quarta-feira, 24 de julho de 2024

José Comblin – 100 Anos de Vida

Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito

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José Comblin – 100 Anos de Vida. Alzirinha Souza, Edelcio Ottaviani ( Organizadores). Aparecida (SP): Editora Santuário, 1ª edição, 2024, 128 p.

                         

A obra “José Comblin – 100 anos de vida” reúne artigos que apresentam a vida, o trabalho, o pensamento e o legado do teólogo José Comblin (1923-2011), um dos mais importantes teólogos do Brasil e da América Latina, do pós-Vaticano II. Os artigos reunidos na obra foram apresentados na III Jornada José Comblin, realizada em 2023, para comemorar o Centenário de nascimento do célebre teólogo.

Meu primeiro contato com o pensamento profético e emancipador de José Comblin, assim o livro o nomina, foi por meio da leitura de seu livro de 1978, grafada a autoria como Joseph Comblin, A Ideologia da Segurança Nacional- o Poder Militar na América Latina, na edição da Civilização Brasileira.Um livro indispensável e que li com atenção em razão do tema e da linha de libertação própria de um intérprete de Gálatas, uma epístola cara a Comblin,  tida como o manifesto da liberdade cristã e universalidade da Igreja. Leitura condizente com os tempos duros em que a obra foi escrita.

Eu ainda não conhecia Comblin o teólogo, o que só vim a fazer muito tempo depois, por meio de uma leitura muito profunda que dele faz Alzirinha Souza co-organizadora do livro 100 Anos de Vida, que já me anunciara a sua preparação e edição. Alzirinha, essa destacada teóloga católica que há dois anos, semanalmente, orienta nossas leituras – minhas e de um pequeno grupo doméstico – teológico-missionárias do Novo Testamento (já lemos com a sua orientação o Evangelho de Lucas, os Atos e estamos agora na leitura das Epístolas (Paulo), incluindo a Carta aos Gálatas. Pena que ainda não há a ordenação de mulheres. Alzirinha é leiga. Celebrasse e suas homilias me induziriam mais convicção, em sentido teológico-pastoral, do que a que me formou até aqui, no acumulado de meus 77 anos.

Valho-me frequentemente de aspectos até incidentais do substancioso manancial hermenêutico de Alzirinha. Então, quando nos escoramos em Comblin, seu amigo e seu tema de tese em teologia, em Louvain, sinto minha âncora bem fundeada. Até ouso ser assertivo (cf. https://estadodedireito.com.br/papa-francisco-carta-enciclica-fratelli-tutti/; ou, principalmente, cf https://estadodedireito.com.br/agenda-latino-americana-mundial-2024/), tal como registrei a propósito de outro trabalho em que ela teve forte participação autoral – https://estadodedireito.com.br/influenciadores-digitais-catolicos-efeitos-e-perspectivas/. Cito-me:

“desde uma perspectiva de  descolonização do mundo e da vida, disse isso em meu artigo, uma missão não só libertadora, no sentido de escapar dos reducionismos que a opressão e a espoliação produzem numa realidade de exclusão, mas a missão verdadeiramente emancipadora, aquela que não só liberta mas humaniza, pelo impulso daqueles elementos críticos, próprios dos espíritos livres, que se encharcam de humanismo e de esperança, e que aparecem com muita força na conversa que entretive com a teóloga Alzirinha Rocha de Souza, além de muitas outras lições, ela que é leiga, professora na PUC-MG (Doutora em Teologia pela Universidade de Louvain), num programa de Justiça e Paz, da Comissão Justiça e Paz da Arquidiocese de Brasília (https://www.youtube.com/watch?v=imN1sM2p3W4), sobre o tema “Ação, Missão e Liberdade. Aproximações entre Comblin e o Papa Francisco”. Comblin não está evidenciado nos documentos da Agenda, mas a partir de Comblin, e sua teologia da missão (teologia da enxada ajustada ao contexto brasileiro e latino-americano), Alzirinha surpreende a função comunitária do trabalho do leigo e a importância do desenvolvimento de uma ação missionária em comunidade, impulsionada sim pelo Espírito, mas que traz a liberdade e a renovação da esperança: “o que movimenta a ação humana é a esperança de que essa ação transforme o mundo”. Isso que aparece como compreensão pastoral em Comblin (ação, comunidade, palavra, liberdade e espírito), ajuda a compreender uma ligação entre São Francisco (“evangelizar, se necessário, até com palavras” – não tenho a fonte, há até aquelas que negam tenha Francisco dito isso, mas ouvi a máxima do padre José Ernanne Pinheiro, conselheiro espiritual da CJP Brasília, amigo e estudioso de Comblin) e o Papa Francisco, combinando contemplação sim, como está em suas principais Encíclicas e Exortações, mas contemplação na ação, realizando-as em proposições sobre o que se pode construir a partir do agora, mas em conjunto, em comunidade, como povo de Deus, numa renovada louva-ação do cântico do irmão Sol. Em estudo de altíssima profundidade – “A Experiência como Chave de Concretização e Continuidade da Igreja de Francisco” (Perspect. Teol., Belo Horizonte, v. 49, n. 2, p. 375-397, Mai/Ago. 2017), diz Alzirinha: “Destaco aqui uma característica do fazer de Francisco, a que julgo mais marcante e me parece essencialmente ligada a Aparecida, da qual, em minha opinião, decorrem todas as outras possíveis, que é a exigência da missionariedade e da proximidade para o anúncio do Evangelho. Ser missionário, como seus gestos demonstram, é estar ao nível do outro, olhar nos olhos, falar em condições de igualdade de uma Boa Nova, que talvez possa ser efetivamente boa para seu ouvinte. Essa é, de fato, a ‘nova evangelização’ esperada, que se representa por uma Igreja em saída que possa realmente ‘primeirear’ (cf. Papa Francisco: “tomar iniciativa”) nas ‘periferias existenciais e sociais’, anunciando esperança, caridade e misericórdia de Deus. Se, na inspiração de João XXIII, o Concílio (Vaticano II) seria um novo pentecostes, como nos lembra Galli, aos olhos daqueles que esperaram 50 anos para uma grande virada na Igreja, ele finalmente acontece neste papado…Os gestos de Francisco advêm de sua experiência e somente é capaz de dar testemunho aquele que faz primeiramente a experiência de Deus. Por isso realiza a forma mais alta da teologia prática ao fazer coincidir sua experiência de Deus, sua experiência pastoral, às exigências de homens e mulheres que demandam e esperam da Igreja uma resposta concreta às suas vidas”.

O livro designa o personagem celebrado como José Comblin. É mais uma nominação que bem pode acrescer àquelas que são referidas no processo que na redemocratização (1985), buscou corrigir uma postura brutal da Ditadura quando, anota o processo instaurado no Ministério da Justiça buscou-se expulsá-lo e impedir seu retorno ao Brasil: Joseph Comblin ou Joseph Jules Comblin ou Joseph Combin ou Joseph Comblain.

À instância de Azirinha pedi a meu caríssimo amigo Jeam Uema, atual Secretário de Justiça, no Ministério da Justiça, a busca nos arquivos e o registro dessa saga. As anotações me comoveram, desde a abertura do processo (Processo de Expulsão nº 30.587/68, instaurado a partir de ofício da Deputada Federal Cristina Tavares, que para Sartre era a sua memória de Brasil (Simone de Beauvoir, A Cerimônia do Adeus. Madame Beauvoir lembra a moça ruiva, jovem jornalista que cativou Sartre e ciceroneou o casal em sua passagem pelo Brasil no ano de 1960). Aos seguintes encaminhamentos nos autos, de meu dileto amigo Humberto Pedrosa Espínola (parecer de 30/4/85, esclarecendo que a despeito do ofício da Deputada Cristina, atendendo “pedido da Comissão de Justiça e Paz da CNBB/Nordeste de revisão da permanência do Padre Joseph Comblin, perseguido pelo governo anterior”, cuidava-se mais propriamente de “revogação da determinação que proíbe o desembarque do alienígena no território nacional Padre Joseph Jules Comblin”.

Outra nota afetiva, a de encaminhamento para apreciação do Ministro Fernando Lyra pelo meu estimado amigo Cristovam Buarque, com quem trabalhei na Reitoria da UnB e no Ministério da educação, então Chefe de Gabinete do Ministro; e do notável Diretor Marcello Cerqueira, um dos mais destacados advogados brasileiros que se notabilizou na causa da advocacia da liberdade em defesa de presos políticos; ambos capeando a manifestação final de meu amigo-irmão Luiz Carlos Sigmaringa Seixas, meu colega na Comissão de Direitos Humanos da OAB-DF e na Comissão Justiça e Paz do DF, além de associados no Escritório de Advocacia de seu pai, o grande bâtonnier Antonio Carlos Sigmariga Seixas (sobre A. C. Sigmaringa Seixas, cf. meu Honradez e Dignidade, in Correio Braziliense, Brasil, 16/1/2016, pág. 5). O enunciado por Luiz Carlos Sigmaringa Seixas, Diretor-Geral do Departamento de Estrangeiros (3/5/1985), veio configurar o depacho final do Minsitro Fernando Lyra (10/5/1985): “arquivamento do processo e revogação da determinação que proíbe o desembarque…no território nacional”. Eis que Comblin voltou e está misturado ao solo brasileiro, seus restos revolvidos pela enxada que se fez sua teologia, a partir do chão que ele tanto amava.

Na apresentação do livro, num texto de intencionalidade manifesta – José Comblin: Uma Presença Necessária para o Tempo Presente – seus organizadores Alzirinha Souza e Edelcio Ottaviani, explicam o seu propósito: “Esta obra nasce de duas constatações importantes:  a primeira faz referência a duas formas de tratar a história. Podemos abordá-la de forma a esquecer, anular a sua própria construção ou fazer memória de pessoas e eventos. A segunda constatação, decorrente da primeira, faz referência à percepção de que alguns desses eventos ou pessoas se tornaram verdadeiros acontecimentos que redirecionam o rumo da história.  É a partir dessas duas constatações que o Grupo de Pesquisa José Comblin (PUCS-SP) e a Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP) realizaram a III Jornada José Comblin (1923-2011), em junho de 2023, para comemorar o Centenário de nascimento do célebre autor. O evento procurou, em seu sentido mais estrito, fazer memória de sua vida e obra, através de conferências, comunicações e debates, que tiveram por finalidade mostrar a importância de seu pensamento para o tempo presente, resultando nesta obra.    Nela, o leitor encontrará elementos do pensamento de Comblin, relidos através de um cronograma-teológico, que permite visualizar os elementos-chave de desenvolvimento de sua teologia ao longo de sua trajetória geográfica e intelectual, desde a Bélgica à sua amada América Latina, à qual dedicou a maior parte de sua vida pessoal, pastoral e intelectual”.

Além do Prefácio –  Pe. José Comblin: testemunho palpável do amor de Deus entre nós, da inteligência acadêmica a serviço dos pobres – a cargo de Domingos Zamagna, jornalista e professor em São Paulo, seu ex-aluno, a obra traz as seguintes contribuições: José Comblin (1923 – 2011): teólogo, missionário e educador  atento aos sinais dos tempos, de Edelcio Ottaviani, co-organizador, num texto que é o fio-condutor da tessitura do livro; José Comblin, uma testemunha epocal do Concílio Vaticano II. Vida no Chile de 1962 a 1965, de Anderson Frezzato; José Comblin: Missão e Testemunho na América Latina, de Adauto Guedes Neto; Uma ‘Ideia Arrojada’: José Comblin e a Fundação do Seminário Rural na Paraíba, de Elenilson Delmiro dos Santos; A Pneumatologia de José Comblin: Sua Contribuição para a Teologia (Brasil, 1980-2011), de Alzirinha Souza, co-organizadora; José Comblin, Teólogo Biblista: do Chão da Vida à Elaboração Teológica,  de Rita Maria Gomes; Como ler os livros de José Comblin? (Uma contribuição à III Jornada José Comblin, na PUC de São Paulo, entre 05 e 08 de junho de 2023), de Eduardo Hoornaert; além de um posfácio – Projetando Comblin em seu legado, desde o chão da amada “Pátria Grande”, assinado por Alder Júlio Ferreira Calado.

O material autoral foi acomodado pelos organizadores em tópicos estruturantes assim constituídos: BRASIL 1957-1965 Chegadas e partidasBRASIL 1972-1980 Conflitos e profecia;  BRASIL 1980-2011 Caminhos Teológicos à luz do Espírito; 2010 aos dias atuais HERANÇA TEOLÓGICA. Eles se prestam a periodizar, mas também a tematizar um percurso, e nesse trânsito, divisar os sinais temporais – de antes e de agora para designar os nossos tempos e os chamados que nos convocam, Conforme diz Edelcio Ottaviani, ao cartografar as contribuições, trata-se de “destacar os aspectos teológicos, missionários e educativos de Comblin atentos à leitura dos ST nos primeiros anos de seu ministério presbiteral e como missionário na América Latina”, mas também de situar esses aspectos “presentes ao longo de toda a sua vida”, desde “suas primeiras reflexões teológicas, publicadas em periódicos e que apresentam sua conexão com temas atuais discutidos posteriormente no Concílio Vaticano II, “nos moldes da Teologia das Realidades Terrestres” de Gustave Thils”, sem ter tergiversar em face “das incongruências notadas por ele nas preocupações do clero europeu com o seguimento de Jesus, trocando a Parte pelo Todo, deixando-se mais levar pelas relações de poder do que pelas exigências do Evangelho”.

Assim que, “como missionário, soube logo compreender as transformações pelas quais passava a sociedade brasileira, particularmente no Sudeste do Brasil”, uma experiência que imanta a “atuação acadêmica de Comblin em espaços formais e informais, pautada no discernimento do Espírito, que animou as falas e as práticas de Jesus, dando especial atenção ao discipulado feminino e estabelecendo bases concretas para o discipulado de iguais”.

Uma leitura em suma que nos leva a discernir no âmbito teológico, e não só, também no mundo, movidos ao impulso de fé ativa para escavar o chão da libertação e abrir sendas e caminhos ao repique de enxadas missionárias.

 


sexta-feira, 19 de julho de 2024

 

Direito Achado nos Lares: o Sexismo Doméstico e suas Implicações na Carreira das Magistradas Brasileiras

Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito

Fabiana da Silva Oliveira. O Direito Achado nos Lares: o Sexismo Doméstico e suas Implicações na Carreira das Magistradas Brasileiras. Dissertação de Mestrado apresentada e aprovada no Programa Interinstitucional – Minter (Escola de Magistratura do Estado do Amapá) de Pós-Graduação da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília. Brasília, 2024, 96 fls.

Participar da banca examinadora e orientar o estudo que a ela foi submetido foi para mim uma experiência de muita satisfação. A dissertação, como está no título, foi desenvolvida no âmbito do programa interinstitucional (Minter) que a Faculdade de Direito da UnB (Programa de Pós-Graduação) desenvolveu com a Escola de Magistratura do Estado do Amapá (TJAP).

Tem sido um programa muito bem sucedido. Há pouco participei da defesa de uma outra candidatura originada do programa – https://estadodedireito.com.br/o-apagao-no-amapa-os-movimentos-sociais-e-o-direito-fundamental-a-energia-eletrica/ – a de Lêda Simone Lima Rodrigues. O Apagão no Amapá: os Movimentos Sociais e o Direito Fundamental à Energia Elétrica. Dissertação de Mestrado. Brasília: Faculdade de Direito da UnB/Programa de Pós-Graduação em Direito, 2023, 99 fls., tema de uma recensão nesta Coluna Lido para Você.

No curso da resenha mencionei ter participado intensamente das atividades docentes no projeto interinstitucional, desenvolvendo a disciplina O Direito Achado na Rua que certamente, trouxe muitas sugestões para os pesquisadores do projeto incluindo, explicitamente, a autora da Dissertação.

Anotei que não só o trabalho de Lêda, mas a própria mobilização do grupo de mestrandos, não obstante a referência comum de sua origem funcional (magistrados e agentes do sistema de justiça), acabaram por demonstrar decidida aceitação aos fundamentos político-teóricos que dão lastro à disciplina. E mencionei a criação, ao tempo de realização do projeto, da coluna Coluna: O Direito achado nas ruas, campos, rios e florestas amapaenses (http://odireitoachadonarua.blogspot.com/search?q=direito+achado+nos+campos+amapaenses), cujo texto inaugural – seguiram-se outros – com o mesmo título, foi publicado na Gazeta do Amapá, edição de 23/01/2022, chamada de capa e página 17, com a assinatura do Desembargador João Guilherme Lages Mendes.

Entre os muitos ensaios assinados pelo desembargador João Lages Mendes, ou por seus colegas de Minter, por eles convidados, no contexto da Coluna, também Fabiana se apresentou com contribuição na qual exercitou elementos autorais, empíricos e teóricos, que antecipam aspectos que vieram a se integrar ao seu tema de dissertação.

Remeto – https://agazetadoamapa.com.br/as-maes-da-pandemia-e-o-direito-achado-no-lares/ – à abertura sentipensante (Fals Borda) que está presente no trabalho, e que já se percebe na abertura do artigo:

A visão humanista da epidemia do Coronavírus é de dor e crueldade para todos. No entanto, estou aqui para falar sobre as mães da pandemia. As mães dizimadas pela dor da morte dos seus filhos, pela fome, pelo desemprego, pelo isolamento. As mães com seus filhos sem escola, sem tecnologia, sem amigos, sem brincar, sem sorrir. As mães que perderam suas mães. As mães que perderam sua rede de apoio, seja pelo isolamento, seja pelo luto, seja pela ausência de escolas e de creches. Sim! O Coronavírus foi letal às mães, pela depressão da solidão, excesso de trabalho, falta trabalho, falta de comida, falta de esperança.

As mães se desdobraram e as mães sangraram. Sangraram em silêncio. Vivenciaram uma dor de morte, de exaustão da carga de trabalho, dos traumas, da fome e da miséria. São mães jovens, mães solo, mães casadas, mães estudantes, mães desempregadas, mães empregadas, mães solitárias e com solidão, mães da Amazônia, mães do Amapá, mães das Pontes e das Palafitas, mães das Aldeias, mães do Bailique, mães do Mundo, mães de luto, mães com filhos e sem filhos. Para todas elas a pandemia foi mortal em algum sentido.

A doença aqui no Amapá chegou rápido, primeiro em Macapá e depois foi enraizado e se alastrando paras os interiores, chegaram nas aldeias, nas comunidades ribeirinhas, chegou na fronteira. Essas mães sentiram cada desgaste físico e mental que as restrições sanitárias trouxeram e passaram por situações que jamais poderiam imaginar. Foi desumano para nós.

O cuidado exigido pela pandemia para a redução da contaminação pela COVID-19, foi levado para dentro de casa e tem como protagonista as Mães. Aulas remotas, trabalho a distância, cuidados com a casa, alimentação, higiene com objetos. Nesse momento, ficou claro que os homens/pais não receberam a mesma sobrecarga de trabalho das mulheres/mães, e a divisão sexual do trabalho ainda é sexista. Essas mães também perderam seus empregos, suas diárias, viram seu comércio fechar e tiveram que retornar ao lar e dizer aos seus filhos que não tinham o que lhes dar de comer. Muitas mães deram ossos e pés de galinha como alimentos para seus filhos.

Para concluir de modo bem interpelante, aliás, como é próprio de sua assertividade que aprendi a valorizar desde o processo bem demarcado pelo autoral, na orientação:

O artigo não era para falar sobre o Direito Achado nas Ruas, Campos, Rios e Florestas Amapaenses? Sim, mas essa Mãe que aqui vos escreve, resolveu falar sobre O Direito Achado dentro dos Lares, relatando como foi e como é para nós Mulheres/Mães o cotidiano de sobrecarga de trabalho, e o quanto a pandemia nos levou à exaustão física e mental, crises de ansiedade e depressão. Contei apenas algumas histórias vividas pelas nossas personagens Mães, na sua maioria Amapaenses.

Falando de Direito Achado na Rua, trago aqui a construção dialética de Roberto Lyra Filho e sua visão de libertação humana e concretização dos Direitos Humanos. Nesse contexto, precisamos pensar e debater sobre a desigualdade de gêneros em todos os seus aspectos, inclusive sobre a divisão de trabalhos domésticos, responsabilidade paterna e maternidade real, são pautas importantes para a libertação e desromantização da Mulher/Mãe e concretização de seus direitos.

Aqui uma apenas uma reflexão sobre Mulheres/Mães da pandemia e o quanto precisamos lutar por essa igualdade de gênero e pelo fim de uma sociedade patriarcal, na esperança de um dia sermos libertas das amarras do machismo, preconceito.

Peço ao leitor que ao final dessa leitura pergunte a uma mãe próxima a você se ela precisa de ajuda. E vamos refletir sobre o papel da mulher dentro dos lares na busca por concretizar a libertação feminina. Viva o Direito Achado nas Ruas e nos Lares! Viva as Mulheres! Viva as Mães! Mulheres/Mães, Empoderem-se e Libertem-se!

Essa disposição, característica do protagonismo da Autora, seu carisma, e atitude perseverante sobretudo com seus objetivos temáticos, podem ser vivamente contstados desde a entrevista, que concedeu para o jornalista João Negrão, para a série O Direito Achado na Rua: https://expresso61.com.br/2022/04/05/o-direito-achado-na-rua-entrevista-a-juiza-fabiana-oliveira/.

Volto à Dissertação de Fabiana. A Banca Examinadora foi formada por mim (Presidente), na condição de orientador e pelas professoras Lívia Gimenes Dias da Fonseca (membro interno, UnB) e Eneida Vinhaes Bello Dultra (membro externo). E de que trata o trabalho, diz o seu Resumo:

Esta dissertação aborda duas questões interligadas: o sexismo no trabalho doméstico e a participação das mulheres na magistratura, destacando as consequências desse primeiro fenômeno nas políticas judiciárias para a promoção da igualdade de gênero da equidade. Discute-se o trabalho doméstico não remunerado, frequentemente invisível e permeado por sexismo e a consequente desigualdade na divisão das tarefas domésticas, que resulta em diversas consequências negativas, incluindo dificuldades enfrentadas pelas mulheres no mercado de trabalho e, logicamente, na carreira jurídica. Apesar dos avanços sociais, a igualdade na divisão do trabalho doméstico ainda é sutil, levando à desvalorização e sobrecarga das mulheres. Para isso, são explorados conceitos como sexismo e gênero, evidenciando como essas questões influenciam as relações sociais e a estrutura patriarcal que perpetua a divisão desigual do trabalho doméstico para destaca a importância de reconhecer o sexismo doméstico como um problema arraigado culturalmente, que macula a garantia da igualdade constitucional e impede uma transformação que liberte as mulheres da integralidade das responsabilidades domésticas que prejudicam suas carreiras e saúde. Em contrapartida, aborda-se o avanço das mulheres na magistratura, destacando a luta contra o machismo estrutural e a necessidade de promover a igualdade de gênero no sistema judiciário. Apesar dos marcos históricos que evidenciam a superação de obstáculos decorrentes do sexismo, as mulheres ainda enfrentam desafios significativos para alcançar representatividade nos mais altos escalões da magistratura. A persistência da divisão desigual das tarefas domésticas também é mencionada como um fator que impacta negativamente a ascensão profissional das mulheres. Assim, a pesquisa propõe o reconhecimento do “Direito Achado nos Lares”, uma extensão do conceito de “O Direito Achado na Rua”, que visa trazer a reflexão sobre o direito para dentro do ambiente doméstico, para a proposição de políticas públicas e iniciativas institucionais que promovam a equidade de gênero na magistratura, incluindo a implementação de ações afirmativas, políticas efetivas de valorização das magistradas e medidas para combater o sexismo doméstico. Para tanto, enfatiza-se a necessidade de uma mudança cultural e política para enfrentar o sexismo e promover a igualdade de gênero, tanto no ambiente doméstico quanto profissional. A valorização do trabalho doméstico, a redistribuição equitativa das responsabilidades familiares e o combate ao machismo estrutural são apontados como passos essenciais para alcançar uma sociedade mais justa e igualitária.

Para desenvolver seu escopo a Autora elaborou um roteiro analítico que está representado no Sumário da Dissertação:

INTRODUÇÃO

1 O SEXISMO DOMÉSTICO: A DESIGUAL DIVISÃO SEXUAL DO TRABALHO NO LAR

1.1 O SEXISMO E SUAS CONCEPÇÕES

1.2 O SEXISMO NA DIVISÃO DO TRABALHO DOMÉSTICO

1.2.1 O papel da mulher no lar

1.2.2 A busca pela igualdade nos lares

1.3 A CONSEQUÊNCIA DO SEXISMO DOMÉSTICO PARA A CARREIRA PROFISSIONAL DA MULHER

1.3.1 A cultura patriarcal e a inserção da mulher no mercado de trabalho

1.3.2 A mulher profissional e as dificuldades encontradas em razão do sexismo doméstico

2 A PARTICIPAÇÃO FEMININA NO PODER JUDICIÁRIO

2.1 A HISTÓRIA DA MULHER NO JUDICIÁRIO

2.2 A PARTICIPAÇÃO DAS MULHERES NA MAGISTRATURA BRASILEIRA

2.3 AS JUÍZAS TAMBÉM SÃO “DONAS DE CASA”: OS DESAFIOS NA ASCENSÃO DA CARREIRA DE MAGISTRADA

3 O DIREITO ACHADO NOS LARES: ANSEIOS DE EQUIDADE DE GÊNERO NA CASA E NO TRABALHO DAS MAGISTRADAS

3.1 O DIREITO ACHADO NA RUA: A CONCEPÇÃO DE DIREITO APLICADO AOS LARES

3.2 AS DIFICULDADES DA CARREIRA E DA VIDA PRIVADA DAS MAGISTRADAS

3.3 OS REFLEXOS DO DIREITO DE IGUALDADE ACHADO NO LAR E AS AÇÕES DE ENFRENTAMENTO AO SEXISMO DOMÉSTICO

CONCLUSÃO

REFERÊNCIAS

Não foi fácil, nem protocolar o debate da Autora com a Banca, notadamente com as professoras que a integraram, ambas expoentes no campo dos estudos feministas. O resultado final, nos limites de um trabalho dissertativo, foi reconhecido por sua correção no desenho final, resultado do acolhimento de muitas indicações das examinadoras, acolhidas pela Autora, tanto no foco – a perspectiva da atuação da mulher magistrada e a agenda de seu protagonismo de luta por reconhecimento – e no enquadramento epistemológico.

Fabiana deu ênfase assim, até por seu engajamento militante na condição de magistrada, aqueles enunciados de cujas gestões participou, hoje inscritos como itens de relevância e parâmetros pelo próprio Conselho Nacional de Justiça – https://www.cnj.jus.br/programas-e-acoes/protocolo-para-julgamento-com-perspectiva-de-genero/. E, especificamente, os que mais mobilizaram Fabiana: a política de participação feminina no Poder Judiciário e o Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero.

De minha parte, cuidei que o trabalho de Fabiana se inscrevesse com pertinência ao construto paradigmático do Movimento (Coletivo, Grupo de Pesquisa) O Direito Achado na Rua: a determinação do espaço de manifestação do social instituinte de direitos – a rua, o cárcere, o manicômio, os becos, a aldeia, os quilombos, as florestas, as águas, a noite, a rede, o constitucionalismo, os lares…; o sujeito (sempre coletivo na perspectiva do protagonismo instituinte e os achados; que vão adensar e cartografar a fortuna crítica de O Direito Achado na Rua (https://estadodedireito.com.br/o-direito-achado-na-rua-contribuicoes-para-a-teoria-critica-do-direito/).

Quero fazer circular entre os pesquisadores do Grupo de Pesquisa O Direito Achado na Rua, nas palavras da Autora, a sua contribuição para inserir nessa fortuna crítica o seu trabalho:

A expressão “O Direito Achado na Rua”, idealizada pelo Professor José Geraldo de Sousa Júnior, que em continuidade e homenagem ao Professor Roberto Lyra Filho, formula, programa e organiza no ano de 1987, a concepção de Direito que surge dos espaços públicos – Rua – onde os protagonistas do Direito participam através da comunicação democrática em sua formação e concepção, tratando-o como expressão transformadora e de liberdade:

Ora, O Direito Achado na Rua se articula a partir de uma dimensão prática e outra teórica. A sua origem remonta à proposta formulada por Roberto Lyra Filho da chamada Nova Escola Jurídica Brasileira – designada Nair, em homenagem consagrada pelo professor a uma de suas fundadoras, a professora Nair Bicalho – não só por ser a Nair-gente, mas por se representar como a Nayyr (ár.), brilhante, luminosa que, por seu turno, constitui talvez o seu primeiro referencial teórico, fincando as bases de uma teoria crítica do direito eminentemente brasileira, com raízes na sociologia e filosofia jurídica em perspectiva dialética, como expresso no posicionamento que inaugura em 1982, a Revista Direito e Avesso, dirigida pelo José Geraldo de Sousa Júnior. (Sousa Júnior, 2021, p. 20)

Assim, a concepção de “O Direito Achado na Rua” é fruto da reflexão e da prática de um grupo de intelectuais reunidos no movimento Nova Escola Jurídica Brasileira (NAIR), cujo principal expoente foi o professor Roberto Lyra Filho, responsável por encontrar essa “nova concepção do Direito nas ruas, como espaço concreto de manifestação e metaforizada enquanto esfera pública democratizada” e por possibilitar a formação da “expressão de uma das mais vibrantes correntes críticas do direito no Brasil”, designada de O Direito Achado na Rua” (Sousa Júnior, 2021, p. 20).

Assim, O Direito Achado na Rua (ODANR) firmou-se não só como um movimento libertador, mas como a proposta de um direito alternativo capaz de promover a justiça social, isto porque, após morte de Roberto Lyra Filho, em 1986, passou a ser um projeto da Universidade Nacional de Brasília (UNB) coordenado pelos professores José Geraldo de Souza Júnior e Alexandre Bernardino Costa:

[…] O Direito Achado na Rua, um curso à distância (operacionalizado por cartas no diálogo com os alunos) que reuniu de renomados nomes da filosofia e sociologia crítica do direito e ciências sociais, em um momento de profunda transformação do direito, do Estado e da sociedade brasileira, sob os auspícios da Constituinte. A partir daí, o sucesso e reedição do curso, o José Geraldo recebe propostas parcerias de sindicatos, associações de juristas e movimentos sociais para organizar novas edições daquele tal O Direito Achado na Rua, consolidando, assim, já no início da década de 1990, a dimensão prática do projeto, constituindo-se como curso de articulação de intelectuais e setores críticos do campo jurídico com setores organizados da sociedade.

Foi assim que se consolidou, no início da década de 1990, a dimensão prática do projeto materializado como curso de extensão, por meio de cursos de formação e projetos de extensão realizados a partir da Universidade de Brasília, que resultou na Série O Direito Achado Rua, atualmente composta por dez volumes editados, disponíveis no blog dedicado ao assunto :

o Introdução crítica ao direito (Volume 1, 1987);

o Introdução crítica ao direito do trabalho (Volume 2, 1993);

o Introdução crítica ao direito agrário (Volume 3, 2002);

o Introdução crítica ao direito à saúde (Volume 4, 2009 );

o Introdução crítica ao das mulheres (Volume 5, 2011);

o Introducción crítica al derecho a la salud (Volume 6, 2012);

o Introdução crítica à de transição na América Latina (Volume 7, 2015);

o Introdução ao direito à comunicação e à informação (Volume 8, 2016);

o Introdução crítica ao direito urbanístico (Volume 9, 2019); e

o Introdução crítica ao direito como liberdade (Volume 10, 2021).

Essa série vem se constituindo uma:

[…] coleção de referência na universidade em seu diálogo com os movimentos sociais, suas assessorias jurídicas, operadores do Direito e agentes de cidadania, a partir dos temas que formam um expressivo acervo por meio do qual se estabelece o diálogo entre a justiça social e o conhecimento necessário à sua realização. (Sousa Junior, 2019, p. 2778)

Para além do espaço de pesquisa acadêmica e institucional propriamente dita, esse movimento concentra seu objetivo na transformação dos ambientes públicos para permitir a modificação social por um novo pensar do direito:

O direito como ‘expressão de uma legítima organização social da liberdade’ constitui o marco conceitual original do projeto denominado O Direito Achado na Rua. Nascido há 30 anos em meio à resistente beleza do Cerrado, O Direito Achado na Rua floresce no ambiente histórico dos trabalhos da Assembleia Constituinte, para constituir-se em um projeto de formulação de uma nova concepção de direito, em uma nova sociedade que se anunciava mais livre, justa e solidária, e que por seu turno apresenta hoje dilemas e desafios que nos convocam à reflexão-ação. (Sousa Júnior, 2021, p. 19)

Assim, nasce ODANR como uma expressão da organização social, dos movimentos populares, das perspectivas de liberdade e emancipação do direito. É a partir das Ruas, dos Campos, das Pontes, dos Rios, das Florestas e de tantos outros lugares que se encontra a voz que ecoa, através de O Direito Achado na Rua, para emancipar, dar acesso à justiça, encontrar o Direito Alternativo, autônomo e libertador.

Nessa linha de pensamento, o Direito Achado na Rua inspira os Lares para propor a reflexão por um direito moderno, que derruba as paredes do patriarcado, do racismo, do preconceito no que diz respeito ao resgate histórico de uma sociedade colonial.

O professor José Geraldo de Sousa Junior em sua resenha acerca das contribuições de O Direito Achado na Rua para a teoria crítica do direito e dos direitos humanos (SOUSA JUNIOR: 2024), lembra que “depois da realização do Seminário Internacional O Direito Como Liberdade: 30 Anos do Projeto O Direito Achado na Rua, o volume 10 da Série, com o título de Introdução Crítica ao Direito como Liberdade, estava posto como mais amplo e atualizado balanço da fortuna crítica desse projeto substantivo”.

Ele anota que nessa fortuna crítica, há contribuições que desde “a sua concepção até os momentos atuais, a partir de suas linhas de pesquisa, ora para se projetar em novas formulações teóricas e práticas, a partir de uma atualização de temas que hoje”. Trata-se, ele acrescenta, de demarcar essas novas contribuições e emergências, ou constituindo novos temas ou revistando questões já designadas. Assim, diz ele:

nos trabalhos cotidianos, do fazer acadêmico e político, o contínuo desse projeto se realiza permanentemente, atento à emergências, revisitações e discernimentos próprios de uma travessia que responde a urgências de discernimento sobre as três perspectivas que balizam o projeto: determinar o espaço social e político de sociabilidades vivas; compreender e reconhecer os protagonismos que se movem nesses espaços, seus movimentos e os sujeitos coletivos de direito que neles se manifestam; e aferir os achados que desafiam inteligibilidade como categorias de um direito vivo.

Isso se materializa em monografias, ensaios, artigos, dissertações, teses, que aplicam essas categorias e esses parâmetros, e que formam hoje um magnífico repositório, a partir de resultados que se espalham no Brasil e mundo afora (SOUSA JUNIOR: 2024).

Assim que, do “Direito achado na rua” ao “Direito achado na noite”, busca-se tornar visíveis as estratégias discursivas, administrativas e jurídicas que alguns grupos de poder põem em prática em prol da lógica de gentrificação de nossas cidades, em nome de certos valores morais conservadores. E o faz, desestabilizando essas tentativas, demonstrando suas armadilhas e contradições, sua intenção contrária ao gozo efetivo dos direitos. Ao mesmo tempo, retoma o caminho da transformação, da construção de possibilidades frente a essas dinâmicas. Ainda em comentário à construção dessas possibilidades, ao examinar o livro de Willy Moura, traça o professor José Geraldo (SOUSA JUNIOR: 2024), um percurso no qual O Direito Achado na Rua se atualiza e se reinventa em sua concepção e prática:

São esses referenciais que vão lhe dar confiança para aventar categorias inéditas como “a noite como espaço”, nessa fortuna crítica que em O Direito Achado na Rua tem levado a alargar, na ação dos sujeitos coletivos de direitos e suas práticas instituintes de novos direitos, a demarcação de novos espaços sociais, para além da metáfora da rua, e assim discernir, ressignificando, espaços críticos como direitos achados na rede, nas águas, nas aldeias, nas florestas, no campo, no cárcere, no manicômio, no armário, no gueto…na noite. Uma construção que dialoga com os sujeitos em seu protagonismo inter-subjetivo quando assumem a titularidade coletiva de direitos (SOUSA JUNIOR, et al Orgs: 2021).

A proposta, nesse contexto, é acolher o ideário de O Direito Achado Na Rua e levá-lo para dentro de casa, pois não há mais que se fechar as portas dos lares para a rua, mas fazê-la adentrar com a mesma visão humanista, libertadora e igualitária. Pretende-se, desta forma, avaliar, questionar e, principalmente, transformar a situação da mulher dentro de casa, libertando-a de seu papel limitado de “dona de casa”, criadora de filhos, para dar voz e sustentar direitos que a proteja da sobrecarga advinda do trabalho doméstico não remunerado, que lhe representa dupla ou tripla jornada, e que, por isso, afeta seu avanço nos espaços de poder.

Nessa perspectiva, “O Direito Achado nos Lares” é a expressão lançada no espaço privado – doméstico – para visibilizar o direito e o papel social da mulher de superar e romper as estruturas patriarcais e alcançar a igualdade de divisão de tarefas com os homens, parceiros de jornada.

Para tanto, O Direito Achado nos Lares procura impulsionar a mudança do papel social e sexual dos indivíduos nas relações decorrentes das construções familiares modernas, retirando a mulher do papel de protagonista das atividades não remuneradas exercidas no lar e responsável, quase que de forma exclusiva, pelas funções de cuidado com a organização e gerenciamento das obrigações domésticas e criação dos filhos, ou seja, desconstruindo a imagem da família com estruturas predominantemente patriarcais.

É claro que desde a perspectiva de O Direito Achado na Rua, sua concepção e prática, ainda que a configuração do doméstico, nos lares, não significa uma redução ao individual atomizado da dimensão consciente dessa redução. Há uma intra-subjetivação que se agudiza na mobilização que leva, tal como indica O Direito Achado na Rua, instaurar ressignificando espaços sociais nos quais a atuação instituinte de sujeitos coletivos de direito, abre novas juridicidades, novos achados de direito (SOUSA JUNIOR et al Orgs: 2023).

Por isso que antecipo aqui a constatação que levo para as conclusões, ao aludir ao protagonismo de diversos movimentos, como o Grupo Antígona do Tribunal de Justiça do Paraná e a Associação dos Juízes Federais do Brasil (AJUFE), e desde o seu pioneirismo a Associação Juízes para a Democracia (AJD), que têm se mobilizado em prol da igualdade de gênero no judiciário, buscando implementar políticas e ações que promovam a participação e valorização das magistradas.

Ao longo do estudo, tal como se reporá na conclusão desta Dissertação, foi possível constatar que já resta consolidada a Política Nacional de Incentivo à Participação Institucional Feminina no Poder Judiciário, instituída pelo Conselho Nacional de Justiça em 2018, a qual tem o objetivo de transpor o “telhado de vidro” já referido e caracterizado.

Desde a implementação dessa política de enfrentamento da desigualdade de gênero, foram realizadas pesquisas e oportunizados debates voltados ao mapeamento dessa baixa participação feminina, o que deu ensejo à elaboração de alguns normativos responsáveis pela implementação de ações em busca dessa equidade de gênero nos tribunais.

Considero perfeitamente válida a aproximação que Fabiana de Oliveira faz para a abordagem de O Direito Achado na Rua desde a vertente do Direito Achado nos Lares. Curiosamente, sustentada de modo muito orgânico, no sentido intelectual e político do termo, ela tem nuances que a presentem, embora por distintas razões. Mas com opções adotadas com muita consciência de que ela traduz engajamento.

Há sempre uma aproximação que não necessariamente carrega uma mesma intencionalidade, mas que, talvez por isso, corrobore a consistência de escolhas bem definidas. Em IL DIRITTO DI AVERE DIRITTI, di minima&moralia pubblicato giovedì, 10 Ottobre 2013 • 3 Commenti (https://www.minimaetmoralia.it/wp/estratti/stefano-rodota-il-diritto-di-avere-diritti/), notável jurista (e político recém-falecido) Stefano Rodotà, nos fala sobre “a necessidade inegável de direitos e de direito manifesta-se em todo o lado, desafia todas as formas de repressão e inerva a própria política. E assim, com a ação quotidiana, diferentes sujeitos encenam uma declaração ininterrupta de direitos, que tira a sua força não de alguma formalização ou reconhecimento de cima, mas da profunda convicção de mulheres e homens de que só assim podem encontrar reconhecimento e respeito pelos seus dignidade e pela sua própria humanidade. Estamos perante uma ligação sem precedentes entre a abstração dos direitos e a concretude das necessidades, que põe sujeitos reais a trabalhar”.

Para ele, certamente, “não os ‘sujeitos históricos’ da grande transformação moderna, a burguesia e a classe trabalhadora, mas uma pluralidade de sujeitos agora ligados entre si por redes planetárias. Não um “intelecto geral”, nem uma multidão indeterminada, mas uma multiplicidade laboriosa de mulheres e homens que encontram, e sobretudo criam, oportunidades políticas para evitar ceder à passividade e à subordinação”.

Mas, realmente, numa aferição que me surpreende porque ativa uma categoria metafórica com a qual instalamos toda uma linha de pesquisa (O Direito Achado na Rua, cf. Diretório de Grupos de Pesquisa do CNPq), ele prossegue: “Todos estes sujeitos ignoram o que, no final do século XVIII, começou em torno das duas margens do “Lago Atlântico”, não são dominados por alguma ‘tirania de valores’, mas interpretam, cada um à sua maneira, a liberdade e os direitos ao longo do tempo que vivemos. Aqui não é a ‘razão ocidental’ em ação, mas algo mais profundo, que tem as suas raízes na condição humana. Uma condição histórica, porém, não uma natureza da qual se possa extrair a essência dos direitos. Por que, de fato, só agora tantos condenados da terra os reconhecem, invocam, desafiam? Por que são eles os protagonistas, os adivinhos de um ‘direito achado da rua’? (‘diritto trovato per strada’)”.

(*) José Geraldo de Sousa Junior é professor titular na Faculdade de Direito e ex-reitor da Universidade de Brasília (UnB)


quarta-feira, 17 de julho de 2024

 

Homenagear Vladimir Herzog é um Modo de Fortalecer a Defesa da Democracia

Por: José Geraldo de Sousa Junior (*) – Jornal Brasil Popular/DF

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A Comissão de Defesa da Democracia (CDD), do Senado Federal realizou no dia 10 (julho), audiência pública interativa em homenagem aos 15 anos de criação do Instituto Vladimir Herzog, que atua em defesa da democracia e dos direitos humanos no país.

A Audiência se realizou a requerimento da senadora Eliziane Gama (PSD-MA), presidente da Comissão – a mesma senadora queexerceu a relatoria da CPMI (file:///C:/Users/HP/Downloads/ARQUIVO_PORTAL_CDD_8141ComissaoPermanenteCDD20240424%20(1).pdf – A Democracia Brasileira Venceu. Como o Brasil derrotou o ato golpista de 8 de janeiro de 2023). No requerimento ela relembrou a importância do jornalista Vladimir Herzog, que morreu sob tortura durante a ditadura militar.

A chamada para Audiência põe em relevo que “A organização leva o nome de uma figura de grande importância para a história do Brasil, especialmente na luta contra a ditadura e na garantia do direito à memória, verdade e justiça. Vladimir Herzog foi um professor e jornalista, que se tornou um símbolo da resistência contra a violência do regime que governou o país de 1964 a 1985. Sua morte sob tortura em 25 de outubro de 1975, nas dependências de um órgão de segurança do Estado, revelou ao mundo as práticas repressivas e brutais do governo militar, mobilizando toda a sociedade por uma imperativa busca por justiça e liberdade”, ressaltou Eliziane, no seu requerimento (REQ 4/2024)”. Acrescentando a Senadora que “o caso Herzog ganhou repercussão internacional, trazendo à tona as violações de direitos humanos cometidas pelo regime militar brasileiro. O crime ajudou a impulsionar o processo de abertura política no Brasil e a luta por justiça em torno de sua morte é lembrada como catalisadora para a gradual transição do país para a democracia, que culminou com o fim da ditadura em 1985”.

Estive presente à Audiência, a convite da Comissão, juntamente com Ivo Herzog,Presidente do Conselho do Instituto Vladimir Herzog; Rogerio Sottili, Diretor Executivo do Instituto Vladimir Herzog (ex-Ministro da Secretaria de Estado de Direitos Humanos); Beatriz Vargas, minha colega, Professora da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (UnB); a jornalista Miriam Leitão, ex-aluna da UnB; o cientista político Luiz Felipe de Alencastro,  Vice-presidente da Comissão Arns, também ex-aluno da UnB; o Pastor Henrique Vieira, Deputado Federal (Psol); e Bianca Santana, Jornalista (cuja participação se fez por gravação enviada à Comissão).

Essas informações são da Agência Senado e na página da Câmara Alta pode ser vista a gravação da sessão especial e todas as manifestações dos dirigentes da Mesa, dos convidados e das convidadas e de parlamentares (senadores e deputados) que fizeram uso da palavra: https://legis.senado.leg.br/comissoes/reuniao?0&reuniao=12816&codcol=2617https://www.youtube.com/watch?v=vM1eFobNnhs.

O Instituto Vladimir Herzog (IVH)é, realmente, digno da homenagem. Organização da sociedade civil criada em junho de 2009 para celebrar a vida e o legado de Herzog, a instituição tem como missão trabalhar com a sociedade pela defesa dos valores da Democracia, dos Direitos Humanos e da Liberdade de Expressão. Essas ações se organizam em três programas: Educação em Direitos Humanos; Jornalismo e Liberdade de Expressão; Memória, Verdade e Justiça. E esse trabalho se realiza de forma transversal, às temáticas de gênero, raça e meio ambiente.

Conforme está na página do Instituto – https://vladimirherzog.org/ – e posto em realce pelo seu presidente, filho de Vladimir; e pelo secretário-executivo da organização, o fundamento de sua missão está em que “a luta pela garantia da Democracia, dos Direitos Humanos e da Liberdade de Expressão é dever de todos, especialmente porque esses valores estão no cerne dos delicados momentos políticos e econômicos do Brasil e do mundo. Sabemos que as crises econômicas representam um risco especial para os direitos sociais, para o equilíbrio da democracia e do progresso”. E que a atuação da entidade, do terceiro setor, “parte do reconhecimento de que o Brasil vive um momento de aumento crescente de discursos e práticas de ódio, naturalizando cada vez mais as violências sociais já existentes. As causas são complexas e historicamente determinadas, mas podemos afirmar que o país não promoveu processos de elaboração coletiva de momentos históricos de grande violência social. Ao ignorar estas questões sem uma efetiva reparação social e política, o país hoje se depara com uma crescente cultura de violência e discriminação que viola os direitos fundamentais e os acordos internacionais de Direitos Humanos dos quais é signatário. Aí se encontra o trabalho do IVH e de seus parceiros para honrar a trajetória e os valores de Vlado: ajudar na construção de um novo paradigma para nosso tempo, a ser erguido sobre os princípios elementares da dignidade humana. Temos o privilégio de caminhar no presente, com a sociedade, em direção a um país mais íntegro, mais justo, mais democrático e socialmente responsável”.

Na exposição de Ivo Herzog o legado de Vladimir, o Vlado, foi designado a partir de sua história de vida, também testemunho de participantes da mesa e sobretudo elevado pela memória de seu projeto de vida interrompido pela violência da ditadura. Ivo exaltou esse registro tendo como referência o denominado “caso Herzog”, desde que colocado em pauta na Corte Interamericana de Direitos Humanos, da OEA (Organização dos Estados Americanos).

Com efeito, em julho de 2018, a Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) condenou o Estado brasileiro pela falta de investigação, julgamento e punição aos responsáveis pela tortura e assassinato do jornalista Vladimir Herzog, ocorrido em outubro de 1975. O tribunal internacional também considerou o Estado como responsável pela violação ao direito à verdade e à integridade pessoal, em prejuízo dos familiares de Herzog.

A CIDH, registrou Ivo, “determinou que os fatos ocorridos contra Vladimir Herzog devem ser considerados como um crime de lesa-humanidade, conforme definido pelo direito internacional”, como diz a sentença. Ao ser classificado como um crime contra a humanidade, o Tribunal concluiu que o Estado “não podia invocar nem a existência da figura da prescrição, nem a aplicação do princípio ‘ne bis in idem’, da Lei de Anistia ou de qualquer outra disposição análoga ou excludente similar de responsabilidade”.E ele completou: “Por meio da sentença, a corte ordenou ao Estado brasileiro que reiniciasse, com a devida diligência, a investigação e o processo penal correspondente àqueles fatos, para identificar, processar e responsabilizar os responsáveis pela tortura e assassinato de Herzog. Além disso, o Brasil deveria adotar as medidas mais idôneas conforme as suas instituições para que se reconheça o caráter imprescritível dos crimes contra a humanidade e crimes internacionais, assim como arcar com os danos materiais, imateriais e custas judiciais e advocatícias”.

Esse desiderato me instigou a pontuar minha exposição trazendo o caso para seu enquadramento no paradigma da Justiça de Transição, que estabelece como marcadores a exigência de responsabilização dos fautores das lesões a direitos que se enquadram como lesa-humanidade, reparar as ofensas perpetradas, e reeducar as instituições para se colocarem nos parâmetros democráticos e de respeito aos direitos humanos.

Por isso lembrei o filósofo Walter Benjamin, chamando para a atenção histórica ao momento de perigo que ameaça a democracia e os direitos humanos, e tomar as cautelas diante do relampejar dessa ameaça, e assim conter o curso do paroxismo autoritário e mobilizar para a não repetição, para o nunca mais.

Trata-se de compreender que a democracia e a conquistas de direitos são processos problemáticos e que o conflito é constitutivo do movimento que realiza a história. Há riscos sim, mas não de molde a estancar o processo. A democracia é um processo sem fim e direitos não são artefatos estocáveis em prateleiras legislativas; não são quantidades, são relações. Fiquei feliz em ter minha locução retida pela Senadora Liziane Gama no fecho da sessão, em compartilhar o entendimento de que lutar por democracia e direitos não garante um fim, mas abre percursos para possibilidades, tanto mais realizadoras quanto mais resultantes da ampliação de emancipação e de conquistas humanizadoras, no salto que a consciência faz da história, pela mediação da política, para instituir e concretizar direitos e em última análise, direitos humanos.

(*) José Geraldo de Sousa Junior é professor titular na Faculdade de Direito e ex-reitor da Universidade de Brasília (UnB)