Afinal, passou o 7 de setembro. Estivesse vivo Aparício Aporelly poderia dizer em 2021, o que disse sobre em 1930, quando as tropas fiéis a Washington Luís deveriam se confrontar com as da Aliança Liberal, sob o comando de Getúlio Vargas, vindas do Rio Grande do Sul em direção ao Rio de Janeiro para tomar o poder.

Na divisa entre São Paulo e Paraná, a cidade de Itararé se preparara para

a “batalha mais sangrenta da América do Sul”. Mas não houve a batalha. “Fizeram acordos – narrou Aporelly – o Bergamini pulou em cima da prefeitura do Rio, outro companheiro que nem revolucionário era ficou com os Correios e Telégrafos, outros patriotas menores foram exercer o seu patriotismo a tantos por mês em cargos de mando e desmando… e eu fiquei chupando o dedo. Foi então que resolvi conceder a mim mesmo uma carta de nobreza. Se eu fosse esperar que alguém me reconhecesse o mérito, não arranjava nada. Então passei a Barão de Itararé, em homenagem à batalha que não houve”.

Parece que em 2021 também. Com ata redigida pelo especialista em golpes de cúpula, sob a forma de uma carta rabiscada num vôo entre São Paulo e Brasília, com o estilo mais para Conde do que para Barão, certamente pensando numa nova chance para atravessar o rio desde a sua terceira margem (com as licenças de Guimarães Rosa e de Caetano Veloso). Talvez por isso aqueles risos indecentes no banquete dos já saciados (agora, com a licença de Darcy Ribeiro, “Quem, letrado, não tem culpa neste País dos analfabetos? Quem, rico, está isento de responsabilidades neste País da miséria? Quem, saciado e farto, é inocente neste País da fome?”).

Resta combinar com o povo (este que Marshal Berman, em Tudo que é sólido desmancha no ar, surge da transformação da multidão transeunte quando, na rua, em seus encontros e desencontros, reivindica liberdade, cidadania, direitos, justiça). Na Esplanada dos Ministérios, sequestrada pela insanidade fascista mobilizada contra a democracia, hostil às instituições e ao Supremo Tribunal Federal, sob auspícios do agronegócio, felizmente os povos indígenas se fizeram presentes, organizados, constantes, autogestionados, culturalmente fortalecidos, reivindicando democracia, respeito à Constituição e ao Direito Internacional Convencional (Convenção 169), titularidade ativa sobre seus direitos originários, seus modo de existir, autonomia sobre seus territórios, demonstrando que é o Brasil, terra indígena.

E com que força política, educando partidos, corporações, grupos de interesse, a esquerda. De braços dados com os povos, as mulheres, a Igreja dos pobres e dos excluídos, o mais simbólico arco de alianças, a grande frente para um projeto de sociedade e de país. Todas as bandeiras reunidas, as feministas, as antirracistas, as identitárias, do campo e das cidades, por reconhecimento e participação, por teto, terra e trabalho.

E no tribunal, que não precisou ser protegido por tanques fumacentos, aparatos dissuasórios, cavalaria, as vozes indígenas, qualificadas pela inclusão universitária, sustentando da tribuna, verdadeiros amici curiae, o mais avançado direito: Cristiane Baré, Ivo Macuxi, Eloy Terena e vestida de encantamento, Samara Pataxó.

Talvez tenham acendido na memória progressista do Ministro Fachin, o sentido do verdadeiro direito achado nas aldeias, pré-estatal, pré-cabralino, para fixar que não existe isso de marco temporal, mas um direito cogente que não pode ser reduzido pelo estatal, legal que o devem constitucionalmente proteger, que não o criam, apenas o declaram.

Uma recusa ética à divergência que se abriu no segundo voto, recuando teórica e politicamente, para retroceder do status constitucional e reinserir o debate sobre terras indígenas no âmbito do direito civil, para salvaguarda dos negócios, para a ganância privatizante, para a anistia do esbulho, para lesar o interesse de todos na salvaguarda da União, e para assegurar o bem viver.

Quando o julgamento seja retomado, depois do pedido de vista, o STF enfim poderá revelar a sua verdadeira função: porteiro ou guardião da Constituição; coveiro ou pedagogo da cidadania. No trânsito, os povos indígenas vão demonstrando, em resposta ao paradoxo do navio de Teseu (Plutarco), que a sua realidade não está no artefato que saiu do ponto A, nem no que chegou no ponto B, mas no que está sendo inteiramente reconstruído na travessia.

 

(*) José Geraldo de Sousa Junior é professor titular na Faculdade de Direito e ex-reitor da Universidade de Brasília (UnB)