quarta-feira, 27 de outubro de 2021

 

Formas Transvestigêneres da Escrita da Lei. Erica Malunguinho e a Mandata Quilombo na Ocupação da Política e na Transformação do Direito.

Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito.

 

 

 

 

Fredson Oliveira Carneiro. Formas Transvestigêneres da Escrita da Lei. Erica Malunguinho e a Mandata Quilombo na Ocupação da Política e na Transformação do Direito. Tese (Doutorado em Direito). Universidade Federal do Rio de Janeiro, Centro de Ciências Jurídicas e Econômicas, Rio de Janeiro, 2021, 584 f.

 

Com enorme satisfação participei da Banca Examinadora da Tese objeto deste Lido para Você, compartilhando o seu exame com os membros: Professora Juliana Neuenschwander Magalhães (Orientadora), Professor Manuel Eugénio Gándara Carballido (Coorientador), meu colega de universidade Professor Alexandre Bernardino Costa,  também antiga colega na UnB Professora Jaqueline Gomes de Jesus, Professora Juliana Gonzaga Jayme e, na suplência a querida amiga e colega  Professora Margarida Maria Camargo.

A defesa foi uma ocasião eloquente para reencontrar Fredson Carneiro, depois de seus estudos no mestrado, quando o orientei, numa dissertação fortemente qualificada logo transformada em livro que passou a se constituir uma referência no campo de interesse continuado do Autor: A Lucidez e o Absurdo. Conflitos entre o poder Teológico-Político e os Direitos Humanos LGBT na Câmara dos Deputados (Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2016).

Esse belo texto, desenvolvido como resultado de seus estudos para o Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos e Cidadania (NEP/CEAM), na Universidade de Brasília, conforme tive a oportunidade de escrever, quando publicado,  capta a tensão, tanto política quanto ideológica e, em última análise, epistemológica, para afirmar as condições de reconhecimento e de legitimação de direitos de minorias sexuais (lutas por direitos humanos e dignidade dos movimentos LGBTs no Brasil), em face dos conservadorismos moralistas, inscrito nas mobilizações de segmentos religiosos, sobretudo no espaço institucional legislativo.

Trata-se de resgatar, no Brasil como em outros países, a mediação progressista que busca instituir um espaço de afeto, algo que em Itália, por exemplo, traduz a mensagem das  chamadas “famiglie arcobaleno” (‘famílias arco-íris’), que colocam em causa, mostra Patrícia Vilanova Becker,  a crítica à família enquanto instituição patriarcal destinada à transmissão de propriedade e à preservação das classes sociais perde sua radicalidade (“Famiglia è dove c’è amore”, Cartas de Bolonha, http://odireitoachadonarua.blogspot.com.br/search?updated-max=2016-04-16T10:42:00-07:00&max-results=15, acesso em 10.10.2021).

Fredson confronta, assim, os mitos que conformam os padrões, notadamente morais, referidos a uma moralidade marcantemente religiosa e, em arranque filosófico, num dialogo riquíssimo que reúne Kierkegaard, Espinosa, Marilena Chauí e, para enquadramento dialético-jurídico, Roberto Lyra Filho (o Direito como enunciação dos princípios de legítima organização social da liberdade), convoca ao “esclarecimento” sobre as “trevas contemporâneas” para que as “novas gerações” tenham “braços esperançosos, vontades e lutas” capazes de conduzir a “um mundo sem medos, socialmente mais justo e livre de opressões” (A Lucidez e o Absurdo, 4ª Capa).

Já nos agradecimentos o Autor mapeia os diferentes sendas pelas quais conduziu seu percurso teórico-político até confluir na Tese cujo núcleo se contêm no resumo que a apresenta. Incluo como percurso também assinalado nesse mapa cognitivo, a playlist que o Autor, preparou sobre a tese, a exemplo do que já fizera por ocasião do Mestrado quando preparou um CD com músicas que diziam respeito àquele processo. No link a seguir, uma forma de comunicação com os mais sensíveis, o Autor segue com a música e as artes na produção das suas pesquisas. Um mimo para os leitores da Coluna Lido para Você: https://open.spotify.com/playlist/110xQSDHId4nrA28vwi5Ob?si=d6d94df4900e486d

Volto ao resumo:

“A histórica luta do movimento negro e do movimento LGBTI+ conquistou significativos avanços e inseriu o debate sobre violências estruturais no âmbito jurídico-político contemporâneo. Não obstante, permanecem altos os índices de violência transfóbica, figurando o Brasil em primeiro lugar entre os países que mais matam pessoas trans no mundo, ao passo que se mantém rígidas as estruturas do racismo no país. Este cenário constitui-se a partir de uma relação ambivalente entre as populações precarizadas e o Estado. Por um lado, é operacionalizado um projeto transnecropolítico e de extermínio da população negra; por outro, os grupos-alvo dessas violências articulam estratégias de resistência que envolvem a própria institucionalidade estatal. É no quadro destas estratégias que Erica Malunguinho protagoniza a histórica vitória no pleito eleitoral para a Assembleia Legislativa do estado de São Paulo em 2018, tornando-se a primeira deputada trans e negra do Brasil. Em face desse episódio e de seus desdobramentos, proponho, enquanto objeto desta pesquisa, a análise da atuação da deputada Erica Malunguinho na institucionalidade legislativa, exercida por meio de sua Mandata Quilombo. Ao considerar esta atuação institucional, tanto pelo que denuncia quanto pelo que propõe, objetivo interpelar o campo jurídico-político a partir do debate promovido pela deputada Erica Malunguinho em torno dos conceitos, das inovações e das pautas atinentes às populações subalternizadas e historicamente silenciadas, que ela representa. Para atingir esse escopo, oriento-me pelas funções da teoria crítica que, segundo Herrera Flores (2009), consistem em visibilizar, desestabilizar e transformar, e apresento a seguinte situação-problema: o que muda com a eleição e com a atuação parlamentar da deputada Erica Malunguinho, em seu processo de ocupação da política institucional e de luta por direitos?

A leitura da tese é de tirar o folego. Pela densidade da elaboração e pela elegância da escrita. Em seu estilo Fredson segue a disposição de Ortega y Gasset sobre o afazer intelectual, segundo ele obediente a duas exigências: “o sistema, que é a ética do pensador; a clareza, a sua cortesia. São mais de 500 páginas sem nenhum desperdício. Tudo conceitualmente designado. Exemplo, a distinção, com Herrera Flores, entre patriarcado e patriarcalismo, que não encontra em Segato, sem redução de alcance epistemológico-político (p. 114). Algo que encontramos em Roberto Lyra Filho e em ninguém mais, entre sociologia do direito e sociologia jurídica (O Que é Direito), em benefício do arranjo teórico-explicativo. As notas são, sob esse aspecto, preciosas, também pela sutileza histórica, entrevista nas nuances da metodologia da pesquisa, que quase se poderia dizer, sem nenhuma redução heurística, força a intimidade, fazendo as fontes revelarem o que não falariam por si mesmas ou exibiriam em seus escritos (PALLARES-BURKE, Maria Lúcia Garcia. As Muitas Faces da História. Nove Entrevistas. São Paulo: Editora Unesp, 2000).

Trago aqui o Sumário da Tese, para oferecer ao leitor uma mostra do conteúdo proposto a sua leitura; também para aferir o cuidado sistêmico do trabalho a perceber na organização das matérias, o zelo metodológico para classificar os conteúdos. Se Jorge Luis Borges, em O Idioma Analítico de John Wilkins, é agudamente convincente ao afirmar que “sabidamente não há classificação do universo que não seja arbitrária e conjectural”.

Em Fredson, que escreve em primeira pessoa, com sua corporalidade constituída nas características em que se reconhece (p. 23), seguindo o que orienta Lélia González, por convicção e dever ético (p. 23), até para, como diz Lélia (aliás em debate no qual estivemos juntos e que ela veio a validar uma colocação minha sobre cidadania plena e a legitimidade do discurso que desafia o que está posto (cf. A Cidadania e a Questão Étnica, in TEIXEIRA, João Gabriel Lima Cruz, ed. A Construção da Cidadania. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1986, p. 175-176), há um honesto compartilhamento acerca de seu ponto de partida assim como o de chegada para construir o sumário, cuja leitura permite apreender que já aí o conjectural não é aleatório, mas segue um plano teórico-metodológico deliberado.

Conforme ele indica, na estrutura do próprio sumário, extrai-se o roteiro necessário:

Para que seja possível compreender os sentidos concretos dessa questão e tatear as respostas que serão desenvolvidas ao longo da tese proponho uma sistematização teórica da síntese das lutas que Malunguinho sistematiza institucionalmente com a Mandata Quilombo. Como caminhos possíveis para desenvolver essa sistematização, organizo este trabalho em três partes, atinentes às funções da teoria crítica dos direitos humanos proposta por Herrera Flores (2009). Para Herrera Flores haveria uma função epistêmica que indica a tarefa de visibilizar relações sociais existentes apontando o que nelas expressa desigualdades, violências e precarizações; uma função ética, que deveria dar relevo às contradições existentes no mundo social, com vistas a desestabilizar a ordem injusta das coisas; e uma função política, que, ao cabo, objetiva transformar a realidade social analisada com as contribuições da teoria” (p. 36).

 

Prólogo – Diante da dor dos outros: uma nota sobre o meu lugar de fala

Introdução – Um coração pesa 300 gramas

PARTE I -VISIBILIZAR

Capítulo 1 – Pesquisa em que Direito? Sobre os caminhos metodológicos na pesquisa empírica criticamente racializada e generificada

1.1 Pesquisa em que Direito? Procedimentos teóricos para uma fundamentação

ontológica

1.2 Na encruzilhada do método: sobre as rotas do arranjo metodológico

1.3 Pesquisa empírica e fontes de pesquisa em Direito

1.4 O diamante ético e as categorias centrais da metodologia relacional dos direitos humanos

1.5 Escrevivências e oralituras: aproximações afrocentradas com as narrações de Erica Malunguinho

Capítulo 2 – O país dos índios, construído por negros em benefício dos brancos:

desigualdades estruturais e a construção das hierarquias e posições sociais no

Brasil2.1 Quando ser negro era portar um defeito de cor: escravidão e organização social do Brasil entre os séculos XVI e XIX

2.1.1 Entre normas, números e corpos

2.1.2 Escravocrata e patriarcal: sexualidade e gênero no Brasil moderno-colonial

2.1.3 Sobre transições conservadoras e a gênese do autoritarismo na sociedade

brasileira

2.2 O autoritarismo social e manutenção das hierarquias raciais e

patriarcais

2.2.1 A ascensão do racismo científico e da patologização das sexualidades não

normativas

2.3 “Onde predomina o sangue tropical”: contornos do mito da democracia racial e sua função conservadora

2.3.1 A Casa Grande e o Parlamento: permanências da democracia racial no funcionamento das instituições sociais

PARTE II – DESESTABILIZAR

Capítulo 3 – Negar vértices de assujeitamento, a despeito de toda opressão: o que acontece quando uma mulher trans, negra e nordestina ingressa na institucionalidade?

3.1 Que democracia? Comentários sobre o berço esplêndido da política institucional brasileira

3.2 “Que lugar é esse que vocês nos querem colocar?” A posição das mulheres trans negras entre as opressões de gênero, raça e classe

3.3 “O que se pratica aqui é necropolítica”: a prostituição como destino trans e outras políticas de morte

3.3.1 A política do fazer morrer, deixar viver: o estado como máquina da morte

3.3.2 A transnecropolítica e as existências inconstitucionais do Brasil

3.4 A prostituição como trincheira trans: transformando o lugar da exclusão em plataforma política

3.5 A violência política de gênero e a transfobia como um vício branco

3.6 A institucionalidade enquanto uma alegoria furtiva: posicionando a Alesp diante do neoliberalismo e da necropolítica

Capítulo 4 – Amefricana em Diáspora: a disposição militante e os caminhos atlânticos de Erica Malunguinho na política institucional

l4.1 “É democrático, mas não tanto”: o corpo-território da deputada Erica Malunguinho e a ausência de representatividade na institucionalidade brasileira

4.2 “‘Gritaram-me negra, pois negra soy’. Mulher e trans”: a escrita em primeira pessoa de Erica Malunguinho

4.2.1 Uma relação com o Mulherismo Africana e as possibilidades de existências plurais

4.3 “Uma escola de formação política”: a Mandata Quilombo como substrato de um Tempo

4.3.1 Enegrecendo e esquerdizando a esquerda

4.3.2 Pluralizando a política e articulando a relação entre o ativismo LGBTI+ e os Partidos

4.4 “A gente existe…pensando o amanhã, apontando vanguarda, apontando futuro”: invenções democráticas e inovações institucionais

4.4.1 As Juntas e a Mandata Ativista: primeiras intersecções de raça, gênero e sexualidade em mandatos coletivos no legislativo brasileiro o contragolpe

PARTE III – TRANSFORMAR

Capítulo 5 – Ocupar a Política, transformar o Direito: as práticas sociais de Erica Malunguinho nas guerras de narrativas e nas disputas de normativas Contemporâneas

5.1 “Bem-vindes todes ao Contragolpe Black-Trans-Paranauê!”: demarcando posição nas disputas de narrativas contemporâneas

5.1.1 A reintegração de posse

5.1.2 A alternância de poder

5.1.3 Novas ferramentas participativas e espaços de atuação institucional

5.2 A disputa de normativas na atuação parlamentar quilombista de Erica Malunguinho

5.2.1 Ações táticas

5.2.2 Ações programáticas

5.2.2.1 Gênero e Sexualidade

5.2.2.2 Questões raciais

5.2.2.3 População em Situação de Rua

5.3 O campo jurídico-político como lugar de reelaboração das construções sociais, da projeção de humanidades e de novos pactos civilizatórios

Conclusão – Em cada coração de negro, há um quilombo pulsando

Referências bibliográficas

Anexo I – Lista de deputados/as da 19ª legislatura da AlespAnexo II – Lista dos partidos políticos registrados no TSE

Anexo III – Lista de mandatas e mandatos coletivos eleitos

Anexo IV – Lista de integrantes do gabinete da deputada Erica Malunguinho

Anexo V – Projetos de lei de autoria da deputada Erica Malunguinho

Anexo VI – Frentes parlamentares integradas pela deputada Erica Malunguinho

Anexo VII – Playlist “Formas transvestigêneres da escrita da lei

 

            O mapa cognitivo de Fredson é acessível à integração de múltiplas racionalidades que dialogam. Combina os arranjos epistemológico-metodológicos compatíveis. Se bem parta da modelagaem do diamante ético de Herrera Flores para pensar os processos de reconhecimento da dignidade material da existência, na intersecção entre a linha horizontal da materialidade e das disposições de desenvolvimento das forças produtivas na historicidade das relações de produção e a linha vertical dos espaços de posicionamento da afirmação dos valores em narrativas institucionalizados no carrefour da dignidade do humano; não ignora a ecologia dos saberes, na modelagem proposta pelo professor Boaventura de Sousa Santos, o que facilmente se percebe nas cartografias desenhadas para acentuar as notações da pesquisa. Mas guarda lealdade aos fundamentos de sua base nativa de apoio interpretativo, fundada no humanismo dialético de Roberto Lyra Filho, ensaiando e bem num arranjo de completude os elementos designativos, que bem cairiam no arranjo social e teórico sugerido por O Direito Achado na Rua, a partir das experiências analisadas, para assim: 1) Determinar o espaço político no qual se desenvolvem as práticas sociais que enunciam direitos, a partir mesmo de sua constituição extralegal, na enunciação como direitos humanos; 2) Definir a natureza jurídica do sujeito coletivo capaz de elaborar um projeto político de transformação social e elaborar a sua representação teórica como sujeito coletivo de direito; 3) Enquadrar os dados (achados) derivados destas práticas sociais criadoras de direitos e estabelecer novas categorias jurídicas para estruturar as relações solidárias de uma sociedade alternativa em que sejam superadas as condições de espoliação e de opressão entre as pessoas e na qual o direito possa realizar-se como um projeto de legítima organização social da liberdade (SOUSA JUNIOR, José Geraldo de. O Direito Achado na Rua: Concepção e Prática, Revista Humanidades, vol. 8, número 4 (30). Brasília: Editora UnB, 1992).

            Sustento essa constatação na medida em que percebo o objeto circunscrito da pesquisa afinal levada à Tese (p. 35-36):

Nestes termos, demarquei a análise da atuação da deputada Erica Malunguinho na institucionalidade legislativa, exercida por meio de sua Mandata Quilombo, como objeto de pesquisa desta tese. Compreendido enquanto um problema social, o objeto de pesquisa consiste, assim, na análise “do processo pelo qual se constrói e institucionaliza o que, em determinado momento do tempo é constituído como tal” (LENOIR in CHAMPAGNE, 1998, p. 73)

………………………………………………………………………………………………………………

Delimitado o objeto da pesquisa, meus esforços investigativos se direcionaram para compreender essa trajetória, que tem rompido com as probabilidades postas para as vidas trans, ao propor a ocupação de espaços inéditos na Política e apresentar horizontes renovados para o Direito. Como objetivo, busco interpelar o campo jurídico-político a partir do debate promovido pela deputada Erica Malunguinho em torno dos conceitos, das inovações e das pautas atinentes às populações subalternizadas e historicamente silenciadas, que ela representa. Lançando mão de técnicas de pesquisa de caráter qualitativo, sistematizo, nesta tese, as propostas da primeira deputada trans negra do Brasil, cuja ação política tece escritas da lei próprias da formação de um sujeito coletivo de direito, a partir da seguinte situação-problema: o que muda com a eleição e com a atuação parlamentar da deputada Erica Malunguinho, em seu processo de ocupação da política institucional e de luta por direitos?

Os grifos são meus, e eles retomam, na tese sob exame, o que há poucos dias, em debate com examinadores, especialmente Henyo Barreto e Boaventura de Sousa Santos (Renata Carolina Corrêa Vieira. Povos Indígenas, Povos e Comunidades Tradicionais e Agricultores e Familiares: A Disputa pelo Direito no Conselho de Gestão do Patrimônio Genético (CGEN). Brasília: CEAM-PPGDH (Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos e Cidadania), 2021), pude extrair dessa ordem de consideração.

Anotei a propósito:

O trabalho – refiro-me à Dissertação de Renata Vieira, mas penso o mesmo no que essa questão emerge da tese de Fredson – tem a peculiaridade de um mergulho radical nos pressupostos em que se sustenta, ao imantar a pesquisa do compromisso ético-político de captar o sentido de alteridade que os sujeitos inscritos nas representações dos povos e comunidades originários e tradicionais, inscrevem em seu protagonismo no processo. Isso é o que transparece das considerações finais.

Sobre isso, o professor Henyo chega a dizer, na arguição, que a Autora testemunhou a indigenização de um protagonismo que representa como que uma descolonização das instituições e dos espaços estatais, por uma forma de ocupação desses espaços orientada pelo imaginário cosmológico com que representam a existência, a natureza e a humanidade. A Autora expressa essa compreensão, ao formulá-la, tal como o fizera no debate durante a defesa, no modo como ela própria o disse acima: “me propus a fazer uma análise de como se dá a luta por direitos quando os movimentos sociais alcançam a institucionalidade, especialmente a disputa pelos direitos relacionados a seus conhecimentos tradicionais, dentro de um espaço hegemonizado pelo capital e onde a correlação de forças é extremamente desigual”.

É certo que o fio condutor dessa constatação é desenrolado pela narrativa/oralitura (posto que que retirada dos depoimentos colhidos pela Autora), enfibrado de disposição contra-hegemônica de construção de um direito autêntico, cogente, contraposto ao direito oficial, formal, organizado sobre expressão regulamentar, direito achado na aldeias, nos territórios, nos usos tradicionais, na rua, direito emancipatório em suma.

Aqui terá sido útil, desde uma perspectiva metodológica, mas também epistemológica, valer-se das mediações cognitivo-tradutoras, não só de uma antropologia social que desvende uma outra sociabilidade, mas de uma sociologia de ausências e de emergências que possa ir ao profundo da linha abissal para regressar pela mediação da hipótese do pluralismo jurídico, com a projeção de uma outra juridicidade que não seja o sinal trocado de um monismo positivo legal travestido de um monismo alternativo. O Direito Achado na Rua não é um direito alternativo, mas a expansão desde as entranhas do social, lá onde a existência emancipada, comunitária, compartilha os bens da vida produzidos em comum e de forma comum e igualitária sejam compartilhados segundo padrões de uma organicidade legítima.

            Com efeito, também a tese de Fredson, embora operando com a matriz herrereana, com a qual quer articular respostas para a questão dos mecanismos historicamente utilizados para a construção das hierarquias e posições sociais no Brasil (p 96), está assentanda em um pensamento decolonial que põe em causa as inter-relações segregadoras que obstruem o reconhecimento titulável de subjetividades emancipadas, e as possiblidades da atuação política de sujeitos históricos (p. 97), na linha desses estudos que designam o modo sentipensante (Falls Borda, Paulo Freire) de libertação, no diálogo com os autores e autoras desse campo, a partir mesmo do colóquio entretido com seu co-orientador Manuel Gándara

Abre-se, portantonaquilo que me incumbe dialogar com o Autor, a partir de sua tese, espaço para um Direito formado pelos sujeitos coletivos em meio às lutas sociais (HERKENHOFF, 1996). Quando esses novos sujeitos entraram em cena, tornou-se imperativo “investigar a dimensão instituinte dos espaços sociais instaurados por esses movimentos e aquilatar a capacidade constitutiva de direitos  decorrentes dos processos sociais novos que eles desenvolvem” (SOUSA JUNIOR, 2002, p. 55). Nesse sentido, o desenvolvimento de estudos críticos sobre o Direito no Brasil decorre, em certa medida, da emergência desses sujeitos coletivos que se organizam enquanto sujeitos da própria história, munidos de habilidades de auto-organização e  autodeterminação, transformando-se naquilo num sujeito coletivo de direitos (SOUSA JUNIOR, 2002).

Por meio dessa categoria, que rompe a barreira individualista do direito formal, as práticas coletivas dos novos sujeitos sociais tornam-se objeto da maior relevância para a pesquisa jurídica. Para Sousa Junior (2002) essas experiências sociais autorizam parametrizar, juridicamente, estas novas configurações, “tais como a determinação de espaços sociais a partir dos quais se enunciam direitos novos, a constituição de novos processos sociais e de novos direitos e a afirmação teórica do sujeito coletivo de direito” referência à obra “Quando novos personagens entraram em cena”, de Eder Sader, que aborda o ressurgimento de movimentos operários e populares no final da Ditadura Militar brasileira (SOUSA JUNIOR, 2002, p. 63). Essa categoria é de fundamental importância para pensar a superação do pensamento tradicional no campo jurídico, uma vez que através dela, é possível descrevermos enquanto sujeitos da ação jurídico-política diversos grupos, movimentos, entidades sociais e populares, marcadas por critérios como raça, gênero, classe e sexualidade.

Nesses termos, após negar o conceito hegemônico de Direito enquanto norma, de desconsiderar a classificação da norma pela sanção que ela veicula e de negar ao Estado o poder de ser o único ente a dizer o que é o direito, Lyra Filho nos indica os dois últimos procedimentos como ações positivas diante do que já se sabe não ser o Direito em sua totalidade. O quarto procedimento propõe aos juristas uma atitude de não se curvar ante o fetichismo do direito positivo, que se desdobra no quinto procedimento, de não fazer do Direito um elenco de restrições à liberdade. De acordo com Lyra Filho o fetichismo do direito positivo promove a maior das inversões sobre o Direito, haja vista que, ao “canonizar” as normas e costumes dos grupos e classes dominantes na sociedade, o positivismo jurídico, em vez de conceituar o Direito através da liberdade, o concebe como a sua pura e simples restrição.

Nesse sentido, numa sociedade estruturalmente hierarquizada em raça e classes sociais, essa redução do Direito à restrição da liberdade só ocorre contra a liberdade de grupos específicos, isto é, daqueles que não fazem parte dos círculos sociais das elites econômicas. Portanto, o Direito como elenco de restrições à liberdade, fetichizado pelo positivismo jurídico aparece apenas como forma de controle social, vinculado à “organização do poder classístico, que tanto pode exprimir-se através das leis, como desprezá-las, rasgar constituições, derrubar titulares e órgãos do Estado legal, tomando diretamente as rédeas do poder” (LYRA FILHO, 2006, p. 32). Este, um quadro comum da história política do Brasil.

A profusão desses efeitos desestabilizadores só é possível porque a deputada Erica Malunguinho, para além de sua representação descritiva, desempenha uma representação substantiva nos seguintes termos: formação de alianças dentro e fora da Alesp; atuação vigilante e cidadã na fiscalização efetiva do cumprimento dos deveres do poder público; centralização inegociável de gênero e raça como fundamentos da sua ação política e de suas práticas sociais; e, ainda, atuação tática e programática de proposição normativa. Estes efeitos e práticas desencadeados pela representação descritiva e substantiva de Malunguinho, conforme compreendo, são formas transvestigêneres da escrita da lei.

Enquanto tal, as formas transvestigêneres da escrita da lei são processos de subjetivação política organizados a partir de reivindicações específicas, mas não reduzindo-se substancialmente a elas. Na análise destas formas, ressalto que estas não podem ser compreendidas de modo essencialista, em torno de conceitos abstratos e restritivos, como ocorreu com o chamado identitarismo multiculturalista e sua formulação reificada do conceito de identidade. Em torno desse debate, se produziu uma extensa atividade teórica, desde os fins do século XX, a partir da qual compreendemos que as identidades, assim como a própria cultura não são repositórios de modelos fixos e imutáveis de padrões de comportamento. De outro modo, visualizamos a partir desses debates que as identidades são múltiplas e abertas a constantes transformações de sentido ocorridas em processos de reconstrução e reinvenção de si que se dão ao longo da história.

Além disso, em vista de seu caráter processual, as identidades, em termos concretos, constroem-se não só a partir da diferença (JAYME, 2001), como vimos no capítulo 4, mas também através da hierarquia das diferenças, como abordei no capítulo 2.

Isso porque no processo de subjetivação social de raça e gênero, a própria identidade está condicionada à experiência política do sujeito, de modo que a vivência de injustiças de ordem cultural e socioeconômica informa não só a constituição dessa identidade, mas também o processo de seu empoderamento e de sua ação política (ASSY, 2016). Assim sendo, caracterizo a atuação política de Erica Malunguinho enquanto uma forma transvestigênere da escrita da lei porque a sua subjetivação e ação política operam simultaneamente tanto na constituição de sua subjetividade quanto em sua participação na comunidade política.

Sendo assim, essas formas se constituem enquanto um fenômeno político e historicamente referenciado em nossa realidade e, por isso, possui expressiva singularidade concreta, uma vez que se trata de uma nova experiência política que se estabelece na paisagem de nossa cultura democrática. A novidade desta experiência, como vimos, consubstancia-se numa prática quilombista e, portanto, necessariamente coletiva, na qual o caráter estrutural das questões raciais e de gênero do país repercutem como fundamentos orientadores das lutas por direitos. Tais fundamentos, quando integrados à subjetivação política dos sujeitos precarizados, desdobram-se muito além das tentativas de sua captura neoliberal e necropolítica (p. 510-511).

 Finalizando, conforme p. 515-516, diz o Autor: “O desafio último a que faço referência consiste, assim, no ensinamento prático de Malunguinho sobre a importância de nos afirmarmos num lugar que nega uma negritude e uma identidade de gênero redutoras da nossa humanidade, sem, contudo, cair nas armadilhas da universalidade ocidental, que ao longo dos séculos reduziu a diversidade a pó. Sem nos deixar intimidar por este desafio, devemos sempre nos levantar para carregar o sonho e a esperança de nos tornarmos humanos plenos de possibilidades e oportunidades, para além da condição de raça, gênero, classe social ou orientação sexual”.

Penso que a Tese está à altura desse desafio. Chamei a atenção, no âmbito jurídico, para essa percepção, lembrando (Movimentos Sociais – A Emergência de Novos Sujeitos: o Sujeito Coletivo de Direitos. Belo Horizonte: XIII Conferência Nacional da OAB. Anais, 1990) que a questão que se coloca, a partir da experiência da ação coletiva dos novos sujeitos sociais, é a da designação jurídica destas práticas sociais e dos direitos novos que elas enunciam. Cuida-se de valorizar, adequadamente, as formas de sociabilidade constituídas nas relações de reciprocidade num cotidiano que adestra a convivência e legitima padrões sociais livremente aceitos.

Na mesma XIII Conferência da OAB, Marilena Chauí referiu-se a esta realidade para pensar a cidadania como possibilidade de operar o salto dos interesses aos direitos. Em suas palavras (XIII Conferência Nacional da OAB, 1990, Anais), ela afirma: cidadania ativa é a que é capaz de fazer o salto do interesse ao direito, que é capaz portanto de colocar no social a existência de um sujeito novo, de um sujeito que se caracteriza pela sua auto-posição como sujeito de direitos, que cria esses direitos e no movimento da criação desses direitos exige que eles sejam declarados, cuja declaração abra o reconhecimento recíproco. O espaço da cidadania ativa portanto, é o da criação dos direitos, da garantia desses direitos e da intervenção, da participação direta no espaço da decisão política.

Trata-se. Evidentemente, de uma experiência emancipatória. Lyra Filho a havia compreendido neste sentido e, por esta razão, para ele, o direito não pode ser compreendido como mera restrição, senão, tal como ele o entendia, enquanto enunciação dos princípios de uma legítima organização social da liberdade.

E o que será, pois, neste processo, entender o Direito como modelo de legítima organização social da liberdade? É perceber, conforme indica Roberto Lyra Filho, que o Direito se faz no processo histórico de libertação enquanto desvenda precisamente os impedimentos da liberdade não-lesiva aos demais. Nasce na rua, no clamor dos espoliados e oprimidos e sua filtragem nas normas costumeiras e legais tanto pode gerar produtos autênticos (isto é, atendendo ao ponto atual mais avançado de conscientização dos melhores padrões de liberdade em convivência) quanto produtos falsificados (isto é, a negação do Direito do próprio veículo de sua efetivação, que assim se torna um organismo canceroso, como as leis que ainda por aí representam a chancela da iniquidade, a pretexto de consagração do Direito) [ARAUJO, Doreodó (Org). Desordem e Processo – Estudos Jurídicos em Homenagem a Roberto Lyra Filho. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1986].

Tenho insistido tal como conclui o Autor da Tese que o humano não é uma derivação causal de um incidente biológico mas, com Hegel, uma experiência na história. Não nascemos humanos, nos tornamos humanos, assim também dito hegelianamente por Simone de Beauvoir, segundo a qual não se nasce mulher, torna-se mulher. Os direitos humanos, assim, se erigem como um programa que dá conteúdo ao protagonismo de subjetividades que agem para humanizar-se, conquanto orienta projetos de vida e percursos emancipatórios que levam à formulação de projetos de sociedade, para instaurar espaços recriados pelas lutas sociais por dignidade (SOUSA JUNIOR, José Geraldo de. O Direito Achado na Rua: Questões de Teoria e Práxis. In SOUSA JUNIOR, José Geraldo de, org. O Direito Achado na Rua vol. 10: Introdução Crítica ao Direito como Liberdade. Brasília: Editora da Universidade de Brasília/Editora OAB Nacional, 2021).

Retomo aqui um tema que desenvolvi com Antonio Escrivão Filho (em Para um Debate Conceitual-Teórico e Político sobre os Direitos Humanos. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2014), aludindo a um programa de representação do jurídico que bem se presta a inserir a temática sofisticada dos direitos humanos como projeto de sociedade.

 Isso para acentuar que se trata de um programa com o qual se forja o humanismo de “O Direito Achado na Rua”, conforme salienta Roberto Lyra Filho, formulador de seus princípios, o mais importante dos quais é conceber o Direito como a “enunciação dos princípios de uma legítima organização social da liberdade”, designado, conforme já acentuamos antes, a partir de uma teoria geral dos direitos humanos emancipatórios.                                                                    

Tem-se aí algo que procura restituir a confiança no poder de quebrar as algemas que aprisionam os sujeitos sociais em meio às opressões e espoliações que o alienam na História, e os impedem de exercitar a capacidade de transformar seus destinos e de conduzir a sua própria experiência na direção de novos espaços de liberdade.

Mas a liberdade, ele acrescenta, repito aqui o que já anotei antes “não é dom; é tarefa, que se realiza na História, porque não nos libertamos isoladamente, mas em conjunto”. E se ela não existe em si, o Direito é comumente a sua expressão, porque ele é a sua afirmação histórico-social “que acompanha a conscientização de liberdades antes não pensadas (como em nosso tempo, a das mulheres e das minorias eróticas) e de contradições entre as liberdades estabelecidas (como a liberdade contratual, que as desigualdades sociais tornam ilusória e que, para buscar o caminho de sua realização, tem de estabelecer a desigualdade, com vista a nivelar os socialmente desfavorecidos, enquanto ainda existam”.

Tenho insistido tal como conclui o Autor da Tese que o humano não é uma derivação causal de um incidente biológico mas, com Hegel, uma experiência na história. Não nascemos humanos, nos tornamos humanos, assim também dito hegelianamente por Simone de Beauvoir, segundo a qual não se nasce mulher, torna-se mulher. Os direitos humanos, assim, se erigem como um programa que dá conteúdo ao protagonismo de subjetividades que agem para humanizar-se, conquanto orienta projetos de vida e percursos emancipatórios que levam à formulação de projetos de sociedade, para instaurar espaços recriados pelas lutas sociais por dignidade.

Retomo aqui um tema que desenvolvi com Antonio Escrivão Filho (em Para um Debate Conceitual-Teórico e Político sobre os Direitos Humanos. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2014), aludindo a um programa de representação do jurídico que bem se presta a inserir a temática sofisticada dos direitos humanos como projeto de sociedade.

 Isso para acentuar que se trata de um programa com o qual se forja o humanismo de “O Direito Achado na Rua”, conforme salienta Roberto Lyra Filho, formulador de seus princípios, o mais importante dos quais é conceber o Direito como a “enunciação dos princípios de uma legítima organização social da liberdade”, designado, conforme já acentuamos antes, a partir de uma teoria geral dos direitos humanos emancipatórios.                                                                    

Tem-se aí algo que procura restituir a confiança no poder de quebrar as algemas que aprisionam os sujeitos sociais em meio às opressões e espoliações que o alienam na História, e os impedem de exercitar a capacidade de transformar seus destinos e de conduzir a sua própria experiência na direção de novos espaços de liberdade.

Mas a liberdade, ele acrescenta, repito aqui o que já anotei antes “não é dom; é tarefa, que se realiza na História, porque não nos libertamos isoladamente, mas em conjunto”. E se ela não existe em si, o Direito é comumente a sua expressão, porque ele é a sua afirmação histórico-social “que acompanha a conscientização de liberdades antes não pensadas (como em nosso tempo, a das mulheres e das minorias eróticas) e de contradições entre as liberdades estabelecidas (como a liberdade contratual, que as desigualdades sociais tornam ilusória e que, para buscar o caminho de sua realização, tem de estabelecer a desigualdade, com vista a nivelar os socialmente desfavorecidos, enquanto ainda existam”.

Por esta razão, voltando a Roberto Lyra Filho, é de lembrar que “o Direito não é; ele se faz, nesse processo histórico de libertação – enquanto desvenda progressivamente os impedimentos da liberdade não lesiva aos demais. Nasce na rua, no clamor dos espoliados e oprimidos”, até se consumar, vale repetir, pela mediação dos direitos humanos, na “enunciação dos princípios de uma legítima organização social da liberdade”.

Em sua ação política, descolonizando as instituições, a Mandata Quilombo e Erica Malunguinho tecem escritas da lei próprias da formação de um sujeito coletivo de direito, numa escalada em humanidade (MBEMBE, 2014) que é, ao final, o sentido de todas as lutas aqui referenciadas. Por isso finaliza o Autor, neste longo trajeto, enquanto desse sentido nos aproximamos, seguimos Malunguinho, com punhos cerrados para o alto!

           

 

 

José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil,  Professor Titular, da Universidade de Brasília,  Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua

terça-feira, 26 de outubro de 2021

 

Falta Alguém na CPI

  •  em 



Logo que lido o relatório da CPI instalada no Senado para apurar as ocorrências e as responsabilidades pela gestão de saúde no enfrentamento à pandemia da Covid19, a minha reação foi a de horror, que o Brasil Popular logo registrou:

 

(…) Ao tomar conhecimento de partes do relatório, o jurista e professor do Departamento de Direito da Universidade de Brasília (UnB), José Geraldo de Sousa Junior, comentou o impacto que teve diante dos crimes apontados pelo relatório.

 

“Horror, horror, horror! A divulgação do Relatório da CPI da Covid-19, se a leitura mantiver o que foi hoje divulgado, estampa o paroxismo de uma gestão de morte. O que intuíamos e já vislumbrávamos pelos inúmeros pedidos de impeachment, ações subsidiárias e representações escancara uma gestão que o relator não hesita designar como genocida. A estatística deixa de camuflar uma realidade dramática dolosamente letal para as pessoas, as famílias e a comunidade. As indicações de indiciamento num catálogo sem precedentes de fatos típicos em todas as esferas de responsabilidade, que alcançam o Presidente da República e sua equipe próxima, chegam a ser mais terríveis até dos que são praticados em tempos de guerra, e mesmo assim, limitados pelos imperativos do direito humanitário. É mais que a fumaça de lesão aos direitos. As conclusões do Relatório requerem ação responsabilizadora a cargo das autoridades competentes, nos planos nacional e da jurisdição internacional. Horror, horror, horror!” https://www.brasilpopular.com/cpi-da-pandemia-vota-crimes-de-bolsonaro-so-na-terca-feira-26/.

 

Agora, com a deliberação tomada no Plenário da CPI, por 7 x 4 votos, propondo o indiciamento do Presidente da República e com os aditamentos propostos pelo Relator, mais 75 incrimináveis, há fundamento robusto para mover a inciativa de responsabilização a cargo das autoridades e dos titulares das inciativas de incriminização, embora com as reticências conduzidas por muitos discursos dos que se manifestaram na sessão. Por tudo isso, não pude deixar de recordar nas circunstâncias, o libelo assinado pelo jornalista David Nasser, em 1947 – Falta Alguém Em Nuremberg. Torturas Da Polícia de Filinto Strubling Müller. Editor: Edições do Povo.

 

 

Insuspeito, já por suas posições ideológicas (com o golpe de 1964, estreitou relações com os militares, fazendo ampla defesa do regime e aderindo ao discurso ufanista), não se omitiu diante do horror que foi a repressão no período da ditadura do Estado Novo, e seu livro representou um libelo contra “as atrocidades praticadas no Brasil pela polícia política do Capitão Filinto Strubling Müller excederam, em alguns pontos, as torturas infligidas pela Gestapo aos judeus, antinazistas e prisioneiros aliados”.

 

 

Esse personagem acabou assim se tornando  presença nefasta na política e nos tempos sombrios de um dos registros mais bárbaros em nossa história social, aliás, tema de Memórias do Cárcere de Graciliano Ramos (preso político nesse tempo) e de comentários de Evandro Lins e Silva em O Salão dos Passos Perdidos, memórias que incluem sua atuação no Tribunal de Segurança dessa conjuntura, tempo no qual, à falta de garantias o grande Sobral Pinto buscou alternativa no célebre habeas corpus impetrado com fundamento na lei de proteção aos animais para inibir torturas infligidas pela polícia política aos comunistas Luís Carlos Prestes e Harry Berger (este afinal arrebatado pela insanidade provocada pelas torturas sofridas). E é um espanto, apesar das diretrizes da justiça de transição, que orienta renomear com o alcance do nunca mais marcas de memórias, que seu nome esteja em letras douradas designando uma ala no anexo de gabinetes dos senadores da república, no palácio do Senado Federal, espaço de atuação da CPI.

 

 

Para Nasser, “torna-se impossível, finalmente, saber quais eram os piores. Observarão os senhores, apenas, que, enquanto os nazistas alemães pagaram ou estão em vias de pagar seus crimes espantosos, os policiais brasileiros, autores de crimes contra a humanidade, mantêm-se em seus postos, impunes e felizes, quase todos bem instalados na vida”. E a própria Comissão de Inquérito, instaurada pela Câmara de Deputados para a apuração dessas monstruosidades, vive adiando seus trabalhos, numa atitude que faz crer que esteja, em sua maioria, interessada em silenciar os fatos, veementes como o mais tremendo dos libelos. Sim, porque os culpados poderiam negar tudo, mas nada poderiam fazer quando as vítimas, uma a uma, desfilassem, mutiladas, perante a Comissão de Inquérito.

 

 

Para David Nasser, não se tratava de animosidade pessoal sobre indiciáveis, mas constatar que suas condutas são daquelas “nos fazem odiar os inimigos da espécie humana”. Todos, dos agentes subalternos, aos usurpadores de funções públicas, os “contrafautores complices”, até o “grande responsável pelos crimes praticados sob sua direta orientação”,  poderão “fugir a todos os julgamentos atuais, mas não escaparão ao implacável, justo e sereno veredicto da História”. Para ele, referindo-se ao Presidente da República (Getúlio Vargas) “logo que os fatos se coloquem dentro da perspectiva de análise, ele será apontado no Brasil como o maior assassino dentre os assassinos que viveram no tempo de sua vida”.

 

 

Nessa perspectiva histórica, também nós, cada um de nós, se julgados por nossa consciência, devemos nos perguntar se somos inocentes. Darcy Ribeiro, na década de 1990, escreveu o texto intitulado “Somos todos culpados”, utilizando a primeira pessoa do plural (somos) para tratar da “nossa elite”, ou seja, da elite brasileira, e denunciar o papel por ela desempenhado na manutenção das desigualdades e na negligência com os atos dos agentes públicos. Segundo ele, “A característica mais nítida da sociedade brasileira é a desigualdade social que se expressa no altíssimo grau de irresponsabilidade social das elites e na distância que separa os ricos dos pobres, com imensa barreira de indiferença dos poderosos e de pavor dos oprimidos”.

 

 

Diante do horror revelado pelo Relatório, devemos ousar refletir sobre os problemas que assolam a população, sobre as consequências de nossas escolhas, pesar nossos silêncios e construir alternativas políticas e econômicas para a superação do cenário atual, e questionar, ecoando Darcy Ribeiro, “que culpa temos, enquanto classe dominante, no sacrifício e no sofrimento do povo brasileiro. Somos inocentes? Quem, letrado, não tem culpa neste País dos analfabetos? Quem, rico, está isento de responsabilidades neste País da miséria? Quem, saciado e farto, é inocente neste País da fome?”.

 

 

Sob tais diferentes indagações, em face pandemia da COVID-19 e sua desastrosa e conforme o Relatório criminosa gestão no Brasil, não cabe ativar uma consciência infeliz a partir do social e da exigência de responsabilidade que a todos convoca, sob pena de não podermos nos dizer inocentes diante das interpelações agudas que nos faz Darcy Ribeiro, ou em termos conforme venho remarcando – http://estadodedireito.com.br/direitos-humanos-e-covid-19/? Nessa emergência composta de impulsos de exceção, é somente o Jurídico, no Legislativo e nos Sistema de Justiça, os chamados a se constituir como arena de resistência ao processo de desdemocratização e de desconstitucionalização em curso no País e à banalização da vida pela ação de governança absolutamente incompetente para agir no enfrentamento à pandemia? Ou será que falta alguém na CPI além daqueles que ela recomenda indiciar?

 

 

(*) José Geraldo de Sousa Junior é professor titular na Faculdade de Direito e ex-reitor da Universidade de Brasília (UnB)

 


José Geraldo de Sousa Junior é graduado em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal – AEUDF, mestre e doutor em Direito pela Universidade de Brasília – UnB. É também jurista, pesquisador de temas relacionados aos direitos humanos e à cidadania, sendo reconhecido como um dos autores do projeto Direito Achado na Rua, grupo de pesquisa com mais de 45 pesquisadores envolvidos.

 

Professor da UnB desde 1985, ocupou postos importantes dentro e fora da Universidade. Foi chefe de gabinete e procurador jurídico na gestão do professor Cristovam Buarque; dirigiu o Departamento de Política do Ensino Superior no Ministério da Educação; é membro do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil – OAB, onde acumula três décadas de atuação na defesa dos direitos civis e de mediação de conflitos sociais.

 

Em 2008, foi escolhido reitor, em eleição realizada com voto paritário de professores, estudantes e funcionários da UnB. É autor de, entre outros, Sociedade Democrática (Universidade de Brasília, 2007), O Direito Achado na Rua. Concepção e Prática 2015 (Lumen Juris, 2015) e Para um Debate Teórico-Conceitual e Político Sobre os Direitos Humanos (Editora D’Plácido, 2016).




 

 

sexta-feira, 22 de outubro de 2021

 

https://souciencia.unifesp.br/opiniao/a-constituicao-e-a-escolha-de-reitores

A Constituição e a escolha de Reitores

CATEGORIA: OPINIÃO

 PUBLICADO: 20 OUTUBRO 2021

  ACESSOS: 239

Em defesa do art. 207 da Constituição Federal e da harmonização do posicionamento do STF sobre a escolha de reitores

 

Por ex-reitores(as)

 

A Constituição Federal de 1988, a Constituição Cidadã, foi elaborada com o objetivo de remover e superar o chamado ‘entulho autoritário’, restabelecendo os fundamentos do Estado de Direito e instituindo direitos sociais capazes de forjar uma nação democrática. Seu artigo 207 estabelece que “as universidades gozam de autonomia didático-científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial”, prerrogativa que se expressa por meio do autogoverno e da autonormação, nos marcos da Constituição.

 

O texto constitucional não deixa margem a dúvidas: o autogoverno não é liberalidade, é exercido nos termos do Estatuto da universidade e este, por sua vez, deve estar em conformidade com a Constituição. A elevação da autonomia a preceito constitucional objetivou superar a intervenção de governos ditatoriais nas universidades.

 

Por meio do art. 16 da Lei 5.540/1968, a ditadura aprofundou a heteronomia, institucionalizando a lista sêxtupla e, assim, a ingerência governamental na escolha de reitores, concebendo a universidade como uma instituição incapaz de tomar decisões esclarecidas com base em sua própria lei (Estatuto). Não é possível esquecer que a lei 5.540 é coetânea do Ato Institucional no 5 de dezembro de 1968, que ampliou a violência do Estado sobre as universidades, cassando milhares de servidores e, especialmente, docentes.

 

O fechamento do regime seguiu seu curso autocrático e violento. Em 1977, o Congresso foi fechado e o Decreto-Lei 6.420/1977 ampliou as prerrogativas presidenciais e debilitou, ainda mais, a autonomia universitária, estabelecendo que também os diretores de unidade seriam escolhidos pelo ministro da Educação a partir de uma lista sêxtupla. Foi justamente para colocar um fim em tal violência estatal, que a Constituição elevou a autonomia universitária a preceito constitucional com força pétrea.

 

Em virtude da “transição democrática” sui generis, já no contexto da redemocratização, a Lei 9.192/1995 manteve a heteronomia, por meio da prerrogativa presidencial de escolha dos dirigentes máximos a partir de uma lista tríplice. Desde então, as universidades têm seguido os termos legais, também presentes na LDB, porém sem concordar com eles.

 

As instituições universitárias federais, lutaram, desde os primeiros debates sobre a nova Lei de Diretrizes e Bases, em prol de um ordenamento legal em conformidade com o texto constitucional. É significativo que a lei que criou os Institutos Federais de Educação Tecnológica, a lei 11.892/2008, reconheceu a hierarquia da Constituição e estabeleceu que a escolha da reitora ou do reitor é feita pela própria instituição, sem lista tríplice, cabendo ao presidente da República tão somente nomear o(a) eleito(a) pela comunidade. Inusitadamente, a mesma prerrogativa não foi garantida para as universidades que estão explicitamente protegidas pelo art. 207.

 

O argumento de que a lista tríplice permite uma correta discricionariedade do presidente da República, não resiste à prova da realidade, conforme é possível verificar nas nomeações feitas pelo presidente Jair Bolsonaro. Grande parte dos reitores nomeados pelo presidente é desprovida de legitimidade democrática, muitos tiveram menos de 10%, quando não 0%, dos votos dos colegiados superiores e devem sua nomeação à indicação de correligionários do governo. Nada pior do que a conversão das universidades federais, de autarquias públicas autônomas, em estruturas submetidas à pequena política de governos e forças partidárias: a autonomia objetiva, justamente, proteger as universidades de ingerências governamentais ilegítimas.

 

O STF elaborou peças jurídicas meridianas em defesa do preceito constitucional, da autonomia universitária e da liberdade de cátedra. Em virtude do ambiente de instabilidade democrática que vivem as universidades, além de uma legislação que nos remete ao período da ditadura, entendemos que o STF deve declarar a inconstitucionalidade do art. 1o da lei 9.192/95 e do Decreto federal 1.916/96, e a plena eficácia da Constituição Federal. Ao examinar o mérito da ADI 6565, conclamamos a harmonização do posicionamento do STF com a ADPF 548, Plenário, 15/05/2020.

 

Torna-se claro que a autonomia universitária é indispensável para a universidade desenvolver a sua missão, acompanhar o desenvolvimento da ciência, das artes e da cultura, das profissões e das demandas da sociedade. Estas são dimensões que têm ritmo e exigências próprias e que não podem ficar subordinados às contingências estritas de mudanças de governos. Portanto, não se trata de uma defesa corporativa e menor, mas sim da possibilidade de as universidades exercerem o seu papel na antecipação e identificação dos desafios e dos rumos para toda a sociedade. Isto ocorreu quando da criação do Sistema Único de Saúde, na genômica, na produção de vacinas, no desenvolvimento de matrizes energéticas e na conservação do meio ambiente, entre outros. Sem o autogoverno, a liberdade de cátedra seguirá sob severas ameaças e nossas universidade também!

 

Assinam os(as) Reitores(as) :

 

Ana Lúcia Gazzola – UFMG, 2002-2006

Ana Maria Dantas Soares – UFRRJ, 2012-2016

Anísio Brasileiro de Freitas Dourado – 2011-2015, 2015-2019

Carlos Alexandre Netto - UFRGS, 2008-2012, 2012-2016

Clélio Campolina Diniz – UFMG, 2010-2014

Cleusa Sobral Dias - FURG, 2013-2016, 2017-2020

Eliane Superti – UNIFAP, 2014-2018

Francisco César de Sá Barreto – UFMG, 1998-2002

Gilciano Saraiva Nogueira – UFVJM, 2015-2019

Gustavo Oliveira Pereira – UNILA, 2017-2019

Jaime A. Ramírez – UFMG, 2014-2018

Jose Carlos Tavares – UNIFAP, 2006-2010, 2010-2014

José Geraldo de Souza Jr. – UnB, 2008-2012

Jose Rubens Rebelatto - UFSCar, 1996-2000

Julianeli Tolentino de Lima, UFVSF, 2012-2016, 2016-2020

Malvina Tuttmann – UNIRIO, 2004-2008, 2008-2011

Márcia Perales Mendes Silva - UFAM, 2009-2013, 2013-2017

Margarida Salomão – UFJF, 1998-2002, 2002-2006

Maria Lúcia Cavalli Neder - UFMT 2008-2012, 2012-2016

Maria Beatriz Luce, UNIPAMPA, 2008-2011

Maria Stella Coutinho de Alcântara – UFSCar, 2008

Marco Hansen, UNIPAMPA, 2015-2019

Maurílio Monteiro – UNIFESSPA, 2016-2020

Naomar Monteiro de Almeida Filho – UFBA, 2002-2006, 2006-2010 – UFSB 2013-2017

Nelson Maculan Filho – UFRJ, 1990-1994

Newton Lima – UFSCar, 1992-1996

Paulo Speller – UFMT, 2000-2004, 2004-2008 – UNILAB, 2010-2013

Pedro Hallal – UFPEL, 2017-2021

Odilon Antonio Marcuzzo do Canto – UFSM, 1993-1997

Oswaldo Baptista Duarte Filho – UFSCar, 2000-2008

Paulo Gabriel Soledade Nacif – UFRB, 2006-2015

Reinaldo Centoducatte – UFES, 2011-12, 2012-2016, 2016-2020

Ricardo Berbara – URRJ, 2017-2021

Roberto Leher – UFRJ, 2015-2019

Ronaldo Tadeu Pena, UFMG, 2006-2010

Roberto Salles – UFF, 2006-2010, 2010-2014

Rui Oppermann – UFRGS, 2006-2020

Sebastião Elias Kuri – UFSCar, 1988-1992

Sergio A. Araújo da Gama Cerqueira – UFSJ, 2016-2020

Soraya Smaili – UNIFESP, 2013-2017, 2017-2021

Targino de Araujo Filho – UFSCar, 2006-2012, 2012-2016

Valéria Heloísa Kemp – UFSJ, 2012-2016

Valeria Correa – UFAL, 2016-2020

Vicemário Simões – UFCG, 2017-2021

Wrana Maria Panizzi, UFRGS, 1996-2004