quarta-feira, 29 de junho de 2022

 

O Direito Constitucional à Alimentação Adequada e a Alimentação como vetor de “tratamentos cruéis, desumanos, degradantes e tortura” no sistema penitenciário brasileiro

Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito.

 

 

 

 

O Direito Constitucional à Alimentação Adequada e a Alimentação como vetor de “tratamentos cruéis, desumanos, degradantes e tortura” no sistema penitenciário brasileiro. Dissertação apresentada ao programa de pós-graduação em Direitos Humanos e Cidadania da Universidade de Brasília, Brasília: 2022, 1788 p.

 

 

Perante a Banca Examinadora da pesquisa do estudante José de Ribamar de Araújo e Silva, que presidi na qualidade de Orientador e que foi constituída pelos professores Alexandre Bernardino Costa, Membro interno – Universidade de Brasília e Luciano Mariz Maia, Membro externo – Universidade Federal da Paraíba, foi apresentada, defendida e aprovada a dissertação tema deste Lido para Você.

O Autor, um experiente pesquisador engajado de longa data no serviço pastoral de Justiça e Paz e, na ação política se afirmou em atuação no Comitê Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, e a partir desse organismo, mediante processo seletivo, passando a integrar já na primeira composição e depois reconduzido, como Perito no Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura.

Muito dessa experiência foi carreada para o estudo contido na Dissertação que, como indica o Resumo: “busca retratar a caminhada de um estudante que sucessivamente pode interagir com pessoas privadas de liberdade, sobretudo no sistema penitenciário. Essa interação ocorreu a partir de diferentes atuações: desde 1984, como agente da Pastoral Carcerária no Carandiru, como agente de outras pastorais sociais, como militante da Comissão Justiça e Paz da Arquidiocese de São Luis, como Ouvidor dos sistemas penitenciário e de segurança pública do Maranhão e, posteriormente, como Perito do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura. Numa perspectiva inversa dos estudos doutrinários e acadêmicos juridicistas, este trabalho apresenta um debate teórico e conceitual a partir das experiências vividas e problematiza como a mobilização contra a fome e a conquista tardia do preceito legal do Direito Humano à Alimentação Adequada não superaram a negação histórica desse direito. Seja pela acessibilidade, quantidade, qualidade ou até regularidade, ele é sistematicamente violado, o que lhe converte em vetor de tratamento cruel, desumano, degradante e tortura dentro do sistema penitenciário”.

O Resumo, aliás, exibe uma combinação entre existência e consciência. É pois, biografia e conhecimento de uma realidade dramática que e desnuda a dimensão do não ser, para usar uma categoria de Fanon, que não fique reduzida à exclusão pela negritude, mas que abra uma perspectiva de resgate teórico-político, dos que sejam alienados do humano em face da perversa divisão maniqueísta imposta pelo colonialismo.

O Autor, declaradamente, se diz intonizado com a perspectiva de “O Direito Achado na Rua – Experiências Populares de Criação de Direito”, por sua própria natureza que “articula nos planos teórico e prático o potencial emancipatório do direito, tomado como expressão da liberdade e da igualdade que são constitutivas da sociedade plural e democrática”. E para tanto, contar com a possibilidade de se inserir, e poder ter uma oportunidade de intercambiar expe riências, aprofundar estudos, sistematizar conhecimentos e oferecer uma contribuição para a sociedade sobre tão relevante tema. E dentro do universo plural e diante do paradoxo dialético proposto dialogar com o “Direito achado nas celas”.

Daí ele orienta essa experiência e motivação na busca do aprofundamento do conhecimento sobre processo de construção do direito constitucional a alimentação e nutrição adequada, consagrado no Capítulo 6º da Constituição Federal e a sua sucessiva violação, sobretudo nos espaços de privação de liberdade prisional, onde se converte em vetor de tratamentos cruéis, desumanos, degradantes e tortura, ferindo a um só tempo a Lei de Execução Penal (LEP), o preceito constitucional e o compromisso internacional assumido quando da ratificação do OPCAT/ONU.

 O paradoxo – diz ele – entre a mobilização contra a fome, a conquista do consagrado preceito legal do Direito Humano à Alimentação Adequada e a negação histórica desse direito lhe converte em vetor de tratamento cruel, desumano e degradante, violando um preceito constitucional, é a principal questão a ser analisada em nossa proposta e se constitui em objeto de estudo da presente dissertação de mestrado.

Por isso que, nessa perspectiva, quer contribuir com a investigação social e a formulação teórica e capacidade de diálogo cooperativo e articulação com os diferentes interlocutores, do sistema de justiça, e as entidades de defesa dos direitos humanos, familiares e vítimas das violações, com foco específico no sistema penitenciário visitado pelo Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura nas 27 unidades da Federação do Brasil, bem como dialogar com aqueles segmentos que trabalham na gestão dessa política nos diferentes níveis. Numa amostra significativa dos presídios estaduais, masculinos e femininos, considerando a população LGBTI+, nas cinco unidades dos presídios federais. E o faço sobre diferente locus, de Perito com sete anos de mandato a se completarem agora em junho, próximo, como Coordenador adjunto em dois mandatos, dois anos e Coordenador Geral, do MNPCT, por um ano. Em pleno contexto de pandemia da Covid-19 e do Estado de exceção que se pretende implantar no Brasil.

Esse objetivo se desdobra nos campos descritivo-analíticos de seu estudo, conforme sumaria, discorrendo sobre A Construção do Ordenamento Legal do Direito Humano à Alimentação Adequada; O Direito Achado na Rua e o Direito Achado nas Celas: um Salto Epistemológico; O Mapa da Fome: a Fome tem Cor, Endereço e Classe Social – Dos navios negreiros às novas senzalas: a seletividade penal como estratégia de segregação; DHANA – Da Caridade a Exigibilidade; O Estado Provedor é o Estado Violador; As Múltiplas Violações e a Fome: o ‘Estado de Coisas Inconstitucionais’ e a Falência múltipla dos órgãos; A Responsabilidade do Estado Brasileiro ‘Sem Reparação não Existe Abolição e sem Abolição não Existe Nação”.

Com uma boa bibliografia de apoio, o Autor ainda que subjetivamente, tanto por ofício quanto por engajamento missionário, logra prevenir a objetividade apta com um distanciamento analítico possível mesmo quando opte por metodologia na forma de observação participante.

E mais que isso, logra inserir seu estudo na oferta de avaliações urgentes para uma realidade de exclusão que revela o desprezo das políticas para o humano, assumindo deliberadamente a opção do descarte de marginalizados que o econômico empurra para a zona do não ser.

De fato, conforme procurei chamar a atenção em artigo recente – O Direito de não Passar Fome, publicado em minha coluna no Jornal Brasil Popular (https://www.brasilpopular.com/31541-2/), atravessamos um tempo em nosso País de exacerbada afronta à cidadania e à dignidade humanas. Um tempo tanático, necropolítico. Terrível porque amolda o fazer política, governar. A vida é banalizada e se torna cálculo dos objetivos de negócios. Vida mercadoria, carne barata se se é negro, indígena, mulher, pobre.A marca da conjuntura, na política, é o fascismo (em quase todas as formas do que Umberto Eco caracterizou como fascismo eterno); no social, a fome. Uma dramática violação do mais fundamental dos direitos.

Em 1941, na efervescência de uma época mundial conturbada, o Presidente dos Estados Unidos Franklin D. Roosevelt, num discurso sobre o Estado da União, no que ficou conhecido como Four Freedoms speech (Discurso das Quatro Liberdades) como objetivos para assegurar a todos os seres humanos o patamar de realização da dignidade.

Ainda que o discurso partisse de uma motivação para designar o papel dos Estados Unidos no balanço de poder que começava a se desenhar no ambiente conflagrado daquela conjuntura, ele procurava apoiar-se em princípios éticos arguidos para o fim de estabelecer um grande arsenal da democracia.

Como quer que seja, depois da morte de Roosevelt, contando com forte protagonismo de sua viúva Eleanor, o conceito das “quatro liberdades” influenciou a redação da Carta das Nações Unidas, aprovada em 1945, e, de modo muito explícito, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, proclamada em 10 de dezembro de 1948, cujo comité de redação foi presidido pela própria Eleanor Roosevelt.

As quatro liberdades fundamentais assim designadas são a liberdade de expressão, a liberdade religiosa, a liberdade de viver sem medo e a liberdade de viver sem penúria, de ter um nível de vida adequado, de não passar fome.

Quatro carências que caracterizam o Brasil atual, epicentro de uma investida canibalizadora do sistema mundo neoliberal que exaure o povo devorando sua economia e interditando seu futuro, porque sufoca a sua esperança de bem viver, sem medo e sem passar fome.

Por isso que o Papa Francisco no discurso que proferiu no 1º Encontro Mundial dos Movimentos Populares, em Santa Cruz de la Sierra, no dia 09-07-2015, admoestou declaradamente o capitalismo no que produz uma “realidade injusta que vos foi imposta e a que não vos resignais opondo uma resistência ativa ao sistema idólatra que exclui, degrada e mata”, ao mesmo tempo que exortou para uma mobilização transformadora ética, democrática, solidária e fraterna, dessa realidade: “Queremos uma mudança nas nossas vidas, nos nossos bairros, no vilarejo, na nossa realidade mais próxima; mas uma mudança que toque também o mundo inteiro, porque hoje a interdependência global requer respostas globais para os problemas locais. A globalização da esperança, que nasce dos povos e cresce entre os pobres, deve substituir esta globalização da exclusão e da indiferença”.

No Brasil, conforme dados recém divulgados, 33 milhões de pessoas passam fome, numa situação que faz retroceder o nível de penúria para o mesmo patamar de 30 anos atrás; 6 em cada 10 convivem com insegurança alimentar hoje. Esse dado cruel consta do 2º Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil, feito pela Rede Penssan (Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional) e executado pelo Instituto Vox Populi.

Na interpretação dos dados, em 2022, 1 de cada 3 brasileiros já fez alguma coisa que lhe causou vergonha, tristeza ou constrangimento para conseguir alimento. Para Francisco Menezes, consultor da ONG internacional ActionAid e ex-presidente do Consea (2004-2007), três das principais causas do aumento da fome no país são o empobrecimento da população, o desmonte de políticas sociais e de abastecimento, e a crise climática.

Também em meu espaço do Jornal Brasil Popular (https://www.brasilpopular.com/ossos-de-boi-arroz-e-feijao-quebrados-e-pe-de-galinha-fome-no-brasil/), em texto de agosto de 2021, eu já chamara a atenção para essa condição, de crescente, violação dos direitos fundamentais e da escalada de exclusão. Na pandemia de coronavírus o desemprego aumentou, os preços subiram e a fome explodiu. São mais de 19 milhões de brasileiros passando fome, segundo a última pesquisa da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede PENSSAN). Em 2018, eram 10,3 milhões. A perda de poder aquisitivo deixou, ainda, mais da metade do Brasil sem acesso pleno e permanente a alimentos. São 116,8 milhões de brasileiros (55,2% da população) que não necessariamente comem as três refeições por dia (insegurança alimentar). Três anos atrás, o IBGE registrava 36,7% da população nesse status, o que já era alto em comparação com 2013: 22,9%.

O dado trazido por essa pesquisa é especialmente preocupante porque aponta para danos futuros. Estudos sugerem que o impacto da fome entre crianças e adolescentes tem efeitos deletérios imediatos na saúde e no bem-estar, com potencial comprometimento das potencialidades desses indivíduos.

Comentando a pesquisa, conforme depoimentos em matéria publicada pelo sítio do Instituto Humanitas da Unisinos (Universidade do Vale do Rio dos Sinos (https://www.ihu.unisinos.br/619351-fome-atinge-33-milhoes-de-pessoas-no-brasil-mesmo-numero-do-inicio-da-decada-de-90-diz-pesquisa), os especialistas ouvidos advertem para o fato de que já não fazem mais parte da realidade brasileira aquelas políticas públicas de combate à pobreza e à miséria que, entre 2004 e 2013 reduziram a fome a apenas 4,2% dos lares brasileiros (tirando o País do mapa da fome mundial)”, e que “as medidas tomadas pelo governo para contenção da fome hoje são isoladas e insuficientes, diante do cenário de alta inflação, sobretudo dos alimentos, do desemprego e da queda de renda da população, com maior intensidade nos segmentos mais vulneráveis.”.

Conforme diz o jornalista argentino Martín Caparrós, num sistema que expande a exclusão“a fome é a metáfora mais brutal da desigualdade e sua causa não é a pobreza, mas a riqueza de uns poucos”, uma forma de gestão de governos que servem a esse modelo perverso de produção de desigualdades (https://www.ihu.unisinos.br/619296-morrer-de-fome).

Realmente, não só o contexto adverso agudizado pela pandemia pode explicar a tragédia em curso. Há muito desgoverno e mesmo uma intencionalidade administrativa necropolítica, ressalvadas as iniciativas positivas locais. O resultado é que com o “agravamento da pobreza o estado não [têm] mais estruturas para responder à altura. Não por acaso, 15,9 milhões de pessoas (8,2% da população) relataram ‘sensação de vergonha, tristeza ou constrangimento” por terem sido obrigadas a usar de meios “social e humanamente inaceitáveis para obtenção de alimentos’”.

Em O Direito Humano à Alimentação e à Nutrição Adequadas: enunciados jurídicos. Organizadoras e organizadores Valéria Torres Amaral Burity, Antonio Escrivão Filho, Roberta Amanajás Monteiro, José Geraldo de Sousa Junior (Organizadores). Brasília: FIAN Brasil e O Direito Achado na Rua, 2021,- http://estadodedireito.com.br/28954-2/ – já procuramos resgatar essa dimensão humanizadora da alimentação e da nutrição como direitos humanos. Esse texto, aliás, foi judiciosamente examinado pelo Autor na Dissertação.

O Autor junta à Dissertação, como apêndice, um Quadro-Síntese do Diagnóstico e das Recomendações do MNPCT referentes a alimentação no sistema penitenciário do Brasil, por unidade federativa (Excertos dos Relatórios de Visitas a Unidades). Seu valor descritivo se acentua pelo horror que revela. Vale como explicação, lembrando o relatório de Engels sobre o problema da habitação na Inglaterra, indicando que “a descrição verdadeira do objeto é simultaneamente a sua explicação”.

Por essa razão, talvez, o Autor pontifique, em conclusão: “Pelo que se reafirma não haverá um autêntico projeto de nação se não for garantida a obrigação do Estado de prover o Direito Humano à Alimentação e Nutrição Adequada, sobretudo do custodiado. Isso nos desafia a ficar sempre mais atentos e mobilizados para reverter politicamente esse cenário que nos condena a ser um dos países que mais mata de fome ou extermina, quando não encarcera condenando a ‘Pena de Fome’”

 

 

 

 

 

José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil,  Professor Titular, da Universidade de Brasília,  Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua.

terça-feira, 28 de junho de 2022

 

Agrobanditismo Que Mata e Fere

  •  em 



Retirei o título deste artigo de matéria publicada na página da APIB – Articulação dos Povos Indígenas do Brasil – https://apiboficial.org/2022/06/25/agrobanditismo-mata-e-fere-indigenas-durante-ataque-contra-os-povos-kaiowa-e-guarani/.

 

 

A matéria dá conta de que durante a retomada do território ancestral Guapoy, no município de Amambai, Mato Grosso do Sul, os indígenas que estavam no local foram surpreendidos por um ataque armado, conduzido pela polícia militar. Como resultado, três indígenas estão desaparecidos, duas mulheres e uma criança de sete anos, no município de Amambai. Além delas, pelo menos outros seis ficaram feridos. Um jovem de 25 anos foi baleado com três tiros. Ele foi levado para o Hospital Regional de Amambai, mas não resistiu. Outro jovem foi morto a tiros após ataque feito com uso de um helicóptero.

 

 

Em Nota – NOSSO SANGUE CLAMA POR JUSTIÇA!, além da denúncia da violência absolutamente desproporcional, convoca-se as autoridades públicas e do Ministério Público para que satisfação suas atribuições constitucionais, inclusive de responsabilização dos perpetradores da violência.

 

 

Para o coordenador jurídico da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), Eloy Terena, “no Mato Grosso do Sul o “Estado de Direito” fracassou. A polícia militar, em regime de milícia privada dos fazendeiros, promove despejos sem ordem judicial. Já virou rotina. Um estado onde o Agrobanditismo impera a custo do sangue indígena”.

 

 

Esse estado de coisas, com características de inconstitucionalidade, se expande no Brasil como estratégia do agronegócio, erigido em ideologia desenvolvimentista que vai mercadorizando tudo, da natureza ao humano, prestando-se de suporte para uma governança leniente que se mostra totalmente inoperante para estabelecer políticas públicas e sociais de desenvolvimento humano.

 

 

Consectárias dessa indolência gestora, em senso amplo, cúmplice, expande-se a ilegalidade e a violência da exploração – mineral, o garimpo em terras indígenas e em reservas naturais, exploração de madeira, grilagem, pistolagem, tráfico. Conforme o Relatório Conflitos no Campo Brasil 2021, editado agora em 2022, pela CPT – Comissão Pastoral da Terra, organismo da CNBB – Conferência Nacional dos Bispos Brasileiros, por meio da coordenação do Centro de Documentação Dom Tomás Balduíno, com sede em Goiânia, a violência, desmonte de políticas públicas e pilhagem dos territórios, [é] o projeto nacional atual para o campo brasileiro.

 

 

Os quadros e tabelas que acompanham o Relatório, exibem em toda a crueza o horror da violência. O assassinato do sertanista Bruno Pereira e do jornalista Dom Phillips, juntamente com a violência incluindo mortes de indígenas é a expressão atualmente internacionalizada desse estado de coisas inconstitucional e inconvencional (em sede de direitos humanos internacionais).

 

 

Não é mais possível – aliás, nunca foi – resignar-se a esse estado de coisas, ao que tudo indica, um projeto, entreguista e lesa pátria.Por todos os meios e vozes amplia-se o repúdio aos autores de tanta contrafação. Em algum momento o institucional se enfibrará para por côbro a tamanho desvio da constitucionalidade e da legalidade. Ao fim e ao cabo, em dois de outubro, a cidadania poderá restabelecer o curso da dignidade civil da política.

 

 

Por enquanto, o social vai construindo sua agenda e sua narrativa de reprovação a esse descalabro. Agora, mesmo, no dia 22, às vésperas do que seria o julgamento do século, não só por que se consumaria o debate mais importante do direito hoje, mas porque se julgaria a própria capacidade do Supremo Tribunal Federal demonstrar sua capacidade de guardião da Constituição, o Tribunal, mais uma vez suspendeu sua deliberação.

 

 

Entretanto, os indígenas e seus aliados no mundo acadêmico se reuniram num grande seminário realizado no Auditório Esperança Garcia, da Faculdade de Direito da UnB, para demonstrar a falácia da tese adrede engendrada pelo agronegócio do marco temporal e para sustentar, com sólidos fundamentos, que os direitos dos povos indígenas e quilombolas são originários, cogentes, instituintes, pré-estatais, pré-legislativos, pré-constituintes, achados na rua, nas aldeias, nos campos, nas águas, nas florestas.

 

 

Tal como a legenda que explica a foto da página da APIB que ilustra este texto, “Somos defensores das florestas e da Constituição”, assim a fala de DinamamTuxá, da coordenação da Apib, abriu o debate sobre o Direito Indígena Originário, no Seminário Nacional Sobre Regime Constitucional das Terras Indígenas no Brasil. Um evento científico e político realizado na tarde desta quarta-feira (22), na Faculdade de Direita da Universidade de Brasília.

 

(*) José Geraldo de Sousa Junior é professor titular na Faculdade de Direito e ex-reitor da Universidade de Brasília (UnB)


José Geraldo de Sousa Junior é graduado em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal – AEUDF, mestre e doutor em Direito pela Universidade de Brasília – UnB. É também jurista, pesquisador de temas relacionados aos direitos humanos e à cidadania, sendo reconhecido como um dos autores do projeto Direito Achado na Rua, grupo de pesquisa com mais de 45 pesquisadores envolvidos.

 

Professor da UnB desde 1985, ocupou postos importantes dentro e fora da Universidade. Foi chefe de gabinete e procurador jurídico na gestão do professor Cristovam Buarque; dirigiu o Departamento de Política do Ensino Superior no Ministério da Educação; é membro do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil – OAB, onde acumula três décadas de atuação na defesa dos direitos civis e de mediação de conflitos sociais.

 

Em 2008, foi escolhido reitor, em eleição realizada com voto paritário de professores, estudantes e funcionários da UnB. É autor de, entre outros, Sociedade Democrática (Universidade de Brasília, 2007), O Direito Achado na Rua. Concepção e Prática 2015 (Lumen Juris, 2015) e Para um Debate Teórico-Conceitual e Político Sobre os Direitos Humanos (Editora D’Plácido, 2016).


quarta-feira, 22 de junho de 2022

O Direito Achado na Favela – A Dinâmica do Pluralismo Jurídico na Favela do Vidigal

Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito.

 

 

 

 

 

 

 

 

Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito

O Direito Achado na Favela – A Dinâmica do Pluralismo Jurídico na Favela do Vidigal. Osias Pinto Peçanha. Rio de Janeiro: Editora Processo, Edição: 1ª, 2022, 170 p.

                           

Conforme a descrição preparada pela Editora, a pesquisa que originou esta obra tem, pelo menos, dois objetivos. Como objetivo declarado, o propósito foi investigar a existência de práticas legais dentro de microssistemas sociais. Práticas não necessariamente postas pelo Estado, mas que funcionam nesses locais, favelas e demais regiões periféricas, como instrumentos de pacificação de conflitos. O objetivo não expressamente declarado é mostrar a existência de vida cidadã e busca por dignidade nas regiões tradicionalmente não contempladas por adequado investimento público. O morador de favelas e demais periferias titula, consome, é tributado e contribui para a manutenção do Estado. O mínimo que merece e espera é o acesso efetivo aos bens públicos. O mínimo que merece é respeito.

Elaborar prefácios tem sido uma nota característica de minha produção intelectual recente. Em parte, o grisalho da carreira deixou uma trilha demarcada por mais de quarenta anos de docência, num percurso feito em conjunto com muitos caminhantes, num andamento recortado pela orientação ou pela discussão sobre mais de duas centenas de monografias, dissertações e teses.

Certamente um ofício, mas muito em geral um deleite, um gosto cultivado nas ricas interlocuções e no sempre atualizado aprendizado. Prefácios têm sido o testemunho ou antes, a memória desse enredo de gosto e de trabalho. Tarefa e prazer continuados.

Aqui, um exemplo desse enlace. Prefacio o livro de OSIAS PINTO PEÇANHA. O Direito Achado na Favela: A Dinâmica do Pluralismo Jurídico na Favela do Vidigal, originalmente uma Dissertação submetida ao Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Estácio de Sá como requisito para a obtenção do Grau de Mestre em Direito, sob a orientação do Professor Enzo Bello e, com a publicação da obra, me valho do texto para compor este Lido para Você.

Ora, não faz muito, me incumbi de também prefaciar, em primeira e em segunda edições, o livro Curso de Direito à Cidade: Teoria e Prática, obra organizada por Enzo Bello e Rene José Keller, lançada em 2018, pelo selo da Editora Lumen Juris, do Rio de Janeiro.

Ao fazer o prefácio dessa obra, distingui a perspectiva de seus organizadores, de buscar “suprir uma lacuna editorial, condensando temas e estudos que por vezes não passam por um processo de sistematização, com o intento de oferecer aos leitores, dos mais variados níveis e áreas de formação, em linguagem didática e acessível, um curso que tenha por premissa o exame do Direito à Cidade sob a perspectiva crítica”.

E assim, designar aproximações que são mediadas pela Ciência Política, Economia Política, Serviço Social, Sociologia Urbana, Arquitetura e Urbanismo, Geografia e Direito, que as leituras trazidas pelo livro, seguindo um padrão lógico-conceitual comum à construção de cada unidade (capítulos), a obra abrange temas que tratam do Direito à Cidade no Viés Interdisciplinar (Conceito, questões, problemas, contradições, possibilidades), suas Regulações e os desafios da Prática (Envolvendo estudos de casos), que interpelam o Direito Urbanístico na sua exigência de contínua atualização.

Nos tempos sombrios que estamos atravessando, marcados por surtos de desdemocratização e de desconstitucionalização, notadamente no bloqueio ao processo recente de construção social dos direitos, “tempos de cerceamento dos direitos e de tentativas de restrição da sua garantia pela via estatal como forma de favorecer os agentes do mercado, parece oportuno refletir acerca das problemáticas que envolvem a cidade”, dizem os organizadores, a obra assume fortemente a função de peça de resistência, Ela exibe e “projeta grande parte das contradições do modo de produção capitalista, expondo as desigualdades sociais ínsitas a este modo de produção da vida social e sistema econômico”, prestando-se ao enfibramento das consciências que se formam nas lutas por reconhecimento de dignidade e de direitos e que precisam se armar para não recuar das conquistas da cidadania.

Essa é uma das chaves para orientar leituras desses temas, porque em tempos de golpe, é importante resistir e esgrimir o requisito da legitimidade para aferir reconhecimento aos sujeitos que se colocam no protagonismo da política, tal como venho insistindo desde 2016 (SOUSA JUNIOR, José Geraldo de. Resistência ao Golpe de 2016: Contra a Reforma da Previdência. In GIORGI, Fernanda et al, orgs, O Golpe de 2016 e a Reforma da Previdência. Narrativas de Resistência. Bauru: Projeto Editorial Praxis/Cabnal6Editora, 2017, pp, 242-246); SOUSA JUNIOR, José Geraldo de. Direitos não são quantidades, são relações (Entrevista), IHU OnLine, Revista do Instituto Humanitas da Universidade do Vale do Rio dos Sinos. São Leopoldo, n. 494/ano XV, 2016, pp. 64-72).

Uma outra chave possível é, talvez, contribuir para designar as condições pedagógicas para constituir cidades educadoras (SOUSA JUNIOR, José Geraldo de. Cidades Educadoras. Revista do SINDJUS-Sindicato dos Trabalhadores do Poder Judiciário e do Ministério Público da União no DF, Brasília: ano XVII, n. 59, 2009, p. 4), cidades que partam da constatação de que elas tem um governo eleito democraticamente e seu dirigentes se empenham em incentivar projetos de educação para a cidadania. Cidade nas quais as pessoas que nelas vivem acabem conhecendo melhor as situações que fundamentam as decisões relativas à sua sociabilidade e vivenciem de forma efetiva a experiência democrática. Cidades que permitam exercitar experiências de sociabilidade, desde as práticas de orçamento participativo, às de educação para a democracia, direitos humanos, cultura de paz, mobilizando redes e instituições que insiram nas regulamentações pactuadas e nas posturas, a lógica da inclusão e da solidariedade.

Num sentido valioso de atualização temática, trata-se de confirmar a necessidade de seguir firme no propósito de enfrentar os desafios teóricos e sociais e, mais ainda no presente, os desafios políticos que se colocam para os que estudam, pesquisam e formulam no campo do direito urbanístico e do direito à cidade.

Há que se continuar a incentivar os estudos e pesquisas, no âmbito acadêmico, acolhendo e oferecendo direções epistemológicas para a designação de temas e questões pontuais, no plano micro, para incentivar trabalhos (teses, dissertações), que contribuam para organizar  as novas agendas não só para as teorias críticas, como também para qualificar as lutas urbanas que demandam a construção de repertórios para o melhor conhecimento e a mais orientada direção de intervenções necessárias nesse campo.

Assim pode ser qualificado o livro de Osias Pinto Peçanha. O trabalho tem por propósito pesquisar a existência de práticas jurídicas em grupos sociais ou étnicos e em favelas. Enfatiza a insuficiência da definição normativista do Direito, além do esgotamento do modelo jurídico normativo baseado em uma estrutura excludente e segregadora.

A pesquisa demonstra que países latino-americanos, dada a diversidade étnica e cultural de seus povos, buscaram reconhecer, dentro de seus respectivos marcos territoriais, as diversas nações existentes baseadas em questões de plurinacionalidade, pluriculturalidade e plurijuridicidade.

Inicialmente retrata o cenário e características de uma favela carioca, o Vidigal, expondo alguns aspectos geográficos e etnográficos da região, para que restasse demonstrado o ambiente no qual seria desenvolvida a pesquisa. Ato contínuo, a pesquisa aborda teorias críticas à concepção estatal do direito, além do estudo da legislação pertinente. Por fim, demonstra a busca por novos paradigmas visando a uma concepção jurídica que alcance de forma igualitária todos os sujeitos de direitos, sejam estes coletivos ou individuais.

A pesquisa que lhe deu origem teve como objetivo principal analisar possíveis práticas legais existentes no seio da favela do Vidigal. Referidas práticas legais seriam tanto baseadas no Direito estatal quanto desenvolvidas e aplicadas pelos próprios protagonistas em razão dos objetivos e costumes locais, e podem ser complementares ou até opostos ao Direito oficial. Essas práticas jurídicas não oficiais demonstrariam a existência de um direito achado na favela, externando a possibilidade de uma espécie de pluralismo jurídico oriundo de uma nova fonte de normatividade e legitimidade.

A partir de observação não participante iniciei estudo investigando as origens e espécies dos conflitos de interesses entre os moradores do Vidigal entre finais dos anos de 2012 e 2015, no período pós-UPP3, como esses moradores administram esses conflitos, como e onde são buscadas as soluções, quais os atores envolvidos na solução dos conflitos, e quais os meios utilizados. Antes mesmo de iniciar a coleta de dados constatei que, dos conflitos de interesse entre os moradores da favela do Vidigal, o tema mais discutido envolve o direito de propriedade da terra, propriedade do espaço e ocupação de espaço. A propriedade discutida nesses conflitos de Unidade de Polícia Pacificadora, programa implementado pelo Governo estadual objetivando a presença do Estado, mediante representação da Polícia Militar, no interior de algumas favelas/comunidades.

Forte no livro a questão do Pluralismo Jurídico com base na qual o Autor quer analisar: (i) se existe um Direito não oficial; (ii) se existir um Direito não-oficial, qual sua legitimidade?; (iii) o Direito é um saber local? No Brasil, seria possível reconhecer o Pluralismo Jurídico?; (iv) as tensões sociais na Favela podem ser resolvidas por um Direito não estatal? (v) há legitimidade nos atores que participam da administração dos conflitos entre osmoradores da Favela?

Conforme ele indica, para desenvolver a pesquisa foi necessário perquirir as razões que levaram ao surgimento, crescimento e fortalecimento das favelas na cidade do Rio de Janeiro; estudar o surgimento da favela do Vidigal, os aspectos relacionados às tentativas de remoção dos moradores e sua luta pela resistência; identificar a existência e conhecer a natureza de conflitos sociojurídicos entre os moradores da favela do Vidigal; levantar e analisar dados relacionados aos conflitos identificados; investigar a legitimidade dos atores envolvidos na pacificação dos conflitos identificados; verificar a existência, ou não, de práticas que caracterizem um Pluralismo Jurídico.

Sinto-me contemplado e em boa companhia, pela aplicação teórica que faz no exame do tema, com base nas contribuições de Boaventura de Sousa Santos e Antonio Carlos Wolkmer sobre o pluralismo jurídico; e no campo teórico-jurídico, no que propõe Roberto Lyra Filho e os vários aportes de O Direito Achado na Rua.

O pluralismo jurídico, que o Autor adota, como uma construção crítica do Direito, opõe-se à concepção normativista-estatal, monista, segundo a qual, em síntese, direito é um conjunto de normas, oriundas do Estado, dotadas de sanção. A teoria pluralista estabelece o Direito como uma construção descolonizante, importante para uma mudança nas estruturas de dominação e controle existentes no Estado, mas não apenas dessa forma. Há pluralismo jurídico também nas práticas legais próprias de povos ou grupos nacionais ou étnicos, baseadas em sua cultura ou costumes, bem como em uma estrutura de plurinacionalidade e pluriculturalidade, existentes no marco territorial do Estado.

Não obstante, há microssociedades ou microssistemas sociais que não estão inseridas nas concepções sociais de plurinacionalidade ou pluriculturalidade, eis que insertas na mesma lógica capitalista-neoliberal do Estado, como no caso das favelas cariocas. Nestas, também são encontradas práticas legais próprias não relacionadas a qualquer mudança de estrutura de dominação ou poder, nem baseada em questões de culturalidade/ancestralidade, mas fundamentadas em costumes locais e no desejo de pacificação e harmonia das relações sociais locais.

Considero o livro uma novidade depois que fui mobilizado pelo trabalho de Adriana Nogueira Vieira Lima: Do Direito Autoconstruído ao Direito à Cidade. Porosidades, conflitos e insurgência em Saramandaia. Salvador: EDUFBA, Coleção PPG-AU, 2019, originalmente uma tese prêmio Capes em Arquitetura.

A tese, da qual deriva o livro, diz o seu resumo, “busca analisar a produção de direitos urbanos pelos sujeitos coletivos de direito em um contexto assimétrico de acesso à cidade. Para isso, adota a teoria da pluralidade jurídica como instrumental analítico. Parte-se do pressuposto de que o processo instituinte de direitos urbanos é interescalar e envolve complexas fontes de legitimação que têm na sua base relações de conflito, reciprocidade e autonomia. A pesquisa, que adota uma perspectiva interdisciplinar, foi desenvolvida com base no trabalho de campo realizado no Bairro de Saramandaia, localizado em Salvador, Bahia, Brasil. A etnografia foi eleita como método privilegiado de apreensão da realidade. Essa opção refletiu-se nas relações travadas em campo construídas através de interações e diálogos. Os pressupostos da pesquisa foram analisados através de três eixos que se interconectam: os direitos autoconstruídos pelos moradores face à ausência do Estado na prestação de serviços urbanos; constituição de direitos urbanos através de relações ambíguas com o Estado; e a (des)construção de direitos urbanos: insurgências, conflitos e disputas pelo espaço urbano. A pesquisa revelou que os direitos urbanos autoconstruídos encontram na necessidade de morar o seu principal parâmetro de legitimação social, emergindo daí as características do que denominamos Direito Autoconstruído: flexibilidade, reciprocidade e atrelamento entre forma e substância. Ficou evidenciado ainda que o Direito Autoconstruído ganha força nos processos de interação social, levando os sujeitos coletivos de direito a participarem da construção de um projeto político de transformação social que repercute no modo como ocorre a interação entre as escalas de juridicidades. Os resultados apontam também que as relações de porosidade entre as escalas de juridicidade são marcadas por conflitos, transgressões e permeabilidades e se nutrem das táticas potencialmente insurgentes praticadas pelos moradores. A partir dessa constatação, verificou-se que essas características se comportam de forma diferenciada em Saramandaia a depender do momento e do espaço do Bairro em que ocorrem, predominando relações de conflitos nas fronteiras e limites entre o Bairro e a Cidade. As análises evidenciaram a necessidade do fortalecimento de uma visão plural e democrática do Direito que contribua para o fortalecimento dos sujeitos coletivos e sua capacidade infindável de inventar novos direitos e caminhar em direção ao Direito à Cidade”.

A mim, que participei da Banca e da Comissão da Capes que outorgou o prêmio, a tese não se revelou tão só uma expressão atualizada de um tema com o qual venho me envolvendo desde os começos dos anos 1980 (“Fundamentação Teórica do Direito de Moradia”, in Direito & Avesso. Boletim da Nova Escola Jurídica Brasileira, Ano I, n. 2, 1982), mas a constatação, primeiro incluída na pesquisa pioneira (Joaquim Falcão, Invasões Urbanas: Conflitos de Direitos de Propriedade), organizada a partir da Fundação Joaquim Nabuco, quando então já se identificavam as estratégias sociais de acesso à terra urbana traduzidas em demandas às institucionalidades e ao direito positivo legislado e exegeticamente adjudicado, na forma do discurso de legitimidade de um direito justo contra o formalismo de enquadramento dessa matéria no direito civil, no direito processual, no direito administrativo, no direito constitucional e até no direito internacional dos direitos humanos que, ao impulso dos novos movimentos sociais e de direitos achados na rua, insurgentes, abrindo ensejo à constituição de novos campos – o direito urbanístico, de novas formas de reconhecimento cogente em declarações (Habitat) e de um constitucionalismo achado na rua (Silva Junior, Gladstone Leonel da e Sousa Junior, José Geraldo de. O Constitucionalismo achado na rua – uma proposta de decolonização do Direito. Rev. Direito e Práxis., Rio de Janeiro, Vol. 08, N.4, 2017, p. 2882-2902).

Os anos seguintes foram pródigos na construção de um campo demarcado pela construção do chamado direito à cidade, num percurso de formulação de muitos instrumentos técnicos, jurídicos, políticos, institucionais demarcado pela organização do Instituto Pólis em São Paulo e sua importante revista de estudos em que cuja organização muitas referências contribuíram para o adensamento desse campo – Ana Amélia Silva, Raquel Rolnik, Nelson Saule Jr, Emília Maricato – servindo à metodologias de pesquisa, de formulação de políticas públicas e de modos de governar, de organizar assessorias jurídicas populares (lembrando  aqui o exercício genético e político dos Alfonsins – Jacques e Betânia -, culminando com o desenho que a Constituição de 1988 recepcionou, acolhendo as formulações dos movimentos sociais difundidos pelo país.

Encontro também na abordagem que desenvolvi em Prefácio para o Atlas sobre o Direito de Morar em Salvador (Elizabeth Santos, coordenação geral et al., Salvador: UFBA, Escola de Administração, CIAGS: Faculdade 2 de Julho, 2012), a condição ontológica a que já me referi, no campo do direito, para responder à tarefa de instrumentalizar as organizações populares para a criação de novos direitos e de novos instrumentos jurídicos de intervenção, num quadro de pluralismo jurídico e de interpelação ao sistema de justiça para abrir-se a outros modos de consideração do Direito (Fundamentação Teórica do Direito de Moradia, Direito e Avesso. Boletim da Nova Escola Jurídica Brasileira, Editora Nair, ano I, n. 2, Brasília, 1982; Um Direito Achado na Rua: o direito de morar, Introdução Crítica ao Direito, Série O Direito Achado na Rua, vol. 1, Brasília, Editora  UnB, 1987; com Alayde Sant’Anna, O Direito à Moradia, Revista Humanidades, Ano IV, n. 15, Brasília, Editora UnB, 1987; com Alexandre Bernardino Costa, orgs., Direito à Memória e à Moradia. Realização de direitos humanos pelo protagonismo social da comunidade do Acampamento da Telebrasília, Universidade de Brasília/Faculdade de Direito, Ministério da Justiça/Secretaria de Estado de Direitos Humanos, Brasília, 1998).

Elas dão base, seja enquanto processo para impulsionar a exigência de função social que a propriedade deve realizar, seja para ressignificar a semântica das lutas sociais por acesso à própria propriedade, descriminalizando o esbulho por meio da recusa a se deixar tipificar invasor e politizando o acesso com a retórica da ocupação, desde que atendendo à promessa constitucional de realizar reforma agrária e reforma urbana, tal como referiu referiu Ana Amélia Silva, aludindo  à “trajetória que implicou uma concepção renovada da prática de direito, tanto em termos teóricos quanto da criação de novas institucionalidades” (Cidadania, Conflitos e Agendas Sociais: das favelas urbanizadas aos fóruns internacionais, Tese de Doutorado apresentada ao Departamento de Sociologia da USP, São Paulo, 1996), consoante ao que indicou, nesse passo,  Eder Sader, quando este aponta para o protagonismo instituinte de espaços sociais instaurados pelos movimentos sociais com capacidade para constituir direitos em decorrência de processos sociais novos que passam a desenvolver (Quando Novos Personagens Entraram em Cena, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1995).

É desse modo que Adriana Lima fala de um “direito achado nos becos de Saramandaia em Salvador”, para inferir a luta pela cidade, a partir de incursões singelas que revelam o protagonismo cotidiano para inserir no social novas juridicidades. Aqui é “o direito de laje”, agora positivado e enfim adjudicado a partir de novas decisões judiciais abertas “à exigência do justo, inspiradas em teorias de sociedade e de justiça”. No caso, registre-se recente decisão do judiciário pernambucano, na qual o magistrado constata que casa construída na superfície superior à do pai da autora da ação, carrega a pretensão de aquisição da propriedade e se coaduna ao direito de laje, previsto no art. 1.510-A do Código Civil, incluído pela Lei n. 13.465/2017, que dispõe: “O proprietário de uma construção-base poderá ceder a superfície superior ou inferior de sua construção a fim de que o titular da laje mantenha unidade distinta daquela originalmente construída sobre o solo”.

Para o magistrado Rafael de Menezes, autor da sentença pioneira nesse reconhecimento, é “óbvio que o ideal na sociedade seria todos terem suas casas separadas e registradas, diante da importância da habitação para a dignidade do cidadão. Mas em face do déficit habitacional que existe no país, o legislador acertou em adaptar o direito a uma realidade social. A sociedade cria o fato pela necessidade, e cabe ao direito regulamentar em seguida. O direito é testemunha das transformações sociais, ele regula o que já existe. A sociedade precisa ter o protagonismo sobre o Estado, não o inverso”.

Para Osias, na favela do Vidigal, microssistema social inserido em uma lógica capitalista-neoliberal, as práticas legais identificadas estão relacionadas à busca da prevenção e repressão de conflitos sociais que possam colocar em risco a paz e harmonia sociais. Essas práticas jurídicas podem ser identificadas como pluralidade jurídica dentro da teoria da construção dialética do Direito à medida em que representam o Direito produzido por aquele a quem o mesmo será aplicado, é o Direito aplicado ao seu protagonista – o povo.

Nesse diapasão, o desafio é pensar a matriz jurídica a partir da construção social de maneira a alcançar o mais amplamente possível as demandas sociais. No que diz respeito às favelas, mesmo que de forma controversa, a positivação do denominado “direito de laje” mostra que é possível admitir a existência de um pluralismo jurídico em microssistemas sociais, o que no caso do Rio de Janeiro são as favelas. Soma-se a isso o fato de não existir registros de quaisquer demandas no Juizado Especial Criminal que abrange a área onde estão localizadas as favelas da Rocinha, Vidigal, Chácara do Céu, Tabajaras, Pavão, Pavãozinho e Chapéu Mangueira.

As práticas legais existentes no ambiente da favela, respeitados os direitos e garantias fundamentais, podem ser consideradas pluralismo jurídico uma vez que este, para sua existência, não depende necessariamente de mudanças na estrutura de poder e dominação. A dinâmica do pluralismo jurídico na favela do Vidigal produz, ainda, o efeito de proporcionar segurança jurídica às transações realizadas entre os moradores, além de promover a prevenção de violações à paz local.

O livro do professor Osias Pinto Peçanha vem agregar sentido e novidade aos estudos do campo. Trata-se de não se perder o impulso dialógico que o jurídico pode vir a conduzir, para que, lembra J. J. Gomes Canotilho (Direito Constitucional e Teoria da Constituição, Editora Almedina, Coimbra, 1998), não reste o direito “definitivamente prisioneiro de sua aridez formal e de seu conformismo político” e, deste modo, incapaz de abrir-se a outros modos de compreender as regras jurídicas e de alargar “o olhar vigilante das exigências do direito justo e amparadas num sistema de domínio político-democrático materialmente legitimado”.

É nesse passo, agora numa marcha em cuja andadura vem lhe trazer ritmo o trabalho de Osias Pinto Peçanha, com toda a novidade da subjetividade ativa que motivou sua investigação (participante), que se apreende a tônica desse impulso dialógico que o jurídico pode vir a conduzir, tal como se divisa no projeto O Direito Achado na Rua, exatamente quando se refere ao Direito Urbanístico (conferir nesse sentido Introdução crítica ao direito urbanístico [recurso eletrônico] / organizadoras e organizadores, José Geraldo de Sousa Junior… [et al.]. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2019. 496 p. – (Série O Direito Achado na Rua; vol. 9). Formato: PDF.     ISBN 978-85-230-0930-4. 1. Direito à cidade. 2. Movimentos sociais. 3. Direito urbanístico. I. Sousa Junior, José Geraldo de (org.). II. Série. CDU 34:711(81). Para acesso livre à obra, ver (https://livros.unb.br/index.php/portal/catalog/book/17). E sobre a publicação, aqui neste espaço Lido para Você: http://estadodedireito.com.br/introducao-critica-ao-direito-urbanistico/.

O que se tem é que O Direito Achado na Rua e o Direito Urbanístico se retroalimentam ao longo das suas trajetórias — seja por razões temporais, seja por razões territoriais —, pois é no espaço urbano que se verifica com mais intensidade a emergência de novos sujeitos coletivos capazes de reivindicar e produzir direitos no país.

 

 

 

 

 

 

 

José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil,  Professor Titular, da Universidade de Brasília,  Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua.

domingo, 19 de junho de 2022

Gritos da floresta: uma carta simples a Bruno Pereira e a Dom Phillips

 

Por Vannessa Carneiro

Brasília, Distrito Federal, Brasil, 19/06/2022. (Atualizada em 21/06/2022)

 

Professora do Núcleo de Estudos para a Paz e os Direitos Humanos (NEP), do Centro de Estudos Avançados Multidisciplinares (CEAM), da Universidade de Brasília – Brasil

Doutoranda do Programa “Human Rights in Contemporary Societies, do Centro de Estudos Sociais (CES), da Universidade de Coimbra – Portugal

 


Fonte: Vannessa Carneiro, 2022.


Escrevo com esta raiva e esta tristeza. Profunda.

 

Não trabalho com povos indígenas. Trabalho com Direitos Humanos, especificamente com o tema da Educação em Direitos Humanos. Mas, a última quarta-feira, dia 15 de junho, me atingiu bem no peito. Feriu minha alma. Me feriu, me doeu, me fez sangrar.

 

Me revoltou e agora sigo “apenas” triste. Triste e indignada. Sabendo que essa mesma revolta segue, e ainda seguirá perene, em muitos outros corações. Raiva e medo.

 

Duas pessoas que lutavam por seus sonhos, suas causas, suas paixões. Que viviam seus projetos de mundo. De um mundo melhor, mais justo. Assassinadas. Assassinadas, não: DESTRINCHADAS. Esquartejadas.

 

Entenderam!?

Es/ qua/r/ te/ jad/o/s...

 

Quer dizer: Desfaçelados. Desfarelados. Irreconhecíveis

(ou melhor, identificados somente pela arcada dentária).

 

Peças e partes de corpos mortos com munição de caça, parece que depois queimadas, enterradas e escondidas. Por, “ao que tudo indica” – para usar um vocabulário “neutro” –, três homens. Um pescador indicou o lugar dos corpos... Três pessoas que agiram sozinhas... Sem nenhuma orquestração?! Assim, tão bem premeditado?!

 

E como você (pessoalmente) se sente ao ler isso?

E como nós (como sociedade) nos sentimos ao viver isso?

 

CRUEL. DEGRADANTE. UM AVISO: O PRÓPRIO RECADO.

 

Não conheci Bruno Pereira, embora poderia ter acontecido. Moramos na mesma cidade, Brasília, compartilhamos amigos em comum... Vizinhos de quadra, colegas de trabalho. Suas crianças poderiam ter brincado com a minha filha em um dos nossos parques.

 

Não conheci Dom Phillips, embora seu compromisso e amor podem ser percebidos nas falas e nos olhos de duas mulheres; sua esposa e sua irmã. A esposa pediu que encontrassem com celeridade “o amor da sua vida”. E isso me abalou profundamente.

 

A perda de grandes amores

A perda dos/as filhos/as

A perda de pessoas que sonhavam

Um sonho de um novo mundo, de um outro mundo

A perda de protetores/guardiões da natureza, da Terra

Que defendiam, e que VIVIAM, o que acreditavam, o que amavam

Que simplesmente se entregaram e foram até as últimas consequências por acreditar que um outro mundo era necessário, urgente, possível...

 

Entretanto;

O céu cai.

O céu já caiu.

O céu continua caindo, novamente.

Numa iminência constante.

 

Mortes políticas, crimes políticos – que são esvaziados de sua politicidade, tratados como querelas pessoais. E o mundo segue perdendo sentido. Deixando para trás muitas/os outras/os. Tantas e muitas e outras. Diversas perdas irreparáveis.

 

Acabei de conversar ao telefone com um amigo do Ibama, que trabalhou com o Bruno. Ele me disse que o Bruno tinha uma agenda que:

 

Além de ser muito específica, é muito complexa, muito difícil, muito arriscada. Então, a pessoa tem que gostar, tem que entender, tem que ir lá para dentro. Ele era a última barreira entre os povos isolados, os que não querem contato, com esse avanço da pressão do garimpo, da caça, da madeira, [da pesca, do tráfico etc.]. Ele era a última barreira. Ele foi o cara que segurou até hoje esse contato. Esse embate. [...] Aí, agora sem ele, não tem essa pessoa. Até que daqui a vários anos tenha um concurso na Funai e entre alguém com a cabeça, com a coragem, com a determinação... É difícil. [...] É difícil achar uma pessoa assim, que deixa a família por uma causa, como ele.”

 

Para rebaixar, diminuir, descredibilizar, mentir. Apequenar, banalizar a situação, o fato.

Reduzi-lo (ou, paradoxalmente, expô-lo por ato falho) para mostrar talvez sua verdadeira dimensão: suas presenças, uma aventura não recomendada”. Realmente, descortinar verdades, não é recomendado.

 

O atual Chefe do Executivo segue à imprensa dizendo:

 

“[...] os dois resolveram entrar em uma área completamente inóspita, sozinhos, sem segurança, e aconteceu o problema...” ;

 

“[...] mas, por exemplo, esse inglês, ele era malvisto na região, porque ele fazia muita matéria contra garimpeiro [...]. Então, aquela região lá, não gostavam dele. Ele tinha que ter mais do que uma atenção redobrada para consigo próprio”;

 

“[...] é muito temerário você andar naquela região sem estar devidamente preparado, física, mente, e também com armamento”.

 

Dizer isso de:

Um compatriota, um cidadão do seu País, um funcionário público do seu Estado;

Um estrangeiro, um jornalista em plena investigação, um cidadão do mundo que tinha o direito inviolável de proteção à vida.

 

Questionado sobre os desaparecimentos específicos, retrucou: “Eu não sei ao certo, Leda, mas eu acho que em torno de 60 mil pessoas desaparecem no Brasil por ano...”.

 

Essa é a resposta do Chefe de Estado e de Governo. Mais uma vez, um discurso de ódio. Estupidez, maldade, falta de responsabilidade. Não penso aqui em apontar culpadas/os, apenas acredito ser importante pensarmos em responsáveis (por ação e omissão). E se entende por “responsável” mais do que a única, e principal, “responsabilidade” de lamentar... E continuamos a lamentar e a ignorar...

 

A posição da nota de luto oficial do Brasil, pela Funai, não menciona o repúdio vinculado à brutalidade dos crimes, não trata o caso como político, nem faz indicações ou dá sinais disso. Para, assim, podermos pensar/planejar/construir outras e novas medidas de monitoramento, de proteção, de denúncia e de defesa sobre o que acontece hoje no Vale do Javari (e em tantas outras terras indígenas).

 

Apenas ouço/leio/vejo sucateamento: cortes orçamentários, perseguição de funcionárias/os públicos, substituições/trocas e recorde de cargos vagos... E silêncio.

Desmonte, ampliação das infrações ambientais

Naturalização da falta de fiscalização e do crescimento do crime organizado

E satirização: desaparecimentos e mortes brutais acontecem todo dia e em todo Brasil...

 

ATÉ QUANDO????

 

Como Davi Kopenawa bem diz: o nosso mundo, o mundo dos brancos, dos napë, é o mundo das mercadorias, do consumo. Nossa sociedade é a sociedade da barganha. Tudo tem preço. A vida tem preço. As vidas têm seus preços.

 

Pergunto: Quantas vidas, quantos anos, quanto estudo, quanta técnica, quanta prática, quanta coragem e quanto amor vai levar para (não) substituirmos Bruno e Phillips?

 

Como esse meu amigo disse: realmente, é muito difícil de substituir. Mesmo sabendo que todas/os somos insubstituíveis. No caso deles, o tempo é ainda mais largo.

 

Domingo, dia 19 de junho, fui para rua – para o Eixão Norte –, participar de um ato simbólico de protesto in memoriam. Para não esquecer. Para não esquecermos.

 



Fonte: Vannessa Carneiro, 2022.

 

É essa a pedagogia da infâmia que temos o dever de denunciar. “Não gostavam dele...”; Por que mesmo?! Ah, deveriam estar armados e preparados física e psicologicamente...

Uma anedota no mínimo curiosa: incentiva-se o armamento da população, enquanto no caso de órgãos como a Funai o ideal é ter suas/seus agentes desarmadas/os.

 

Bem, esta dita “área completamente inóspita” – onde se é “muito temerário andar” e até agora sem errata ou pedido de desculpas –, não era um ambiente turístico, mas, sim, o palco da VIDA de alguém que vivia e lutava lá há pelo menos 10 anos. Que não só reconhecia a região muito bem, como também era muito bem reconhecido dentro dela. Liderava excursões de fiscalização, de proteção, de divulgação. Falava mais de quatro línguas nativas de lá. Servia como um guia e apoiador essencial de operações complexas dado seu profundo conhecimento. VIVIA A FLORESTA e cada curva de seu rio.

 

Bruno e Phillips sabiam de toda a “economia” ilegal que rondava aquele território. Sabiam e denunciavam. Denunciavam, por meio da Univaja – que segue, ao contrário do que a Polícia Federal (PF) alega preliminarmente, dizendo que o crime tem, sim, mandante: Organizações criminosas; donos do tráfico (cocaína, madeira, ouro/garimpo, pesca, caça ilegal etc.). Por isso, eram (e muitas/os ainda seguem sendo) ameaçados.

 

Segundo a Univaja, em distintos ofícios enviados a várias autoridades competentes: "Descrevemos nomes dos invasores, membros da organização criminosa, seus métodos de atuação, como entram e como saem da terra indígena, os ilícitos que levam, os tipos de embarcações que utilizam em suas atividades ilegais".

 

Junto com Bruno, perdemos uma importante camada/muro (do lado dos brancos, do poder do Estado – e não do Governo – e de outras instituições), que auxiliava a blindagem daquela parte da floresta contra o caos da fumaça dos seres das epidemias.

 

Junto com Dom Phillips, perdemos um olhar atento, comprometido e honesto pelo grito e pela denúncia ampla, para fora. Perdemos seu livro e todas as informações coletadas. Hoje minimizadas: um silenciamento compactuado, por meio de vistas grossas.

 

Como cidadã brasileira, mulher e mãe;

Que respeita e ama a Natureza

Que respeita e ama a Floresta

Que respeita e ama os Povos Indígenas

Que respeita e ama pessoas que lutam contra todos os tipos de injustiças e de barbáries

Não posso ficar sem me pronunciar e dizer que não é somente lamentável essas vidas tiradas... Lamentável é pró-forma...

 

É ULTRAJANTE, É INDIGNANTE, É REPULSIVO

Essas e tantas outras mortes.

 

E não me interessa saber quem matou, mas quem foi que mandou matar;

Como disse Sônia Guajajara: “Quem MANDOU MATAR?”

 

A quem beneficiou essas perdas? O que se pretendia esconder, acabar, dizimar?

Quem é conivente (tácita ou explicitamente) com esses assassinatos?

Quem compactua na teima em permanecer de olhos fechados?

Quem...?

 

Por cada indígena assassinada/o – Que segue RESISTINDO há mais de 500 anos, como diz Ailton Krenak

Por cada apoiadora/r branca/o morta/o

Por cada defensora/r da fauna, da flora,

A FLORESTA NÃO TEM PREÇO!

 

É essa a pedagogia da vida que quero construir e vindicar! A da revolta e a da raiva como um ato político necessário, sempre! Que mobiliza além. Como dizia Paulo Freire.

 

É essa a pedagogia da politicidade em cada ato social que escolhemos ter ou pontuar, nos posicionando sempre que necessário, sempre!

Que mostra de que lado estou. Pois, aqui há lados: pró-sistema (pró-banalização) ou anti. Não só neste caso injusto, mas em muitos outros casos.

 

É que, para mim, esse foi o pedaço que parou na garganta e que me fez gritar!

De dor, de inflamação, de indignação. Bruno e Phillips poderiam ser eu.

 

Mais do que “meus sentimentos” ou meu desejo de “conforto ao coração” das famílias. Minha resposta é:

EU REPUDIO ESSES ASSASSINATOS ESQUARTEJADOS! ME INSUBORDINO A ELES.

 

Seis homens da Polícia Federal, em Tabatinga, para uma fronteira de 8,6 milhões de hectares... Indicam-na como quase o tamanho de Portugal.

 

LACUNAS QUE FICAM PARA TODAS/OS E EM TODOS OS LADOS.

Fragmentos de partes e peças do tecido social: Famílias, sociedade, Estado.

 

Tragédias como essa que, com certeza, infelizmente, se repetirão... Sem dúvida.

Assassinatos de lideranças e/ou grandes especialistas que não cessam.

Mas que devem SIM acender nossa MEMÓRIA, nossa indignação; que devem sim nos INFLAMAR, nos MOBILIZAR para REPUDIAR tais fatos a cada momento em que ocorrem.

 

Nossa vontade de busca pela verdade e pela responsabilização

Nossa vontade da força coletiva, cada vez maior, para juntas/os gritarmos por justiças;

Legal, jurídica, social, econômica, cognitiva.

 

Não basta falar, mas, sim, fortalecer concretamente as lutas pessoais e coletivas. E a nossa certeza de que teremos, sim, que seguir cobrando, para sempre, e em qualquer Governo. Lembrando das vidas de antes, de hoje e de depois. E por isso a essencialidade de RESPONSABILIZAÇÃO e REPRESENTAÇÃO/REPRESENTATIVIDADE.

 

Os fatos estão aí. É “apenas” requerido olhar com os olhos “de ver”.

Mas, é tudo muito triste.

Pelas vidas dos que estão morrendo por um/neste sistema já morto.

  


Fonte: Vannessa Carneiro, 2022.

 

Fontes consultadas:

 

- Vídeos

https://www.youtube.com/watch?v=5lQxxUy4Eak

https://www.youtube.com/watch?v=6ER6sML1S2s

https://www.youtube.com/watch?v=7H4gvuRknko

https://www.youtube.com/watch?v=7pCU_ySw3II

https://www.youtube.com/watch?v=aUBz2oWfsek

https://www.youtube.com/watch?v=jkfJBSpjF48

https://www.youtube.com/watch?v=kfbOfaEbLm4

https://www.youtube.com/watch?v=Uy-c9EOB7bA

 

- Reportagens

https://alicenews.ces.uc.pt/index.php?lang=1&id=39285

https://www.correiobraziliense.com.br/brasil/2022/06/5015935-governo-perdeu-controle-da-regiao.html

https://www.metropoles.com/brasil/exclusivo-funai-retirou-armas-usadas-na-protecao-de-indigenas-no-vale-do-javari

https://www.inesc.org.br/fundacao-anti-indigena-um-retrato-da-funai-sob-o-governo-bolsonaro/

https://g1.globo.com/fato-ou-fake/noticia/2022/06/15/e-fake-que-bruno-e-dom-entraram-em-reserva-sem-nenhuma-autorizacao-da-funai-e-que-jornalista-era-financiado-por-bill-gates.ghtml

https://valor.globo.com/brasil/noticia/2022/06/15/foi-crime-poltico-diz-univaja-sobre-morte-de-bruno-e-dom.ghtml

https://infoamazonia.org/2022/06/16/entrevista-carlos-travassos-vale-do-javari/

https://g1.globo.com/am/amazonas/noticia/2022/06/17/univaja-contesta-pf-e-diz-que-pelado-e-irmao-fazem-parte-de-organizacao-criminosa-que-atua-no-vale-do-javari.ghtml

https://g1.globo.com/politica/noticia/2022/06/17/investigacao-aponta-que-nao-ha-mandante-por-tras-da-morte-de-bruno-pereira-e-dom-phillips-diz-pf.ghtml

https://www.em.com.br/app/noticia/nacional/2022/06/17/interna_nacional,1374104/dom-e-bruno-univaja-questiona-investigacao-de-assassinatos-pela-pf.shtml

https://www.acidadeon.com/ribeiraopreto/cotidiano/NOT,0,0,1778325,pericia-aponta-que-indigenista-bruno-pereira-foi-baleado-tres-vezes.aspx

 

*Último acesso em 21 de junho de 2022.