quinta-feira, 4 de maio de 2023

 

Nossa história não começa em 1988: o direito dos povos indígenas à luz da justiça de transição

Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito.

MAÍRA PANKARARU. “Nossa história não começa em 1988”: o direito dos povos indígenas à luz da justiça de transição. Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade de Brasília. Brasília: Faculdade de Direito da UnB, 2023, 84 fls.

                  

Imagem: Carta da Arpin Sul aos ministros do STF. Fonte: APIB (disponível em https://apiboficial.org/2020/10/21/carta-dos-povos-indigenas-aos-ministros-do-stf/).

           

Agradeço vivamente a Professora Eneá de Stutz e Almeida, orientadora e Presidenta da Banca Examinadora, a honra de poder participar, juntamente com as professoras Roberta Amanajás Monteiro e Ana Catarina Zema, da arguição da Dissertação de Mestrado, de Maíra Pankararu.

A Dissertação, destaca o seu resumo, aborda um tema ancestral que remete a afirmação de reconhecimento de modos de ser e existir, de usos de bem viver ancestrais, portanto de direitos atemporais.

Eis a síntese da Dissertação, do que ela se propõe e do que ela trata:

Em tempos de luta pelo direito de existir e diante dos sucessivos ataques aos direitos dos povos indígenas no Brasil, evidenciando a fragilidade da democracia e a falta de segurança jurídica, crescem as demandas por justiça, reparação e garantias de não-repetição. O governo Jair Bolsonaro trouxe de volta duras lembranças do período da ditadura militar, mostrando que o legado das graves violações de direitos humanos continua ativo. Essa dissertação se justifica, primeiro, pela necessidade de não deixarmos cair no esquecimento esse legado e, segundo, pela importância que a temática da justiça de transição assume para os povos indígenas. O estudo teve como objetivo geral a análise do lugar conferido aos povos indígenas durante o processo de transição brasileira e identificação dos limites e os desafios para criar uma justiça de transição que leve em consideração esses povos. O trabalho foi estruturado em cinco capítulos. O Capítulo I traz os contornos teóricos e conceituais sobre justiça transicional, explica os quatro eixos da justiça de transição e, por último, aponta alguns dos desafios dessa justiça para os povos indígenas. O Capítulo II recupera alguns dos eventos mais importantes sobre a perseguição e o genocídio dos povos indígenas durante a ditadura civil-militar. No Capítulo III foram delimitados os marcos da justiça de transição no Brasil. O Capítulo IV discorre sobre o contexto de ataques aos direitos indígenas durante o governo Bolsonaro e discute a tese do marco temporal. O Capítulo V conta um pouco do momento atual de aldeamento da política brasileira como uma estratégia de sobrevivência dos povos indígenas. Conclui-se que a transição brasileira pouco avançou na efetivação de mecanismos de reparação e não-repetição em relação às violências sofridas pelos povos indígenas e que o novo governo precisa assumir um compromisso sério para que as medidas de justiça transicional sejam de fato implementadas.

 

Assim se justifica o simbólico que abre a Dissertação, na imagem da Carta da Arpin Sul aos Ministros do Supremo Tribunal Federal, na altura em que se iniciava o julgamento do que eu próprio já designei como lide do século (cf. minha coluna no Jornal Brasil Popular: https://www.brasilpopular.com/agrobanditismo-que-mata-e-fere/):

Por enquanto, o social vai construindo sua agenda e sua narrativa de reprovação a esse descalabro. Agora, mesmo, no dia 22, às vésperas do que seria o julgamento do século, não só por que se consumaria o debate mais importante do direito hoje, mas porque se julgaria a própria capacidade do Supremo Tribunal Federal demonstrar sua capacidade de guardião da Constituição, o Tribunal, mais uma vez suspendeu sua deliberação.

Entretanto, os indígenas e seus aliados no mundo acadêmico se reuniram num grande seminário realizado no Auditório Esperança Garcia, da Faculdade de Direito da UnB, para demonstrar a falácia da tese adrede engendrada pelo agronegócio do marco temporal e para sustentar, com sólidos fundamentos, que os direitos dos povos indígenas e quilombolas são originários, cogentes, instituintes, pré-estatais, pré-legislativos, pré-constituintes, achados na rua, nas aldeias, nos campos, nas águas, nas florestas.

 

Carta certamente inspira a Dissertação de Maíra: “Os Direitos dos Povos Indígenas não Nascem em 05 de Outubro de 1988. Nascem Antes do Estado Brasileiro”:

Para nós, Povos Indígenas, está bem clara a norma, pois estamos neste Brasil, muito antes da constituição do Estado brasileiro, portanto, nosso direito é originário, e dizer o contrário, é institucionalizar a política genocida, é dizer que não existíamos antes de 05 de outubro de 1988, é jogar no esquecimento 520 anos de sobrevivência, de luta, de história, de conquistas. Relembrando que nestes mais de 500 anos de história, a grande maioria dos Povos Indígenas, do Norte ao Sul, de Leste ao Oeste deste Brasil tiveram que sair de suas moradas, FORÇADAMENTE, muitas vezes expulsos a bala, outras pelas próprias ações do Estado, por isso em 05 de outubro de 88, muitas de nossas Terras já estavam invadidas por colonizadores. Dizer que nossos Direitos nascem em 05 de outubro de 1988, é compactuar com a ideia colonialista, que chegou ao Brasil em 1500, exterminando, matando, roubando terra, ouro, filhos e filhas para escravizar. A tese do marco temporal é isto, por isso não serve para nós Povos Indígenas.

Nós, Povos Indígenas, somos desta Terra, temos nossas raízes fixadas muito antes da chegada dos europeus colonizadores, então nossos direitos também estão com as raízes cravadas na história de cada Povo Indígena, por isso DECLARAMOS, NÃO AO MARCO TEMPORAL. Nossos antepassados lutaram, viveram e morreram pelo nosso direito à terra, e a política do agronegócio, do desmatamento, tenta tornar Lei a forma de nos retirar a Terra. Hoje será a Terra, amanhã a educação, depois a saúde, por fim o nosso direito de existir. Dessa forma que DECLARAMOS, VEEMENTEMENTE, NÃO AO MARCO TEMPORAL. SIM AO DIREITO ORIGINÁRIO SOBRE AS TERRAS INDÍGENAS. NÃO AO MARCO TEMPORAL. SIM A VIDA. NÃO AO MARCO TEMPORAL. SIM A CULTURA. NÃO AO MARCO TEMPORAL. SIM AO DIREITO DE EXISTIR.

 

            Assinada pelo indígenas reunidos na ARPIN da Região Sul, a Carta traduz atualmente uma compreensão compartilhada por povos de todo o País. Não será coincidência que Maíra tenha acertado com a Banca Examinadora fazer a defesa de sua Dissertação exatamente no dia 24 de abril (2023), quando se instala em Brasília, na Esplanada dos Ministérios, o ATL – Acampamento Terra Livre, grande encontro de todos os povos para reafirmarem sua agenda cultural e política e dialogarem com a sociedade e o governo.

            Do Povo Pankararu, da região Nordeste, Maíra encarna essa percepção de povo-raiz inscrita na Carta. Com Maíra compartilhei a experiência de co-organização de um livro (SOUSA JUNIOR, José Geraldo de et al (Orgs). O Direito Achado na Rua: Questões emergentes, revisitações e travessias: Coleção Direito Vico: volume 5. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2021), resultado de curso realizado no Programa de Pós-Graduação que agora certifica a sua maestria.

            Na obra, Maíra, com colegas indígenas e quilombolas participantes da Turma – Joanderson Gomes de Almeida Pankararu, Maíra de Oliveira Carneiro Pankararu (seu nome completo), Mairu Hakuwi Kuady Karajá e Vercilene Francisco Dias – arrebataram o Prefácio (normalmente reivindicado pelo professor nos livros da Coleção) e nele, juntamente com seu parente Pankararu, lavrou essa referência ancestral:

Nós Pankararu nascemos da terra, somos filhos da terra. Sã Sé nos enterrou no chão e brotamos como árvores. Também somos guardadores de sementes, onde chegamos preparamos o chão e deixamos um pouco do que é nosso germinar e tomar seu ciclo de vida. Foi assim com o Direito Achado na Rua.

Logo, com seus colegas co-autores e co-autoras –  Larissa Carvalho Furtado, Luana Bispo de Assis, Maíra de Oliveira Carneiro Pankararu, Natália Albuquerque Dino e Solange Ferreira Alves – se incumbiram de capítulo – Manifesto por um Direito Achado nas Aldeias (págs. 71-96), no qual estabeleceram um entendimento (reconheço a mão de Maíra na redação), de que É Preciso Sentir o Chão da Aldeia para Falar da Aldeia modo pelo qual se passa Do Direito Achado na Rua ao Direito Achado na Aldeia. Ponho em relevo a passagem:

O Direito Achado na Rua prega que teoria e prática caminhem juntas, o que mais uma vez reforça que a luta indígena também pode ser vista sob a ótica lyriana. Não à toa, é que se lembra da movimentação de Ailton Krenak e a criação da União das Nações Indígenas (UNI) e a inserção do capítulo “dos índios” na Carta Cidadã de 1988. Mas não apenas. A título de exemplo, cita-se aqui também como os povos indígenas vêm se organizando para reivindicações urgentes no Acampamento Terra Livre, surgido em 2004, que desembocou na criação da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB). É essa peleja constante, promovida pelos povos originários, que racha a estrutura burguesa muito bem sedimentada e abre caminhos para uma autodeterminação político-sociológico-jurídica.

Tal ruptura perpassa pelo direito à autodeterminação, reconhecendo o direito à autonomia indígena e representando a pedra fundamental intrínseca aos direitos indígenas. Diante disso, a autodeterminação, ou livre determinação, denota a liberdade de coexistência com outros cidadãos em um Estado. Em nível constitucional, caracteriza-se pela liberdade de desenvolvimento econômico, cultural, social e espiritual com dignidade. Além disso, deve-se ressaltar a dualidade de significados como o direito de estar livre e o direito de ter controle e escolher seu próprio governo.

 

Estou certo que o imaginário de Maíra já se fazia pronto para germinar nos fundamentos que ela lança na dissertação, antes mesmo de começar a escrevê-la e enquanto não obstante ela não se encerra porque o ponto final não significa que o esforço de apreender a questão tenha terminado dadas as perspectivas que se abrem para continuar a escritura política de uma história que não começa em 1988 e não termina em 2023. Em todo caso, sugiro que quem venha a ler o trabalho de Maíra Direito Achado na Rua, confira a entrevista que ela concedeu para o Programa O Direito Achado na Rua que é produzido pela TV Expresso61: Ditadura Militar e as Violações Contra Povos Indígenas (https://www.youtube.com/watch?v=lKrwTiLKFxQ&list=PLuEz7Ct3A0Uj9NU2BYmgSIM0rWv7IRAjK&index=7).

 

Para melhor conhecimento do leitor a dissertação está estruturada em cinco capítulos. A própria Autora os sumaria:

O Capítulo I traz os contornos teóricos e conceituais sobre justiça transicional, explica os quatro eixos da justiça de transição e, por último, aponta alguns dos desafios da justiça de transição para os povos indígenas. O objetivo deste primeiro capítulo foi trazer esclarecimentos de ordem teórica e conceitual para uma melhor compreensão dos limites e desafios que se apresentam quando pensamos na aplicação da justiça de transição e de seus mecanismos para os povos indígenas.

O Capítulo II é um capítulo histórico que recupera alguns dos eventos mais importantes sobre a perseguição e o genocídio dos povos indígenas durante a ditadura contra os povos indígenas porque é necessário definir o que foi essa violência e conhecer os danos causados para pensar a justiça de transição e compreender que reparação querem esses povos.

No Capítulo III são delimitados os marcos legais da justiça de transição no Brasil. Primeiro, abordamos a Lei de Anistia, a Constituição Federal de 1988 (CF/88), a Lei de Mortos e Desaparecidos, a Lei da Comissão de Anistia, a Lei de Reparação e a Lei de Informação. Depois, tratamos da Lei nº 12.528/2011 que cria a Comissão Nacional da Verdade (CNV). O capítulo conclui com uma análise da discussão das lideranças indígenas no eixo 6 sobre memória e verdade durante a 1ª Conferência Nacional de Políticas Indigenistas (1CNPI). O objetivo deste capítulo foi mostrar como os marcos legais da transição no Brasil não incluíram os povos indígenas.

O Capítulo IV discorre sobre o contexto de ataques aos direitos indígenas durante o governo Bolsonaro e discute a tese do marco temporal. Veremos como o governo Bolsonaro atacou insistentemente os povos indígenas usando o órgão indigenista, a até então denominada Fundação Nacional do Índio (FUNAI), e promulgando uma série de medidas e decretos anti-indígenas. Este capítulo busca mostrar a relação entre a tese do marco temporal e a justiça transicional para os povos indígenas. A polêmica em torno da tese do marco temporal é explicada como uma injustiça de transição, visto que essa tese legitima os esbulhos territoriais, funcionando como uma espécie de anistia oficial para um histórico de violências.

Este trabalho, quando teve o sumário rascunhado em 2021, contava com quatro capítulos. O tom da pesquisa era mais denso, ansioso, guardando o luto daqueles que se foram pelos atos dos homens fardados entre 1964-1985 e entre 2019-2022, neste último período, sobretudo em razão da desastrosa condução política que se operou durante a pandemia de COVID-19, bem como do engendramento de uma anti-política em relação aos grupos em situação de vulnerabilidade, dentre os quais, povos indígenas, pelo governo de extrema-direita que esteve à frente do executivo federal. Nesse ínterim, aconteceram muitos fatos importantes que julguei necessário inseri-los aqui, em um novo capítulo. Um dos principais e que mais me empolgou foi a nomeação de Sônia Guajajara como Ministra de Estado dos Povos Indígenas. Ao ouvi-la, em seu pronunciamento de posse, dizer “NUNCA MAIS O BRASIL SEM NÓS”, uma onda de esperança tomou conta de mim.

O Capítulo V conta um pouco desse momento histórico da política brasileira descrevendo o processo de aldeamento da política como uma estratégia de sobrevivência dos povos indígenas. Também comenta a organização do Ministérios dos Povos Indígenas (MPI) e o importante papel do Departamento de Línguas e Memória. Por último, trata das mudanças da FUNAI, especialmente do processo de desmilitarização de seu quadro e do retorno de políticas vitais para os povos indígenas. Nas considerações finais se comenta o movimento “Sem Anistia!” e avançamos alguns prognósticos apontando para a construção da Comissão Nacional Indígena da Verdade

 

Estas questões candentes que Maíra traz à discussão estão na agenda de debates do Grupo de Pesquisa coordenado por sua Orientadora, do qual faz parte. Elas aparecem, por exemplo, no livro organizado por Eneá de Stutz e Almeida, ex-integrante da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça, retirada por conta de seu esvaziamento na governança anterior, mas que agora retorna para a presidir e para recuperar seu fundamento teórico e seu papel político. Confira-se a obra conforme – http://justicadetransicao.org/a-transicao-brasileira-memoria-verdade-reparacao-e-justica-1979-2021/ (A transição brasileira: memória, verdade, reparação e justiça (1979-2021), Salvador: Soffia10 Editora, uma publicação do Grupo de Pesquisa Justiça de Transição, da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília).

Do que me coube inferir, o livro, dizem os organizadores (Eneá de Stutz e Almeida) “atualiza, complementa e sistematiza ideias e conceitos iniciados em textos anteriores. A autora analisa a anistia política implementada a partir de 1979 no Brasil: uma anistia da memória, que não impede a responsabilização dos violadores de direitos humanos. Estuda os mecanismos da justiça de transição brasileira até o ano de 2021, concluindo que o País vive uma justiça de transição reversa”.

Para contribuir para estancar essa reversidade, Maíra agora terá assento na Comissão e de sua dissertação, como se fora uma carta de intenções, quero me deter na Introdução porque ali, com linguagem elegante e profundamente encarnada a Autora fixa o seu pressuposto que é  fundamentar-se em “políticas de memória, justiça e reparação [que] são necessárias para permitir a transição democrática após regimes ditatoriais, conflitos armados ou outras situações de graves violações de direitos humanos, por permitirem a assimilação do significado dessas violências, a devida responsabilização dos envolvidos, a justa reparação às vítimas e a conscientização ampla acerca do ocorrido, a fim de que não haja nem esquecimento, nem repetição”, porém, na medida em que “identificam e tratam de casos de violência contra os Povos Indígenas”, e que permitam organizar estratégias como justiça de transição, embora conforme ela designe – pág. 18 – “a justiça transicional [que] não se reduz a uma cartilha de mecanismos para tratar de violações sistêmicas dos direitos humanos: é também o reconhecimento de que uma nação está passando por uma mudança monumental ou que precisa fazê-lo. Por isso, para o novo governo, a justiça de transição para os Povos Indígenas deve ser uma prioridade”.

Ela considera esse processo necessário ao “momento histórico da política brasileira, descrevendo o processo de aldeamento da política como uma estratégia de sobrevivência dos povos indígenas” (pág, 19), embora constate que “os estudos de justiça de transição são um campo novo e em processo de maturação. A literatura especializada não se dedicou às questões da justiça de transição para os povos indígenas e desconhece a temática dos direitos indígenas. O meu interesse com esse trabalho é contribuir com o debate e avançar na conquista dos direitos transicionais para os povos indígenas” (pág. 17).

De fato, é nesse ponto que Maíra define seu tema de estudo. Segundo ela, desenvolvido para responder duas perguntas: “1) como a ausência de implementação dos mecanismos de justiça de transição para os povos originários do Brasil legitima a continuidade de graves violações dos direitos humanos? 2) Quais são os obstáculos para a implementação dos mecanismos da justiça de transição para os povos indígenas no Brasil?”, a partir das quais formula o “objetivo geral da pesquisa [que] consistiu em avaliar a transição brasileira desde 1988, uma vez que pouco avançou na efetivação de mecanismos de reparação e não-repetição em relação às violências sofridas pelos povos originários durante a ditadura militar, mostrando as insuficiências da justiça de transição para os povos indígenas no Brasil e criticando o caminho que a reparação brasileira percorreu”.

Questões bem postas e que confrontam a Autora com duas perspectivas. A primeira, originária de sua posição político-epistemológica – ser indígena e querer contribuir de modo teórico para a disputa hermenêutica que o tema comporta. A segunda, circunstancial. Entre a admissão no Mestrado e a conjuntura atual de retomada democrática da governança com um projeto de sociedade emancipatório e descolonizador, com a contenção do autoritarismo de modelo fascista (ao menos na acepção de Umberto Eco que o caracteriza numa perenidade que não se isola no passado factual que conturbou o mundo ocidental na segunda metade do século XX), que promove a exceção e que nega titularidade subjetiva de direitos aos povos indígenas e na exceção realiza verdadeira necropolítica no limite do genocídio, a condição peculiar de que Maíra passa a se investir da qualidade de membro integrante indígena da Comissão Nacional de Anistia.

Há uma questão que a interpela no duplo plano com o qual essas perspectivas se confrontam. Diz a própria Maíra (pág. 17-18): “A anistia brasileira após o fim do regime ditatorial civil-militar que vigorou entre 1964 e 1985, da forma como foi feita, não deu conta de reparar os povos indígenas Para que isso acontecesse seria necessário ampliar ou mesmo criar nova legislação e novas formas de reparações coletivas. Insuficiente para os povos indígenas, a justiça de transição gera como consequência violências bastantes claras, a exemplo da tese do marco temporal, que propõe que só sejam reconhecidos os direitos aos territórios que estivessem ocupados na data da promulgação da Constituição Federal de 1988, desconsiderando as expulsões e os esbulhos praticados contra os povos indígenas, inclusive durante o período da ditadura”.

Ou seja, como ela, diz, não deu conta nem no sentido estrito da anistia propriamente dita, atribuída a uma Comissão especial para conferi-la às situações inscritas no estatuto que a institucionalizou; nem no sentido ampliado de memória, verdade e justiça, que permitiria um alcance expandido de seus enunciados.

Maíra tem percepção clara desses limites. Basta ver, a sua análise do percurso problemático e tenso de realização desse fundamento. Transcrevo uma passagem esclarecedora de sua dissertação (pág. 15):

O processo de superação dos erros e traumas do passado apenas começou com o trabalho realizado pelas comissões da verdade, mas a reconciliação com o passado não se esgota com os esforços de uma comissão que funciona por um tempo limitado e sob um mandato específico. O dano associado às injustiças históricas continua hoje. Infelizmente, os crimes cometidos contra os povos indígenas nas Américas não pertencem apenas ao passado.

É preciso reconhecer que muitos dos desafios contemporâneos enfrentados pelos povos indígenas estão enraizados em erros do passado e que as injustiças e violências históricas de longa data, inclusive em relação à colonização, à invasão e à apropriação das terras, territórios e recursos dos povos indígenas que permanecem sem solução, constituem uma afronta contínua à nossa dignidade.

No contexto atual, os povos indígenas enfrentam uma série de desafios não apenas para lidar com o legado e a continuidade das violações de seus direitos humanos, mas também para promover o acerto de contas, a busca da verdade, a reparação e a construção de instituições confiáveis recomendadas pelas CVR. Mesmo tendo as CVR reconhecido, em seus relatórios finais, a responsabilidade dos Estados pelos crimes cometidos e tendo afirmado o direito à memória, verdade, justiça, reparação individual e coletiva e à garantia de não-repetição como parte da reparação integral a que têm direito os povos indígenas, as condições sociais, políticas e econômicas dos povos indígenas não mudaram muito e muitos povos continuam sendo alvos de violências.

Ora, Maíra transcreve em nota (pág. 16), o tremendo esforço que a Comissão Nacional da Verdade realizou para definir e recomendar treze proposições, muito razoáveis e todas indispensáveis para, na transição, reparar as violências, as negações infligidas em todos os planos, inclusive no plano civilizatório.

Para Maíra, o governo, e não só o governo, todo um arcabouço ideológico e institucional, confina o horizonte de possibilidades para qualquer movimento em direção a posições reparatórias, compensatórias e justas. Diz ela (pág. 16): “Em vez de se avançar no processo de reparação para os povos indígenas, após golpe político que culminou na destituição da presidenta eleita Dilma Rousseff, o governo que assumiu o poder passou a repetir ideologias, métodos e práticas comuns na ditadura civil militar, agindo contra os povos indígenas”.

Maíra vê possibilidades efetivas para seu agir na Comissão de Anistia, para a criação de políticas com o recém criado Ministério dos Povos Indígenas ou para a atuação emponderada do Movimento Indígena para avançar nesse campo. O seu capítulo V mostra confiança. Eu também sou confiante, na medida de conquistas que vençam o pessimismo da razão com o entusiasmo da vontade.

Mas confesso que me preocupam mais os aliados que os adversários. O juiz Cançado Trindade, por duas vezes Presidente da Corte Interamericana de Direitos Humanos, exemplar em seus votos de valorização das exigências de reparação para restaurar a dignidade de projetos de vida e projetos sociais, lembrava que o principal obstáculo para integrar os direitos humanos nos sistemas nacionais de direito é o obstáculo do positivismo – o científico e o jurídico – que reduzem o humano na hierarquia da evolução (será o indígena gente como nós?) e o direito ao legal que desconsidera a dimensão antropológica de outras sociabilidades em dinâmica de pluralismo jurídico (aliás, já acolhidas no voto do relator Ministro Fachin no exame da ADPF que repercute na dissertação). Será o direito positivo, legal, capaz de abrir-se a esse reconhecimento?

Agora ao final de março realizou-se no Vaticano, sob os auspícios de sua Academia Pontifícia de Ciências um simpósio sobre colonialismo, descolonização e neocolonialismo. Tive oportunidade de lançar opinião sobre esse evento (https://www.brasilpopular.com/vaticano-conferencia-sobre-colonialismo-descolonizacao-e-neocolonialismo/).

Com efeito, comentando o evento e seus debates, o juiz Andres Gallardo, presidente do Comité Pan-Americano de Juízes e Juízes pelos Direitos Sociais e pela doutrina Franciscana, um dos coordenadores da Cimeira sobre Justiça e Descolonização no Vaticano, afirma que “Não há mais espaço para leis injustas, pois para travar leis injustas, aqui estamos os juízes”

A relatoria e leitura da Declaração Final, ficou a cargo de meu dileto amigo o ítalo-argentino Alberto Filippi – observe que ele escreve no volume 7 da Série O Direito Achado na Rua: Introdução Crítica à Justiça de Transição na América Latina (Os direitos nas ruas da resistência e nos caminhos do exílio entre América e Europa), investido da antiga proximidade com Jorge Mario Bergoglio, nas tertúlias portenhas. Com a epígrafe Colonialismo, Descolonização e Neocolonialismo: uma Perspectiva de Justiça Social e do Bem Comum, o documento aprovado por aclamação na Casina Pio IV nella Città del Vaticano. O teor da Declaração (https://www.youtube.com/live/gt_YQWiwXJg?feature=share&t=35520), é uma síntese da rica discussão, unânime em que “as perspectivas decolonial e descolonizadora são a base necessária da cultura jurídico-política para a formação de magistrados e defensores do direito e daqueles que concebem e promovem o acesso à Justiça dos mais débeis e desassistidos”.

De novo a afirmação constante da Declaração final dos participantes: “Apreciamos a Declaração da Santa Sé, de 30/4/2023, segundo a qual, a chamada ‘Doutrina do Descobrimento’ afirmada nas “Bulas papais desde o século XV”, não é parte do ensinamento da Igreja Católica”.

De fato, tratou-se de um evento que transcorreu numa atmosfera que traz esclarecimento sobre outros temas próprios do colonialismo. Nele, inclusive, veio a discussão, o posicionamento pontifício há poucos dias noticiado sobre o que se tem chamado de “doutrina da descoberta” (https://www.ihu.unisinos.br/627642-a-doutrina-da-descoberta-repudiada-por-roma), que se prestou por séculos, apoiada pelo papado, “para justificar as empreitadas colonialistas dos soberanos católicos europeus – mas que foi repudiada pelo magistério da Igreja, e há muito tempo não representa mais o seu pensamento”. Isso é afirmado em um documento de dois órgãos do Vaticano (os dicastérios de Cultura e do Desenvolvimento Humano Integral)”, que tem levado o Papa Francisco a pedir perdão aos indígenas pela violência catequizante, enquanto extrai ensinamentos derivados do debate de Valladolid expressos na Bula Sublimis Deus com reconhecimento de que os indígenas são “gente como nós têm alma e podem dispor de seus bens”. O Papa Francisco até estende essa acepção e tem pregado uma teologia humanizadora, não apenas em relação aos indígenas, mas com o propósito de um realmar as gentes.

Acolho a dissertação como um percurso que une a forte disposição dos povos indígenas entre o que está no título, mote do ATL de 2021 – “Nossa história não começa em 1988, passando pela mediação propositiva de “Retomar o Brasil para demarcar territórios e aldear a política” (ATL de 2022), enquanto não se realize o reconhecimento dos direitos que reivindicam no presente para que se consume o que propõe o mote da campanha deste ano (ATL de 2023) “O futuro indígena é hoje. Sem demarcação, não há democracia!”.

Em complemento a essa indagação, lembro a Maíra que participei da Banca Doutoral de Eloy Terena citado fortemente por ela. Aliás, escrevi a arguição depois também publicada em forma de recensão em minha Coluna Lido para Você (a tese: Luiz Henrique Eloy Amado (Eloy Terena). O Campo Social do Direito e a Teoria do Direito Indigenista. Tese de doutorado. Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito. Niterói: Universidade Federal Fluminense, 2022) – http://estadodedireito.com.br/o-campo-social-do-direito-e-a-teoria-do-direito-indigenista/.

Ao finalizar a arguição, considerei que a  tese, tal a conclusão de seu Autor,   “trouxe  um  somatório  de  reflexões  forjadas  a  partir  da  experiência.  No  caso dos  povos  indígena  esta  experiência  é  a  resistência  qualificada  pelo  contínuo  processo  de  fricção  jurídico  estatal.  Pois  mesmo  sendo  povos  autônomos,  detentores  de  sistemas  próprios,  trava-se  diariamente  um  árduo  processo  de  entender  e  se  fazer  entender.  Do  lado  dos  povos  indígenas  a  abertura  dialógica  cultural,  mas  do  lado  do  Estado,  o  autoritarismo  racional.  Um  dos  desafios  postos  na  atualidade  mundial  é  entender as  identidades   culturais,  saber  lidar  com  a  diferença,  respeitando  as  cosmovisões  do  outro.  Neste  quesito  os  povos indígenas  têm   muito  a oferecer e ensinar.  Ao  se  propor  entender  o  direito  imposto  e  produzido  para  os povos             indígenas        e  como  manejá-los,  mesmo  ciente  que  esta  estrutura jurídica   foi  projetada  para  atender  os  interesses do  capital,   estamos  chamando  atenção  para  a  dimensão  indígena  de  se relacionar   com  os  mundos  e  eleger  projetos  políticos  no  único  intuito  de  continuar  existindo  enquanto  povo  diferenciado  e  capaz  de transitar   entre  diversos sistemas.  Portanto,  este esforço   reflexivo  individual  de  um  advogado  demonstra  de  igual  modo  um  ganho  coletivo,  baseado  na  insistência em entender e fazer seus símbolos serem entendidos”.

Não é pouco, considerando o acervo corrente de poderosos enunciados que os povos indígenas, por seus advogados, Eloy Amado com grande capacidade de locução, lograram fixar na mentalidade dos principais agentes em fóruns nacionais e internacionais que discutem os direitos constitucionais, fundamentais, convencionais e das gentes. Não obstante o obstáculo do positivismo, mencionado por Antonio Augusto Cançado Trindade para que os enunciados internacionais de direitos humanos sejam inseridos nos ordenamentos nacionais; ou, a própria abertura cognitiva dos magistrados, demarcava o ministro Lewandowiski na presidência do STF, para assimilarem matérias relativas a direitos humanos ou decisões de cortes internacionais nesse campo, que não aprenderam nas escolas, as primeiras, ou solenemente desconhecem para poder aplicar. Condição para o reconhecimento do direito que nasce na aldeia, a avançada formulação que o próprio Eloy Terena fez por ocasião do Seminário Internacional O Direito como Liberdade: 30 Anos do Projeto O Direito Achado na Rua.

É  por  isso – diz Eloy – que a tese “parte da  análise              situacional  do  desenvolvimento  da  política indigenista,  passando  pela  constitucionalização  dos  direitos  e  defende-se  uma  teoria  do  direito  indígena.  Na  verdade  todo  esse  esforço  intelectual  é  para  fazer  os  brancos  entenderem  o  que  nossas  lideranças  estão  há muito   tempo  dizendo. Não   se  trata  de privilegiar  os  dogmas   jurídicos  em  detrimento  das  categorias  indígenas,  mas  sim,  de  reduzir  a  dimensão  indígena  a rótulos  do  mundo  ocidental  com  o  único  objetivo  de  estabelecer  diálogo,  se  fazer  entender,  e  quem sabe, ser correspondido”. Nem se render, eu acrescento, à elegância mistificadora, encantatória, cântico de sereias, dos neo-constitucionalismos e pós-positivismos, a cujo embalo temos assistido adormecer altas reputações da crítica jurídica, para júbilo gratificante do agro-negócio. Vimos isso acontecer agora no debate em curso no STF.

Essa é uma pergunta implícita que poderia ser feita ao Autor da Tese, mas que nos fazemos a nós próprios todos e todas nós. A resposta não será a que se possa oferecer aqui ao cabo da arguição. Mas a que virá, vitoriosa ou não, ao final do julgamento da tese hoje apresentada no STF sobre a precedência do direito originário dos povos ao direito do Estado e também na Dissertação defendida por Maíra Pankararu. A alternatividade abriu possibilidade para a emergência desse direito? E virá também do Tribunal Penal Internacional quando julgue a questão já apresentada, em face de violações de direitos dos povos originários, que caracterizam a atuação do presidente da República por violação de seus direitos pré-estatais, pré-colombianos, pré-cabralinos, numa ação que se caracteriza como crime de lesa humanidade. Poderá vir da Comissão de Anistia?

E é também a pergunta derradeira que faço a Maíra. Não sei se o sistema político está em condições de oferecer respostas criativas e avançadas para as exigências da transição. Maíra parece divisar mudanças atuais nos vários eixos que articulam o processo de justiça de transição no Brasil, principalmente reparação, reforma das instituições e justiça. Estaremos em condições de incrementar esses avanços? Como será que Maíra, hoje, membro indígena titular na Comissão de Anistia, percebe suas reais possibilidades, em seus pontos fortes e em seus pontos fracos, para inscrever em nossa experiência democrática um futuro que seja indígena?

 

 

José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil,  Professor Titular, da Universidade de Brasília,  Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua.

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