terça-feira, 26 de outubro de 2021

 

Falta Alguém na CPI

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Logo que lido o relatório da CPI instalada no Senado para apurar as ocorrências e as responsabilidades pela gestão de saúde no enfrentamento à pandemia da Covid19, a minha reação foi a de horror, que o Brasil Popular logo registrou:

 

(…) Ao tomar conhecimento de partes do relatório, o jurista e professor do Departamento de Direito da Universidade de Brasília (UnB), José Geraldo de Sousa Junior, comentou o impacto que teve diante dos crimes apontados pelo relatório.

 

“Horror, horror, horror! A divulgação do Relatório da CPI da Covid-19, se a leitura mantiver o que foi hoje divulgado, estampa o paroxismo de uma gestão de morte. O que intuíamos e já vislumbrávamos pelos inúmeros pedidos de impeachment, ações subsidiárias e representações escancara uma gestão que o relator não hesita designar como genocida. A estatística deixa de camuflar uma realidade dramática dolosamente letal para as pessoas, as famílias e a comunidade. As indicações de indiciamento num catálogo sem precedentes de fatos típicos em todas as esferas de responsabilidade, que alcançam o Presidente da República e sua equipe próxima, chegam a ser mais terríveis até dos que são praticados em tempos de guerra, e mesmo assim, limitados pelos imperativos do direito humanitário. É mais que a fumaça de lesão aos direitos. As conclusões do Relatório requerem ação responsabilizadora a cargo das autoridades competentes, nos planos nacional e da jurisdição internacional. Horror, horror, horror!” https://www.brasilpopular.com/cpi-da-pandemia-vota-crimes-de-bolsonaro-so-na-terca-feira-26/.

 

Agora, com a deliberação tomada no Plenário da CPI, por 7 x 4 votos, propondo o indiciamento do Presidente da República e com os aditamentos propostos pelo Relator, mais 75 incrimináveis, há fundamento robusto para mover a inciativa de responsabilização a cargo das autoridades e dos titulares das inciativas de incriminização, embora com as reticências conduzidas por muitos discursos dos que se manifestaram na sessão. Por tudo isso, não pude deixar de recordar nas circunstâncias, o libelo assinado pelo jornalista David Nasser, em 1947 – Falta Alguém Em Nuremberg. Torturas Da Polícia de Filinto Strubling Müller. Editor: Edições do Povo.

 

 

Insuspeito, já por suas posições ideológicas (com o golpe de 1964, estreitou relações com os militares, fazendo ampla defesa do regime e aderindo ao discurso ufanista), não se omitiu diante do horror que foi a repressão no período da ditadura do Estado Novo, e seu livro representou um libelo contra “as atrocidades praticadas no Brasil pela polícia política do Capitão Filinto Strubling Müller excederam, em alguns pontos, as torturas infligidas pela Gestapo aos judeus, antinazistas e prisioneiros aliados”.

 

 

Esse personagem acabou assim se tornando  presença nefasta na política e nos tempos sombrios de um dos registros mais bárbaros em nossa história social, aliás, tema de Memórias do Cárcere de Graciliano Ramos (preso político nesse tempo) e de comentários de Evandro Lins e Silva em O Salão dos Passos Perdidos, memórias que incluem sua atuação no Tribunal de Segurança dessa conjuntura, tempo no qual, à falta de garantias o grande Sobral Pinto buscou alternativa no célebre habeas corpus impetrado com fundamento na lei de proteção aos animais para inibir torturas infligidas pela polícia política aos comunistas Luís Carlos Prestes e Harry Berger (este afinal arrebatado pela insanidade provocada pelas torturas sofridas). E é um espanto, apesar das diretrizes da justiça de transição, que orienta renomear com o alcance do nunca mais marcas de memórias, que seu nome esteja em letras douradas designando uma ala no anexo de gabinetes dos senadores da república, no palácio do Senado Federal, espaço de atuação da CPI.

 

 

Para Nasser, “torna-se impossível, finalmente, saber quais eram os piores. Observarão os senhores, apenas, que, enquanto os nazistas alemães pagaram ou estão em vias de pagar seus crimes espantosos, os policiais brasileiros, autores de crimes contra a humanidade, mantêm-se em seus postos, impunes e felizes, quase todos bem instalados na vida”. E a própria Comissão de Inquérito, instaurada pela Câmara de Deputados para a apuração dessas monstruosidades, vive adiando seus trabalhos, numa atitude que faz crer que esteja, em sua maioria, interessada em silenciar os fatos, veementes como o mais tremendo dos libelos. Sim, porque os culpados poderiam negar tudo, mas nada poderiam fazer quando as vítimas, uma a uma, desfilassem, mutiladas, perante a Comissão de Inquérito.

 

 

Para David Nasser, não se tratava de animosidade pessoal sobre indiciáveis, mas constatar que suas condutas são daquelas “nos fazem odiar os inimigos da espécie humana”. Todos, dos agentes subalternos, aos usurpadores de funções públicas, os “contrafautores complices”, até o “grande responsável pelos crimes praticados sob sua direta orientação”,  poderão “fugir a todos os julgamentos atuais, mas não escaparão ao implacável, justo e sereno veredicto da História”. Para ele, referindo-se ao Presidente da República (Getúlio Vargas) “logo que os fatos se coloquem dentro da perspectiva de análise, ele será apontado no Brasil como o maior assassino dentre os assassinos que viveram no tempo de sua vida”.

 

 

Nessa perspectiva histórica, também nós, cada um de nós, se julgados por nossa consciência, devemos nos perguntar se somos inocentes. Darcy Ribeiro, na década de 1990, escreveu o texto intitulado “Somos todos culpados”, utilizando a primeira pessoa do plural (somos) para tratar da “nossa elite”, ou seja, da elite brasileira, e denunciar o papel por ela desempenhado na manutenção das desigualdades e na negligência com os atos dos agentes públicos. Segundo ele, “A característica mais nítida da sociedade brasileira é a desigualdade social que se expressa no altíssimo grau de irresponsabilidade social das elites e na distância que separa os ricos dos pobres, com imensa barreira de indiferença dos poderosos e de pavor dos oprimidos”.

 

 

Diante do horror revelado pelo Relatório, devemos ousar refletir sobre os problemas que assolam a população, sobre as consequências de nossas escolhas, pesar nossos silêncios e construir alternativas políticas e econômicas para a superação do cenário atual, e questionar, ecoando Darcy Ribeiro, “que culpa temos, enquanto classe dominante, no sacrifício e no sofrimento do povo brasileiro. Somos inocentes? Quem, letrado, não tem culpa neste País dos analfabetos? Quem, rico, está isento de responsabilidades neste País da miséria? Quem, saciado e farto, é inocente neste País da fome?”.

 

 

Sob tais diferentes indagações, em face pandemia da COVID-19 e sua desastrosa e conforme o Relatório criminosa gestão no Brasil, não cabe ativar uma consciência infeliz a partir do social e da exigência de responsabilidade que a todos convoca, sob pena de não podermos nos dizer inocentes diante das interpelações agudas que nos faz Darcy Ribeiro, ou em termos conforme venho remarcando – http://estadodedireito.com.br/direitos-humanos-e-covid-19/? Nessa emergência composta de impulsos de exceção, é somente o Jurídico, no Legislativo e nos Sistema de Justiça, os chamados a se constituir como arena de resistência ao processo de desdemocratização e de desconstitucionalização em curso no País e à banalização da vida pela ação de governança absolutamente incompetente para agir no enfrentamento à pandemia? Ou será que falta alguém na CPI além daqueles que ela recomenda indiciar?

 

 

(*) José Geraldo de Sousa Junior é professor titular na Faculdade de Direito e ex-reitor da Universidade de Brasília (UnB)

 


José Geraldo de Sousa Junior é graduado em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal – AEUDF, mestre e doutor em Direito pela Universidade de Brasília – UnB. É também jurista, pesquisador de temas relacionados aos direitos humanos e à cidadania, sendo reconhecido como um dos autores do projeto Direito Achado na Rua, grupo de pesquisa com mais de 45 pesquisadores envolvidos.

 

Professor da UnB desde 1985, ocupou postos importantes dentro e fora da Universidade. Foi chefe de gabinete e procurador jurídico na gestão do professor Cristovam Buarque; dirigiu o Departamento de Política do Ensino Superior no Ministério da Educação; é membro do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil – OAB, onde acumula três décadas de atuação na defesa dos direitos civis e de mediação de conflitos sociais.

 

Em 2008, foi escolhido reitor, em eleição realizada com voto paritário de professores, estudantes e funcionários da UnB. É autor de, entre outros, Sociedade Democrática (Universidade de Brasília, 2007), O Direito Achado na Rua. Concepção e Prática 2015 (Lumen Juris, 2015) e Para um Debate Teórico-Conceitual e Político Sobre os Direitos Humanos (Editora D’Plácido, 2016).




 

 

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