quinta-feira, 9 de março de 2023

 

Direitos Humanos Desde e Para a América Latina

Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito.

 

Eduardo Xavier Lemos. Direitos Humanos Desde e Para a América Latina: Uma Proposta Crítico Dialética a Partir de O Direito Achado na Rua. Tese em cotutela apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade de Brasília e ao Programa de Doctorado en Derecho de la Universidad de Sevilla. Brasília, 2023, 436 fls.

 

         

 

Tive a oportunidade de vivenciar a experiência de cotutela (UnB/Universidade de Sevilha e assim dividir a orientação com o professor David Sánchez Rubio (Universidade de Sevilha), e compartilhar a banca examinadora com as professoras e professores Maria José Fariñas-Dulce (Carlos III, Madrid), Vicente Barragan Robles (Universidade de Sevilha), Boaventura de Sousa Santos (CES-Universidade de Coimbra); além de meus colegas da Faculdade de Direito Alexandre Bernardino Costa, Lívia Gimenes Dias da Fonseca e Antonio Sergio Escrivão Filho, estes também membros do Grupo de Pesquisa O Direito Achado na Rua (Diretório de Grupos de Pesquisa do CNPQ).

A tese é a expressão de um duplo engajamento, ao mesmo tempo acadêmico e político. Conforme o seu resumo:

Trata-se de uma tese doutoral investigativa de uma teoria crítica dos direitos humanos particularizada na realidade latino-americana, especialmente por meio do estudo da teoria e da práxis do coletivo O Direito Achado na Rua (O DANR). O trabalho foi escrito em um contexto sócio-histórico de autoritarismo no Brasil, permeado pela perseguição de defensores e defensoras de direitos humanos e pelo sufocamento da universidade pública, cujas verbas foram constritas de maneira a constranger o pensamento crítico no país, durante o período também foram perseguidas lideranças acadêmicas e políticas, tensão essa  que se reflete na escrita da tese doutoral.A pesquisa utiliza do método pós-abissal, dentro de uma proposta das Epistemologias do Sul, embasada na sociologia das ausências e na sociologia das emergências de um coletivo que nasce e desenvolve-se com a proposta de oferecer uma assessoria, denominada Assessoria Jurídica Popular, aos movimentos sociais que lutam contra o colonialismo, o capitalismo e o patriarcado. Foram utilizadas bricolagens complexas, dentre elas, a inserção da observação do pesquisador, por meio de sua escuta efetiva, visão aprofundada sobre o tema e uma sensibilidade científica, aplicada especialmente aos saberes orais, conjugada ao estudo bibliográfico e documental. Trata-se de um estudo crítico-dialético, ora marxiano, ora pós-marxista, dividido em três partes. A primeira delas procura contextualizar o nascimento do coletivo O Direito Achado na Rua, que se deu na capital brasileira e projetou-se-como linha de pesquisa na Universidade de Brasília (UnB). A partir da Universidade Necessária proposta por Darcy Ribeiro, que se ocupa das múltiplas culturas do universo latino-americano, o presente estudo também procura demonstrar como se deu a rearticulação da comunidade universitária em meio à intervenção da ditadura militar na UnB, bem como verificar a participação ativa da comunidade acadêmica no processo de retomada democrática do país. A segunda parte traz um aprofundamento das teorias e da práxis do coletivo O Direito Achado na Rua, de modo a compreender sua densidade científica e a complexidade de sua atuação. Ainda nesse momento, é realizado um complexo estudo do humanismo dialético de Roberto Lyra Filho, que é a teoria base do coletivo estudado. Na terceira parte do trabalho, propõe-se uma reflexão sobre as teorias críticas dos direitos humanos, quando se projeta uma teoria humanista crítica contextualizada na experiência latino-americana, tomando, como ponto de partida, a experiência teórico-prática do coletivo O DANR. Assim, foi desenvolvida aqui uma revisão bibliográfica de teorias críticas do campo, mas, principalmente, o estudo e a observação da prática do coletivo, de forma a tornarem-se premissas para uma teoria crítica de direitos humanos desde a perspectiva latino-americana.

 

Todo o rico debate pode ser diretamente acompanhado pelo registro youtube no canal de O Direito Achado na Rua (www.odireitoachadonarua.blogspot.com), conforme o link https://www.youtube.com/watch?v=i3q9-rlXZxQ, num registro valioso das quatro horas e meia de apresentação, arguição, defesa e deliberação, ao final, com a aprovação do trabalho.

Reproduzo o Sumário da Tese, ao mesmo tempo descritivo e sistemático. Ainda que a banca tenha mostrado alguma crítica ao que poderia parecer um excesso esquematizante, eu próprio como Orientador gostei do esboço visualizador da proposta, sugerindo no que foi aceito até pelo Autor, a divisão em duas partes do capítulo III, com a organização de um quarto capítulo, a partir do ítem 3.6.2. A Cabeça Pensa onde os Pés Pisam: práxis-teoria e práxis. A proposta pedagógica humanista de O Direito Achado na Rua. O acompanhamento docente com José Geraldo de Sousa Junior, renumerando-se todo o conteúdo da tese.

Seguindo o original, depois da Introdução, a Tese tem três capítulos, mais as Considerações Finais e as circunstanciadas Referências Bibliográficas, em si um componente importante para os objetivos da proposta (fortuna crítica), ainda assim, com algumas omissões (em todo caso anotadas no correr do texto ou em seu roda-pé), a corrigir até o depósito ou a preparação do material para a necessária publicação.

CAPÍTULO I. Alicerces da Nova Escola Jurídica e do Direito Achado na Rua: Brasília, a nova capital federal, o projeto da Universidade de Brasília, ditadura e resistência académica, a luta pela democracia

1.1.Brasília, urbs, civitas e polis: antecedentes históricos que marcam a formação da Nova Escola Jurídica Brasileira

1.1.1. A Capital Modernista: urbs e civitas1.1.2. O sonho interrompido, os trabalhadores candangos, suas esperanças e lutas

1.1.3. Brasília, movimentos sociais e a polis

1.2.Universidade Necessária, Universidade Interrompida, Universidade Emancipatória: antecedentes históricos que marcam a formação da Nova Escola Jurídica Brasileira

1.2.1. A Universidade Necessária: a fundação da Universidade de Brasília1.

2.2. A Universidade Interrompida

1.2.3. A redemocratização da Universidade de Brasília: o reitorado de Cristovam Buarque (1985 a 1989

1.2.4. A Universidade Emancipatória: a Refundação da UnB – Reitorado de José Geraldo de Sousa Junior 2008-2012

CAPÍTULO II. Da Nova Escola Jurídica Brasileira ao Direito Achado na Rua

  1. 1. A Nova Escola Jurídica Brasileira (NAIR)

2.1.1. A Origem da Nova Escola Jurídica Brasileira

2.1.2. A Nova Escola Jurídica Brasileira: motivação e projeto

2.2. O Direito Achado na Rua, concepção

2.3. O Direito Achado na Rua e a Teoria Crítica do Direito

2.3.1. O Direito Achado na Rua e suas bases no Movimento Crítico do Direito

2.3.2. Teologia e Filosofia da Libertação e suas influências na formação do coletivo O DANR

2.3.3. O Pensamento Jurídico Crítico Sul Americano

2.3.4. A Concepção Crítica de O Direito Achado na Rua

2.3.5 O Pluralismo Jurídico de O Direito Achado na Rua

2.4. Fundamentos Teóricos e práticos de O Direito Achado na Rua: A Teoria Lyriana

2.4.1. Roberto Lyra Filho, sua produção e legado

2.4.2. Humanismo Dialético: o projeto de Roberto Lyra Filho

2.4.2 a) A relação de Lyra Filho com a obra de Karl Marx e Friedrich Engels

2.4.2 b) O Motor Dialético de Hegel

2.4.2 c) O Direito Projetado na História – Direito como Processo

2.4.2 d) Uma Filosofia Jurídica baseada numa Sociologia Jurídica –- A crítica da crítica crítica

2.4.2 e) O Resgate da Dignidade Política do Direito e o Socialismo Democrático – A Utopia Concreta de Lyra Filho

2.4.2 f) O Pluralismo Jurídico Lyriano: crítica ao positivismo e ao naturalismo

2.4.2 g) Direitos Humanos como síntese dialética: Humanismo Dialético e o Direito como

liberdade

2.5. A Fortuna Crítica de O Direito Achado na Rua

2.5.1. A Cabeça Pensa onde os Pés Pisam – a Pedagogia de o Direito Achado na Rua

CAPÍTULO III. Direitos Humanos em e para América Latina: uma proposta crítico-dialética a partir de O Direito Achado na Rua

3.1. Fundamentos dos direitos humanos e as ideologias jurídicas

3.1.1. O fundamento sócio-histórico: dialética, direitos humanos e lutas populares3.2. Uma Proposta Crítica, Intercultural, Complexa, Dialética e Plural dos direitos humanos

3.2.1 A importância de uma perspectiva crítica em direitos humanos

3.2.2. Interculturalidade e direitos humanos, ruptura com uma percepção universal e abstrata

3.2.3. Porque uma visão Complexa, Dialética e Plural dos direitos humanos

3.3. A necessidade de situar direitos humanos desde América Latina

3.3.1 Premissas para abordar direitos humanos desde América Latina

3.3.2. Revisitando pressupostos: dialogar direitos humanos desde uma perspectiva periférica e marginal e os conhecimentos achados na rua

3.3.2. As Epistemologias do Sul: Resgates históricos, lutas e insurgências, conhecimento do lado de cá do oceano e intelectualidade de retaguarda

3.3.2 a) As Epistemologias do Sul e o Pensamento Pós-Abissal3.3.2 b) Descolonizar, Despatriarcalizar, Descapitalizar

3.3.2 c) Os conhecimentos Feministas, Sororidade e Teoria Intersecional3.3.2 d) Não basta não ser racista, é preciso ser antirracista

3.3.2 e) O conhecimento dos Povos originários, tradicionais e dos movimentos sociais

3.3.2 f) Promoção, inclusão e respeito aos direitos e às lutas da comunidade LGTBQIA+

3.3.2 g) Práticas Includentes: anticapacistimo, direito à inclusão, respeito a diferença, acessibilidade e a linguagem inclusiva

3.4 Uma proposta pluriversal dos direitos humanos: direitos humanos e pensamento abissal

3.5 Reconstruindo a Torre de Babel: a latinidade de Gallardo e o diálogo com a proposta instituinte de David Sànchez Rubio

3.6. Direitos Humanos e o Direito Achado na Rua: práxis-teoria e práxis

3.6.1. Proposta Metodológica Pós-Abissal: a inserção do pesquisador no coletivo O Direito Achado na Rua. Experenciar direitos humanos em Períodos Autoritários

3.6.2. A Cabeça Pensa onde os Pés Pisam: práxis-teoria e práxis. A proposta pedagógica humanista de O Direito Achado na Rua. O acompanhamento docente com José Geraldo de Sousa Junior

3.6.2 a) Atividades Pedagógicas

3.6.2 b) O Pense Ligeiro

3.6.2 c) A Cabeça Pensa onde os Pés Pisam

3.6.3. A Estrutura de O Direito Achado na Rua, a organicidade com os Movimentos Sociais, as linhas de investigação e a construção do seminário comemorativo dos 30 anos do coletivo O Direito Achado na Rua

3.6.4. Empirismo e campo em tempos autoritários: inserções realizadas ao longo da tese doutoral e o comprometimento de O Direito Achado na Rua com a Luta Democrática em tempos autoritários. A reconquista da Democracia e a contribuição de O Direito Achado na Rua

3.6.5. A submersão práxis-teoria e práxis, construção da intelectualidade orgânica: o aprofundamento da experiência no período da tese doutoral

3.6.6. Uma Teoria Crítica dos Direitos humanos com base na experiência teórica e prática do coletivo O Direito Achado na

3.7. Desconstruindo Muros, Reconstruindo Mundos: direitos humanos como práxis transformativa do mundo

3.7.1. Desconstruindo Muros: discurso ideológico e os direitos humanos. Os três mitos

3.7.2. Processos de Luta e os direitos humanos: compromisso a práxis, movimentos sociais, sociedade civil organizada e a construção de projetos coletivos de vida éticocivilizatório

3.7.4. Necessárias Utopias: direitos humanos como projeto (concreto) de sociedade, existir, experenciar, esperançar e transformar.

 

               A tese de Eduardo, na minha opinião, é o quarto grande esforço de sistematização e de atualização da fortuna crítica da proposta emancipatória do jurídico depois que Roberto Lyra Filho a formulou em Para um Direito sem Dogma e que culmina com a consolidação, no seu estágio atual, do projeto, movimento, grupo de pesquisa, concepção e prática de O Direito Achado na Rua.

            Eu próprio me incluo nesse esforço e a própria tese registra, a partir do Prefácio de Roberto Lyra Filho em meu Para uma Crítica da Eficácia do Direito (Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1984), a partir de minha dissertação de 1981, que o mesmo Lyra Filho considera a melhor exposição e mais precisa interpretação de sua contribuição para a formação da Nova Escola Jurídica Brasileira – NAIR, à luz de sua concepção dialética do Direito, e colecionada em sua obra editada até 1983 quando publicara O Que é Direito (São Paulo: Editora Brasiliense, 1982) e os três volumes publicados da Revista Direito & Avesso – Boletim da Nova Escola Jurídica Brasileira (Brasília: Editora Nair, 1982, nºs 1 e 2 e 1983, nº 3).

Considero que o Seminário Internacional O Direito como Liberdade: 30 anos do projeto O Direito Achado na Rua (Brasília, UnB, 2019), pode ser considerado o segundo esforço. O Direito Achado na Rua – volume 10. Introdução Crítica ao Direito como Liberdade. Organizadores: José Geraldo de Sousa Junior, Alexandre Bernardino Costa, Nair Heloisa Bicalho de Sousa, Antonio Sergio Escrivão Filho, Adriana Andrade Miranda, Adriana Nogueira Vieira Lima, Clarissa Machado de Azevedo Vaz, Eduardo Xavier Lemos, Ísis Dantas Menezes Zornoff Táboas, Renata Carolina Corrêa Vieira, Vanessa Negrini. Brasília: Editora UnB/Editora OAB Nacional, 2021,  728 p. Link para Acesso Livre na Plataforma de Livros Digitais da Editora da UnB: https://livros.unb.br/index.php/portal/catalog/view/116/106/467-1, é o melhor repositório desse estágio.

A síntese dessa edição se faz no sentido de que o direito é a ‘expressão de uma legítima organização social da liberdade’ e “constitui o marco conceitual original do projeto denominado O Direito Achado na Rua. Nascido há 30 anos em meio à resistente beleza do Cerrado, O Direito Achado na Rua floresce no ambiente histórico dos trabalhos da Assembleia Constituinte, para constituir-se em um projeto de formulação de uma nova concepção de direito, em uma nova sociedade que se anunciava mais livre, justa e solidária, e que por seu turno apresenta hoje dilemas e desafios que nos convocam à reflexão-ação”.

Na Apresentação da obra, dizem as suas organizadoras e os seus organizadores “que, assim, ao impulso desse percurso, foi que construímos o Seminário “30 Anos de O Direito Achado na Rua: O Direito como  Liberdade”, que se constituiu como um espaço de encontro e diálogo científico, institucional, social e cultural, proporcionando a troca de experiências acadêmicas e de assessorias jurídicas universitárias, a povos indígenas e comunidades tradicionais e advocacia popular em diversos campos temáticos e institucionais. O evento consagrou-se como um espaço para debater temas como o combate ao racismo, à violência contra a mulher e à população LGBT e projeção de conceitos e práticas aptas ao reconhecimento das diversidades raciais, econômicas, sociais, étnicas, culturais, de gênero e sexualidades, em suas diferentes formulações semânticas sobre o direito em face dos espaços sociais, autoridades estatais e instituições judiciais”(http://estadodedireito.com.br/o-direito-achado-na-rua-volume-10-introducao-critica-ao-direito-como-liberdade/).

Já em v.6 n. 2 (2022): Revista Direito. UnB |Maio – Agosto, 2022, V. 06, N. 2 Publicado: 2022-08-31. O Direito Achado na Rua. Contribuições para a Teoria Crítica do Direito. Edição completa PDF (https://periodicos.unb.br/index.php/revistadedireitounb/issue/view/2503), edição especial da Revista do Programa de Pós-Graduação em Direito da UnB (http://estadodedireito.com.br/30425-2/), vamos encontrar uma convocatória que acaba tendo esse alcance de balanço e de contribuição:

No marco comemorativo de seus trinta anos de existência, o Direito Achado na Rua recebe, agora, uma edição celebratória da Revista de Direito da Universidade de Brasília (UnB) que homenageia aquele que lhe dedicou sua vida: o professor José Geraldo de Sousa Junior”. (Costa; Diehl; Fonseca; Lima; Miranda; Rampin).

A epígrafe é extraída do prefácio desse número especial da Revista de Direito, editada pelo Programa de Pós-Graduação em Direito, da Universidade de Brasília. O prefácio é assinado pelos professores Adriana Andrade Miranda, Adriana Nogueira Vieira Lima, Alexandre Bernardino Costa, Diego Augusto Diehl, Lívia Gimenes Dias da Fonseca e Talita Rampin, respectivamente, Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos e Cidadania UnB, professora do curso de Direito da Universidade Federal de Goiás (UFG), Pós-Doutora em Direito pela UnB, professora do curso de Direito na Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS), Professor Associado da Faculdade de Direito e da Pós-Graduação em Direitos Humanos e Cidadania da UnB. Co-líder do Grupo de Pesquisa: O Direito Achado na Rua, Doutor em Direito pela UnB, Mestre em Direito pela UFPA e Bacharel em Direito pela UFPR. Professor adjunto do Curso de Direito da Universidade Federal de Jataí.  Professor efetivo do Programa de Pós-Graduação em Direito Agrário da Universidade Federal de Goiás. Secretário executivo do Instituto de Pesquisa, Direitos e Movimentos Sociais, Professora adjunta da Faculdade de Direito da UnB, integrante do Grupo de pesquisa O Direito achado na rua e Professora Adjunta da Faculdade de Direito da UnB, integrante do Grupo de pesquisa O Direito achado na rua. Todos e todas vinculados ao Grupo de Pesquisa O Direito Achado na Rua (Diretório de Grupos de Pesquisa do CNPQ).

 

Do prefácio da edição, retiro extrato que deixa mais nítida essa perspectiva de balanço e de contribuição, reforçando o sentido de fortuna crítica:

Os trabalhos da edição analisam as contribuições de O Direito Achado na Rua para a Teoria Crítica do Direito, a partir dos estudos desenvolvidos por José Geraldo de Sousa Junior e tendo como referência o repertório de textos apresentados para a elaboração do Dossiê Especial na Revista de Direito da Universidade de Brasília com foco nas temáticas relacionadas à Educação em Direitos Humanos, Novos Saberes e Práticas Pedagógicas Emancipatórias; Acesso, Democratização e Controle Social da Justiça, Assessoria Jurídica e Advocacia Popular; Constitucionalismo Achado na Rua; Direito à Cidade; Direito, Raça, Gênero, Classe e Diversidade; Direitos Humanos; Movimentos Sociais e Sujeitos Coletivos de Direito; O Direito Achado na Rua: concepção e prática; Trabalhadores, Justiça e Cidadania”.

O Direito Achado na Rua tem funcionado como uma importante plataforma para o desenvolvimento e a difusão de estudos no campo das teorias críticas do direito. Desde a sua fundação, com sua institucionalização como grupo de pesquisa no Conselho Nacional de Pesquisa (CNPq), na década de 1980, tem acolhido e formato dezenas de pesquisadoras e pesquisadores atuantes nas mais diversas áreas temáticas e com engajamento nas lutas populares que são travadas para denunciar e fazer cessar violências, violações e opressões, em suas variadas dimensões. Nesse movimento, constitui, ele próprio, um instrumento de transformação social necessário à experiência de disputa e construção da experiência democrática brasileira.

No marco comemorativo de seus trinta anos de existência, O Direito Achado na Rua recebe, agora, uma edição celebratória da Revista de Direito da Universidade de Brasília (UnB) que homenageia aquele que lhe dedicou sua vida: o professor José Geraldo de Sousa Junior.

 

Com Eduardo Lemos há um movimento espiral ao estilo hegeliano que avança carregando a superação das desses esforços antecedentes que movem seu próprio registro, conforme a metáfora que ele deu ênfase em sua exposição: a de ergue-se mais acima e mais consistentemente, com discernimento amplificado, porque sobre um acumulado qualificado por sua própria interpretação.

Essa interpretação cuidou da resenha das posições desenvolvidas desde a institucionalização da NAIR – Nova Escola Jurídica Brasileira, do processo desideologizante antidogmático e metafísico realizado por Roberto Lyra Filho, com base em seu empreendimento sociológico relativamente a considerar a hipótese do pluralismo jurídico e filosófico, no sentido de pensar (com práxis) a emancipação na direção consciente de um humanismo dialético. Assim, a passagem do pensar que direito compreende a emancipação (libertação), em que projeto de sociedade (socialista democrática), por isso, em Lyra Filho, conforme sua proposta utópica, não realizada por sua morte prematura, a consumar-se com Direito Achado na Rua.

Logo, na sequência desse procedimento, em diálogo com seus fundamentos críticos (epistemológicos, filosóficos, sociológicos, teológicos), e com suas leituras de referência – Hegel, Marx, Ernst Bloch, Dusserl, Marilena Chauí, Leonardo e Clodovis Boff – poder chegar, ao que muito bem dizia seu avalizador de leituras dialéticas e formidável interlocutor, o jesuíta Henrique Cláudio de Lima Vaz, constatando que “o mundo ético não é uma dádiva da natureza; é uma dura conquista da civilização; como também tem sido uma conquista longa e difícil o estabelecimento e a vigência do Estado democrático de Direito”. Assim como Lyra Filho, o padre Vaz considera, dialeticamente, tratar-se, “de conquistas permanentes, sempre recomeçadas e sempre ameaçadas pela queda no amoralismo, no despotismo e na anomia”. Mas, não obstante, um processo que não se realiza em recintos austeros das institucionalidades, ao contrário, um “problema social das ruas e dos campos”. Ali, onde se “travam, a cada geração, as batalhas decisivas dessas lutas; e afinal, onde as sociedades são chamadas a optar em face da alternativa onde se joga o seu destino: [de enveredarem pelos obscuros caminhos da horda que não conhece o Direito] ou a de serem sociedades da liberdade” (Pe. Henrique C. de Lima Vaz, SJ.  Ética e Justiça: Filosofia do Agir Humano. Pe. José Ernanne Pinheiro; José Geraldo de Sousa Junior; Melillo Dinis; Plínio de Arruda Sampaio (orgs). Ética, Justiça e Direito. Reflexões sobre a reforma do judiciário. Petrópolis: Editora Vozes, 1ª edição, 1996).

Com efeito, no debate com Roberto Lyra Filho, já referido, enquanto esse autor procurava imprimir à sua reflexão uma perspectiva dialética que permitisse romper a aporia antinômica dos pares ideológicos – jusnaturalismo e juspositivismo –, foi Marilena Chauí, certamente, a referência filosófica para a superação do obstáculo epistemológico:

Penso que o livro de Roberto Lyra Filho trabalha no sentido de superar uma antinomia paralisante: a oposição abstrata entre o positivismo jurídico e o idealismo jusnaturalista”, afirmando que: “Se o Direito diz respeito à liberdade garantida e confirmada pela lei justa, não há como esquivar-se às questões sociais e políticas onde, entre lutas e concórdias, os homens formulam concretamente as condições nas quais o Direito, como expressão histórica do justo, pode ou não realizar-se (CHAUÍ, Marilena, Roberto Lyra Filho ou da Dignidade Política do Direito”. Revista Direito e Avesso, nº 2, Brasília, 1982. Também publicado em Desordem e Processo – Estudos Jurídicos em Homenagem a Roberto Lyra Filho, Sérgio Antônio Fabris Editor, Porto Alegre, 1986).

A alta densidade do pequeno estudo de Marilena Chauí contido nesse texto influenciou decisivamente o pensamento jurídico crítico brasileiro, constitutivo do que já foi denominado “Nova Escola Jurídica Brasileira”, sendo significativo recolher, para efeito desta interlocução, um aspecto por ela levantado para a compreensão da gênese da própria justiça e do direito em sua apreensão dialética, vale dizer, ou como ela própria diz, a apreensão do direito no campo das relações sociais e políticas entre classes, grupos e Estados diferentes permite melhor perceber as contradições entre as leis e a justiça e abrir a consciência tanto quanto a prática para a superação dessas contradições. Isso significa abrir o Direito para a História e, nessa ação, para a política transformadora.

Neste aspecto, aliás, os trabalhos de Marilena Chauí estabeleceram um norte seguro para a interpretação dessa ação transformadora, conduzida pela mediação do Direito, enquanto processo dentro do processo histórico. Por isso que, ultimamente, problematizando a dramaticidade da conjuntura que quase levou o País ao abismo do fascismo, essa autora esteja insistindo em que pensemos a democracia não como uma forma de governo, mas como um modo de constituir sociedade.

Na tese Eduardo assimila a dialeticidade inscrita nesse processo propriamente histórico, em diálogo com uma de suas referências teóricas presente na Banca:

Pero, además, se trata de un proceso no acabado, sino abierto en su evolución hacia la aparición de nuevos derechos y hacia la reinterpretación y transformación de los existentes. Ahora bien, tras dicho proceso evolutivo o de formación de los derechos humanos, encontramos también una dimensión -parafraseando a Ferrari- «exquisitamente sociojurídica»*, en cuanto se trata de un proceso prelegislativo y de un proceso espontáneo de reivindicación de «derechos» -no reconocidos todavía por el derecho oficial- frente a conflictos sociales o a necesidades humanas. (FARIÑAS DULCE, Maria Jose. 2003, p. 358 [p. 224].

            Eduardo, com efeito, traz como singularidade em seu texto, examinar a passagem teórico-política entre a concepção epistemológica inscrita na Nova Escola Jurídica Brasileira – NAIR (Roberto Lyra Filho), para o âmbito da práxis, tornado possível pela concepção e pela prática de O Direito Achado na Rua (Grupo de Pesquisa O Direito Achado na Rua; Movimento O Direito Achado na Rua (conforme J.J. Gomes Canotilho), pela mediação crítico-dialética, instituinte de Direitos, conforme formula seu co-orientador David Sanchez Rubio, e também em Alexandre Bernardino Costa, sobretudo em sua concepção de poder constituinte permanente.

            Aqui se associa a percepção sociológico-filosófica de Fariñas-Dulce, com o enunciado de Ellacuría, uma indicação forte de Sanchez Rubio:

Se trata, por tanto, de un proceso negativo, crítico, y dialéctico, que busca no quedarse en la negación, sino que avanza hacia una afirmación nunca definitiva, porque mantiene en sí misma, como dinamismo real total más que como dinamismo lógico, el principio de superación. Siempre sigue el elemento de desajuste, injusticia y falsedad, aunque en forma cada vez menos negativa, al menos en los casos de avance real en lo ético personal y en lo político social. Y esta continuidad negativa, acompañada por el deseo general de cambiar y mejorar, mantiene activo el proceso. (ELLACURÍA in SENENT , 2012,. 366)[p. 204].

Tudo isso conduzindo, segundo Eduardo a uma visão complexa, dialética e plural dos direitos humanos – designados no sentido instituinte desde Lyra Filho, Joaquín Herrera Flores, David Sanchez Rubio, assim como em Antonio Escrivão Filho no debate que comigo propõe sobre o tema – que se colocam como síntese da possibilidade humanizadora, não só como expressão conceitual-filosófica, do humanismo dialético que Lyra Filho formula, em sua leitura hegeliano-marxista-sartreana, mas também no processo de luta por reconhecimento de subjetividades coletivas emancipadas tituláveis de direitos, da própria constitutividade material dos sujeitos inscritos nos movimentos que conduzem essas lutas e que realizam politicamente o humano (cf. Hegel, o humano não é um decorrência de sua origem biológica, mas uma experiência na história; não se nasce humano, torna-se humano).

Por isso tem razão Boaventura de Sousa Santos em convocar O Direito Achado na Rua para novas tarefas, para atenção a temas emergentes, paras as travessias que movem as subjetividades, ressignificam os espaços de interação social e criam direitos que são discerníveis nesses processos, de fato achados por meio de novas categorias que as designem os sujeitos em movimento (SOUSA JUNIOR, José Geraldo de et al (orgs). O Direito Achado na Rua: questões emergentes, revisitações, travessias. Coleção Direito Vivo, vol. 5. Rio de Janeiro, 2021; CÔRTES, Sara da Nova Quadros. Direito Achado na Rua: por que (ainda) é tão difícil construir uma teoria crítica do direito no Brasil? In SOUSA JUNIOR, José Geraldo de et al (orgs). O Direito Achado na Rua: Introdução Crítica ao Direito como Liberdade, vol. 10. Brasília: Editora UnB/Editora OAB Nacional, 2021).

E tem mais ainda razão quando se trate de pensar a partir de realidades incompensáveis nos trânsitos de conjunturas. Haveria uma incompatibilidade entre o pensar crítico que funda A Nova Escola Jurídica Brasileira – NAIR e O Direito Achado na Rua, atenta às tensões entre reforma e revolução; democracia e socialismo; dialética e pluriversidade, inscritas em enunciados que possam ter se esgotado ou que não sejam possíveis de assimilação na liquefação dos tempos correntes?

Penso que por mais aberto que uma perspectiva plurivérsica permita para capturar realidades plásticas em trânsito, isso não prescinde de uma aproximação epistemológica de enquadramento dialético. Não foi incompatível lá atrás, na conjuntura do pensar dialético-materialista em face da impotência positivista para compreender o real, com Marx e Engels admitindo a consistência do empirismo-descritivo, necessário à ordenação do caos dos fenômenos, conforme expressamente propõe com seu método em Contribuição à Crítica da Economia Política; e na mesma ordem de reflexão, não se envergonhou o autor de Dialética da Natureza de mostrar confiança também na descrição verdadeira do objeto como valor explicativo, tal como asseverou em seus relatórios sobre habitação e sobre a situação da classe trabalhadora na Inglaterra (Manchester).

O pensar dialético pois, não fecha aberturas plurivérsicas como bem demonstra Ailton Krenak (Futuro Ancestral), ao fazer a crítica à plenipotência partidária e sindical que se realizam por meio da política, insuficiente, a seu ver para aferir as emergências de diferentes humanidades somente acessíveis por meio de novas alianças de afetos (sobre isso conferir o meu http://estadodedireito.com.br/futuro-ancestral/.

O caríssimo Boaventura tem nos ensinado que formas políticas – democracia, socialismo – são modos de experenciar a política, por isso que há múltiplas formas democráticas legítimas e socialismos legítimos se e enquanto democráticos. Assim por exemplo nos demonstra enquanto sujeito histórico o MST – Movimento Social dos Trabalhadores Sem Terra, já designado por Celso Furtado como o mais importante e revolucionário movimento social no mundo, que continua operando a práxis da reforma agrária para criar condições de realizar o socialismo, enquanto distribui cestas básicas para os vulnerabilizados atingidos pela negação de políticas inclusive sanitárias e ocupa a bolsa de valores para lançar ações de suas cooperativas de produção agrícola sustentável e familiar (https://www.youtube.com/watch?v=RxEL1cvFcrg – TV 61 O Direito Achado na Rua: O MST ocupa a Bolsa de Valores: entrevista com Diego Vedovatto).

Não se trata pois, de divergência de posicionamentos. A propósito, não obstante falar-se de uma divergência de posicionamentos, ao menos em conversa entre autores, o que se constata entre intelectuais de retaguarda, como o próprio Boaventura designa, é existir a rigor complementariedade das aproximações. Enfoques acentuados pelas perspectivas dos autores desde as interpelações decorrentes de seus pontos de vista ou da vista a partir dos lugares de observação. Assim, em O Sistema e o Antissistema. Três Ensaios, Três Mundos no Mesmo Mundo. Belo Horizonte: Editora Autêntica, 2021, com as autorias de Boaventura de Sousa Santos, Helena Silvestre e Ailton Krenak.

Se em Boaventura pode-se depreender um binarismo sistema/antissistema presente nas mais diversas disciplinas, das ciências naturais às ciências humanas e sociais, da biologia à física, da epistemologia à psicologia, a racionalidade explicativa da movimentação sistema/antissistema se faz na perspectiva globalizada do mundo (sistema mundo), na dinâmica de expansão do capitalismo em cujo âmbito se formam os impulsos de movimentos e ideologias de direita e de esquerda. Recapitulando as condições temporais e espaciais dessa movimentação, Boaventura expõe a resposta atual de profundo aperfeiçoamento do capitalismo que, com a quarta revolução industrial (inteligência artificial), torna possível desenvolver controles eficazes da população.

Por isso a sua consideração do balanço direita/esquerda porque ele leva a por em causa a questão da democracia e das institucionalidades que nela são geradas assim como nas organicidades que se constituem na sociedade civil, e indicar a necessidade de se fazer a sua defesa (da democracia). Por tudo ver o meu http://estadodedireito.com.br/o-sistema-e-o-antissistema-tres-ensaios-tres-mundos-no-mesmo-mundo/.

Tudo se passa, conclui Eduardo Lemos, no exercitar “o nosso papel, portanto, [que] é lutar, dialogar e aprender com os sujeitos e sujeitas que resistem cotidianamente contra as opressões do colonialismo, do capitalismo e do patriarcado, mas experenciando tais lutas, porque essas sempre serão constitutivas de um pensamento de transformação social; para os coletivos insurgentes”, assim, aliásindicou Lívia Gimenes da Fonseca de modo a realçar o sentido coletivo da construção que se inscreve no programa-compromisso do Grupo de Pesquisa O Direito Achado na Rua, nos fundamentos teórico-metodológicos da Nova Escola Jurídica Brasileira – NAIR, orientados por O Direito Achado na Rua, sua concepção, seus projetos e sua prática. Uma mirada no apêndice, com o catálogo dessa construção, atesta a fortuna crítica do movimento estudado na Tese.

E ainda assim tendo em conta, conforme nos sugere Boaventura de Sousa Santos, em um de seus mais instigantes textos – Por que pensar-, que “pensar não é tudo”, às vezes é preciso “des-pensar”, “des-aprender”, como mostra a poesia (Manoel de Barros, A didática da invenção in O livro das ignorãças). Em Boaventura “pensar não é tudo, porque além de agir nós temos que sentir, nós temos que criar formas de pensamento que sejam mais acolhedoras às emoções, ao corpo, aos afetos, ao sentimentos. Isso também é uma grande dificuldade para o conhecimento em que fomos treinados. As ações coletivas de transformação social têm essa dupla característica de resistência e de criatividade e quer uma quer outra exige envolvimento emocional, entusiasmo e indignação. O próprio ódio é por vezes necessário, ao mesmo tempo que o amor, e a solidariedade, ou seja, elementos de sensibilidade com os quais a modernidade ocidental sempre se achou muito mal” (https://www.scielo.br/j/ln/a/CLwxcMF6Kq6Rzc9h74xt98t/?lang=pt).

Eduardo, com a metodologia lyriana de ler Marx a partir de seus paralogismos, tal como Roberto Lyra Filho em Karl, meu amigo. Diálogos com Marx sobre o Direito, notadamente no trânsito do invisível para o visível, do ausente para o emergente, do informal para o formal, do plural para o oficial, no relativo ao jurídico – direito e antidireito, direito burguês e direitos dos trabalhadores, privilégios e direitos iguais, se opera logicamente pela mediação dialética, pois só se conhece efetivamente de modo sentipensante, corazonadamente.

 

 

José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil,  Professor Titular, da Universidade de Brasília,  Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua

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