quarta-feira, 23 de fevereiro de 2022

 

DARCY. Revista de Jornalismo Científico e Cultural da Universidade de Brasília

Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito.

 

 

 

 

 

DARCY. Revista de Jornalismo Científico e Cultural da Universidade de Brasília. UnB/SECOM – Secretaria de Comunicação. Nº 26, outubro de 2021 a janeiro de 2022, 51 p. (https://revistadarcy.unb.br/images/PDF/darcy26.pdf)

 

                                                                                                                                                                                

 

            Já está circulando e é acessível livremente pelo Portal da UnB, na SECOM, o nº 26, da Revista Darcy, em edição comemorativa celebrando centenário de Paulo Freire, no contexto de manifestações de 60 anos da Universidade de Brasília (https://revistadarcy.unb.br/images/PDF/darcy26.pdf).

            Não fosse o conteúdo da edição totalmente de homenagem ao Patrono da Educação Brasileira, membro do Conselho Diretor da Fundação Universidade de Brasília na sua fundação e Doutor Honoris Causa da Universidade, o próprio nome da revista já bastaria para expressar o relevo que a UnB atribui a um dos maiores educadores contemporâneos.

            Com efeito, no que me diz respeito, a criação da Revista, ali pelos idos do jubileu da Universidade (2012, 50 anos), em meu reitorado, num projeto concebido pelos caríssimos colegas Luiz Gonzaga Motta e Ana Beatriz Magno (à época dirigentes da SECOM), atendia a uma razão simbólica que me levou a fixar no texto de abertura que mantive como Reitor em todos os números publicados em meu mandato: Porque Darcy.

                              

            Ali na edição nº 1 justifiquei, lembrando que no discurso que fez no Auditório Dois Candangos, em 16 de agosto de 1985, Darcy Ribeiro, fundador da universidade e inspirador desta revista, antecipou o que deve ser o espírito e a linha editorial de nossa nova publicação: o compromisso com o conhecimento e a disposição inquietante para divulgá-lo, levando em conta que “toda ideia é provisória e tem de ser posta em causa.” “Numa universidade,” ele dizia, “tudo é discutível.”

            E continuei: “Esse compromisso não deve, aliás, parecer óbvio. Valho-me novamente de Darcy para acentuar: o ofício do cientista é realizar “um procedimento de desvendamento a fim de revelar a obviedade do óbvio”, tal como indicou no texto célebre que abre o 1º volume da série Encontros com a Civilização Brasileira, a revista que resistiu ao obscurantismo dos anos 60 e ao paroxismo da censura.

            Esse compromisso, em uma universidade, é um processo de produção de sentidos, sob a forma de diferentes discursos que se articulam para dar conta do real e explicá-lo, valendose de saberes multi e transdisciplinares.

            Eduardo Lourenço, filósofo português, está certo ao articular filosofia e literatura na busca de um modo mais abrangente de conhecimento. Em Fernando Pessoa, objeto de estudo de Lourenço, só esse conhecimento dará conta dos aparentes fragmentos heterônimos do poeta. Para Lourenço, “os avatares de Pessoa representam, ao fim e ao cabo, a tentativa desesperada de se instalar no real.”

            No ano em que se comemora o bicentenário de Charles Darwin, Nikolai Gogol, Louis Braille, Edgar Allan Poe é bom ter em mente a disposição inquietante a que alude o antropólogo Darcy Ribeiro. E não perder de vista a consideração que nenhuma forma de conhecimento é, em si mesma, racional.

            Somente a integração entre todas elas – ou o seu diálogo – pode conduzir à racionalidade. Deixadas em seu isolamento localizado, cada forma de conhecer produz conhecimento e desconhecimento equivalente.

            Se esta revista Darcy puder ser esse espaço de diálogo possível entre saberes e se fazer galeria para o livre trânsito entre conhecimentos que possam se interligar, poderá se constituir numa expressão viva da utopia do fundador que homenageia e se tornar uma possibilidade de recriação, na UnB, da “universidade necessária” por ele projetada”.

            A nomeação, recebida com muito acolhimento, tinha em correspondência editorial o mesmo alcance simbólico que, na Fundação Getúlio Vargas, se reconheceu na Revista Getúlio, uma marca emblemática da tradicional instituição. Aliás, no número que inseri para essa visualização, compartilho a distinção que recebi como pauta central da publicação, ênfase para a contribuição que dei ao campo da educação jurídica, forte na GV:

                       

            Nessa edição especial (nº 26), as editoras da publicação Serena Veloso e Vanessa Vieira, em Cartas das Editoras, com o título Comunicando Ideias Democráticas e Emancipadoras, justificam e expõem o conteúdo da edição comemorativa:

Estávamos convencidos, e estamos, de que a contribuição a ser trazida pelo educador brasileiro à sua sociedade em ‘partejamento’ (…) haveria de ser a de uma educação crítica e criticizadora. (…) Uma educação que possibilitasse ao homem a discussão corajosa de sua problemática. De sua inserção nesta problemática.”

            A convicção de Paulo Freire em 1964, registrada na obra Educação como prática da liberdade, revela a atualidade de seu pensamento: em tempos de ameaça à pluralidade de ideias e ao debate democrático nos campos educacional, político e social, pensar práticas acadêmicas pautadas numa educação “crítica” e “libertária” é um dos principais desafios lançados às universidades.

            O Patrono da Educação Brasileira reuniu contribuições decisivas nessa missão, e a Darcy 26 resgata e faz pulsar seu legado. Endossando inúmeras iniciativas espalhadas mundo afora, bem como as atividades promovidas na Semana Universitária da UnB, este número celebra o centenário de nascimento do educador, datado em 19 de setembro de 2021. Parceria com a UnBTV repercute a temática com a série Memórias de Paulo Freire.

            Seguindo a proposição freiriana da construção do conhecimento com protagonismo dos aprendizes, Bianca Mingote, Isabel Nascimento e Robson Rodrigues – estudantes de Jornalismo da UnB – assumem, nesta edição, em parceria com jornalistas da Secretaria de Comunicação, a autoria das três reportagens constituintes do Dossiê (p. 18 a 39), com a tarefa de resgatar a memória e o legado do educador pernambucano.

            Retoma-se, assim, característica originária da revista: sua institucionalização no pilar extensionista. A partir do Projeto de Extensão da Revista Darcy, são consolidadas parcerias com escolas públicas de ensino médio do Distrito Federal para promover o diálogo sobre conteúdo da revista e estimular seu uso como material paradidático. A Darcy avança, portanto, em sua missão de democratizar o acesso ao conhecimento científico e fortalecer pontes com a sociedade.

            Sob a curadoria da fotógrafa Anastácia Vaz, memórias do trabalho do pedagogo ilustram o Ensaio Visual (p. 42), dedicado à releitura de registros da experiência pioneira com o Método Paulo Freire de alfabetização, em 1963, na cidade de Angicos, no Rio Grande do Norte. As premissas pedagógicas da iniciativa são assunto da A última flor (p. 50), apresentadas pela revisora Vanessa Tavares, que aborda as diferenças entre letramento e alfabetização.

            A reportagem Assédio se combate a todo momento (p. 12), da jornalista Thaíse Torres, mostra que o fortalecimento do diálogo e do respeito no convívio coletivo, temática cara ao pedagogo, segue norteando a atuação da UnB.

            É também na busca por diálogo e respeito que publicamos a Darcy 26, compartilhando informação de qualidade como recurso contra notícias falsas que fomentam ataques ao legado do educador. Revisitando suas ideias, acreditamos que a comunicação, assim como a educação, ‘não pode temer o debate’”.

            Também ponho em relevo o texto da Reitora Márcia Abrhão que tem se distinguido em imprimir a sua gestão da UnB, os enunciados e os valores freireanos, como se percebe em seu programa e na sua escrita confirmando, título de seu depoimento (Seção Diálogos), que Freire Está Entre Nós:

Nesta edição da revista Darcy que homenageia Paulo Freire em seu centenário de nascimento, a Universidade de Brasília tem a certeza de que as lições do Patrono da Educação Brasileira são eternas. E esse aprendizado faz parte da existência da UnB desde o seu nascimento, há quase 60 anos. Temos compromisso com uma formação crítica e humana. Não nos basta pensar apenas dentro da gaveta da atuação profissional. A autonomia da Universidade é também a autonomia cidadã dos nossos estudantes.

            Em seu campo de extensão, a UnB sabe que deve valorizar os saberes das populações com as quais dialoga. A vida prática das comunidades nos importa. E a Universidade não se coloca como detentora unilateral do conhecimento. A Universidade também entende a dimensão da pesquisa como aliada incontornável do ensino.

            Reconhecidamente inclusiva, a UnB acredita na excelência acadêmica construída com todos os aspectos sociais particulares ao país em que vivemos, à nação em que estamos inseridos. A oferta de irrestrita educação pública de qualidade é uma premissa com a qual trabalhamos no cotidiano institucional.

            A UnB está engajada em trazer para dentro dos seus campi as populações historicamente excluídas do processo educacional. Isso aparece de maneira evidente nos diversos processos de seleção e ingresso na Universidade destinados a preencher vagas por cotas para grupos específicos. Negros, estudantes vindos da escola pública, indígenas, quilombolas e demais povos originários.

            Se é preciso dar o exemplo, a UnB apresenta seu pioneirismo. Universidade necessária para chamar a atenção do país para sua diversidade. Universidade atuante para colocar em debate os temas mais importantes para pensar o país – passado, presente e futuro.

            A Universidade convoca a consciência crítica de todos e de cada um. Estamos de acordo com Paulo Freire na visão de que o papel do educador está na troca, e não na imposição de cima para baixo, para não incidir no que chama de “consciência bancária” ou incentivar a manutenção de uma “consciência ingênua”.

            A UnB é lugar de transformação da realidade. “Na medida em que os homens, dentro de sua sociedade, vão respondendo aos desafios do mundo, vão temporalizando os espaços geográficos e vão fazendo história pela sua própria atividade criadora”, escreve Paulo Freire no livro Educação e mudança.

            Os espaços da Universidade estão abertos à reflexão, ao debate, a argumentos e contra-argumentos, ao consenso e ao dissenso. Sempre com ética e estética, o ensino superior também não pode ser apenas “transferência de conhecimento”, sem dúvida. O jogo proposto pela prática da “pedagogia da autonomia” diz respeito a todos nós.

            Um dos nossos maiores orgulhos é ver a força e a intensidade crítica dos egressos, que não se curvam com facilidade a exigências injustas do mercado de trabalho e são capazes de tomar decisões que levam em conta efeitos sobre toda a sociedade. O estudante da UnB carrega a marca do comprometimento coletivo.

            Paulo Freire é nosso aliado por uma educação cada vez melhor e mais inclusiva. Docentes, discentes e técnicos se irmanam progressivamente na atuação acadêmica cotidiana e se expressam em voz alta na esperança de um futuro de liberdade plena, dentro e fora, com seriedade, solidariedade e “amorosidade”, para lembrar termos caros a Freire e imprescindíveis ao convívio universitário.

            Vida longa, linda e livre ao inestimável legado de Paulo Freire”.

            Tive a alegria de participar da edição, a partir de entrevista que concedi para os redatores, afinal vertida para matéria de Isabel Dourado e Vanessa Vieira, com ilustrações de Francisco George Lopes, que compõe as páginas 28 a 33 da edição.

            A matéria forma o Dossiê crítico-interpretativo da edição. O meu depoimento, juntamente com os de meus colegas Renato Hilário dos Reis, Venício Lima, Francisco Thiago da Silva, se prestaram a apoiar a redação do dossiê por suas autoras, rastreando a formação do pensamento e da prática do grande educador até as contribuições atuais que se projetam de suas concepções.

            A dimensão emancipadora está presente na filosofia de Paulo Freire desde suas primeiras grandes obras. É o caso do ensaio Educação como prática de liberdade, publicado em 1967, durante seu exílio no Chile. Nele, o educador sinaliza para uma práxis educativa voltada à justiça social e aos direitos humanos.

            “O projeto de Paulo Freire era a fundamentação de um Direito Achado na Rua, o direito que traduz a dimensão autônoma da pedagogia como formação da cidadania e do emancipar-se”, declara José Geraldo de Sousa Junior, docente da Faculdade de Direito da UnB e referência no Direito Achado na Rua – concepção teórica que embasa noções de Direito em conceitos como liberdade e emancipação.

            Na visão do professor, a filosofia freiriana diferencia-se pela busca da autonomia dos sujeitos e por ter como núcleo da educação a dimensão conscientizadora. “A metodologia dele leva em conta abrir a consciência dos subalternos para que eles se deem conta das opressões que reduzem sua dignidade e se organizem politicamente para transformar a realidade, autonomizar-se e tornar-se sujeitos”. (p. 30)

            Cuidei de fixar esse posicionamento em minha leitura de Direitos Humanos e Educação Libertadora: Gestão Democrática da Educação Pública na Cidade de São Paulo. Paulo Freire. Organização e Notas de Ana Maria Araújo Freire e Erasto Fortes Mendonça. 1ª edição. Rio de Janeiro/São Paulo: Paz e Terra, 2019 (http://estadodedireito.com.br/direitos-humanos-e-educacao-libertadora/).

            E o fiz no sentido de acolher com Nair Heloisa Bicalho de Sousa, motivada pela leitura de Nita Freire em aludir à “pedagogia dos direitos humanos” como proposta freireana de “inserção crítica dos homens e das mulheres nas suas sociedades ao possibilitar-lhes terem voz, dizerem a sua palavra, biografarem-se (FREIRE, Ana Maria Araújo (Nita Freire). Acesso à Justiça e a Pedagogia dos Vulneráveis. In SOUSA JUNIOR, José Geraldo de et al. Organizador. Introdução Crítica ao Direito à Comunicação e à Informação. Série O Direito Achado na Rua, vol. 8. Brasília: FAC/UnB Livros, 2017, p. 69-77), ser esse processo uma base consistente, apta a constituir um programa de educação em e para os direitos humanos e a orientar a “construção de saberes, práticas pedagógicas e metodologias participativas da educação em direitos humanos” (cf. Retrospectiva Histórica e Concepções da Educação em e para os Direitos Humanos. In PULINO, Lúcia Helena Zabotto et al. (Orgs). Educação em e para os Direitos Humanos. Biblioteca Educação, Diversidade Cultural e Direitos Humanos volume II. Brasília: Paralelo 15, 2016, p. 73-124).

            Também ao contribuir, a convite de Nita Freire, para o livro comemorativo Testamento da presença de Paulo Freire, o educador do Brasil. Depoimentos e testemunhos. Ana Maria Araújo Freire (org). Vários Autores. São Paulo: 1ª Ed. Editora         Paz & Terra, 2021 (http://estadodedireito.com.br/testamento-da-presenca-de-paulo-freire-o-educador-do-brasil-depoimentos-e-testemunhos/).

            Voltando à matéria do dossiê, nesse nº 26, encontro que “As décadas transcorridas desde a publicação das principais obras de Freire não diminuíram a atualidade de seu pensamento, presente, por exemplo, em programas nacionais de educação, como o Brasil Alfabetizado, que visa a superação do analfabetismo entre jovens, adultos e idosos. Apesar da repercussão em iniciativas governamentais, José Geraldo avalia que o Brasil ainda não atingiu uma educação democrática e igualitária.

            Nossa sociedade não venceu os limites de hierarquia que se estruturam sobre as formas dramáticas de exclusão. Não se emancipou disso. Basta ver o debate atual com uma retomada das modelagens neoliberais e de hostilidade à cultura.

            Há muita oposição ao pensamento crítico, que é o pensamento da educação para a emancipação”, avalia ele, que é também pesquisador em direitos humanos e cidadania. No modelo atual, “a educação é, de certo modo, adestramento, conformismo e não autonomia”, aponta o docente. Já a concepção freiriana seria, em sua visão, um “horizonte utópico”, mas que, por meio das “lutas sociais por emancipação”, pode mover a sociedade a buscar “uma educação apta a transformar as estruturas de alienação”.

            Na opinião do educador Renato Hilário, “o paradigma tradicional de educação, nas reflexões de Freire, reflete a sociedade opressora e preconiza uma cultura pautada no silêncio”. Ele acredita que a educação atual deveria “seguir a concepção freiriana de diálogo, na qual os alunos buscam debater com autores, criar uma opinião própria e com caráter crítico”.

            Venício Lima destaca que “Paulo Freire foi, acima de tudo, um grande humanista” e um “homem de profunda fé”. Para ele, com o avanço de “uma cultura de ódio e de intolerância no mundo atual”, o educador “tem uma imensa contribuição desse humanismo fundado no amor e na crença no outro”, que é a marca mais profunda de seu pensamento e sua obra. (p. 33).

            Não sem razão concluo, voltando ao meu depoimento, na obra – Direitos Humanos e Educação Libertadora em Paulo Freire – para dizer que essa perspectiva, indicada no título de meu texto, é uma apreensão forte que pode se encontrar entre Paulo Freire, de uma ligação entre educação, justiça, direito e direitos humanos, que não seja apenas uma evocação de sua originária formação em Direito, depois de um rápido ensaio inicial na advocacia.

            Essa ligação foi desde logo estabelecida por Nita Freire. É dela a leitura que desvela uma “pedagogia dos direitos humanos” como proposta freireana de “inserção crítica dos homens e das mulheres nas suas sociedades ao possibilitar-lhes terem voz, dizerem a sua palavra, biografarem-se” (FREIRE, Ana Maria Araújo (Nita Freire). Acesso à Justiça e a Pedagogia dos Vulneráveis. In SOUSA JUNIOR, José Geraldo de et al. Organizador. Introdução Crítica ao Direito à Comunicação e à Informação. Série O Direito Achado na Rua, vol. 8. Brasília: FAC/UnB Livros, 2017).

 

 

 

José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil,  Professor Titular, da Universidade de Brasília,  Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua.

quinta-feira, 17 de fevereiro de 2022

 

Darcy Ribeiro, a UnB e o constitucionalismo achado na rua*            

Antonio Carlos Bigonha

 

Darcy Ribeiro nasceu em Montes Claros, Minas Gerais, em 26 de outubro de 1922. Graduou-se pela Escola de Sociologia Política de São Paulo e especializou-se em antropologia sob a orientação de Herbert Baldus. O seu centenário coincide com os 60 anos da Universidade de Brasília, instituição que concebeu, ao lado de Anísio Teixeira, durante o governo do presidente Juscelino Kubitschek. Foi o seu primeiro reitor, desde a inauguração, em 1962, até junho de 1963.  A UnB deveria, segundo seu traço original, pensar o Brasil como problema, uma universidade-semente capaz de elaborar um projeto de desenvolvimento para o País. A vocação da UnB, nesta perspectiva, era romper o marasmo de nossa elite cultural, historicamente servil às classes dominantes.

 

Veio o Golpe de 1964, com a interdição da utopia, e todos sabem os seus desdobramentos. Primeiramente, a prisão, o pernoite e a humilhação de professores em uma delegacia de Brasília. Depois a perseguição de estudantes e a destruição do Instituto de Teologia Católica. Criado por Darcy para vencer a resistência da Igreja a uma universidade laica na Capital, sua instalação no campus fora resultado das tratativas que empreendera diretamente com o Papa João XXIII. O fechamento truculento pelos militares foi ao mesmo tempo físico e simbólico: o prédio, uma das mais belas obras que Oscar Niemeyer desenhara para o campus da UnB, foi brutalmente incendiado pelas forças da ditadura. Nada poderia soar mais comunista do que católicos despertos para suas responsabilidades sociais.

 

A retomada democrática da UnB viria duas décadas mais tarde sob as mãos de Cristovam Buarque, eleito pela comunidade acadêmica.  Em agosto de 1985, presente na solenidade de posse do novo reitor, Darcy, então vice-governador do Rio de Janeiro no governo de Leonel Brizola, conclamava Cristovam ao retorno à utopia de uma universidade experimental, livre para tentar novos caminhos na pesquisa e no ensino. Em 1995, senador pelo Rio de Janeiro, compareceria novamente à UnB, desta vez para receber o título de doutor honoris causa e para ser homenageado com a nova denominação do principal assento territorial da universidade, que passaria a se chamar Campus Darcy Ribeiro. A gratidão levou-o a afirmar, em suas Confissões, que, embora tivesse recebido títulos semelhantes de grandes instituições pelo mundo, nada o comovera tanto quanto o batismo do próprio campus com o seu nome, na gestão do reitor João Cláudio Todorov.

 

O jurista baiano Antônio Luiz Machado Neto foi, na década de 1960, um dos subscritores do projeto conceitual da UnB, ao lado de Darcy Ribeiro e Anísio Teixeira. Coube-lhe a implementação didática da disciplina Teoria Geral do Direito, com a missão de elevá-la aos padrões internacionais de cultura. Crítico do pensamento jurídico tradicional, então identificado com o positivismo lógico de Hans Kelsen, Machado Neto propunha uma nova abordagem hermenêutica, menos centrada na objetividade da norma jurídica e mais focada na conduta humana, em uma perspectiva intersubjetiva. Foi demitido dos quadros da Universidade em outubro de 1965, junto a outros 14 professores, entre eles o jovem Sepúlveda Pertence. Desencadeou-se uma onda de protestos que culminou com o desligamento em massa de 223 dos 305 docentes: o dia da diáspora.

 

Quando ingressei na Universidade de Brasília, no ano de 1983, o curso de Direito era ainda um departamento da Faculdade de Estudos Sociais Aplicados. Nosso reitor era o capitão-de-mar-e-guerra José Carlos de Almeida Azevedo. A dogmática jurídica estava de tal modo arraigada em nosso currículo que não era raro, em alguma aula de teoria geral, alguém exemplificar uma relação jurídica a partir da cosmogonia de Adão e Eva. A noção kelseniana de Direito, como sistema de normas dotado de sanção e coação pelo Estado, era repetida quase como um mantra por professores e alunos. Neste contexto, a obra “O que é Direito”, de Roberto Lyra Filho, professor do nosso Departamento, lançada em 1982 pela Editora Brasiliense como parte da Coleção Primeiros Passos, repercutia na paisagem acadêmica como um oásis a possibilitar uma reflexão crítica da teoria jurídica, condizente com o ambiente universitário que não deveria restringir-se ao mero adestramento técnico do corpo discente.

 

O Direito Achado na Rua, fruto da virada conceitual anunciada há 40 anos por Roberto Lyra Filho nesses Primeiros Passos, consolidou-se, a partir de então, como espaço crítico indissociável do processo de redemocratização que culminaria com a Constituição de 1988. Boaventura de Sousa Santos afirma que, nesta nova perspectiva, o Direito é reconhecido não apenas como aquele que existe nos tribunais, mas é também o que as populações cultivam, criam, produzem, reproduzem nas suas comunidades, seja nas comunidades ribeirinhas, urbanas, rurais, seja nas periferias, nos povos indígenas, no mundo Quilombola. O que evidencia a proximidade entre a expressão cunhada por Lyra Filho e as epistemologias do sul de que nos fala Sousa Santos.

 

Passados trinta anos da publicação de  “Introdução Crítica ao Direito”, no primeiro volume da coleção O Direito Achado na Rua, cuja apresentação coube a José Geraldo de Souza Júnior, esta nova escola institucionalizou-se em programas de mestrado e doutorado da Faculdade de Direito e do Centro de Estudos Avançados Multidisciplinares e em disciplinas na graduação e na pós-graduação em Direito da UnB. Além de constituir linha de pesquisa certificada pela Plataforma Lattes do CNPq. O Golpe de 64 não foi capaz de deter a retomada da consciência jurídica nacional que, no caso da Universidade de Brasília, brotou novamente como uma flor na pedra. Mas, como dizem os poetas, nem tudo são flores.

 

As academias de Direito, públicas e privadas, adotaram, desde o advento da nova ordem democrática, uma visão do constitucionalismo hodierno que se tornou uma forma aprimorada de positivismo, como alerta Luiz Moreira, para o monopólio da normatividade e submissão das demais disciplinas à sua formalização. Os critérios principiológicos abertos na interpretação constitucional, segundo Moreira, conduziram praticamente ao esvaziamento dos resultados obtidos pela atividade política e pela atividade parlamentar constituinte, cuja legitimação proveio diretamente da soberania popular. Um truque hermenêutico que possibilitou aos juízes e aos promotores subjugar a democracia, malgrado sejam agentes públicos imunes ao sufrágio crítico das urnas, instaurando em todo o sistema uma grave crise de legitimidade.

 

Em suas Confissões Darcy Ribeiro descreve em detalhes as discussões que travou com o procurador da República “Manes” quando esteve preso em um batalhão do Exército. Em longos interrogatórios realizados na presença de seu advogado, Darcy apelava para o senso de Justiça de seu carrasco, na tentativa de demovê-lo do compromisso com a acusação sistemática, formulada para agradar ao  governo ditatorial. Os militares, entre as múltiplas imputações de subversão, não o perdoavam pelo que havia feito na Universidade: seu crime maior era ter reunido na UnB intelectuais capazes de pensar o Brasil com independência. O estatuto da magistratura foi estendido ao Ministério Público pela Assembleia Nacional Constituinte para evitar que cenas deploráveis como esta se repetissem na vigência da Constituição de 1988.

 

A interpretação constitucional que setores retrógrados da magistratura e do Ministério Público adotaram para o exercício arbitrário de suas prerrogativas e atribuições, ao longo dos últimos 30 anos, faria corar monges de mármore, para usar uma expressão muito referida pelo ministro Gilmar Mendes, em sessões de julgamento no STF. Desconheço em que fonte foram beber seu fundamento teórico, fruto talvez de uma corrupção semântica, resultado da leitura equivocada da matriz germânica ou estadunidense. Neste contexto, o Direito Achado na Rua afirma-se como um poderoso vetor hermenêutico, uma abertura capaz de barrar os exageros do neoconstitucionalismo e oferecer novas epistemologias que conduzam à interpretação da Constituição e das leis do País para a afirmação e o fortalecimento dos direitos humanos, segundo uma agenda comprometida com os interesses do nosso povo. E ouso supor que Darcy Ribeiro e Machado Neto subscreveriam, novamente, esta virada hermenêutica.

*Artigo originalmente publicado em IREE, Instituto para Reforma das Relações entre Estado e Empresa (https://iree.org.br/darcy-ribeiro-a-unb-e-o-constitucionalismo-achado-na-rua/).

Antonio Carlos Bigonha
Compositor, pianista e Subprocurador-Geral da República

quarta-feira, 16 de fevereiro de 2022

 

Direito do Trabalho: Uma Introdução Político-Jurídica

Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito.

 

 

 

 

Renata Queiroz Dutra. Direito do Trabalho: Uma Introdução Político-Jurídica. Belo Horizonte: RTM, 2021, 159 p.

                           

            No Prefácio dessa obra, escrito pela Professora Isabela Fadul de Oliveira, da Faculdade de Direito da UFBA, Líder do Grupo de Pesquisa “Transformações do Trabalho, Democracia e Proteção Social” (UFBA), espaço originário de qualificação de Renata Queiroz Dutra, diz sua subscritora que mais que uma obra sobre o Direito do Trabalho, trata-se, especificamente, de “um livro que tem o propósito de aproximar, introduzir, servir de ponte para um campo da regulação da vida social que ganha complexidade em razão das significativas mudanças no padrão de organização do capitalismo e do trabalho assalariado. Mudanças estas que põe em xeque a própria natureza autônoma deste ramo do direito. Daí que enfrentar o desafio de fazer ponte e construir diálogo em tempos de ruínas é também expressão de coragem, criatividade e perseverança, qualidades que sobram à autora desta obra, no exercício da sua profissão de educadora, pesquisadora e militante na área jurídico-trabalhista. Vale lembrar ainda que no Brasil, a Pandemia alcançou a comunidade acadêmica jurídica ao mesmo tempo em que novas diretrizes curriculares foram aprovadas nacionalmente para os cursos de graduação em Direito e estavam em vias de implementação nas diversas instituições de ensino superior do país”.

            A Professora prefaciadora ainda acrescenta, que o “livro de Renata Dutra é escrito quando todos nós, professores de direito, fomos desafiados lidar com velhos e novos problemas pedagógicos: improviso dos recursos digitais, a dificuldade de interação do ensino não-presencial, a sobrecarga do trabalho em regime de home office, as limitações dos nossos repertórios didáticos. Assim, ao mesmo tempo em que sistematiza um conjunto de reflexões trabalhadas nos seus anos de docência nas turmas de Legislação Social e Direito do Trabalho, também pode ser visto como um relevante material didático de apoio ao manejo dos conteúdos programáticos da área trabalhista”.

O Prefácio põe em relevo o que a Autora explica na sua apresentação, que “sua escrita é guiada pelas indagações comumente presentes na sala de aula: por que proteger? E a resposta a esta pergunta é dada em cada um dos dez capítulos que integra a obra, que abarca o conjunto de conteúdos usualmente presentes nos programas das disciplinas trabalhistas que integram os currículos dos cursos jurídicos. Neles, temas chaves do direito do trabalho são apresentados e discutidos com as ferramentas da teoria crítica do direito, em que os problemas jurídicos são enfrentados na sua complexidade, parametrizados por uma abordagem que reconhece o Direito enquanto espaço de disputa e não como um conjunto de normas e procedimentos para a solução dos conflitos trabalhistas”.

E, com base na disposição da própria Autora, salienta que “já nos primeiros capítulos, a questão social do trabalho é localizada como central na conformação da vida em sociedade e nas suas disputas políticas. E neste contexto a proteção social, fundada em preceitos internacionais e constitucionais comprometidos com a justiça e a diminuição da desigualdade, é entendida como uma construção político-jurídica necessária ao enfrentamento das opressões de gênero, raça e classe, historicamente presentes na sociedade brasileira e no seu sistema de relações de trabalho. Ao afirmar a centralidade do trabalho na sociedade, Renata reivindica um horizonte jurídico em que o direito do trabalho assume centralidade na disputa pelo padrão de regulação social, baseado em mecanismos normativos antirracistas e feministas de proteção contra a exploração do trabalho humano”.

Posso ratificar essa disposição, por ter acompanhado os estudos avançados de Renata, notadamente na etapa doutoral, na Universidade de Brasília, na qualificação e na defesa de sua tese, já publicada (Trabalho, regulação e cidadania : a dialética da regulação social do trabalho / Renata Queiroz Dutra. — São Paulo : LTr, 2018).

Desde aí, a Autora, estudando a dialética da regulação e os desafios para a concretização da centralidade do trabalho protegido para os operadores de telemarketing, voltava a observação sensível sobre  a (in)efetividade dos direitos sociais laborais e das complexas ações e reações que tal realidade de precarização engendra na esfera da regulação no contexto da reestruturação produtiva e de uma racionalidade neoliberal, atenta à discussão corrente sobre a regulação social do trabalho, a partir da perspectiva dos sujeitos que integram as dinâmicas regulatórias. A tese, em suma, cuidou do mapeamento das fragilidades e contradições dos processos de regulação do trabalho sob o paradigma constitucional, para “propor uma nova compreensão do sistema de regulação social do trabalho, por meio de uma releitura de seus sujeitos e objeto, concernidos ao paradigma constitucional do Estado Democrático de Direito e sob o prisma da ideia de cidadania”.

Vê-se, assim, que desde esses estudos de formação, constituídos no rigor acadêmico em sentido epistemológico-metodológico, Renata já inseria em sua abordagem analítica o arranque político-jurídico que traz agora para seus ensaios empírico-teóricos nesse Direito do Trabalho: Uma Introdução Político-Jurídica. São 10 ensaios, distribuídos em capítulos: 1. Por que uma introdução político-jurídica ao estudo do direito do trabalho?; 2. A centralidade do trabalho e seus desdobramentos; 3. A regulação do trabalho no capitalismo e ‘a grande transformação’; 4. Sujeitos coletivos: a força e a potência subversiva das organizações dos trabalhadores; 5. Paradigmas jurídicos em transformação; 6. O contrato como forma jurídica para o capital e o contrato de trabalho: entre contradições e possibilidades; 7. Trabalho humano e subjetividade: a delicada tessitura das trocas reguladas pelo direito do trabalho; 8. Direito de trabalho e democracia: diálogo social, negociação coletiva e cidadania no trabalho; 9. Direito do trabalho na periferia do capital: escravidão, informalidade e delinquência patronal; 10. Direito do trabalho e crise: neoliberalismo, ruptura e reinvenção.

São temas que galvanizam o engajamento da Autora, não apenas em sentido intelectual, a que responde com maestria, mas no sentido político, mobilizada num ativismo que a faz capaz de elaborar as agendas urgentes que a conjuntura pede nesse campo, e que a erige em protagonista nos espaços estratégicos que ocupa: REMIR – Rede de Estudos e Monitoramento Interdisciplinar da Reforma Trabalhista; RENAPEDTS – Rede Nacional de Grupos de Pesquisa em Direito do Trabalho e Previdência Social e por último a ABET – Associação Brasileira de Estudos do Trabalho, para a qual foi eleita presidenta para o biênio 2022-2023.

Os temas que Renata Dutra trabalha em seu livro, são interperlantes para que, no Brasil, a exemplo do que está a se passar em outros espaços no mundo, se organizem as forças sociais para a necessária reversão das perdas de direitos e sobretudo dos direitos trabalhistas, escopo da agenda neoliberal desdemocratizante e desconstituinte que se impantou no país. É o que, por exemplo, indica João Gabriel Lopes, advogado, coordenador da Unidade Salvador do escritório Mauro Menezes & Advogados e mestre em Direito, Estado e Constituição pela Universidade de Brasília – UnB, ele escreve, “Diante do fracasso das políticas implantadas desde 2017 no Brasil, é indispensável que se pensem estratégias de reversão da perda de direitos, ampliando a participação dos trabalhadores na renda nacional” (https://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/615981-a-necessaria-reversao-da-perda-dos-direitos-trabalhistas-no-brasil).

São tomadas de posição, que desde o momento constituinte brasileiro instaurado com a processo de redemocratização depois do período de exceção implantado com o Golpe de 1964, apontam para o protagonismo dos movimentos sociais, populares e sindicais que definiram o projeto de sociedade desenhado na Constituição de 1988.

Na Introdução do volume 2, da Série O Direito Achado na Rua: Introdução Crítica ao Direito do Trabalho, Roberto A. R. de Aguiar e eu, que o organizamos, procuramos convocar um coletivo crítico de pesquisadores e de militantes, motivados por essa perspectiva: “o Direito do Trabalho não pode ser estudado ou praticado sem a constante interligação com o todo social. Isso significa a necessidade de ser abordado de forma interdisciplinar, pois a relação de trabalho é histórica, econômica, cultural, antropológica, psicológica e sobretudo política. Sem a construção de pontes com as ciências que tratam dessas facetas do fenômeno humano corre-se o risco de um reducionismo empobrecedor, que só servirá para enfraquecer a constante busca de relações de trabalho mais livres, mais justas e socialmente mais distributivas em termos de retribuição de salário e acesso aos produtos”.

Avancei um pouco mais na problematização dessas questões, de modo interrogante, quando fui chamado a contribuir para uma obra de celebração da Constituição Comentários Críticos à Constituição da República Federativa do Brasil. Gabriela Barreto de Sá, Maíra Zapater, Salah H. Khaled Jr, Silvio Luiz de Almeida (Coordenadores); Brenno Tardelli (Organizador). São Paulo: Editora Jandaíra (Carta Capital), 2020,  com comentário ao artigo 6º da Constituição, a que dei o título de “Direitos Sociais sob Ameaça de Retrocesso?” (conferir a respeito em http://estadodedireito.com.br/comentarios-criticos-a-constituicao-da-republica-federativa-do-brasil/).

 Num tempo de globalização econômica, de permanente revolução tecnológica, em que a criação de emprego e o próprio emprego perdem, aparentemente, o seu vínculo finalístico com o processo de criação social de riqueza, a ideia do trabalho como centralidade do sistema de produção e eixo da solidariedade democrática, passou a ser uma ideia vulnerável.

O trabalho havia sido, durante a construção da modernidade capitalista e do consenso liberal, o fator ético do próprio contrato social e a condição de acesso à cidadania e aos direitos. De fato, ao longo do século XIX e durante a segunda metade do século XX, as lutas operárias se constituíram um catalisador de conquistas sociais e o protesto operário foi, em grande parte, o garantidor da universalização de direitos civis e políticos e de conquista de novos direitos, não somente vinculados ao mundo do trabalho, mas também econômicos e sociais. Não apenas específicos para os coletivos de trabalhadores, mas universalizáveis, na sua expressão própria de direitos humanos.

Num sistema de produção e distribuição da riqueza social globalizados, com mercados livres de controles e com tecnologias que criam riquezas, mas não empregos, o trabalho entrou num nível de segmentação e de fragilização organizativa, comprimido num sistema regulatório que o fragiliza e enfraquece suas formas de organização. Estas condições, diz Boaventura de Sousa Santos, levam a uma lógica de exclusão, facilitada por mecanismos lenientes de flexibilização de garantias, levando a que, em muitos países, a maioria dos trabalhadores entrem no mercado de trabalho já desprovidos de qualquer direito.

Por essa razão, Boaventura de Sousa Santos indica que o direito e a redescoberta democrática do mundo do trabalho são fatores cruciais para a construção de novas sociabilidades, resgatando a globalização para a solidariedade e a produção da riqueza social para uma lógica de distribuição inclusiva.

É claro que essa tarefa não se realiza sem se conceber círculos amplos de alternativas e de estratégias, como por exemplo, o Fórum Social Mundial, realizado em Porto Alegre, e a sua projeção para um novo mundo possível. Mas não se realiza, também, sem um repensar das estratégias sindicais, mais politizadas na configuração de seus antagonismos sociais, mais conscientes do alcance internacional de suas reivindicações, mais engajadas na condição civilizatória das lutas que devam ser travadas por um mundo melhor, no qual, como diz Sousa Santos, nada que tenha a ver com a vida dos trabalhadores, mas também dos que não são trabalhadores de outros grupos ou movimentos sociais, seja deixado de fora de sua pauta de direitos.

A questão se coloca, atualmente, quando se trata de saber se os operadores e os agentes políticos estarão à altura das expectativas civilizatórias que os desafiam, no plano constitucional e no plano convencional (para a salvaguarda de direitos)? Nessa quadra dramática de interpelação a um paradigma civilizatório, serão alcançados nos seus misteres para, com a tempestade que desaba sobre o mundo, limpar “a maquilhagem dos estereótipos com que mascaramos o nosso «eu» sempre preocupado com a própria imagem; (e deixar) a descoberto, uma vez mais, aquela (abençoada) pertença comum a que não nos podemos subtrair: a pertença como irmãos”, como exorta o Papa Francisco em sua Homilia Adoração do Santíssimo e Benção Urbi et Orbi, pronunciada em seu exemplar distanciamento social na grande praça de São Pedro, totalmente vazia, em 27 de março de 2020?

Será o Direito, realmente Direito se, como exortou Francisco, não for “capaz de resgatar, valorizar e mostrar como as nossas vidas são tecidas e sustentadas por pessoas comuns (habitualmente esquecidas), que não aparecem nas manchetes dos jornais e revistas, nem nas grandes passarelas do último espetáculo, mas que hoje estão, sem dúvida, a escrever os acontecimentos decisivos da nossa história: médicos, enfermeiros e enfermeiras, trabalhadores dos supermercados, pessoal da limpeza, curadores, transportadores, forças policiais, voluntários, sacerdotes, religiosas e muitos – mas muitos – outros que compreenderam que ninguém se salva sozinho”, e operar para realizar e ser instrumento por meio da eficácia horizontal dos direitos humanos nas relações justrabalhistas,  quando o horizonte civilizatório sempre se moveu pela concretização dos ideais de igualdade material, de democracia e de justiça social, com a consolidação do valor trabalho (digno) ancorado na centralidade da pessoa humana e sua dignidade.

Uma resposta já se apresenta de imediato, procedente daquela mesma fonte bi-centenária que expressamente inspirou a constituição do campo dos direitos sociais e do trabalho e a formação da OIT, a Rerum Novarum. Em Carta aos Movimentos Sociais no domingo de Páscoa (12/4) exortou o Papa Francisco: “Talvez seja a hora de pensar em um salário universal que reconheça e dignifique as tarefas nobres e insubstituíveis que vocês realizam; capaz de garantir e tornar realidade esse slogan tão humano e cristão: nenhum trabalhador sem direitos. Também gostaria de convidá-los a pensar no “depois”, porque esta tempestade vai acabar e suas sérias consequências já estão sendo sentidas. Vocês não são uns improvisados, têm a cultura, a metodologia, mas principalmente a sabedoria que é amassada com o fermento de sentir a dor do outro como sua. Quero que pensemos no projeto de desenvolvimento humano integral que ansiamos, focado no protagonismo dos Povos em toda a sua diversidade e no acesso universal aos três T que vocês defendem: terra e comida, teto e trabalho”.

 Que tarefa! Se a Constituição não é só o texto, mas como diz Canotilho, a disputa narrativa para a sua concretização, ao fim e ao cabo, é estabelecer disposição de posicionamento crítico para que não nos deixemos enredar nas armadilhas de qualquer tipo que permeiam essa disputa, contrapondo hostes conservadoras e hostes progressistas pelo menos.

É o que já se começa a constatar em rearranjos políticos que buscam frear a voragem neoliberal, conforme exorta o Papa Francisco, na sua atitude contra essa descartabilidade do humano nas relações de trabalho. Na mensagem do Papa ao IV Encontro Mundial dos Movimentos Populares, 16 de outubro de 2021, ele afirma de modo contundente: “Este sistema, com sua lógica implacável de ganância, está escapando a todo domínio humano. É hora de frear a locomotiva, uma locomotiva descontrolada que está nos levando ao abismo. Ainda estamos em tempo.” – (https://www.vaticannews.va/pt/papa/news/2021-10/papa-francisco-mensagem-movimentos-populares.html).

Assim é que na Espanha, nesse começo de 2022, foi revogada a reforma trabalhista que precarizou trabalho e não criou empregos. Conforme amplamente divulgado, entre outros – https://www.brasildefato.com.br/2022/01/03/espanha-revoga-reforma-trabalhista-que-precarizou-trabalho-e-nao-criou-empregos – “a reforma trabalhista da Espanha de uma década atrás foi uma das “inspiradoras” da “reforma” feita no Brasil em 2017, sob o governo de Michel Temer. Lá como aqui, o pretexto de baratear as contratações para se criarem mais empregos fracassou. Isso porque, a principal consequência foi a precarização do trabalho e a criação de vagas mal remuneradas, com menos direitos e condições ruins de trabalho. Dez anos depois, a Espanha volta atrás. O decreto de 30 de dezembro atende ainda a um compromisso do primeiro-ministro Pedro Sánchez com a Comissão Europeia, para garantir a próxima parcela de fundos da União Europeia. Atualmente, o país conta com taxa de desemprego de 14,5%, uma das mais altas do bloco econômico. O principal objetivo da nova reforma espanhola é acabar com abuso de contratações temporárias, que hoje responde por mais de um quarto das ocupações no país. A ideia é estimular a contratação por prazo indeterminado, que dão mais segurança aos trabalhadores e, portanto, à economia. Além disso, a nova regra extingue a chamada contratação “por obra ou serviço”, equivalente ao “trabalho intermitente” da reforma de Temer”.

Os ensaios reunidos no livro de Renata Queiroz Dutra, para além de seu interesse pedagógico, se prestam a contribuir para esse momento de retomada democrática e de resgate do valor trabalho como centro ético das relações de produção. Conforme ela própria indica: “Ao pensar sobre esse projeto, me veio a curiosa percepção de que escrever um texto sobre o paradigma político-jurídico de afirmação do direito do trabalho e suas interfaces com diversos aspectos da regulação do trabalho, no lugar de me ocupar de um texto de crítica ao paradigma político-jurídico neoliberal, era algo pouco usual no período recente de minha vida acadêmica…Me fio na esperança de que esse texto, por sua pretensão introdutória e ao se propor a um nível mediano de aprofundamento dos conteúdos, possa se apresentar também como opção de aproximação de leitores e leitoras que não sejam necessariamente estudantes universitários/as, mas que, como pessoas que vivem do seu trabalho, possam se interessar pelo tema e encontrar aqui um canal de aproximação com a regulação social em torno do qual gira a vida da maior parte das pessoas: o trabalho”.

Ao menos na UnB – Universidade de Brasília, espaço acadêmico de atuação da Autora, o novo livro de Renata Queiroz poderá servir de horizonte galvanizador para balizar os estudos do campo, notadamente no espaço crítico do Grupo de Pesquisa Trabalho, Constituição e Cidadania que dinamiza juntamente com o protagonismo da Professora Gabriela Delgado e outros notáveis pesquisadores, atenta movimento pendular, diz Gabriela Delgado, em face do qual “os paradigmas do Estado Constitucional Contemporâneo somente podem ser entendidos em movimento pendular, isto é, como estruturas que se transformam por meio de recuos e avanços permanentes dentro da marcha histórica”, permanecendo como horizonte de luta por democracia, cidadania, dignidade humana e trabalho decente.

 

 

 

José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil,  Professor Titular, da Universidade de Brasília,  Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua.55

sábado, 12 de fevereiro de 2022

 

Para que não se esqueça. Para que nunca mais aconteça. Censura e Silenciamento

  •  em 



Em Nota Pública um conjunto expressivo de Entidades e vítimas da ditadura “condenam censura à Comissão da Verdade”, manifestada em decisão judicial (6a Vara da Justiça Federal de Pernambuco, determinando a retirada de trechos do relatório da Comissão Nacional da Verdade – CNV).

 

Na Nota seus subscritores afirmam que esse tipo de sentença judicial é ofensiva aos familiares e vítimas da ditadura, fere a Lei de Acesso à Informação (LAI) que proíbe a restrição de acesso a “informações ou documentos que versem sobre condutas que impliquem violação dos direitos humanos praticada por agentes públicos ou a mando de autoridades públicas” e determina que“a restrição de acesso à informação relativa à vida privada, honra e imagem de pessoa não poderá ser invocada com o intuito de prejudicar processo de apuração de irregularidades em que o titular das informações estiver envolvido, bem como em ações voltadas para a recuperação de fatos históricos de maior relevância“. 

 

E ainda, que a decisão judicial ofende também a ampla jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos em matéria de memória, verdade e justiça, além das sentenças especificamente dirigidas ao Brasil (Caso Gomes Lund e Caso Vladimir Herzog) que determinou a todas as autoridades de todos os poderes do país a adotar medidas para garantir o direito à memória e à verdade. Ademais, a ação judicial da Vara de Pernambuco foi conduzida sem a necessária intervenção do Ministério Público Federal, obrigatória em matéria de justiça de transição, especialmente quando se discute o direito à verdade e à memória.

 

Têm razão os subscritores. Tenho sustentado esses mesmos fundamentos para afirmar o caráter cogente do direito à memória e à verdade e o conjunto de enunciados que formam o que atualmente se adensa como justiça de transição. Em texto publicado em 2008 –Memória e Verdade como Direitos Humanos(in SOUSA JUNIOR, José Geraldo de. Ideias para a Cidadania e Para a Justiça. Porto Alegre: Sérgio Fabris Editor), sintetizo esses enunciados e lembro Hanna Arendt para dizer com ela, que “uma das lições que podem ser apreendidas das experiências totalitárias é a assustadora confiança de seus dirigentes no poder da mentira e na capacidade de reescreverem a história para a adaptar a uma linha política”.Esse é o pressuposto que se faz núcleo da concepção de justiça de transição e que se projeta para o objetivo de que não se esqueça; para que nunca mais aconteça.

 

 

Desconfio da legitimidade de fundo da sentença criticada pelas Entidades e vítimas. Até posso admitir alguma boa-fé hermenêutica no sentido de preservar algum direito subjetivo que não deva ser protegido por outros meios e sem afrontar a dimensão cogente da justiça de transição inscrita na precedência fundante do juízo da Comissão Nacional da Verdade. Até aceito que a atitude não tenha sido a de censurar. Mas de qualquer modo ela se soma a posições recalcitrantes de violadores que buscam escapar ao juízo de responsabilização por seus atos de lesão, configurados como crimes contra a humanidade.

 

 

Em outro texto sobre esse tema (Revista do Sindjus • Fev-Mar/2010, ano XVIII, n. 64), anotei que a reivindicação de incluir uma Comissão de Verdade e Justiça, mesmo na forma atual de Comissão de Verdade, decorreu da Conferência Nacional de Direitos Humanos realizada em dezembro de 2008 com caráter deliberativo. Decorre também da natureza cogente do direito internacional dos direitos humanos, expressa em decisões de tribunais internacionais que indicaram ao Brasil a necessidade de concluir o processo de democratização com a verdade sobre os fatos, para evitar repetições de ciclos de violência. E que essa reivindicação inscreve-se nos fundamentos do que se denomina justiça de transição, que pode ser definida como esforço para a construção da paz sustentável após um período de conflito, violência em massa ou violação sistemática dos direitos humanos.

 

Por isso que, se não for considerada censura, a decisão se presta a fortalecer as posições de silenciamento da verdade e a robustecer o que Hanna Arendt designava dementira na política.Atitude que parece caracterizar na conjuntura, o modo de se manifestar oficialmente, sobre essas incidências de nosso passado recente que a Constituição determinou fossem submetidas ao juízo da verdade e da justiça (para o que foi instituída a Comissão Nacional da Verdade), ao lado das Comissões de Anistia e de Mortos e Desaparecidos.

 

Essa atitude transparece, registra notícia do sítio UOL, no desalento vivido durante décadas, pelo jornalista César Fernandes, ao buscar reparação para Maria da Conceição Chaves Fernandes, sua esposa, ambos membros da RAN (Resistência Armada Nacional), que ficaram presos no Rio por 40 dias, em 1972, ela violentamente torturada pela repressão. O testemunho de César Fernandes sobre as torturas infligidas a sua mulher, ultrapassa o cenário do horror, instituído como política de Estado que se prorroga na conclusão da Comissão na sua composição e com sua ideologia atual de que “apenas foi aplicada a legislação vigente, sem excessos, abusos ou qualquer ato ilícito pelo Estado“.

 

Penso que se integra a essa perspectiva de silenciamento e de ocultação da verdade, situação aqui no Distrito Federal, em relação à qual já me manifestei aqui no Brasil Popular (Honestino Guimarães: Reparação de Projeto de Vida – Brasil Popular), acentuada com o veto do Governador ao projeto de lei que renomea para Honestino Guimarães a Ponte Costa e Silva (alusão a personalidade identificada com uma das fases mais duras da Ditadura instalada no País em 1964-1985). 

 

 

Tive um sobressalto pensando que entre os oito vetos derrubados pelos deputados distritais, conforme notícia dessa semana, estivesse o de restauro de memória e verdade, como marca de historicidade e iluminação sobre um passado cruento. Frustrei-me. Os líderes ainda não formaram acordo sobre essa exigência civilizatória.

 

 

É preciso, pois, insistir no “não esquecimento” que é o pressuposto para o “nunca mais”. Conforme eu disse na matéria de Brasil Popular, essa é uma lição que a ausência às classes de estudos políticos sobre conceitos de democracia e de teoria do Direito, sobre concepção de direitos fundamentais convencionais e também constitucionais, pode não ter sido aprendida. Mas é igualmente uma demonstração de rendição apequenadora (a estilo de guarda de quarteirão, conforme a advertência de Pedro Aleixo quando o texto do AI-5 foi colocado à assinatura dos ministros, entre eles aquele que “mandou às favas os escrúpulos”), aos autoritarismos renitentes naquilo que Umberto Eco denominou de fascismo eterno”.

 


(*) José Geraldo de Sousa Junior é professor titular na Faculdade de Direito e ex-reitor da Universidade de Brasília (UnB)

 


José Geraldo de Sousa Junior é graduado em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal – AEUDF, mestre e doutor em Direito pela Universidade de Brasília – UnB. É também jurista, pesquisador de temas relacionados aos direitos humanos e à cidadania, sendo reconhecido como um dos autores do projeto Direito Achado na Rua, grupo de pesquisa com mais de 45 pesquisadores envolvidos.

 

Professor da UnB desde 1985, ocupou postos importantes dentro e fora da Universidade. Foi chefe de gabinete e procurador jurídico na gestão do professor Cristovam Buarque; dirigiu o Departamento de Política do Ensino Superior no Ministério da Educação; é membro do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil – OAB, onde acumula três décadas de atuação na defesa dos direitos civis e de mediação de conflitos sociais.

 

Em 2008, foi escolhido reitor, em eleição realizada com voto paritário de professores, estudantes e funcionários da UnB. É autor de, entre outros, Sociedade Democrática (Universidade de Brasília, 2007), O Direito Achado na Rua. Concepção e Prática 2015 (Lumen Juris, 2015) e Para um Debate Teórico-Conceitual e Político Sobre os Direitos Humanos (Editora D’Plácido, 2016).