dos autores do projeto Direito Achado na Rua, grupo de pesquisa com mais de 45 pesquisadores envolvidos.

 

Professor da UnB desde 1985, ocupou postos importantes dentro e fora da Universidade. Foi chefe de gabinete e procurador jurídico na gestão do professor Cristovam Buarque; dirigiu o Departamento de Política do Ensino Superior no Ministério da Educação; é membro do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil – OAB, onde acumula três décadas de atuação na defesa dos direitos civis e de mediação de conflitos sociais.

 

Em 2008, foi escolhido reitor, em eleição realizada com voto paritário de professores, estudantes e funcionários da UnB. É autor de, entre outros, Sociedade Democrática (Universidade de Brasília, 2007), O Direito Achado na Rua. Concepção e Prática 2015 (Lumen Juris, 2015) e Para um Debate Teórico-Conceitual e Político Sobre os Direitos Humanos (Editora D’Plácido, 2016).