quarta-feira, 2 de dezembro de 2020

 

A Rua de Todo Mundo

Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito.

A Rua de Todo Mundo. Carolina Nogueira. Brasília: Longe/Edição da Autora. 2 edição, 2015. ISBN 978-85-916451-0-7.

A História de Você. Carolina Nogueira. Brasília: Longe/Edição da Autora, 2015. ISBN 978-85-916451-1-4.

                

         Agora, você … C R E S C E U. Coragem Sonhos Inteligência Sabedoria. Está pronto por dentro e por fora. Uma pessoa inteira. Humanidade Solidariedade Entusiasmo Amor.

            Assim Carolina Nogueira conta e também ilustra a história de você. Certamente ela está falando de seu filho, entre o Antes e o Para Sempre. Também ela vai falar e ilustrar A Rua de Todo Mundo, “livro que nasceu da generosa colaboração dos meus amigos do mundo todo”, numa história “da maior rua do mundo, a mais legal de todas. A rua de todo mundo”. Uma rua na qual “os vizinhos são ao mesmo tempo diferentes e bem parecidos”. Eu cheguei a esses livros “infantis” de Carolina Nogueira, da forma como em geral se chega a essas histórias escritas para crianças, mas que nos alcançam de modo inesperado.

            Meu primeiro contato, aliás, não foi com a escritora mas com a produtora de um instigante projeto Feirinha do Quadrado (https://www.feirinhadoquadrado.com.br/) que me convidou para participar de uma live abrindo a sessão de debates do projeto, para discutir o tema Quem tem direito a Brasília? Tal como se pode ver na página, a descrição da proposta estava assim orientada: “No primeiro debate, a Feirinha do Quadrado 2020 tem a alegria de receber o ex-reitor da UnB José Geraldo de Sousa Júnior, ideólogo do Direito Achado na Rua. Ele discute conosco e com Luísa Porfírio e Guilherme Black, da ONG No Setor, como o direito à moradia, à livre circulação e ao lazer é distribuído na cidade de Brasília. Pessoas que moram na rua, vendedores ambulantes, pessoas que não moram no Plano Piloto: quem tem direito a Brasília? Em que contextos os espaços urbanos são apropriados de maneira real, para além de eventos temporários?”.

           Conversamos um bom tempo ajustando expectativas e preparando possíveis abordagens. Penso que nos entendemos bem. Tal como no seu livrinho, antes e para sempre. Mas, sobretudo, no programa, conduzido por Carolina, que fez fluir a interlocução e a química, entre nós, os participantes. Deixo aqui o link para a gravação no youtube que pode ser conferida também no canal de O Direito Achado na Rua (https://www.youtube.com/watch?v=WThBPNXHbvg).

           A minha primeira intervenção foi exatamente, a pedido da moderadora, esclarecer o sentido e o alcance da expressão O Direito Achado na Rua. Falei das condições políticas e teóricas que abrem o tema do Direito às teorias críticas que o articulam ao social e não apenas às normas. Sustentando que os direitos são relações, não são quantidades. São as dimensões do humano que se realiza na história, no movimento das subjetividades que se emancipam. E não artefatos que se depositam em prateleiras legislativas e que se empoeiram e se fadigam em face das transformações que operam na sociedade.

           Por isso a metáfora da rua, para designar o espaço público, o lugar popular do poder como declama Castro Alves (O Povo ao Poder: pois quereis a praça?/ Desgraçada a populaça/ Só tem a rua de seu…); ou Cassiano Ricardo (Sala de Espera: Mas eu prefiro é a rua./ A rua em seu sentido usual de “lá fora”./ Em seu oceano que é ter bocas e pés/ para exigir e para caminhar./A rua onde todos se reúnem num só ninguém coletivo./ Rua do homem como deve ser:/ transeunte, republicano, universal./ Onde cada um de nós é um pouco mais dos outros/ do que de si mesmo./ Rua da procissão, do comício,/ do desastre, do enterro./ Rua da reivindicação social, onde mora/ o Acontecimento…); ou em Marshal Berman (Tudo que é Sólido Desmancha no Ar: aludindo à rua como o espaço no qual, em seus encontros e desencontros, ao reivindicar liberdade, justiça, cidadania e direitos, a multidão se transforma em povo.

           Por isso a imediata identificação desse tema comum, no meu projeto de pesquisa – O Direito Achado na Rua – e no livrinho de Carolina Nogueira – A Rua de Todo Mundo – “Um lugar onde tão lindas quanto as diferenças que existem entre as culturas são as semelhanças que aproximam todas as crianças do mundo”Assim, transformado em mote, fio condutor, para mostrar as disputas interpretativas e de apropriação da cidade, enquanto não formos capazes de vivenciar e compartilhar a cidade de modo solidário, ao invés de disputar projetos de cidade, conforme acentuaram meus colegas de live.

           Observe-se a atualidade do discurso higienista, refeita na intenção de “revitalização do Setor Comercial Sul” recuperado para a especulação imobiliária sem nenhuma política social de compensação para os seus usuários, apesar de todas as formas de inserção social nas políticas públicas de direito urbanístico e mais ainda de direito à cidade. O discurso do Governo distrital e as práticas repressivas, violadoras de direitos e destituintes do uso livre da cidade, permanece a mesma que a proferida pelo antigo prefeito de São Paulo, depois Presidente da República Washington Luís, sobre o projeto de recuperação da Várzea do Carmo (durante o seu mandato municipal entre 1914 e 1919), esvaziado de sua apropriação de uso para integrá-lo ao âmbito capitalista das troca e da mercadorização da cidade: “(O novo parque) não pode ser adiado porque o que hoje ainda se vê, na adiantada capital do estado, a separar brutalmente do centro comercial da cidade os seus populosos bairros industriais, é uma vasta superfície chagosa, mal cicatrizada em alguns pontos, e, ainda escalavrada, feia e suja, repugnante e perigosa, em quase toda a sua extensão. (…)

            É ai que, protegida pelas depressões do terreno, pelas voltas e banquetes do Tamanduateí, pelas arcadas das pontes, pela vegetação das moitas, pela ausência de iluminação se reúne e dorme e se encachoa, à noite, a vasa da cidade, em uma promiscuidade nojosa, composta de negros vagabundos, de negras edemaciadas pela embriaguez habitual, de uma mestiçagem viciosa, de restos inomináveis e vencidos de todas as nacionalidades, em todas as idades, todos perigosos. (…)

           Denunciado o mal e indicado o remédio, não há lugar para hesitações porque a isso se opõem a beleza, o asseio, a higiene, a moral, a segurança, enfim, a civilização e o espírito de iniciativa de São Paulo”.

           Os fundamentos que orientam a minha posição jurídica no tocante às questões que o debate suscita estão no nono volume de O Direito Achado na Rua: Introdução Crítica ao Direito Urbanístico (http://livros.unb.br/index.php/portal/catalog/book/17), que vem ampliar a série e é apresentado em um momento político que as liberdades democráticas, núcleo central do direito à cidade, encontram-se fortemente ameaçadas. Esperamos, assim, que as palavras aqui escritas ganhem vida e sirvam como repertórios de legitimação para as práticas insurgentes de resistência e de reinvenção das formas de sociabilidade democratizantes e libertárias em que nossas trajetórias pessoais e coletivas se inserem (https://correiodolivrodaunb.wordpress.com/2020/11/09/introducao-critica-ao-direito-urbanistico/).

           Ao fim e ao cabo, procurei, como se pode ver em minas locuções na live,  recuperar o sentido de polis que o social reivindica para o projeto de Brasília, e que orienta a ação e o discurso sobre a cidade, na disputa entre consumo e cidadania, e que precisa ir além da civitas e da urbs, a cidade bela e funcional, pensada no projeto e usufruída por sua elite descendente dos pioneiros e com sensível tensão com os descendentes dos candangos, e inserir na interpretação da cidade o lugar que só a história de protagonismos pode inscrever.

           Assim, recuperei a noção de cidade educadora para pensar respostas a essas tensões e o fiz resgatando texto de coluna que mantive na Revista do Sindjus DF – Sindicato dos Trabalhadores do Poder Judiciário e do Ministério Público da União no DF (Ano XVII, nº 59, junho/julho de 2009, p. 5). Com efeito, em 1990, em Barcelona, na Espanha, por iniciativa da Associação Internacional de Cidades Educadoras, realizou-se o 1º Congresso Internacional de Cidades Educadoras. Ao final desse Congresso foi elaborada uma Carta das Cidades Educadoras, chamada Declaração de Barcelona, contendo definições e princípios pelos quais se definem compromissos que levam a orientar os impulsos educativos da cidade.

           Uma cidade pode ser considerada educadora quando nela, além dos vários modos de ocupação de espaços, nos quais se realizam múltiplas interações e experiências do conviver, são disponibilizadas incontáveis possibilidades educacionais, contendo em si elementos importantes para a formação integral de seus habitantes.

           A cidade contém, de fato, como assinala a Carta de Barcelona, um amplo leque de iniciativas educadoras, de origem, intenções e responsabilidades diversas. Engloba instituições formais, intervenções não formais com objetivos pedagógicos preestabelecidos, assim como propostas ou vivências que surgem de forma contingente mas que favorecem a disposição para o aprendizado permanente de novas linguagens e que oferecem oportunidades para o conhecimento do mundo, o enriquecimento individual e o seu compartilhamento de forma solidária.

           No Brasil, já são oito os municípios que assinaram o termo de compromisso da Carta de Barcelona, entre eles São Paulo, Belo Horizonte e Porto Alegre. São cidades que podem, assim, trocar experiências bem-sucedidas segundo esses valores e que passam a desenvolver uma identidade constituída por investimentos culturais para a formação das pessoas que nela convivem. Elas procuram, enquanto cidades educadoras que pretendem ser, converter seu espaço urbano em “escola” e, na intencionalidade de suas atribuições, se oferecer como mediação para o desenvolvimento pleno de seus habitantes, contribuindo para que eles se façam sujeitos e cidadãos.

           Com efeito, ainda conforme a Carta de Barcelona, a cidade só será educadora quando reconhecer, exercitar e desenvolver, além de suas funções tradicionais (econômica, social, política e de prestação de serviço), uma função educadora cujo objetivo é a formação, promoção e desenvolvimento de todos os seus habitantes.

           Normalmente são identificados atributos para designar uma cidade educadora, a partir da constatação de que ela tem um governo eleito democraticamente e seus dirigentes se empenham em incentivar projetos de educação para a cidadania. Mas a análise histórica e social de qualquer cidade facilmente leva a identificar ações organizadas de movimentos sociais ou de comunidades de vizinhança que representam inúmeras iniciativas e experiências carregadas de sentido educador, por se caracterizarem como processos qualitativos de novas sociabilidades.

           O notável nesses processos é a construção de uma consciência social mais elevada. Aí reside o fator educador por excelência, na medida em que as pessoas que dele participam acabam conhecendo melhor as situações que fundamentam as decisões relativas à sua cidade e vivenciam de forma efetiva a experiência democrática.

           É possível pesquisar uma cartografia dessas práticas a partir de experiências apresentadas em congressos (www.edcities.bcn.es) ou em coletâneas que as registram, como a Coleção Cidades Educadoras (Editora Cortez/Instituto Paulo Freire/Cidades Educadoras América Latina, disponível nos sites www.paulofreire.org e www.cortezeditora.com.br.

           Elas são muitas e vão desde as práticas de orçamento participativo às de educação para a democracia, direitos humanos e cultura da paz. O que revelam de comum é o efeito irradiador, intercultural e mobilizador das redes e das instituições que se articulam nessa lógica de inclusão e de solidariedade, revelando o caráter aberto e irradiante da proposta de cidade educadora.

           Me apresentei no programa, ainda embalado pela leitura de uma dissertação que oriento no Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos e Cidadania da UnB, com o título imaginativamente interpelante de Oralituras Munduruku: as Histórias Contadas e a Justiça Cognitiva. O estudo tem como ponto de partida as mensagens coletadas nos livros de Daniel Munduruku, autor de literatura indígena, em geral escritas para o imaginário infantil – As Serpentes que Roubaram a Noite e Outros Mitos; Meu Avô Apolinário: Um Mergulho no Rio da (Minha) Memória; Todas as Coisas São Pequenas, Memória de Índio – Uma Quase Autobiografia – “sob a forma de transmissão de conhecimentos pelos guardiões da memória aos mais jovens”, diz Catherine Fonseca Coutinho, proponente da pesquisa. Com certeza essa leitura veio me empurrando para o encontro com a literatura infantil de Carolina Nogueira, ela também instigando a compreender que “todas as coisas têm um ciclo; criar, cultivar, ajudar a dar frutos, deixar ir: uma planta, uma ideia, um trabalho, um sonho, um amor, um livro, a vida”.

José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil,  Professor Titular, da Universidade de Brasília,  Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua

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