quarta-feira, 30 de junho de 2021

 

Saúde e vida: descaso que gera um estado de coisas inconstitucional

  •  em 



O Supremo Tribunal Federal deu início ao julgamento de Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental, proposta por um conjunto representativo de organizações da Sociedade Civil e do Mundo Sindical e do Trabalho, para considerar a omissão e o descaso governamental na atenção à saúde da população na condição grave da pandemia da Covid-19. As entidades autoras integram o Conselho Nacional de Saúde, como representantes de organizações da sociedade civil e movimentos sociais de abrangência nacional, com relevantes atividades relacionadas à realização do direito social à saúde.

 

 

A ação avança na caracterização da omissão e do descaso, acentuando novos fundamentos, aos que um conjunto de cidadãos – professores e advogados, liderados pelo professor Alfredo Attié Junior, entre os quais me incluo – em ação própria, intentam demonstrar a situação de incapacidade do Presidente da República e, em consequência, operar o seu afastamento, pendente as responsabilizações cabíveis, em face do caráter destrutivo de suas ações e omissões.

 

 

Na ADPF nº 822, subscrita entre outros pelos advogados José Eymard Loguércio e Mauro Menezes (que também patrocina a ação civil para declaração de incapacidade, já distribuída ao Ministro Gilmar Mendes), além de lockdown os autores pedem medidas de subsistência material das pessoas e extratos da economia afetados, entre elas o restabelecimento do Benefício Emergencial de Preservação do Emprego e da Renda e das medidas de redução proporcional de jornada de trabalho e de salário e de suspensão temporária do contrato de trabalho, mediante convenção ou acordo coletivo de trabalho, como originalmente previstos na Lei nº 14.020/2020 e de seus valores.

 

 

 

O fundamento principal da proposição é o pedido de reconhecimento, à luz de precedentes do STF, do Estado de Coisas Inconstitucional, gerado pela ação e omissão do Governo Federal segundo a ação, o principal responsável pela escalada do número de mortes em todo o território nacional e pelo completo colapso do atendimento público e privado à saúde.

 

 

 

O relator Ministro Marco Aurélio, parece ter compreendido com os Autores que “vidas e o SUS não podem esperar”, trazendo o feito a julgamento,  e já registrando, às vésperas de sua aposentadoria, voto  reconhecendo o Estado de Coisas Inconstitucional,  já caracterizado no STF como a situação que gera “violação massiva e persistente de direitos fundamentais, decorrente de falhas estruturais e falência de políticas públicas e cuja modificação depende de medidas abrangentes de natureza normativa, administrativa e orçamentária”.

 

 

 

Suspenso o julgamento por pedido de vista Ministro Gilmar Mendes), demarca o Relator “a conclusão é única: ocorre violação generalizada de direitos fundamentais em relação à dignidade, à vida, à saúde, à integridade física e psíquica dos cidadãos brasileiros, considerada a condução da saúde pública durante a pandemia. Há falência estrutural”.

 

 

 

A manifestação conforta a Ação quando requer: “a necessidade de procedência dos pedidos veiculados na presente ação (que) decorre da vulneração maciça e generalizada de preceitos fundamentais da população brasileira como um todo; da histórica omissão dos Poderes Públicos no cumprimento de suas obrigações constitucionais relativas à saúde, que ganhou contornos gravíssimos com a pandemia decorrente do ‘novo coronavírus’”.

 

 

 

O Estado de Coisas Inconstitucional foi reconhecido quando se tratou de avaliar o descalabro da situação prisional; imagine-se quando o desgoverno a produz (veja-se em Brasil Popular o meu artigo Tem gente morrendo de Covid, tem gente morrendo por bala, tem gente morrendo de solidão, tem gente morrendo de fome; mas morre-se mesmo é de desgoverno). Essas inciativas indicam que a sociedade não se omite, não se faz cúmplice, não se aliena da responsabilidade que é da comunidade e que obriga atitudes de nós por nós mesmos, quando não há governo. Contribuem para abrir a nossa consciência para a história e para a política que mude esse estado de coisas.

 

 

 

(*) José Geraldo de Sousa Junior é professor titular na Faculdade de Direito e ex-reitor da Universidade de Brasília (UnB)

 

 

quarta-feira, 23 de junho de 2021

 

O Direito Achado na Rua: Questões Emergentes, Revisitações e Travessias

Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito.

 

 

 

 

 

O Direito Achado na Rua: Questões Emergentes, Revisitações e Travessias: Coleção Direito Vivo, volume 5. José Geraldo de Sousa Junior et al (org). Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2021, 304 p.

 

                                     

 

         Acaba de ser publicada e na próxima semana iniciamos um programa de lançamentos em eventos a distância, por meio de plataformas remotas (Canal Youtube de O Direito Achado na Rua), em rodas de conversas com autoras, autores, convidadas e convidados, a obra tema deste Lido para Você. Retiro do meu texto de introdução a esse quinto volume da Coleção Direito Vivo, O Direito Achado na Rua: Questões Emergentes, Revisitações e Travessias, texto aliás redigido em co-autoria com meu colega Eduardo Xavier Lemos, os excertos principais para esta apresentaçãoO primeiro, a própria Editora Lumen Juris que abriga a Coleção Direito Vivo, selecionou com síntese para descrever a obra:

            Neste quinto volume, a reflexão coletiva parte do evento internacional realizado entre 11 e 13 de dezembro de 2019 na Universidade de Brasília, denominado o Direito como Liberdade: 30 Anos de O Direito Achado na Rua, organizado e coordenado pelo Coletivo O Direito Achado na Rua, que comemorou os 30 anos de O Direito Achado na Rua tendo como tema O Direito como Liberdade , esse direito entendido como expressão de uma legítima organização social da liberdade , tal como formulado por Roberto Lyra Filho, constitui o marco conceitual original do projeto denominado O Direito Achado na Rua.

        O processo de construção do quinto volume dessa série, não obstante seu impulso conceitual e político anteriormente expostos, deu-se por uma metodologia similar a construção do segundo volume da Coleção, isto é, também teve origem em um programa de docência, dessa vez como desenho curricular de duas disciplinas Democracia e Violência (Mestrado e Doutorado da Faculdade de Direito) e O Direito Achado na Rua (Mestrado e Doutorado em Direitos Humanos e Cidadania), desenvolvidas em conjunto no 1º Semestre de 2020, tendo como eixo revisitar temas anteriormente trabalhados pela fortuna crítica do Coletivo O Direito Achado na Rua, aqui entendendo os IX Volumes da Série O Direito Achado na Rua.

        E assim, foi montado um curso com estudantes conectados pelas mais diversas localidades do país, de ponta a ponta do espaço geográfico brasileiro, o que, somado as peculiaridades do momento pandêmico, gerou textos complexos, aprofundados, permeados pelas angústias de um tempo único, onde as introspecções das autorias, e as reflexões geradas pelos textos da disciplina (foram refletidos textos chave de O Direito Achado na Rua e de Roberto Lyra Filho), embalaram as revisitações emergentes e as trajetórias possíveis, a partir das inquietudes e urgências de um futuro incerto, impulsionados pelo retorno das utopias.       

         O segundo, mais analítico, mergulha nesse processo de construção do quinto volume da série, de modo a acentuar que não obstante seu impulso conceitual e político anteriormente expostos na apresentação da própria Coleção,, deu-se por uma metodologia similar a construção do segundo volume que a integra – O Direito Achado na Rua. Concepção e Prática. Isto é, também  teve origem em um programa de docência, dessa vez como desenho curricular de duas disciplinas Democracia e Violência (Mestrado e Doutorado da Faculdade de Direito) e O Direito Achado na Rua (Mestrado e Doutorado em Direitos Humanos e Cidadania), desenvolvidas em conjunto no 1º Semestre de 2020, tendo como eixo revisitar temas anteriormente trabalhados pela fortuna crítica do Coletivo O Direito Achado na Rua, aqui entendendo os IX Volumes da Série O Direito Achado na Rua, mas também a publicações anteriores da Coleção Direito Vivo, artigos científicos publicados por integrantes do coletivo, livros, dissertações, teses, tendo por provocação e desafio projetar as travessias possíveis a partir dos temas que são emergentes na sociedade atual.

          No entanto, o momento de construção da obra foi peculiar, a população terrestre restringida em sua sanidade e liberdade a partir de uma pandemia causada por um vírus, o COVID-19, ou Coronavírus, que espalhou-se pelo continente aproximadamente 62,3 milhões de pessoas no mundo e deixando um número de aproximados 1,5 milhão de mortos no planeta. No Brasil, segundo o Ministério da Saúde, o número de casos seria equivalente a aproximados 6,3 milhões de pessoas com um total de aproximadamente 173 mil mortos, agora já ultrapassando a cifra estarrecedora de mais de 470 mil mortos.

           A partir de tal fato, a metodologia de ensino de todo o país, e naturalmente da Universidade de Brasília, foi forçosamente adaptada, no início do semestre com poucos dias de aulas, as atividades, que seriam presenciais, foram suspensas por decisão do Conselho de Ensino, Pesquisa e Extensão (CEPE), de fato, até então entendia-se que a doença impactaria a rotina do continente latino-americano, da mesma forma que na Ásia e Europa. No entanto, em poucas semanas o vírus propagou-se com agressividade no continente, especialmente nas capitais, não sendo diferente o caso de Brasília, resultando em Lockdown, e assim, paralisação dos serviços no Brasil. As aulas só foram retomadas em Agosto de 2020 com atividades virtuais.

          De fato, cumpre ressaltar alguns aspectos, se fez necessária a rápida adaptação da comunidade universitária aos meios tecnológicos, adotando plataformas para aulas ao vivo, permitindo postagens, interatividade entre professores, alunos e servidores, por meio da comunicação virtual. Foi necessária a formação de um coletivo de gestão da disciplina, composto por alunos voluntários, com a finalidade de organizar a plataforma de ensino, mas principalmente para possibilitar um mutirão de acolhida e agrupamento de estudantes da disciplina, em suas diferentes localidades, a partir do novo contexto de ensino, virtual e em tempos de pandemia, assim, em conjunto com servidores da Universidade de Brasília, procurou-se proporcionar por meio de todos os esforços possíveis a integração de todas e todos estudantes que estivessem interessados em cursar a disciplina.  Esse mesmo coletivo de gestão foi responsável pela condução do editorial desse volume, estabelecendo o contato com a editora, traçando metas, prazos, definindo critérios em conjunto com as demais autoras e os demais autores.

        Outro ponto relevante foi o resgate do modelo à distância de O Direito Achado na Rua, que, como expressou-se, surgiu a partir de sua primeira série em um curso à distância promovido pelo Centro de Estudos Avançados Multidisciplinares, naquele tempo realizado por meio da comunicação dos correios, e agora, por meio virtual. O processo tecnológico, mesmo que forçadamente, de certa forma recupera as esperanças de Darcy Ribeiro em sua “Universidade Necessária”, ao expressar a importância do processo tecnológico para o ensino que estava a se projetar. É válido ressaltar, que a experiência do V.7 da Série O Direito Achado na Rua, Introdução Crítica à Justiça de Transição na América Latina, que em conjunto com a obra foi realizado um curso virtual, em parceria com o Ministério da Justiça serviu de legado.

           E assim, foi montado um curso com estudantes conectados pelas mais diversas localidades do país, de ponta a ponta do espaço geográfico brasileiro, o que, somado as peculiaridades do momento pandêmico, gerou textos complexos, aprofundados, permeados pelas angústias de um tempo único, onde as introspecções das autorias, e as reflexões geradas pelos textos da disciplina (foram refletidos textos chave de O Direito Achado na Rua e de Roberto Lyra Filho), embalaram as revisitações emergentes e as trajetórias possíveis, a partir das inquietudes e urgências de um futuro incerto, impulsionados pelo retorno das utopias.

         Para definir os eixos temáticos de escrita, o coletivo abriu uma plataforma interativa onde os alunos representaram suas inquietações a partir da problematização que dá título ao volume, “Questões Emergentes, Revisitações e Travessias Possíveis”, e posteriormente distribuíram-se a partir de suas afinidades temáticas, por meio do critério autoria coletiva.

         Como mencionado, ao longo do programa de curso a primeira tarefa foi pensar temas ascendentes e emergentes tendo uma mirada dos trabalhos já realizados pelo coletivo como balizador, e de fato os desafios futuros como horizonte. E assim, o coletivo dividiu-se em oito eixos temáticos, com subeixos desenvolvidos a partir dos grandes eixos: 1) Povos Indígenas, Quilombolas e demais Povos e Comunidades Tradicionais; 2) Direitos Humanos e a Afirmação Histórica da Universidade Emancipatória; 3) Constitucionalismo Achado na Rua; 4) Emergências e Perspectivas LGBTQIA+; 5) Direito e Arte; 6) Direito à Cidade; 7) Acesso à Justiça na América Latina; 8) Revisitações Emergentes e Travessias Possíveis;

         O livro caracteriza-se pelas experiências do coletivo que o redigiu, assessores jurídicos populares, lideranças indígenas e quilombolas, jornalistas, lideranças políticas, serventuários da justiça, artistas, poetas, ativistas, pesquisadoras e pesquisadores comprometidos com a democracia e um direito emancipatório. De especial relevo para a configuração dos eixos temáticos e de uma escrita renovadora e extremamente sensível é a presença de autores indígenas e quilombolas, dos povos Karajá, Pankararu e Kalunga que acrescentaram conhecimento e experiência transformadores ao curso e à obra.

         Como não poderia ser diferente, o livro retrata os fundamentos de O Coletivo O Direito Achado na Rua, e assim, é inaugurado com uma reivindicação coletiva, as autoras Larissa Carvalho Furtado, Luana Bispo de Assis, Maíra de Oliveira Carneiro Pankararu, Natália Albuquerque Dino, Solange Ferreira Alves  integrantes do primeiro eixo de autoria,  elaboraram o “Manifesto por um Direito Achado nas Aldeias” onde problematizaram sobre a “necessidade de  privilegiar a autonomia dos povos originários, de suas lutas, linguagens, práticas e produções, também no campo da construção do que se entende por “conhecimento”, “ciência” e “Direito” no pensamento jurídico brasileiro” (FURTADO, Larissa; ASSIS, Luana; PANKARARU, Maíra; DINO, Natália; ALVES, Sol) e  assim apresentam uma convocação  à um modelo epistemológico do Direito Achado na Aldeia inserido como um conjunto de instrumento teórico capaz de romper as práticas coloniais ainda hoje vigentes no ensino e na prática jurídica tradicional. (FURTADO, Larissa; ASSIS, Luana; PANKARARU, Maíra; DINO, Natália; ALVES, Sol)

         Ainda referente ao primeiro eixo de redação, o capítulo “Direitos dos povos indígenas, educação judicial e ODANR”, redigido por Andrea Brasil, Célia Bernardes e Jonas Tavares, por sua vez propõe  uma reflexão nucleada na noção de “autonomia dos saberes” dos povos indígenas onde procura-se  a educação judicial como um instrumento emancipatório que contribui para a efetivação do direito à “autonomia dos saberes” dos povos indígenas a partir da fala dos indígenas Ademilson  Kikito  Concianza  e  Gilmar  Kiripuku  Galache . A experiência de educação judicial da Escola de Magistratura Federal da Primeira Região – ESMAF, e da Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados (ENFAM), em sua imersão e intercâmbio intercultura com as comunidades indígenas foi tomada como base para a proposição científica. Ainda, entendem que o encantamento, a partir de um Direito Achado na Encruzilhada, há de expandir novos e frutíferos horizontes nos paradigmas da justiça social brasileira. Afirmam que na encruzilhada reafirma “as relações baseadas na diversidade, na interculturalidade e na multidisciplinaridade, sendo em si uma dinâmica que atenta contra as construções lineares e exclusivas de justiça. A Encruzilhada, portanto, é o local de encontro de epistemologias, metodologias, práticas, símbolos, conhecimentos e modelos analíticos, a partir de onde se desdobram infinitas possibilidades de debate e de intervenção para os problemas das comunidades violentadas pelo carrego colonial”. (BRASIL, Andréia. BERNADES, Célia, TAVARES, Jonas.)

         O 1º eixo ainda teve uma  terceira proposta autoral intitulada “O território achado na aldeia e no quilombo: a antítese da mercantilização neoliberal” de autoria de Carlos Henrique Naegeli Gondim, Joanderson Pankararu, Luís de Camões Lima Boaventura e Vercilene Francisco Dias, onde procuram abordar a complexidade de significados que o território tem na cultura indígena e quilombola, assumindo uma feição de condensador de direitos, “os territórios extrapolam a esfera meramente patrimonial, sendo indispensáveis à subsistência e reprodução das culturas e identidades coletivas desses grupos” (GONDIN, Carlos Henrique; PANKARARU, Joanderson; BOAVENTURA, Luis de Camões; DIAS, Vercilene Franscisco) e porque, diversos outros direitos humanos e fundamentais desses grupos étnicos guardam relação direta como território, tais como educação, saúde, liberdade de culto, e a própria identidade. (GONDIN, Carlos Henrique; PANKARARU, Joanderson; BOAVENTURA, Luis de Camões; DIAS, Vercilene Franscisco)

         Por sua vez, a redação do capítulo “Direitos Humanos e o Papel Histórico da Universidade Emancipatória”, referente ao Eixo 2, ficou à cargo de André Luiz Lacerda Medeiros, José de Ribamar de Araújo e Silva, Mamadu Seidi e Maria Inês A. Ulhôa e tratou da relevância social das universidades públicas, para a construção de espaços emancipatórios, explicam que  para tanto “é fundamental a adoção do modelo de universidade autônoma e necessária, preconizado por Darcy Ribeiro, superando o papel de meras detentoras do saber. Institucionalmente, a gestão universitária deve estar alinhada aos anseios da comunidade que a compõe, garantido o livre pensar e atenta a qualquer violação de direitos nas práticas universitárias.” (MEDEIROS, André Luiz Lacerda; SEIDI, Mamadu; ULHÔA, Inês A.). Destacam ainda em seu texto o papel dos canais de comunicação, avaliação e controle, exemplo das ouvidorias e dos espaços de tomada de decisão colegiada.

         O 3º eixo redigiu o capítulo intitulado “O Constitucionalismo Achado na Rua, os Sujeitos Coletivos Instituintes de Direito e o Caso da APIB na ADPF nº 709”, texto redigido por Priscila Kavamura Guimarães de Moura, Mauro Almeida Noleto, Marconi Moura de Lima Burum e  Renan Sales de Meira, propondo uma revisitação da temática do Constitucionalismo Achado na Rua, a partir da leitura dos sujeitos de direitos fundamentais por meio da análise da Medida Cautelar na ADPF nº 709 que  determinou a legitimidade ativa da Articulação dos Povos Indígenas Brasileiros (APIB) para postulação em controle de constitucionalidade, resgatando a importância dos sujeitos coletivos de direito (instituintes) participarem da disputa hermenêutica do debate  constitucional na Suprema Corte do Brasil (instituído) (MOURA, Priscila; NOLETO, Mauro; BURUM, Marconi; MEIRA, Renan;) .

         Ainda referente ao mesmo eixo, a redação do capítulo “A Democracia Constitucional e a Proposta para um Constitucionalismo Inclusivo no Brasil”, foi realizada por Bárbara R. R. C. de Oliveira, Jean Patrício da Silva, João Paulo Santos Araujo e Samuel Barbosa dos Santos, o tema propôs interpretar o momento constitucional brasileiro tomando O Direito Achado na Rua como ferramenta para sugerir um constitucionalismo inclusivo e emancipatório que resista à escalada autoritária contemporânea. (OLIVEIRA; SILVA; ARAUJO; SANTOS). Para isso, foi realizada uma análise histórica do processo constituinte 1987-88, com base nos movimentos sociais e no conceito de crise constitucional para tratar da construção institucional do Estado brasileiro visando identificar a crise de representação democrática do país.  Ainda, o artigo “destinou espaço para versar sobre a premissa de que somente um constitucionalismo efetivamente inclusivo – que prima pelo fortalecimento das instituições democráticas e pela real inclusão dos grupos sociais vulneráveis – é meio adequado para se instaurar uma concreta resistência à precarização de direitos e silenciamento de vozes em uma democracia cada vez mais frágil.’ (OLIVEIRA, Bárbara; SILVA, Jean; ARAUJO, João Paulo; SANTOS, Samuel)

           O livro avança com o capítulo “Emergencias LGBTQIA+ para um 2030 possível !(?)”, que toca o quarto eixo de divisão de autorias,  foi  redigido por  Caroline Vargas  e Tiago Benício Trentini e refletiu sobre os 17 grandes Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), que  propôs um desenvolvimento sustentável através das perspectivas sociais, econômicas e ambientais, analisando sob a perspectiva do Direito Achado na Rua se a população LGBTQIA+ pode ser inserida nestas propostas e em que medida (e se)  a população LGBTQIA+ têm suas vivências contempladas nessa agenda, e portanto, sua emancipação é respeitada e contemplada. (VARGAS, Caroline; TRENTINI, Tiago;)

          O quinto eixo de autorias, composto por Anelisa Lacerda de Medeiros, Carla Ramos, Edson Junio Dias de Sousa, Mara Lina Silva do Carmo, Paulo Alves Santos  e Willy da Cruz Moura formou o capítulo  “O Direito Achado na Rua e Arte: ensino jurídico e questões emergentes no contexto de pandemia “ , que refletindo sobre o papel do Direito e  da Arte, suas interações e contribuições, revisitando Roberto Lyra Filho, Luís Alberto Warat, Roberto Aguiar, a partir de suas sensibilidades artísticas e de como as mesmas influenciaram como um todo a concepção e o processo de O Direito Achado na Rua, da literatura de Lyra, à musicalidade de Aguiar, à carnavalização de Warat, os autores ainda se propõe a uma reflexão de como a arte e o direito, podem contribuir para projetos utópicos nos tempos de pandemia.

            A redação do capítulo “Mulheres Negras nas Entrelinhas dos Centros Urbanos Brasileiros: Direito À Cidade Achado na Rua”, à cargo do sexto eixo de autorias, foi escrito por Amanda Machado de Liz, Andrielly Larissa Pereira Silva, Ilka Teodoro, Letícia Miguel Teixeira, Natália Soares Batista, Sabrina Durigon Marques e  Vinícius de Souza Assumpção, e em síntese propôs a discussão do direito à cidade, tendo por fundamento o Direito Achado na Rua, a partir do histórico de subalternidade vivido coletivamente por mulheres negras nos espaços urbanos públicos e privados, construindo sujeitas coletivas em permanente luta pela realização de direitos fundamentais enquanto garantem subsistência, levando em conta que a mulher, e especialmente a mulher negra, que sempre teve protagonismo na ocupação do espaço público da cidade brasileira, e por desempenhar as principais atividades que nesses espaços dão vida à cidade. (LIZ, Amanda; SILVA, Andrielly; TEODORO, Ilka; TEIXEIRA, Letícia; BATISTA, Natália; MARQUES, Sabrina; ASSUMPÇÃO, Vinícius;)

         Por sua vez, o sétimo eixo de redação foi composto por Anne Carolline Rodrigues da Silva Brito, Gustavo de Assis Souza, João Paulo Hakuwi Kuady Karaja,  Manuela de Santana Passos, Marcelo Pires Torreão, Mariane Carolina Gomes da Silva Rocha e Pedro Henrique Fernandes das Chagas, elaboraram o capítulo “Movimentos Sociais, Acesso À Justiça e Emergência do Autoritarismo na América Latina” que se dispôs a refletir sobre como o autoritarismo  neoliberal em países latino-americanos se concretizou à base da redução de direitos e garantias, do enfraquecimento de movimentos sociais, dificultando e restringindo o alcance da população aos sistemas judiciais e extrajudiciais. Explicitam que “o declínio de direitos fundamentais mitiga o acesso à justiça e demanda a adoção de medidas de combate ao autoritarismo, seja através dos mecanismos institucionais legítimos, seja através da educação em direitos e movimentos revolucionários”. (BRITO, Anne; SOUZA, Gustavo; KARAJA, João Paulo; PASSOS, Manuela; TORREÃO, Marcelo; ROCHA, Mariane; CHAGAS, Pedro;)

        O derradeiro capítulo, de incumbência do oitavo eixo, de tema “Revisitações Emergentes e Travessias Possíveis: Olha o Breque! O Direito Achado na Rede e a Greve dos Entregadores de Aplicativos.”, redação de Antonio Carlos de Mello Rosa, Eduardo Xavier Lemos, Rose Dayanne Santana Nogueira e Thaisa Xavier Chaves, que revisitaram o 1º Volume da Série O Direito Achado na Rua, Introdução Crítica ao Estudo do Direito, o 2º. Volume- Introdução Crítica ao Direito do Trabalho, e o Volume 8º  – Introdução Crítica ao Direito à Comunicação e à Informação, para falar dos sujeitos coletivos que emergem num contexto contemporâneo, infocomunicacional, numa sociedade conectada, mas que refletem as desigualdades sociais anteriores, como uma espécie de atualização do capitalismo, especialmente o caso dos entregadores de aplicativo, (ROSA, Antonio; XAVIER LEMOS, Eduardo; NOGUEIRA, Rose; CHAVES, Thaisa;) que no contexto da pandemia passaram a realizar os “breaks”, tornando necessária a reflexão sobre a potencialidade organizacional e emancipatória do incipiente movimento desses trabalhadores.

         O termo que embalou as reuniões de introspecção e aflição em tempos de pandemia foi “potente”, a potência de Roberto Lyra Filho, e do Coletivo O Direito Achado na Rua conduziu um semestre de forte imersão em um futuro possível, em disputa e no rompante à legítima organização social da liberdade.

         As imagens da capa, essa também concebida pelo coletivo de autores e apenas otimizada na elaboração do design gráfico pela equipe técnica da Editora, são de Joanderson Gomes de Almeida (Pankararu), João Paulo Hakuwi Kuady Karajá e Vercilene Franscisco Dias (Quilombola), todos autores; assim como os poemas e as epígrafes que entremeam as unidades também foram elaborações de autoras e autores do livro.

         A participação de acadêmicas e acadêmicos autoras e autores com identidades inscritas em povos originários (indígenas) e tradicionais (quilombolas), ganhou relevo no processo de produção e edição do livro, nesse aspecto de forte imaginário e também na orientação epistemológica da obra. Basta ver que esses intelectuais em sentido o mais expandido possível que se possa atribuir ao termo, acabaram conquistando não apenas o seu lugar narrativo no livro, a partir de seus textos distribuídos em diferentes eixos, como arrebataram o prefácio da obra para a partir dele inscrever no contexto da edição um quase manifesto.

         Retiro do prefácio, nesse sentido, um trecho que integrado ao arranjo coletivo de sua elaboração, recolheu uma enunciação trazida em intervenção nos debates preparatórios – os seminários de redação – por Maíra Carneiro, do Povo Pankararu, de rara beleza e simbolismo:

“Sobre os Pankararu, apresentamos o Flechamento do Imbu , a Corrida do Imbu, o Menino do Rancho , dentre outras tradições, mas o que chamou a atenção da turma foi o Prayá . O Prayá (ou Praiá) não é um homem, um indígena, um Pankararu. Uma vez com as vestes feitas da fibra do caroá (ou croá), ali está a Força Encantada, a expressão máxima da religiosidade do nosso povo. A foto representa um símbolo muito forte dos Pankararu, pois mesmo depois de anos de tentativas de aculturação, assédio, violência, preservamos com afinco aquilo que acreditamos. É o ícone de nossa resistência. Nós Pankararu nascemos da terra, somos filhos da terra. Sã Sé nos enterrou no chão e brotamos como árvores. Também somos guardadores de sementes, onde chegamos preparamos o chão e deixamos um pouco do que é nosso germinar e tomar seu ciclo de vida. Foi assim com o Direito Achado na Rua”.

        Com igual potência afetivo-cognitiva, chamo a atenção para o posfácio – Das palavras, das perguntas e das vozes: uma questão de método sensibilizador – escrito por Tiago Benício Trentini e por mim. Ele diz muito do que representou, nas circunstâncias, construir o percurso da edição dessa obra:

“O pensar, o sentir e o agir foram os verbos que nos trouxeram até aqui e que certamente nos levarão adiante. Não poderíamos renunciar à oportunidade da reunião de tantas pessoas tão completas em suas diversidades quanto potentes em suas perspectivas. Os aproveitamentos deste espaço e deste tempo para articular pensamentos canoas que nos fizessem navegar águas turbulentas em travessias na direção de uma sociedade diferente, mais diversa, plural, justa, humana e emancipada – deram a tônica”.

          Em sua típica organicidade, importante pressuposto do projeto de O Direito Achado na Rua, a dimensão reflexiva e compreensiva emergente da atuação jurídica dos novos movimentos sociais e das experiências populares de criação do direito, o coletivo não somente cumpriu com os objetivos de “determinar estes espaços políticos no qual se enunciam direitos”, de compreender e “definir a natureza jurídica do sujeito coletivo capaz de elaborar um projeto político de transformação social” e de “enquadrar os dados derivados destas práticas sociais criadoras de direitos  e estabelecer novas categorias jurídicas para estruturar as relações solidárias de uma sociedade alternativa” (SOUSA JUNIOR, 1982, p.10 ) como concretizou e deu corpo – diverso, colorido e fluido – à resposta do O que é o Direito? “O Direito não é; ele se faz, nesse processo histórico de libertação – enquanto desvenda progressivamente os impedimentos da liberdade não lesiva aos demais. Nasce na rua, no clamor dos espoliados e oprimidos” (LYRA FILHO, 1982, passim).

        Entre sorrisos alegres pelos encontros nas aulas online e alargamentos de perspectivas, emoções e choros de descobertas e empoderamentos, aprendizados e sensibilidades (re)adquiridas, nasceu esta obra: nossa poesia militante.

      É preciso estar (sempre) atento e forte para sentimento motriz para de toda a travessia: a utopia. O Direito Achado na Rua é projeto das utopias, dos pés no chão de terra batida, de serragens e de asfalto.

        Volto ao texto para dele recuperar, já que mencionei a dimensão poética de autorias exercitadas na elaboração do livro, no caso, um poema de Natália Dino:

 

Lições de um Direito Achado na Rua

(Natália Dino)

 

Aprendi que o coletivo de passarinho é revoada

E de caminho é caminhada

De gente viva intransigente indignada

Que pisa o chão da terra

Sente a terra

Dança a terra

Indigenada

Refaz trajetos traça projetos

De cidade felicidade

Compartilhada

Que tem história

Que tem futuro

Que tem memória

– que toda agrura é transitória –

Se vê a rua

Se vai à rua

Se ocupa a rua

Colore a rua

Compõe a rua

A grande rua

Emancipatória

 

        Com efeito, eis algo, que o poema revela, e que o livro faz questão de escandir: O Direito Achado na Rua é projeto das utopias, dos sonhos realizáveis e das projeções de Roberto Lyra Filho e seus companheiros e companheiras da Nova Escola Jurídica Brasileira desde os primeiros passos de reflexão há pouco mais de três décadas.

 

 

José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil,  Professor Titular, da Universidade de Brasília,  Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua

quarta-feira, 16 de junho de 2021

 

A Assessoria Jurídica Popular no Marco do Pensamento Decolonial. Direitos e Saberes Construídos nas Resistências Populares

Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito.

 

 

 

 

 

Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito

Título original: A Assessoria Jurídica Popular no Marco do Pensamento Decolonial. Direitos e Saberes Construídos nas Resistências Populares. Maria do Rosário de Oliveira Carneiro. Belo Horizonte: Editora Dialética, 2020, 292 p.

 

            Eu já havia antecipado uma notícia sobre o livro ora Lido para Você, incluindo um comentário até expandido, claro que oralmente, por ocasião de mesa virtual promovida pelo Grupo de Pesquisa O Direito Achado na Rua, nos eventos de mobilização em abril do Fórum Social Mundial Temático Justiça e Democracia: A Construção do Justo e a Assessoria Jurídica Universitária Popular (https://www.youtube.com/watch?v=PjX55rLsWbM) .

            Nesse comentário, além de indicar a novidade do livro, eu pretendi contextualizar a publicação, um trabalho acadêmico que se projeta de uma prática pedagógica para um âmbito de protagonismo político que se inscreve na atuação das assessorias jurídicas populares em apoio as lutas sociais por reconhecimento, instituição de direitos e emancipação contra todas as formas de opressão e de espoliação.

            Assim que, nesse espaço do Jornal Estado de Direito, na Coluna Lido para Você, venho insistentemente trabalhando esse tema, seja quando constato e avalio formas pedagógicas de qualificação de assessorias (universitárias) e de formação de perfis profissionais – http://estadodedireito.com.br/relatorio-de-direitos-humanos-5-anos-de-najurp/ – seja quando me incorporo a esforços críticos para fortalecer o campo epistemológico suscitado por essas experiências – http://estadodedireito.com.br/experiencias-compartilhadas-de-acesso-a-justica-reflexoes-teoricas-e-praticas/http://estadodedireito.com.br/a-pratica-juridica-na-unb-reconhecer-para-emancipar/http://estadodedireito.com.br/a-experiencia-educativa-do-licoes-de-cidadania-2005-2013/; seja quando elas se propõem a fazer o registro de uma modelagem criativa e engajada que combina todos esses fundamentos: http://estadodedireito.com.br/promotoras-legais-populares-movimentando-mulheres-pelo-brasil-analises-de-experiencias/.

            De comum, o tentar configurar esse processo em seu sentido mais transformador, inserindo-o no que Boaventura de Sousa Santos tem chamado de revolução democrática da justiça. Confira-se, a propósito meu Lido para Você sobre o inspirado livro de Boaventura:  http://estadodedireito.com.br/para-uma-revolucao-democratica-da-justica/.

           Vem dessa leitura o impulso para pensar em sentido alargado o acesso à justiça e mais ainda a própria justiça a que se quer acesso, numa mobilização que pôde ser conduzida em resposta a demandas de formulação de política públicas, a partir de convocações do poder público ao pautar esse tema. Retiro desse texto alguns indicadores que vale repor aqui no curso de meus comentários sobre a obra objeto deste Lido para Você.

            Assim é que, respondendo a edital do Ministério da Justiça, sobre elaborar uma concepção de observação do sistema de justiça e judiciário, que chegamos a uma formulação que levasse em conta essa concepção alargada. A propósito, in https://revistajuridica.presidencia.gov.br/index.php/saj/article/view/223, vol. 10, n. 90, 2008, o meu texto Por uma concepção alargada de Acesso à Justiça, representando todo o Coletivo que elaborou a proposta, cujo resumo pode ser assim lido: “Este trabalho tem o intuito de mapear a atual situação dos meios de acesso à justiça no Brasil, abordando o modo como as relações Estado-sociedade se fazem presente nas esferas públicas de construção do direito e até que ponto os movimentos sociais são reconhecidos como fonte criadora de direitos. Para tanto, propõe-se uma discussão acerca de temas levantados pela sociologia da pós-modernidade, discussão esta decorrente da ação dos movimentos sociais na dinâmica própria do direito plural por eles fundado. Ao fim, propõem-se mudanças na postura das estruturas jurídicas de ensino, pesquisa e aplicação para que haja um reconhecimento da construção social do direito”.

            Em seguida, também no espaço desse Lido para Você, a leitura sobre os resultados alcançados com a pesquisa – https://estadodedireito.com.br/observatorio-do-judiciario/  – mostrando o quanto foi possível estabelecer diálogo com assessorias jurídicas de movimentos sociais e extrair de suas observações, a visão negativa dos modelos adjudicatórios do sistema legal e judiciário, presos às normas constituídas como unidade de análise das relações de conflito e incapazes de realizar até mesmo as promessas constitucionais de realização da Justiça, entre outros fatores, pela “resistência a trabalhar com o direito da rua”, pela “baixa sensibilidade para as demandas da comunidade”, pelos “limites culturais para a percepção de sujeitos e demandas inscritas nos conflitos sociais”, pela manutenção de “corpo com formação técnica desvinculada das experiências do mundo da vida”, pela “postura institucional burocrática” e pela “pouca permeabilidade ao controle social”.

             Mostrando também, o quanto em contrapartida, pediam esses prestamistas de uma Justiça atualizada e modernizada para além do simplesmente funcional-burocrático-legal: “respeito às temporalidades democráticas”, “fortalecimento comunitário”, “educação em Direitos Humanos”, “uso dos meios de comunicação”, “conscientização e sensibilização” e, em síntese, “reconhecimento e acreditamento do protagonismo das experiências de mediação social realizadas fora das instâncias estatais”.

            Voltei a empregar essa expressão ao produzir o prefácio “Uma concepção alargada de acesso e democratização da justiça”, para o livro editado pela Terra de Direitos e pela Articulação Justiça e Direitos Humanos, com a organização de Antônio Escrivão Filho, Darci Frigo. Érica de Lula Medeiros, Fernando Gallardo Vieira Prioste, Luciana Furquim Pivato, “Justiça e Direitos Humanos: Perspectivas para a Democratização da Justiça, vol. 2, Curitiba: Terra de Direitos, 2015, procurando corresponder às expectativas postas na publicação sobre “o aumento do interesse das organizações do campo popular pelo papel social do Poder Judiciário (que) aponta para necessidade  de construir ações coletivas e estruturantes, que estejam além da litigância reativa e incidam sobre a agenda política de justiça, com uma perspectiva estratégica que vá muito além da busca de soluções para situações concretas e pontuais”.

           A nota de identidade que se estabelece para aferir a coerência e o potencial utópico desse material, está na sua virtualidade, inclusive semântica (CORREIA, Ludmila Cerqueira, ESCRIVÃO FILHO, Antonio; SOUSA JUNIOR, José Geraldo de. Exigências Críticas para a Assessoria Jurídica Popular: Contribuições de O Direito Achado na Rua. Coimbra: CesContexto, Debates n. 19, outubro de 2017), de se instalar como plataforma para um direito emancipatório (SOUSA JUNIOR, José Geraldo de. Concepção e Prática do O Direito Achado na Rua: Plataforma para um Direito Emancipatório. Brasília: Cadernos Ibero-Americanos de Direito Sanitário, 6(1), abril/junho, 2017), para o exercício protagonista, crítico e criativo, operando novos e combinados mecanismos políticos e técnicas jurídicas, para o alargamento democrático do sistema de justiça.

           Por isso que sempre estou retornando a esse tema e muito frequentemente nesse espaço Lido para Você, no qual – https://estadodedireito.com.br/experiencias-compartilhadas-de-acesso-a-justica-reflexoes-teoricas-e-praticas/, sempre que posso volto a ele, conforme minha leitura de REBOUÇAS, Gabriela Maia; SOUSA JUNIOR, José Geraldo de; CARVALHO NETO, Ernani Rodrigues de (Organizadores). Experiências Compartilhadas de Acesso à Justiça: Reflexões teóricas e práticas. Santa Cruz do Sul: Essere nel Mondo, 2016, 281 p. Texto Eletrônico. Modelo de Acesso World Wide Web (gratuito). www.esserenelmondo.com.br, no qual, na dupla perspectiva proposta no conjunto da obra ressalto o que em meu texto no segundo trabalho destacado denominei Por uma Concepção Alargada de Acesso à Justiça. Que Judiciário na Democracia?

Foto: Arquivo/Agência Brasil

            Sustentei que realizar a promessa democrática da Constituição era e é ainda o desafio que se põe para o Judiciário e para responder a esse desafio precisa ele mesmo recriar-se na forma e no agir democrático. Mas o desafio maior que se põe para concretizar a promessa do acesso democrático à justiça e da efetivação de direitos é pensar as estratégias de alargamento das vias para esse acesso e isso implica encontrar no direito a mediação realizadora das experiências de ampliação da juridicidade. Com Boaventura de Sousa Santos podemos dizer que isso implica dispor de instrumentos de interpretação dos modos expansivos de iniciativas, de movimentos, de organizações que, resistentes aos processos de exclusão social, lhes contrapõem alternativas emancipatórias.

            Por isso que, um procedimento de pesquisa que intente operar a partir dessa visão de alargamento, pensando o tema do acesso democrático à justiça, não pode descuidar-se da designação cartográfica das experiências que se fazem emergentes. Sob tal perspectiva, diz Boaventura de Sousa Santos, as características das lutas são ampliadas e desenvolvidas de maneira a tornar visível e credível o potencial implícito ou escondido por detrás das acções contra-hegemônicas concretas. Isso corresponde, completa Sousa Santos, a atuar “ao mesmo tempo sobre as possibilidades e sobre as capacidades; a identificar sinais, pistas, ou rastos de possibilidades futuras naquilo que existe” (SANTOS, Boaventura de Sousa, Poderá o direito ser emancipatório?, Revista Crítica de Ciências Sociais, nº 65, CES, Coimbra, maio de 2003. p. 35).

            Folgo ter seguido com muita aderência aos enunciados propostos por Boaventura de Sousa Santos, em “Para uma Revolução Democrática da Justiça”. Aliás, esses enunciados, aplicados àquela pesquisa no interesse do  Ministério da Justiça, mereceram da equipe do notável professor uma aquiescência, em termos, expressa no parecer pedido pelo MJ para avaliar o trabalho feito, valendo destacar do parecer – http://pensando.mj.gov.br/wp-content/uploads/2015/07/15Pensando_Direito3.pdf  – a consideração em todo caso, embora abonadora mas que aponta para questões que se armam problematicamente para o futuro que se seguiu àquela conjuntura, sob muitos aspectos, desastrosa para o País e não só para o Sistema de Justiça: “A justiça brasileira está neste momento colocada perante o desafio da sua democratização. Trata-se de um desafio exigente sobretudo quando se têm em conta que o sistema judicial é um campo de conflito em que interesses económicos e corporativos têm forte incidência e tendem a prevalecer. A proposta analisada está consciente do grau de exigência desse desafio e procura enfrentá-lo com êxito ao tentar incorporar em um único modelo de agenda política: reflexão académica, pesquisa empírica, participação social e concertação política. Nesse sentido, deve ser saudada. Enquanto modelo de agenda política destinado a uma Secretaria de Estado, a proposta deve ser ressaltada pelo seu carácter inovador na medida em que busca aproximar poder político e justiça tendo em vista a transformação democrática de um e de outra”.

            Com esses pressupostos volto ao livro tema desta Coluna. Ele resulta de trabalho, tal como apresenta a bem cuidada edição da Editora Dialética (que publica na modalidade impressão sob demanda, sem estoques), apoiada por respeitável conselho editorial, que “versa sobre a Assessoria Jurídica Popular (AJP), direitos e saberes construídos nas resistências populares. O objetivo central da pesquisa foi identificar se a AJP pode ser considerada um modo decolonial de pensar e de construir o Direito. Parte-se da hipótese de que a AJP se constrói como um instrumento contra-hegemônico que afirma o Pluralismo Jurídico e um contraponto ao Direito e a advocacia convencionais, propondo-se a construção de novos direitos e novos conhecimentos jurídicos e a dar visibilidade as pessoas inviabilizadas, apoiando, assessorando e fortalecendo as lutas por direitos dos movimentos e organizações populares. Trata-se de uma pesquisa bibliográfica, mas que também utilizou-se de recursos como estudos de documentos, notas, publicações populares e alternativas, sítios, blogs, etc., instrumentos utilizados por movimentos sociais e pela AJP para dar visibilidade as suas teses, denúncias e reivindicações. Apresenta-se a abordagem metodológica utilizada no trabalho e a relação da pesquisadora com o tema da pesquisa, passando pelas trilhas do ser nordestina na Região do Sisal no sertão da Bahia. Trabalha-se o estado da arte da assessoria jurídica popular e o marco teórico do ‘Pensamento Decolonial’. Apresenta-se uma experiência concreta de trabalho da AJP a partir da atuação na Ocupação urbana de luta por moradia, Comunidade Dandara, em Belo Horizonte, Minas Gerais e conclui que a AJP é um modo decolonial de pensar e de construir o Direito”.

             Pesquisa desenvolvida para programa de pós-graduação na Universidade Federal de Ouro Preto, o estudo tem a instigação própria do percurso militante da autora, mas a subjetividade sensível de que ela se constitui, bastando ver, para além da elegância da narrativa, com a opção de escrita no feminino e a mostra poética como lê o mundo, pela mediação dos mesmos temas (Justiça,/tira a venda dos teus olhos/veste o traje do povo,/empoeira os teus pés com a terra/que aspira liberdade./Posiciona-se ao lado de quem/sente na pele a dor das injustiças./Toma partido!?/…

             Disso dão conta as apresentações da orientadora professora Tatiana Ribeiro de Souza, cuidadosa em rastrear a produção do jurídico atenta às injunções da colonialidade, porque “A colonialidade do poder, do ser e do saber não se prolongaria no tempo sem as instituições modernas que a reproduzem, incluindo as faculdades de direito e as instituições estatais de justiça. Isso porque, no campo jurídico, a modernidade se caracteriza pelo reconhecimento de uma única fonte de produção do direito, que é o Estado tornando todos os outros regimes jurídicos, dos povos originários e das comunidades tradicionais, subordinados ao seu poder uniformizador por meio do direito estatal. Nesse sentido o estado, tal como conhecemos hoje, regula a sociedade para assegurar a hegemonia do sistema mundo produzido pela modernidade europeia, acentuando o distanciamento entre os interesses defendidos pelo estado e os interesses populares”.

            Assim também o co-orientador, o querido amigo José Luiz Quadros de Magalhães,  que remete ao quadro teórico do trabalho, para assinalar que “para realizar o seu objetivo, o livro percorre o conceito de povo e de popular, buscando para o diálogo os referenciais teóricos críticos presentes nas construções argumentativas nas ações das assessorias jurídicas populares. Duas referências críticas fundamentais são abordadas neste momento: o ‘direito achado na rua’ e a ‘pedagogia do oprimido’, que entre outros movimentos do pensamento, contribuíram na produção de conhecimentos pelas assessorias jurídicas populares”.

          Essa constatação não é uma novidade, já Nita Freite (viúva e colaboradora de Paulo Freire), a havia estabelecido, antecipando a articulação que Maria do Rosário traz em seu livro: “Por tudo que foi exposto torna-se passível asseverar, que, a relação de Paulo Freire com o Direito nega veemente a concepção tradicional do direito da Modernidade e se alia ___ talvez fosse mais correto dizer que ele, ao lado de outros intelectuais que enriqueceram o pensamento da esquerda mundial criaram um nova leitura do mundo, humanista e transformadora, dentro da qual meu marido concebeu uma teoria epistemológico-ético-político-antropológico-critica de educação, que está alinhada com a concepção do Direito Achado na Rua, a Teoria Dialética Social do Direito”. (Acesso à Justiça e a pedagogia dos vulneráveis; ou O pensamento de Paulo Freire e sua relação com o Direito como prática para a libertação. In SOUSA JUNIOR, José Geraldo de, et al (orgs). Série O Direito Achado na Rua. Introdução Crítica ao Direito à Comunicação e à Informação. Brasília: FAC Livros/UnB, 2017 – https://faclivros.wordpress.com/2017/03/29/o-direito-achado-na-rua-v-8-introducao-critica-ao-direito-a-comunicacao-e-a-informacao/) .

            No livro, o percurso teórico-político da autora transparece no sumário da obra, uma fonte de instigação para a expandida rede de assessorias jurídicas populares (incluindo as universitárias). Com uma Introdução que se desdobra em objetivo, problema e organização do trabalho, a linguagem no percurso metodológico e o percurso metodológico, propriamente dito, a Autora traz um capítulo tratado da Relação da Pesquisadora com o Tema: pelas Trilhas do Ser Nordestina, no qual situa As Resistências do Popular e a Colonização na Região do Sisal no Sertão da Bahia; as Resistências e Saberes Populares Construídos na Região do Sisal  e  O Encontro com a Teologia da Libertação e a Consciência das Injustiças. Lodo o capítulo terceiro, forte em configurar O Estado da Arte da Assessoria Jurídica Popular e a Arte de Advogar na Contramão do Sistema. Aqui o pulsar da obra: Assessoria Jurídica Popular: De Qual Povo se Está Falando?, Antecedente Histórico da AJP no Brasil: a Atuação de Advogadas/os na Defesa das Pessoas Escravizadas e das Vítimas da Ditadura Militar-Civil-Empresarial de 1964; Referências Teóricas da Assessoria Jurídica Popular; O Direito Achado na Rua; A Pedagogia do Oprimido; Conhecimentos Produzidos acerca da Assessoria Jurídica Popular; Formas de Organização da AJP no Brasil; Associação de Advogados e Advogadas dos Trabalhadores Rurais da Bahia (AATR); Rede Nacional de Advogadas/os Populares (RENAP). Depois vem o capítulo teórico-epistemológico paradigmaticamente designado: Pensamento Decolonial: Insurgência Contra as Opressões das Colonialidades Atuais, compreendendo Pensamento Decolonial e Colonialidade; Conceito de Colonialidade e o Processo de Construção do Pensamento Decolonial; Dimensões do Pensamento Decolonial; Dimensão do Bem Viver; Dimensão do Novo Constitucionalismo Latino-Americano; Dimensão do Pluralismo Jurídico; Dimensão da Visibilidade das Mulheres; Dimensão dos Novos Direitos e Novos Sujeitos; A Colonialidade Presente no Sistema de Justiça e a Luta por um Sistema de Justiça Decolonial. A obra se completa com o capítulo de apropriação no empírico dos fundamentos teóricos, ensejando a circuição teórico-prática que dialetiza o processo: Assessoria Jurídica Popular e Ocupações Urbanas: Modos Decoloniais de Pensar e de Construir o Direito. É então quando o chão que se pisa interpela a cabeça para fazê-la pensar: Por Que as Pessoas Ocupam?; Ocupação-Comunidade Dandara: Narrativas de uma Luta Onde o Povo ‘Construiu a sua Própria Sentença’; Dois Processos Judiciais no Chão da Secretaria da Vara da Fazenda Pública e a ‘Sentença’ Construída na Luta; A Premiação pelo Descumprimento da Função Social da Propriedade e a Ação de Desapropriação dos Terrenos; Sobre a Função Social da Propriedade e Ilícito Funcional; Ocupações Urbanas: Por um Modo Decolonial de Acesso ao Direito à Terra e à Moradia. Depois, as Considerações Finais e as Referências.

          A Autora não reduz o seu estudo a uma antologia de práticas que possam representar o sentido e o alcance ativo de assessoramento jurídico popular. Ela tem o cuidado de escorar a sua análise desse processo em referências teórico-críticas que ao jurídico aportaram o marxismo, a filosofia da libertação a pedagogia da autonomia, as hipóteses sociológicas do pluralismo jurídico e a “teoria do Direito Achado na Rua”.

           Constato a boa recensão que elabora neste campo, no qual pontuo, conforme ele própria confere, e noto que ela extrai da fortuna crítica de sua construção político-epistemológica, valendo-se de referências muito qualificadas para apoiar sua abordagem, os melhores achados.

           Conquanto essa fortuna ainda se constate estar em processo, valendo constar que depois da conclusão do trabalho novas aquisições se agregaram e a essa fortuna, atualizando-a – anoto apenas para colaborar as edições agora em 2021 do vol. 5 da Coleção Direito Vivo (Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris) de O Direito Achado na Rua. Questões emergentes, revisitações e travessias; e o vol. 10, da Série O Direito Achado na Rua: Introdução Crítica ao Direito como Liberdade (Brasília: Editoras UnB e OAB), ambos sob a minha co-organização – os aportes trazidos pela Autora se fazem de modo muito pertinente:

Verifica-se que o processo de semeadura e de germinação do Direito Achado na Rua se deu em terra fértil da academia conjugada com as lutas sociais que buscam a reconstrução da educação, sobretudo da educação jurídica, comprometida com a formação de juristas assessoras/es das lutas populares, de professoras/es e estudantes, com o objetivo de fortalecer a concepção crítica do Direito, colocando-o como instrumento de transformação, mas também de ruptura com o direito hegemônico colocado a serviço dos interesses das classes opressoras.

O aspecto educativo do Direito Achado na Rua sempre esteve presente nas experiências dos coletivos de AJP que adotam também uma pedagogia com princípios freirianos, precisamente centrada na Pedagogia do Oprimido. Nesse sentido, os atos de assessorar, advogar, aprender e ensinar, são perpassados por uma pedagogia que visa, ao mesmo tempo, aprender e ensinar, para libertar-se e libertar as vítimas das opressões e injustiças impostas pelos poderes opressores” (p. 103).

             As observações da Autora não discrepam de constatações que pude aquilatar, a partir de pesquisa realizada em atendimento a edital promovido pela antiga Secretaria de Reforma do Judiciário, do Ministério da Justiça (Governo Democrático-Popular), com objetivo de institucionalizar um Observatório da Justiça. Remeto ao documento síntese publicado e divulgado, acessível, ainda hoje nos repositórios do Ministério (O texto completo do documento – a pesquisa é muito mais ampla – pode ser consultado aqui: http://pensando.mj.gov.br/wp-content/uploads/2015/07/15Pensando_Direito3.pdf).

            Das entrevistas, concedidas por representantes de assessorias jurídicas populares de movimentos sociais, pode-se alinhar algumas observações que aparecem no livro ora Lido para Você:

Respeito às temporalidades democráticas. Parcela significativa dos entrevistados ressaltou a dissonância entre o tempo de que os grupos sociais necessitam para avaliar com profundidade suas demandas e tomar decisões e a temporalidade típica dos processos judiciais ou administrativos, que não levam em consideração os processos sociais, mas apenas resultados. Os entrevistados mencionaram frequentemente que sem respeito ao protagonismo dos grupos e das comunidades com quem trabalham, aos seus ritos e ao tempo necessário para a produção do convencimento, sua atuação carece de legitimidade e não produz bons resultados.

Fortalecimento Comunitário. Os entrevistados chamam atenção para que as demandas dos grupos sociais sejam identificadas como demandas coletivas, e não como problemas individuais. Algumas demandas revelam problemas estruturais da sociedade, que a configuração liberal do sistema de Justiça não permite captar com toda a complexidade. O fortalecimento das instâncias comunitárias e o reconhecimento de “sujeitos coletivos de direitos” é de grande importância para a garantia plural do acesso à Justiça.

Educação em Direitos Humanos. Na experiência dos entrevistados, a educação e a informação em Direitos Humanos para os grupos sociais em situação de vulnerabilidade se mostram estratégicas para amplificar suas vozes e reivindicações. Mas educar em Direitos Humanos não se resume à transmissão dos conteúdos dos tratados internacionais e das normas brasileiras. Para além disso, é necessário informar sobre direitos com metodologias livres de discriminação e que não reproduzam velhos estigmas.

Uso dos Meios de Comunicação. Os entrevistados afirmaram usar os meios de comunicação para dar visibilidade a situações críticas de violação de direitos, como também para amplificar experiências bem sucedidas ou boas práticas. Embora a imprensa seja muito citada como responsável por violar direitos, a utilização cidadã dos meios de comunicação é descrita como uma boa estratégia para alcançar a justiça.

Conscientização e Sensibilização. A educação não formal também é usada como meio de evidenciar para situações não percebidas de violações de direitos, contribuindo para processos mais justos de gestão de conflitos. Essa estratégia tem sido utilizada pelos entrevistados tanto para sensibilizar operadores do direito, quanto para tratar de questões ainda emergentes com os grupos.

Reconhecimento e acreditamento do protagonismo das experiências de mediação social realizadas fora das instâncias estatais. O que chama atenção nessa categoria é a demanda por reconhecimento das iniciativas de mediação comunitária por justiça e por acesso à justiça e a recusa de sua cooptação ou absorção de seus modelos e práticas pelo Estado. A forte base comunitária das experiências relatadas é um diferencial a ser preservado.

E, também constatar, que embora as entrevistas com movimentos sociais, organizações e redes descritas no relatório não tivessem como objetivo específico avaliar a percepção desses atores acerca das instituições formais que operam a Justiça, foi possível identificar algumas leituras nesse sentido, pois muitas vezes elas foram descritas como obstáculo. No olhar dos entrevistados, essa característica decorre de:

Resistência a trabalhar com o direito da rua. As entrevistas revelam uma recusa de compreender outras formas de regulação social que não a do direito positivo. Há uma demanda por reconhecimento de mecanismos jurídicos não positivados, mas de ampla aceitação por grupos sociais. A recusa do pluralismo faz com que práticas sociais que garantem justiça sejam mantidas invisíveis.

Baixa sensibilidade para as demandas da comunidade. Os entrevistados reconhecem nos operadores do sistema judicial pouca disponibilidade para travar relações horizontais, reconhecendo e respeitando as demandas da comunidade e suas decisões. Há forte crítica ao desrespeito do protagonismo dos interessados na composição de soluções para suas demandas.

Limites culturais para a percepção de sujeitos e demandas inscritas nos conflitos sociais. Algumas entrevistas identificaram limites culturais dos membros do sistema de Justiça que não são capazes de reconhecer algumas situações de conflitos sociais como demandas por justiça ou acesso à justiça, quer pelo seu conteúdo ainda não reconhecido como direito, quer pela sua configuração coletiva.

Corpo com formação técnica desvinculada das experiências do mundo da vida. As entrevistas mencionam as limitações da formação técnica oferecida ao profissional do direito, excessivamente livresca, que não o preparam para lidar com as complexidades do mudo da vida em permanente mutação. São freqüentemente oferecidas velhas soluções para novos problemas.

Postura institucional burocrática. As instituições do sistema de Justiça são percebidas como excessivamente burocráticas e apegadas aos seus procedimentos. Há dificuldade de se entender o emaranhado de regras processuais e o linguajar excessivamente técnico usado pelos profissionais do direito, o que acaba por limitar e desencorajar grupos a exercer sua cidadania.

            Essas são pistas que denotam aquela necessidade designada por  J.J. Gomes Canotilho, em sede de direito constitucional, insistindo na necessidade de que nesse campo de conhecimento jurídico se recupere, diz ele, “o impulso dialógico e crítico que hoje é fornecido pelas teorias críticas da sociedade”, sob pena de restar “definitivamente prisioneiro de sua aridez formal e do seu conformismo político”.

            Por isso que, num apelo à ampliação das possibilidades de compreensão e de explicação dos problemas fundamentais do direito constitucional, propõe o publicista português “o olhar vigilante das exigências do direito justo e amparadas num sistema de domínio político-democrático materialmente legitimado”. Trata-se, segundo ele, de “incluir-se no direito constitucional outros modos de compreender as regras jurídicas”, valendo por em relevo, a este respeito, referência sua que me é altamente lisonjeira: “Estamos a referir sobretudo as propostas de entendimento do direito como prática social e os compromissos com formas alternativas do direito oficial como a do chamado direito achado na rua”, compreendendo nesta última expressão, acrescenta, um “importante movimento teórico-prático centrado no Brasil” (Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Coimbra: Editora Almedina, 1998). E de modo mais geral, pensando o direito tout court: “Do outro lado da rua, o ‘direito achado na rua’ e, perante o sangue vivo que brota dos vasos normativos da realidade e a sedução de um direito outro, alternativo ao direito formal das constituições, códigos e leis, compreende-se que o discurso hermenêutico dos juristas mais não seja que um manto ocultador do insustentável peso do poder” (Estudos sobre Direitos Fundamentais. Coimbra: Coimbra Editora; São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008).

            Penso que essa chamada, que Canotilho encontra seu eco na disponibilidade teórico-política de O Direito Achado na Rua, também tem uma resposta avançada nessa obra de Maria do Rosário de Oliveira Carneiro, na medida em que ela se coloca como um modo de descolonizar o processo de pensar, construir e realizar o Direito.

            Com efeito, é essa a disposição que se extrai do fecho da obra, quando a Autora afirma categoricamente:

“Por fim, entende-se que para a AJP continuar sendo um modo decolonial de pensar e de construir o Direito precisa manter-se coerente com suas origens, comprometida com o povo que se encontra ‘do outro lado da linha do pensamento abissal’, com suas distintas lutas, no campo e na cidade, com os movimentos e organizações populares de defesa de direitos, posicionando-se contra as injustiças de que esses povos são vítimas; e, com o povo, manter-se comprometida na construção da justiça, o que passa também pela construção de uma sociedade justa e pela reafirmação cotidiana do compromisso com os saberes e direitos construídos nas resistências populares. A AJP é decolonial porque é um dos instrumentos contra-hegemônicos de defesa dos direitos e saberes construídos nas resistências populares. Falar de AJP é falar de lutas populares por direitos e de resistência popular contra as injustiças sociais” (p. 271-272).

 

 

José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil,  Professor Titular, da Universidade de Brasília,  Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua.