quarta-feira, 2 de outubro de 2024

 

Jogados ao mar

Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito

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Cristovam Buarque. Jogados ao mar. Rio de Janeiro: Editora Lacre, 2024. 160 páginas

 

                   

 

 

Recebi o livro do Autor Cristovam Buarque, com uma dedicatória carinhosa: Para meus amigos Nair e Ze Geraldo que sempre lutam para salvar os náufragos sociais deste país. Beijo e abraço (14/8/24). De fato, eu e Nair, há muitos anos, estamos juntos com Cristovam na luta para resgatar náufragos.

De muitas formas, às vezes no ativismo da política, mas principalmente dando propagação crítica e aderindo ao formidável acervo de ideias e propostas da fonte inesgotável de seu pensamento utópico.

Nair (Nair Heloisa Bicalho de Sousa) desde os tempos de formação do pequeno mais aguerrido grupo de intelectuais (ela na Associação de Sociólogos e Cristovam no CEBRADE, em Brasília), ainda ao tempo das lutas de resistência à ditadura e de formação de frentes para a restauração da democracia no país. Mas sempre disposta a extrair de suas teses arrojadas, a consistência de sua potencialidade para satisfazer necessidades que dão materialidade à dignidade do humano. Registro o rico material publicado na Revista Pólis. Estudos, Formação e Assessoria em Políticas Sociais, nº 30, 1998, São Paulo, Instituto Pólis: Programas de Renda Mínima no Brasil. Impactos e Potencialidades. Organizado por Vera da Silva Teles, Selva Ribas Bejarano, Carlos Henrique Araújo, Nair Heloisa Bicalho de Sousa e Silvio Caccia Bava, coube exatamente a Nair o tópico Avaliação do Impacto sobre as Famílias Beneficiárias. Programa Bolsa-Escola do Distrito Federal (p. 59-107), um programa reconhecidamente criado por Cristovam Buarque. Conforme está na orelha de Jogados ao Mar: “Sua missão sempre foi a educação, sendo um dos raros a se candidatar à Presidência da República (2006) tendo-a como foco do discurso, apresentando-a como a solução base para os problemas nacionais, desde a violência até a falta de infraestrutura industrial e tecnológica de nossa nação, perpassando pela fome e pobreza de nossos concidadãos. Uma revolução pela educação. Nessa intenção criou o Bolsa-Escola, ainda como governador (DF), onde o auxílio estava condicionado à presença das crianças da família na escola. Esse seu projeto foi elevado ao nível Brasil, mas depois, infelizmente, foi alterado, eliminando-se a necessidade escolar dos filhos dos auxiliados” (Ouvi hoje, 23/09/24, na Voz do Brasil, com informação do MDS, que essa condicionalidade está restabelecida no modelo bolsa-família, em vigor).

Eu também, não deixei de indicar muitas de suas obras para leituras valiosas em seu alcance, mostrando que elas se projetavam com a força de proceder de uma verdadeira escola de pensamento e de ação. Mostrei isso na resenha que elaborei sobre o seu livro A Desordem do Progresso. O Fim da Era dos Economistas e a Construção do Futuro. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 1990, 186 p. (Revista Humanidades. Brasília: Editora UnB, vol. 7, n. 2, 1991, p. 201-202).

E na recensão-testemunho, conforme -https://estadodedireito.com.br/foto-de-uma-conversa/ – BUARQUE, Cristovam. Foto de uma Conversa. Celso Furtado. Paris, 8 de maio de 1991. São Paulo: Editora Paz e Terra, 2007, 93 p. Entre as múltiplas razões que pudesse alinhar para comentar o livro, uma primeira razão decorreu logo da dedicatória manuscrita, feita pelo autor por ocasião do lançamento: Ao velho amigo Zé Geraldo que foi testemunha desta conversa. Uma segunda razão, não menos importante, ao menos para mim, vem do título – Foto de uma Conversa – certamente porque as fotos da capa e do miolo, retratando Celso Furtado e o autor Cristovam Buarque, foram tiradas por mim, durante a conversa, no gabinete do entrevistado em  Jussieu, Paris, 6eme Arrondissement, pertinho da estação do Metro Jussieu, entre a Paris 7, Sorbonne e a Universidade Pierre e Marie Currie.

Mas a principal razão, que me dirigiu a resgatar esse pequeno texto – Foto de uma Conversa, enriquecido por notas e glosas de atualização que o seu autor Cristovam Buarque inseriu na edição da entrevista, esteve em recuperar as preocupações de dois economistas profundamente humanistas que se destacam quando na conjuntura corrente, no mundo e no Brasil, as opções que as políticas econômicas oferecem se circunscrevem às receitas do neoliberalismo cujo único resultado  recorrente tem sido, ao fim e ao cabo, prover o interesse da acumulação de capital ao preço da mercantilização da vida.

Esse humanismo está mais uma vez e agora mais fortemente porque a ficção permite intensidade emotiva à narrativa, em Jogados ao Mar. Cristovam Buarque, mais uma vez, nos surpreende ao trazer uma profunda reflexão sobre os descaminhos da educação e da evasão escolar. Faz isso com maestria através de uma ficção investigativa, com elementos de suspense e mistério, é o que destaca a Editora ao oferecer uma suma da obra:

Tendo como ponto de partida o desaparecimento de um aluno – ao mesmo tempo filho, amigo – e a investigação de seu paradeiro, em busca pelo seu corpo, vivo ou morto, esta obra se desenrola em tramas que se entrelaçam e se desdobram em busca de outros que também foram jogados ao mar, sempre nos remetendo ao desencanto do alunato, mas também, em modo contrário, à esperança vinda da abnegação de professores e voluntários que se esmeram no aperfeiçoamento de seu trabalho em prol do progresso humano. No processo investigativo de um repórter, em conflito com o de um delegado, e sob a pressão e manifestação de “Véspera”, somos estimulados a discernirmos sobre o futuro que desejamos para as próximas gerações e o que queremos para nosso país.

Ivo Vitor saiu de casa para ir à escola, mas não chegou. Nem voltou para casa.

O jornalista Nestor é enviado para cobrir e noticiar o caso. Em sua investigação encontra um professor de história, uma mãe desolada, uma educadora que usa o tráfico para conseguir recursos para seus alunos e outros personagens que lidam com a evasão escolar a partir de diferentes perspectivas, desde o tempo da escravidão até os dias de hoje.

 

Em Jogados ao Mar, Cristovam Buarque combina ficção e realidade nos moldes do seu livro O Tesouro na Rua. A edição informa que esse livro recebeu o Prêmio Jabuti, em 1994. Não vi o livro ou o Autor no rol dos premiados.  Em 1995, Cristovam alcançou o1º Lugar do Prêmio (Categoria Ciências Humanas (não ficção), com A Aventura da Universidade. Mas, a propósito de O Tesouro na Rua, anoto uma passagem interessante. Meu filho Daniel Bicalho de Sousa, com quem tenho lido em diálogo Jogados ao Mar, escreveu com seu primo Rafael de Farias Bicalho, ambos com 13 anos então, uma resenha. Cristovam era Governador na época e sofria uma campanha hostil da imprensa em Brasília. Daniel e Rafael haviam se motivado para ler o livro por causa da semelhança de título com obra que coordeno – O Direito Achado na Rua. Levei a resenha para o jornalista Paulo Pestana (recém e precocemente falecido, ele que era um formidável cronista), na época o editor do caderno Cidades do CB. O Paulo não só publicou a resenha como a emoldurou com uma matéria muito positiva sobre o governador-escritor, ocupando toda uma página do jornal. Penso que ali começou uma détend, entre o Jornal e o Governador que permitiu boas parcerias como a campanha pela faixa de pedestre, uma expressão de identidade do brasiliense, Brasil afora.

No texto da 4ª capa de Jogados ao Mar, a conclusão é interpelante: “Uma leitura empolgante que instiga reflexão, envolve e desperta o leitor. Entre a travessia do Atlântico ontem e a travessia para a vida adulta hoje, aqueles que foram Jogados ao Mar poderão ser salvos?”.

Em excelente matéria – seção Opinião – do mesmo Correio Braziliense, https://www.correiobraziliense.com.br/opiniao/2024/08/6919700-um-mergulho-na-evasao-escolar.html, com o título Um mergulho na evasão escolar, Eduardo Neiva, Professor emérito de estudos de comunicação da Universidade de Alabama em Birmingham (EUA) e escritor, diz que “a paisagem educacional que contemplamos hoje deveria nos aterrorizar e encher de cautela e medo. E que o romance Jogados ao mar, de Cristovam Buarque, trata o tema com coragem e isenção”.

De certo modo ele responde à pergunta sobre a possibilidade de salvação:

Por mais gigantesca que seja uma nação, não há berço esplêndido que nos permita sobreviver aos assaltos de tamanho descaso. Do jeito em que as coisas se encontram, e sem patriotadas que nos embalem, e se tivéssemos juízo cívico, o país do carnaval, do futebol e do ouro fugidio das medalhas olímpicas seria um país de sonâmbulos. Como já foi dito tantas vezes, com medalhas ou sem glória esportiva, uma nação que se submete ao encanto de patriotismo sem substância jamais superará o papel que reservamos para nós mesmos, o de sermos um reduto para os piores canalhas.

Ele completa, concordando com as teses do livro:

Admito que cheguei às últimas páginas desse romance convencido de que Jogados ao mar ocupará, principalmente em sua diferença, um lugar ao lado de Dona Flor, Brás Cubas e Grande sertão veredas. Afinal, e de uma maneira assemelhada ao livro de Cristovam Buarque, esses três clássicos da literatura produzida no Brasil enfrentam enigmas e impasses cruciais para a vida dos brasileiros, respectivamente a licenciosidade e a sua contenção no romance de Jorge Amado, o conformismo fúnebre que a ironia de Machado não perdoa e a ferocidade violenta que a fabulação de Guimarães Rosa se ocupou em ilustrar. Entretanto, por mais grandiosos que sejam esses ficcionistas, que arbitrariamente cito, é igualmente notória a falta deixada por outros temas centrais para o entendimento dos cinco séculos que forjaram a vida e a experiência brasileiras. Dos quais Jogados ao mar trata com coragem e isenção.

 

Em outra matéria sobre o livro coordenada por Severino Francisco em o Correio Braziliense -https://www.correiobraziliense.com.br/diversao-e-arte/2024/07/6903968-cristovam-buarque-lanca-livro-de-ficcao-que-retrata-recortes-da-educacao.html – surpreendo o ficcionista Cristovam se valendo mais uma vez do recurso literário para dar verossimilhança ao seu enredo.

Na matéria, o relevo é para o personagem Nestor, jornalista do Correio Braziliense, é fundamental na história, pois realiza pesquisas e entrevistas com mães, professores e traficantes para descobrir o que está acontecendo com as crianças de Planaltina. Ao ser perguntado sobre a escolha do veículo representado, Cristovam responde: “É um jornal fundamental que nós temos na cidade. Se acontece algo em Planaltina e quem vai atrás é um repórter, dificilmente seria outro jornal”.

Esse recurso Cristovam já aplicara em Os Deuses Subterrâneos. Escrito sob o estilo de fábula, ele desenvolve um argumento de todo imaginário. Mas logo oferece elementos aferíveis – dia, horário, número de vôo internacional (Varig 731), trecho, personalidade com agenda pública – para marcar fato real, desse modo trazido para a sua narrativa, para que os incrédulos possam checar ao menos essa parte da história (na minha edição da Record, de 1994, o enredo de verossimilhança está na página 21).

Certamente há aí a atemporalidade e desespacialização provocadas pelo imaginário do escritor. Com certeza Dom Eugênio Salles devia estar no vôo e sua figura cardinalícia logo o atraiu para os subterrâneos da trama criativa do enredo em processo de criação. Mas desconfio que o vôo era mesmo o de retorno da viagem que fizemos juntos a Argel para participar do Colóquio Internacional de Argel Encontro de Personalidades Independentes: Crise du Golfe: la Derive du Droit, Argel, 28 fevrier; 1 e 2 mars 1991 (Cristovam, comigo e mais o franco-brasileiro Christian Guy Caubet, erámos os três únicos latino-americanos convidados para o evento, entre personalidades do porte de Roger Garaudy, Ramsey Clark, Bernard Langlois, Edmond Jouve, René Dumont, Monique Weyl, pe. Jean Cardonnel, Regis Debret – quase três centenas de convidados de todo o mundo e particularmente do Maghreb). Cristovam fez uma forte comunicação Le Golf est Partout). Na volta, Cristovam retornou ao Brasil, via Paris, passando uns dias antes em Roma, onde começa a trama de Os Deuses Subterrâneos.

No vôo de ida nas asas da nostálgica Varig, Cristovam já ia lendo, para ativar a atmosfera parisiense que seria nossa escala esticada na ida e na volta, se não me falha a memória, o livro de Henry Sanson, Memórias dos carrascos de paris 1688 1847. A trama trazia algumas inferências inusitadas sobre posturas profissionais, se feitas pela mediação de palavras traiçoeiras. Como a história do carrasco que os aristocratas preferiam quando subiam o cadafalso pelo cuidado humanizador que lhes dispensava antes de acionar o dispositivo do equipamento criado por estímulo do médico Joseph-Ignace Guillotin que propôs, em 10 de outubro de 1789, o uso de um dispositivo mecânico para realizar as penas de morte na França, ele que era contrário à pena de morte, mas que passou a ter seu nome epônimo para a máquina mortífera. Em Jogados ao Mar Cristovam se pergunta se bondade na profissão é o mesmo que bondade no caráter. Ele avalia, se a conduta do traficante de escravos é simultaneamente boa e má: “Bom na profissão. Bom na busca de lucro. Bom para a ganância. Tipo dono que cuida bem do caminhão ou de seu gado; ou um carrasco que amarra com zelo o nó da corda ou lubrifica com esmero a guilhotina” (p. 18).

A analogia terá sido engendrada nos subterrâneos da mente? As memórias trabalhadas por Henry Sanson se insinuaram nas memórias do autor de Jogados ao Mar? Com quer que seja, na trilha dessas memórias a imaginação de Cristovam sempre tão movido pela aventura da universidade, já se abriu para outras interpelações. Não sei como, o perambular entre os sebos de Paris: no Quartier Latin, nas proximidades da Sorbonne (47 rue des Ecoles, 75230 Paris ou nas margens do rio Sena, perto da igreja de Notre Dame de Paris, Cristovam se pôs à procura de mapas medievais. Queria traçar um roteiro de Paris a Praga para desvendar o mistério que levou o imperador romano-germânico Carlos IV, em 1348, em meio a tensões religiosas, pestes devastadoras, a criar a Universidade Carolina de Praga, a mais antiga universidade da Europa Central e a maior da República Tcheca.

Além dos sebos, lá nos metemos às matulas dos  Marchés aux puces parisienses, desde a   rue Jean-Henri-Fabre9 et avenue de la Porte-de-Clignancourt (y compris sous le périphérique), no 14e arrondisissement, e dans le 18e arrondissement, já a procura de localizações de mosteiros porque o escritor achou melhor percorrer os caminhos não pelas rotas terrestres mas se deslocando entre os mosteiros do trajeto.

Não escreveu ainda o livro, mas o seu processo criativo vai revelando, sobretudo na atualização de sua obra ficcional, os meandros e os achados narrativos, ao menos enquanto disponha de um bom par de sapatos e cadernos de anotações.

Seu amigo e colega Elimar Nascimento, escrevendo sobre o livro –  https://revistasera.info/2024/08/jogados-ao-mar-um-livro-de-cristovam-buarque-editora-lacre-2024/, classificou a obra, com uma quase ficção.

É uma quase ficção ele escreve – E o autor não esconde este fato, pois está na capa. Abaixo do título – Jogados ao mar – está escrito ficção, em que o i é um ponto de interrogação à espanhola, invertido. Portanto, uma pergunta: será que é uma ficção ou um descrição? De fato, o autor é de uma honestidade brutal. Diz no livro o que pensa sobre o humano, a sociedade e, sobretudo, a desigualdade que o incomoda sobremaneira e denuncia há anos. E sem pudor. Em um texto direto, cru. Sem sofisticação, tendo como personagem central um jornalista de casos policiais. A descrição de um real aparentemente invisível em forma de narrativa ficcional.

E completa, avaliando:

Li-o de um fôlego. E, ao final, fiquei pensando: este não é um livro para guardar nas minhas estantes. É um livro para circular. E foi o que fiz. Pedi desculpas ao autor que me o havia presenteado, dizendo-lhe que dispensava dedicatória (ele me enviou o livro junto com outros pelo correio). E, na primeira oportunidade, presenteei-o a um casal de amigos.

É um livro que nos incomoda. Perturba. E não deve deixar ninguém calado. Prevejo que as reações sejam muito diferentes e mesmo díspares e contraditórias. Alguns dirão que é um panfleto. Uma porcaria. Outros dirão que é um livro corajoso, verdadeiro, que escancara a mediocridade e o cinismo da elite brasileira, incluindo um largo segmento da classe média. Alguns o criticarão pela ausência de uma escrita não sofisticada, esquecendo que o autor, está dito no livro, é um jovem jornalista. O mesmo que sai para a periferia do Distrito Federal para escrever sobre um menino desaparecido. E a busca por descobrir o mistério do desaparecimento de Pedro Ivo, o conduz a descoberta de algo que muitos já sabiam, mas não o tinham percebido da forma dura que é apresentada. E outros ficarão estupefatos, porque nunca haviam pensado a respeito. E cobrirão o livro e, sobretudo seu autor, de elogios.

Mas, haverá aqueles que jogarão o livro fora antes de concluir a leitura. Perderão a melhor parte. Aquela em que uma personagem explica porque está presa por envolvimento no tráfico. Presa, e diz que está feliz, porque foi por uma boa causa. Sem qualquer arrependimento. Faria tudo de novo. O que levará alguns a dizer que o autor está estimulando o crime.

Em meio a tantos impropérios e elogios, o livro deve seguir uma bela trajetória. Salvo se a nossa sociedade estiver tão anestesiada que não se importe por mais nada, salvo pela sua vida mesquinha, construída por banalidades e Fake News. Sinal de que nossa sociedade se envolveu em uma bolha, distante da realidade dos fatos. E só nos resta ter pena, e esperar que um dia ela estoure.

 

Em Jogados ao Mar, Cristovam supera as sutilezas de sua ficcão anterior, Astrícia, A Ressurreição do General Sanchez, A Eleição do Ditador, Os Deuses Subterrâneos, A Rebelião das Bicicletas e outras histórias, A Borboleta Azul. No semestre passado, em meu curso de graduação da disciplina Pesquisa Jurídica, na Faculdade de Direito da UnB, eu havia lançado como eixo de interrogação para os jovens estudantes, o tema do pós-humano ou da humanização das máquinas. De novo, me inspirei na monografia de conclusão de curso (IESB/Comunicação Social, 2009) de Daniel Bicalho de Sousa, Reflexões Filosóficas sobre a Comunicação Social na Era Pós-Humana (Humanização das Máquinas). A preocupação de perscrutar na mentalidade artificializadora (IA) do contemporâneo, olhares críticos ou ao menos tocados para as concepções tradicionais de identidade e individualidade e de buscar estabelecer fronteiras entre humano e máquina, cada vez mais tênues, para inferir a emergência de questões, concepções e conceitos para dar conta de transformações tão profundas. As leituras e resenhas foram de Azimov a Cristovam Buarque (Os deuses Subterrâneos).

Encaminhei para Cristovam as 50 resenhas que as alunas e alunos fizeram de seu livro. Alunas como Raquel Pereira Guimarães. Distingo Raquel porque já encontro um eco criativo em sua disposição para o olhar crítico que eu esperava estimular. Raquel, aliás, logo me ofereceu sua própria perspectiva para pensar tempos caóticos e escatológicos. Mal iniciada no curso de Direito e já me traz um livro de poesias. Publiquei aqui neste espaço de minha Coluna Lido para Você, a recensão que fiz de seu livro depois de lhe ter escrito o prefácio (https://expresso61.com.br/2024/08/21/lido-para-voce-poesia-para-o-tempo-do-fim/).

Sobre Os Deuses Subterrâneos, diz Raquel:

Por fim, não queiramos nos tornar como os homens-deuses, tão dependentes da tecnologia e dos conhecimentos previamente adquiridos que percamos a nossa capacidade criativa. Ao contrário, busquemos romper com os padrões e trazer novas ideias. Ainda que criemos inteligências artificiais que colaborem com a nossa vida cotidiana, não devemos perder o nosso traço distintivo, que são a nossa curiosidade, a nossa capacidade de errar e a nossa capacidade em aprender com nossas falhas. Não nos acovardemos diante de um sistema rígido e aparentemente perfeito de normas positivadas. É possível a construção de um direito plural, que respeite as peculiaridades de cada cultura, a diversidade e a individualidade. Jamais encontraremos todas as respostas na norma escrita. Continuemos, assim, sonhadores e façamos dos nossos sonhos uma realidade melhor a todos.

 

Todavia, com Sarah Duarte Santos Lima, na perspectiva que ela extrai sob as metáforas de Cristovam Buarque, é muito interessante a leitura que ela faz de Os Deuses Subterrâneos:

 

Sob o viés da fertilidade imaginativa a capacidade que os homens deuses queriam adquirir eram a possibilidade de criação de novos mundos, como quase tudo na obra é reiterado pelo uso de metáforas, compreendo essa concepção como aquele que possui a capacidade cognitiva de não se limitar ao óbvio, a fim de encontrar novas perspectivas para suas aspirações ou proposituras. Enxergando dessa maneira se torna facilitado dimensionar como os homens deuses poderiam obter tal habilidade sem grandes esforços, isto é, se permitindo descobrirem evidências que nem sempre estão cobertas de ciência, mas que podem se tornar científicas.

 

É realmente prazeroso seguir o enredo narrativo da ficção de Cristovam em Jogados ao Mar. Há duplo esmero na construção do texto. Num aspecto, seus conceitos (evasão escolar; horário integral); noutro, suas referências-mestras (desconhecimento afoga, a escola é o útero da liberdade, brasileiro véspera, ideias que não existem as não-ideias), cerzidos numa elaboração estilística que reúne ambos, no argumento desenvolvido por toda a escrita. Com elegância e apelo: (quase todos nascemos de véspera, os humanos nascem duas vezes: ao sair do ventre da mãe e ao entrar na escola, jornalista tem mais ouvido do que estômago, jogou-se no mar da desescola, ainda não é visível, porque o hoje só se faz véspera depois que o amanhã acontece, até os que estão na escola são evadidos, estão nela, ela não está neles).

A chave de compreensão da tese subjacente ao imaginário ficcional está no gatilho que detona a consciência para questionar a naturalização da desigualdade (no tema da educação e da diferenciação das escolas para acentuá-las). Esse é um movimento que se intensifica nos porquês da personagem Dona Eloísa: naquele dia me perguntei o porquê da diferença. Quando você diz essa palavrinha, tudo começa a mudar ao redor. Perguntei o porquê e tudo começou a mudar. A gente só muda o destino quando descobre que ele não é feito de sorte e de azar, também de decisões que a gente toma na vida. Foi a primeira vez que me passou na cabeça a ideia de que o azar, era injustiça.

Uma introdução à obra de Cristovam teria preparado o leitor para seu modo de escrever. Em todo o seu repertório. Para ler Cristovam Buarque, de Jaime Sautchuk, Geração Editorial; a tese da querida Michelle Morais de Sá e Silva, professora no College of International Studies, University of Oklahoma.  Michelle é PhD e Mestre em Educação Comparada e Internacional pela Columbia University. Doutorado em Educação Comparada e Internacional, sua tese de doutorado, Conditional Cash Transfers and Education: United in theory, divorced in policy, compara o programa bolsa-escola de Brasília (Cristovam Buarque), com a política desenvolvida na cidade de Nova Iorque; também no campo literário há estudos (incluindo tese) sobre a sua contribuição surrealista (realista fantástica) em sua escrita ficcional (PEREIRA, Wilson.O escritor Cristovam e seus heróis cibernéticos. DF Letras: suplemento cultural do Diário da Câmara Legislativa v. 2, n. 14, p.27-30, abr.1995). Wilson Pereira é citado por Nilto Maciel para corroborar a inclusão de Cristovam Buarque no elenco de escritores que representam a Literatura Fantástica no Brasil, no esboço histórico que elabora (https://www.usinadeletras.com.br/exibelotexto.php?cat=Ensaios&cod=61392): “Cristovam Buarque estreou em 1981, com o romance Sinandá. Seu quarto livro, Os Deuses Subterrâneos, se inscreve na linha da ficção científica, segundo Wilson Pereira”.

Nestor Afonso, o personagem que narra, investido da credencial de jornalista do Correio Braziliense, vai a campo com seu caderno de anotações. Ele, como Tchékhov, em Como Fazer uma Reportagem, subtítulo do material compilado por Piero Brunello para o livro Um Bom Par de Sapatos e um Caderno de Anotações (Martins Editora) no qual conduz o leitor numa viagem e apresenta conselhos, teóricos ou práticos, depreendidos dos passos do escritor através do olhar perspicaz, com que observa com honestidade, lucidez e sem preconceitos o mundo misterioso e inexplorado de Sacalina (ilha do extremo oriente russo), cumpre também a tarefa de desvelar as obviedades, o perverso, o injusto naturalizados na acomodação do banal.

Como sementes e as cigarras, algumas ideias de Cristovam se enterram no emaranhado nervoso para, de tempos em tempos aflorarem, subirem à superfície da cognição, germinarem. Em Jogados ao mar percebe-se esse movimento, como vislumbres de seus ensaios de visibilização do invisível, de metamorfose de não-ideias em formas pensamento encontrando modos de manifestação, o tópico transitando para o utópico e assim em diante.

A expressão  perda de chance, por exemplo, que denota a realidade por trás da trama, aparece no enredo como expressão de ideia-semente. Lembro de Cristovam, há trinta anos, por instigação de seu humanismo, levantando a hipótese de reparação por perda de chance, querendo mobilizar forças-tarefas para caracterização de atos de violação à dignidade da vida, nas restrições escolares, nos atendimentos hospitalares, em face de posturas negligentes e omissas de realização de projetos de vida. Atualmente já se tem assentado que a perda de uma chance pode sim se traduzir numa noção civil de necessidade de reparação. A perda de uma chance é uma teoria da responsabilidade civil que se caracteriza pela frustração de uma expectativa ou oportunidade legítima que, de acordo com a lógica do razoável, teria ocorrido se as coisas tivessem seguido o seu curso normal (conforme configurado em fundamento de decisões em julgados de tribunais, no Brasil). A teoria surgiu na França na década de 1960, a partir de uma decisão da Corte de Cassação Francesa, que julgou um caso de erro médico. A perda de uma chance pode ser aplicada não só no âmbito das relações privadas, mas também na responsabilidade civil do Estado.

De certo modo, essa consideração de que a perda de chance implica danos que devem ser reparados e não só por meio de indenizações mas de modo a restaurar a dignidade aviltada já é uma realidade vinculante em decisões da Corte Interamericana de Direitos Humanos.  A Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH), em cujo âmbito é reconhecido o direito ao desenvolvimento de um projeto de vida, garante a autonomia de cada pessoa para realizar escolhas e se desenvolver existencialmente. A Corte IDH também conceituou o “dano ao projeto de vida”, que é um dano que ocorre quando a vida de uma pessoa é frustrada por uma violação de direitos. Este dano é causado por aquilo que a pessoa deixou de realizar, conquistar ou viver devido ao evento danoso.

Para a fixação desse conceito, muito contribuiu a judicatura na Corte do juiz brasileiro Antonio Augusto Cançado Trindade, que a presidiu por duas vezes, um notável jurista que pontificou na UnB e figura no seu quadro de professores eméritos. Caso Niños de la Calle” (Villagrán Morales y otros) Vs. Guatemala  (1999), Benavides versus Peru (2001), Atala Riffo y Niñas vs. Chille (2012). Nesses julgamentos, a Corte não cuidou só de reparação pecuniária, avançou para a dimensão dos sonhos e dos valores espirituais. Juízes da CorteIDH, Abreu Burelli e Cançado Trindade, no Caso Meninos de Rua vs Guatemala, equiparam o dano ao projeto de vida à morte espiritual: “Uma pessoa que em sua infância vive, como em tantos países da América Latina, na humilhação da miséria, sem a menor condição sequer de criar seu projeto de vida, experimenta um estado equivalente a uma morte espiritual; a morte física que a esta segue, em tais circunstâncias, é culminação da destruição total do ser humano.” A consequência tem sido, uma vez preenchidos os requisitos da responsabilidade civil, a condenação não apenas do Estado, mas do próprio particular em razão do dano autônomo ao projeto de vida provocado, capaz de fornecer meios para que as crianças e os adolescentes exerçam todas as suas potencialidades existenciais, interrompidas pela negligência e pelo descaso, a fim de emancipá-los no seio social.

Ler Jogados ao mar é perceber um mundo do desconhecimento que afoga, ou dos que não conseguem morrer, como Alonso o escravo traficado, que não tinha direito de morrer porque fuga era crime, mesmo quando em busca da morte, não da liberdade. Ou do desaparecimento de um filho, tal o personagem Ivo Vitor, causa de dor permanente, porque as lágrimas por filho morto acalmam e vão diminuindo, as lágrimas por desaparecido ressurgem todo dia e vão aumentando.  Cristovam está, de fato, falando da perda de chance, da boa escola, o navio que leva ao porto seguro do futuro. Mas com sentimento, com Paulo Freire, para quem Escola é… o lugar que se faz amigos. Fazer amigos, educar-se, ser feliz. É por aqui que podemos começar a melhorar o mundo. Como Tchékhov, a sua escrita tem a força do vulcão que desarma a traição das palavras, e a traição dos valores numa sociedade que discrimina, segrega, que descarta os sub-humanos, sobrantes, e os joga ao mar.

 

quinta-feira, 26 de setembro de 2024

 

Quem quer a Paz Trabalha para a Paz

Por: José Geraldo de Sousa Junior (*) – Jornal Brasil Popular/DF

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Proponho esse título para me contrapor a uma expressão tradicional que sempre me incomodou: “Si vis pacem, para bellum”, pronunciada em latim, frequentemente interpretada como uma forma de dizer que a paz é alcançada através da força, ou seja, que uma sociedade forte é menos propensa a ser atacada. “Se queres a paz, prepara-te para a guerra”.

Talvez uma remissão à dimensão política da guerra, que desde Julio César – Commentarii de BelloGallico(latim para “Comentários sobre a Guerra Gálica”) o César relata as operações militares durante as Guerras da Gália, que se desenrolaram de 58 a.C. a 52 a.C., das quais ele foi vencedor, para dar ênfase em parecer eficiente, decisivo e direto, e oferecer sua visão sobre como a guerra deve ser travada e justificar o conflito como ação política, inevitável e necessária.

Da Guerra, é um livro sobre guerra e estratégia militar do general prussiano Carl von Clausewitz, escrito principalmente após as guerras napoleônicas, entre 1816 e 1830, e publicado postumamente por sua esposa Marie von Brühl em 1832. No entendimento de Clausewitz,“guerra é ação política forte que envolve não somente fortes sentimentos como também um caráter transformador da realidade”. Pare ele, “guerra é, portanto, um ato de força para obrigar o nosso inimigo a fazer a nossa vontade”. Por meio dessa frase, o estrategista prussiano estabelece uma importante relação, explicando que a guerra, por não ser autônoma, é a extensão da política. Numa frase: “A guerra é a continuação da política por outros meios”.

Em todo caso, uma condição invariável que conduz, como mostra o Dom Carlos (Shakspeare, Friedrich Schiller), diante da interpelação de Filipe II pelo Marquês de Posa, íntimo do príncipe protagonista, sobre o que pretendia fazer com os domínios flamengos do império e constar na afirmação de Filipe que o seu “projecto” é idêntico ao que pratica na “sede” – a paz.  Ao que Posa responde desafiadoramente: ” estaSire, não é a paz dos cemitérios?”. A paz que a abreviatura RIP da expressão latina requiescat in pace, que significa “descanse em paz”, indica para desejar paz após a morte, para a retirada irremediável da luta pela vida.

Curioso que no mesmo período, marcado pelas guerras napoleônicas, outro notável escritor Lev Tolstói tenha escrito um romance monumental Guerra e Paz (1869).Não sei se há relação, mas é sabido quedurante a década de 1870, Tolstói experimentou uma profunda crise moral, seguida do que ele considerou um despertar espiritual igualmente profundo, conforme descrito em seu trabalho não-ficcional A Confissão (1882), o que certamente o conduziu a uma postura fervorosa anarquista cristã e pacifista, aplicada ao valor da educação e da comunicação. Ele próprio fundou 13 escolas para crianças camponesas que acabavam de ser emancipadas pela reforma de 1861. Tolstói descreveu os princípios educacionais em seu ensaio The SchoolatYasnaya Polyana (1862). No entanto, suas experiências pedagógicas duraram pouco por conta do assédio imposto pela polícia secreta czarista. Tolstói pode ser considerado o precursor da liberdade na educação escolar, além de ser pioneiro na aplicação teórica da gestão democrática nas escolas.

É de Tolstói o conceito de não-violência ou Ahimsa reforçado quando ele leu uma tradução alemã dos versos sagrados Tirukkural. Mais tarde, ele sugeriu esse estilo de vida ao jovem Mahatma Gandhi, com quem se correspondia e aconselhava, como se pode conferirem sua Carta ao Hindu.

A referência a Tolstói e a Gandhi, vem a propósito de uma conversa com o Dr. Ulisses Riedel, idealizador com Isaac Roitman e outros colegas da UnB, Professor Mário Brasil (CEAM), Nair Bicalho (NEP – Núcleo de Estudos para a Paz e os Direitos Humanos), dessa Tribuna Livre pela Paz, em seguida à exposição do Professor Cristovam Buarque. Me surpreendeua interpelação do humanista e teósofo, em pretender conferir aos diálogos que a TV Supren propaga, uma disposição de cientificidade.

Eu pensava ser mais próximo da agenda da Tribuna, ver transparecer como em JidduKrishnamurti, conforme depreendi no programa Diálogos Sobre a Vida, no qual Marcos Resende e Eduardo Weaver refletem sobre “A Paz Em Nós e a Paz do Mundo”, a perspectiva de que para que a paz seja alcançada no mundo, cada pessoa deve fazer as pazes consigo mesma, buscando alcançar  um estado de harmonia ou tranquilidade, sem conflitos ou violência, experenciando em diferentes níveis, na vida pessoal, profissional, em família, com amigos, ou mesmo globalmente, o respeito a vida, a rejeição à violência, a generosidade, o ouvir para compreender, a preservação do planeta, a redescoberta da solidariedade.

Ou artisticamente, como em Fernando Pessoa, pelo sensacionismoteopoético – “Quero sentir tudo de todas as maneiras” – de seu heterônimo Álvaro de Campos, no poema Dá-nos a Tua paz, (Álvaro de Campos – Livro de Versos. Fernando Pessoa. (Edição crítica. Introdução, transcrição, organização e notas de Teresa Rita Lopes.) Lisboa: Estampa, 1993.  – 25)

Pensando como integrante da Comissão de Justiça e Paz da Arquidiocese de Brasília, tenho que, se queremos a paz devemos trabalhar para a Paz. No sentido a que alude o lema da CJP: “Se queres a paz, trabalha pela justiça”. Porque, construir a paz é contribuir para a formulação de propostas que visem solucionar questões ou desafios identificados no campo dos direitos humanos universais, da promoção da justiça, condição para a edificação da paz.

Na Pacem in Terris (11 de abril de 1963) | João XXIII, num tempo tenso de reconstrução do pós-segunda guerra, mas no rico contínua de uma “guerra fria”, convocou para a construção deum mundo onde a paz seja alcançada pelos governos dedicados ao cumprimento dos direitos humanos e onde as instituições globais seriam estabelecidas para atender às necessidades globais.

Atualmente, o Papa Francisco, atento aos conflitos do que já caracteriza com uma terceira guerra mundial em pedaços, tem relativamente à paz, o entendimento de que ela é uma construção que requer compromisso, colaboração e paciência; para ser duradoura só pode ser uma paz sem armas, por isso ela precisa estar nas mãos do povo, pois ela é fruto de relações que reconhecem e acolhem o outro na sua dignidade inalienável.

Todo esforço pela paz implica e requer um compromisso com a justiça. A paz sem justiça não é paz verdadeira, não tem fundamentos sólidos nem possibilidades de futuro. A justiça não é uma abstração ou uma utopia, é o cumprimento honesto e fiel de um dever:Não é apenas o resultado de um conjunto de regras a aplicar com competência técnica, mas é a virtude pela qual damos a todos aquilo que lhe diz respeito, indispensável ao bom funcionamento de todas as áreas da vida comum e de todos para levar uma vida tranquila.”

A cada ano o Papa proclama mensagens pelo dia mundial da paz (1º de janeiro). Agora em 2024, o núcleo da mensagem éninguém pode salvar-se sozinho; recomeçarmos juntos a partir da Covid-19 para traçar caminhos de paz; compreender que a tecnologia é resultado do potencial criativo da pessoa humana; a  necessidade de discernimento no uso de dados e conteúdos da internet; ter consciência de que o vírus da guerra é mais difícil de derrotar do que os vírus que atingem o organismo humano; cuidar para que a Inteligência Artificial possa promover o desenvolvimento humano desde que seja utilizada de forma ética.

Volto à exortação do Dr. Ulisses Riedel. Instalada na UnB, no Memorial Darcy Ribeiro, é sim importante que A Tribuna Livre pela Paz, esteja integrada à perspectiva da racionalidade científica, na sua dimensão paradigmática do complexo, do multi, inter e transdiscisplinar que organizam o protocolo do conhecimento no contemporâneo. A paz como campo de estudo, de pesquisa, como modo de conhecer.

É pertinente essa exortação. Desde seu estatuto, a UnB insere em seu projeto (universidade necessária), a atualização de suas finalidades, nelas inscrita a condição de inclusão, de completude, de lealdade com o social (universidade emancipatória) assumindo o compromisso, conforme as finalidades essenciais inscrita no seu Estatuto  Art. 3º, item XII  com a paz, com a defesa dos direitos humanos e com a preservação do meio ambiente.

Em Educando para os Direitos Humanos: Pautas Pedagógicas para a Cidadania na Universidade. Organizadores: José Geraldo de Sousa Jr, Nair Heloisa Bicalho de Sousa, Alayde Avelar Freire Sant’Anna, José Eduardo Elias Romão, Marilson dos Santos Santana, Sara da Nova Quadros Côrtes. Porto Alegre: Editora Síntese, 2004, anotamos que a inserção dos temas Paz e Direitos Humanos, para conduzir as reflexões temáticas neste novo modelo, derivou de duas motivações complementares. No primeiro termo, -a eleição naquele ano do Reitor CRISTOVAM BUARQUE para a Presidência do Conselho da Universidade para a Paz, das Nações Unidas, com sede em San José, Costa Rica, criando condições para a celebração de um protocolo de intenções entre aquela Universidade e a UnB, para o desenvolvimento de um programa comum.

O protocolo, assinado na cidade de Yxtapa (México), pelo escritor colombiano Gabriel Garcia Marques, Prêmio Nobel de Literatura, na qualidade de testemunha, pedia um ambiente universitárioadequado ao desenvolvimento dos seus termos. Este ambiente, na UnB, foi o NEP,  criado em 1º de janeiro de 1986, como Núcleo de Estudos e Pesquisas para a Paz e os Direitos Humanos.  Para alcançar os seus objetivos, o NEP se propôs, conforme os seus documentos constitutivos, a: (1) desenvolver pesquisa capaz de produzir conhecimento novo sobre a paz e os direitos humanos, reunindo investigadores de diferentes campos científicos num esforço interdisciplinar; (2) manter programa permanente de ensino e pesquisa no âmbito da universidade e da comunidade; (3) divulgar os conhecimentos sobre a paz e os direitos humanos, mediante publicações de resultados de pesquisas, do próprio NEP e de centros congêneres. Organizar seminários, cursos e atualizações, e promover conferências, colóquios, exposições e eventos; (4) efetuar intercâmbios com centros similares; e (5) oferecer à comunidade acesso às suas atividades.

A atuação consolidada do NEP levou à especificação de três linhas principais de estudos e pesquisa: O Direito Achado na Rua e Os Direitos Humanos e Cidadania;  a pesquisa para a paz, propriamente dita, instituída e coordenada pelo Professor NIELSEN DE PAULA PIRES e focalizada nos estudos de graduação (disciplina pesquisa para a paz) e de pós-graduação. O professor Nielsen aliás, foi Diretor do CEAM e, originado do Instituto de Ciências Políticas acabou institucionalizando nessa unidade, como vocação fomentadora do CEAM, a campo de estudos e pesquisas sobre a paz.

Ainda no CEAM, os esforços para institucionalizar epistemologicamente os estudos e as pesquisas para a paz, se deram pela interlocução internacional com os setores avançados nessa área, relevo para a cooperação coma IPRA – International Peace ResearchAssociation.

Nessa interlocução a fonte principal de referência foi Johan Galtung, professor e pesquisador norueguês que se insurgiu contra a naturalização da guerra na política internacional e reorientou o debate acadêmico sobre a paz durante a Guerra Fria. Galtung faleceu neste ano de 2024, no dia 17 de fevereiro, aos 93 anos de idade. Ele deixou um legado intelectual importante, que abrange contribuições seminais sobre tópicos tão diversos como os conceitos de violência direta-estrutural-cultural, o conceito de paz negativa e paz positiva, o imperialismo e suas implicações para a paz, as noções de peacekeeping, peacemaking e peacebuilding, a resistência não violenta, bem como o conceito de transformação de conflitos.

Para uma referência mais direta remeto a https://diplomatique.org.br/johan-galtung-paz/, de modo a reter de Galtung, a sua indicação de que a equação da paz que daí emerge é complexa e levanta desafios imensos no campo da resolução de conflitos e construção da paz, apontando para a necessidade de um conjunto abrangente de medidas que engloba não só os tradicionais mecanismos diplomáticos de cessação da violência direta (negociação, mediação, acordos de paz), mas também ações mais ambiciosas, voltadas para a transformação das raízes estruturais da violência (desenvolvimento social e econômico, redução da pobreza e das desigualdades, paridade de gêneros, ampliação das oportunidades de acesso à saúde, educação, habitação e à terra, aumento da participação política, combate aos mecanismos de opressão e exploração, justiça de transição, etc.) e para a transformação das raízes culturais da violência (educação e comunicação para a paz, revisão de mitos e narrativas históricas, atividades culturais e artísticas que desconstruam estereótipos e promovam a reconciliação e a tolerância etc.).

Forte nessas referências, dirijo a atenção para a edição temática – Guerra e Paz – da Revista Humanidades. Brasília: Editora UnB, nº 18, ano V/1988. A edição contou com a colaboração de Clóvis Brigagão, Secretário-Geral da IPRA no Brasil (International Peace ResearchAsociation). Na abertura, o texto-editorial do Reitor Cristovam Buarque, contextualiza a proposta editorial: “A luta pela paz exige o entendimento, o esclarecimento, a denúncia e a reformulação do próprio conceito de guerra – ampliando-o a todas as formas de destruição do patrimônio humano, provocadas, contraditoriamente, pelo poder e esforço criativo do homem. Nesta luta de ideias, pela paz singular contra todas as guerras, a educação é o principal fator, a escola o principal exército. Mas um fator que não cumprirá o seu papel se for apenas um agente propagandístico. É preciso que a escola que busque a paz seja uma escola que busque desvendar o véu que encoberta todas as formas de relações injustas entre os homens”.

E, certamente, a dimensão educadora e política da abordagem do tema, leal aos paradigmas acadêmicos de racionalidade epistemológica, estão em concordância com os pressupostos do que a UNESCO já fixou como Cultura de Paz. Uma perspectiva presente no teto de Cristovam mas, igualmente, no texto contextualizador de VicençFisas no pressuposto de que “o conceito de paz não se refere somente à ausência de guerra mas relaciona-se com a ausência de qualquer tipo de violência que impeça a satisfação de necessidades humanas básicas. Assim, a paz se caracteriza ‘por um elevado grau de justiça e uma expressão mínima de violência’. Trata-se da possibilidade de reencontro do ser humano com seu ambiente social, político, econômico, tecnológico e ecológico, em termos de equilíbrio e isento de opressão”. Dito de forma sintetizadora, com o escritor e poeta Tetê Catalão, um dos editores: “Se é de paz, faz…”.

Ao fim e ao cabo, trata-se de conectar, a partir das tradições ancestrais, muito presente na UnB, a quem o Conselho Universitário outorgou o título de Doutor Honoris Causa, e um dos mais recentes intelectuais admitidos na Academia Brasileira de Letras, Ailton Krenak. Em discurso em prol da coletividade, da tolerância, da ciência e da paz, proferido em abertura de semestre na UnB (aliás, foi também na UnB que ele cunhou a expressão que dá título a um de seus livros – Ideias para Adiar o Fim do Mundo, Krenak toca a sensibilidade dos estudantes quanto à expectativa que têm das universidades.Krenak vislumbra como horizonte: “produzir ciência e conhecimento que auxilie o mundo a viver em paz”, ciente de que a paz é resultado de lutas. “Ciência. Ciência. Ciência. Paz. Paz. Paz, ciência”. “Paz não é um orvalho da manhã, mas resultado de resistência e luta“, O Bem Viver pode ser a difícil experiência de manter um equilíbrio entre o que nós podemos obter da vida, da natureza, e o que nós podemos devolver. É um equilíbrio, um balanço muito sensível e não é alguma coisa que a gente acessa por uma decisão pessoal (KRENAK, Ailton. Caminhos para a cultura do bem viver. São Paulo, Cultura do Bem Viver, 2020).

Num Brasil de quebradas, num Brasil com s, sufocado por um Brazil com z (Aldir Blanc, Querelas do Brasil), qual a paz que queremos, qual a paz a construir. Essa é a função da atitude científica para conhecer a paz; a disposição sensível já exibe a paz que não queremos, como em Minha alma (A paz que eu não quero), canção de O Rappa (https://www.youtube.com/watch?v=vF1Ad3hrdzY):A minha alma ‘tá armada/E apontada para a cara do sossego/Pois paz sem voz paz sem voz/Não é paz é medo…

(*) José Geraldo de Sousa Junior é professor titular na Faculdade de Direito e ex-reitor da Universidade de Brasília (UnB)

José Geraldo de Sousa Junior é graduado em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal – AEUDF, mestre e doutor em Direito pela Universidade de Brasília – UnB. É também jurista, pesquisador de temas relacionados aos direitos humanos e à cidadania, sendo reconhecido como um dos autores do projeto Direito Achado na Rua, grupo de pesquisa com mais de 45 pesquisadores envolvidos.

Professor da UnB desde 1985, ocupou postos importantes dentro e fora da Universidade. Foi chefe de gabinete e procurador jurídico na gestão do professor Cristovam Buarque; dirigiu o Departamento de Política do Ensino Superior no Ministério da Educação; é membro do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil – OAB, onde acumula três décadas de atuação na defesa dos direitos civis e de mediação de conflitos sociais.

Em 2008, foi escolhido reitor, em eleição realizada com voto paritário de professores, estudantes e funcionários da UnB. É autor de, entre outros, Sociedade Democrática (Universidade de Brasília, 2007), O Direito Achado na Rua. Concepção e Prática 2015 (Lumen Juris, 2015) e Para um Debate Teórico-Conceitual e Político Sobre os Direitos Humanos (Editora D’Plácido, 2016).