sexta-feira, 26 de janeiro de 2024

Lido para Você: Espelho D’água E Visibilidade: A Prática Dos Direitos Humanos Em Um Contexto De Desordem.

Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito

Espelho D’água E Visibilidade: A Prática Dos Direitos Humanos Em Um Contexto De Desordem. Pensilvania Silva Neves. São Paulo: LTr Editora; 1ª edição, 2009, 176 páginas.

          Abro o livro na página11. Logo um anúncio – Manto (mãos e textos), e a chamada para versos (Por mim. Pérola Negra: Cubro-me em véus de palavras, cascatas de letras que rondam o ar, caem levemente em fios coloridos de vozes, de mantos, de mãos, de textos…).

            A página me é referida – mestre do diálogo – e uma anotação que remete a meu primeiro comentário sobre o livro de Pensilvania (irmã de Georgia e de Virgínia), quando me trouxe a dissertação que oriente exposta sob a forma do livro que a LTr editou:

Se quiser, ela pode ser escritora. Tem a matéria-prima e o talento para essa vocação. Ainda que o seu trabalho seja jurídico, ele se expressa no diálogo com outros modos de conhecer.

Trata-se de um trabalho de teoria geral do direito. Esse diálogo entre a linguagem precisa do jurídico e a expressão aberta do discurso literário é o que permite a mediação entre a razão e a sensibilidade.

Se a literatura não é um delírio, mas a apropriação do real por meio de um outro discurso, a linguagem do direito não é um limite, mas um esforço para estressar-se como vocação para a liberdade.

Essa é a riqueza do trabalho de Pensilvania, combinar esses dois modos de expressão: ser jurista, mas de modo sensível; ser escritora, mas com compromisso emancipatório.

            Releio o livro (e nessa disposição não computo as leituras e releituras da dissertação) de Pensilvania em seguida à publicação na Coluna Lido para Você, da tese de Liliane Reis Marcon, professora e baiana como Pensilvania: https://estadodedireito.com.br/narrativas-literarias-desconstituintes/ – Narrativas literárias (des)constituintes. Tese de Doutorado defendida no Programa de Pós-Graduação em Direito. Brasília: UnB/Faculdade de Direito, 2023, 180 fls.

A tese de Liliane trata de O Constitucionalismo latino-americano percorreu caminhos descontínuos e tracejos coloniais, que oscilaram entre a instituição da linguagem de poder e o silenciamento. Devido à consolidação das democracias, entre o final do século XX e o início do século XXI, certo tensionamento passa a pressionar a sua lógica fundante, de limites ao arbítrio do poder e de legitimidade do poder constituinte. As minorias e os grupos vulneráveis, desapossados do poder e discurso jurídico, social e político dominantes, tornam-se questionadores da vontade hegemônica que, sob os auspícios da legitimidade, não deve comprometer as diferenças radicais e o pluralismo próprio das democracias. Assumindo esses pressupostos e com base nos aportes da Teoria Narrativista do Direito, da Filosofia da Linguagem e do Constitucionalismo Achado na Rua, investigo se as narrativas literárias insurgentes no final do último século, na América-latina, têm o condão de fornecer elementos denunciantes, críticos e reveladores de modo de existir e resistir que importem ao Constitucionalismo, fenômeno que ultrapassa os textos normativos constitucionais e se fortalece na Rua. Para tanto, articulo obras literárias e escritos de Daniel Mundukuru, Julie Dorrico e Férrez, entendidos, nessa pesquisa, como hipóteses reflexivas e privilegiadas de investigação”.

Sobre a tessse de Liliane, gosto de pensar e de constatar que ela valorizou essas vertentes, valendo-se inclusive de minhas referência em Lido para Você: Direito, Cinema e Literatura. E o fez para amarrar epistemologicamente os enunciados literários que escolheu como eixo narrativo para designar uma emancipação que humaniza, tomando a metáfora da rua, tal como assenta em sua conclusão nº 32, segundo o que, a rua, “é o ponto de chegada nesta pesquisa, pelas articulações propostas com o Constitucionalismo Achado na Rua, contribuições voltadas às associações dos desenvolvimentos das suas bases epistemológicas e da Literatura, e, igualmente, como referencial teórico possibilitador dos diálogos acadêmicos e institucionais, a partir daqui”.

Trata-se, ela diz, de compreender, e com isso fecho a resenha, que “o tempo da Literatura atravessa o Direito para fortalecer o Constitucionalismo Achado na Rua, visto ser um processo vinculado aos movimentos históricos. A Literatura foi o instrumento do possível para que os muitos contos, histórias e versos indígenas chegassem aos mais diversos leitores; para que muitos poemas e romances atravessassem os morros e favelas, rompendo a marginalidade. As organizações dos movimentos, que agregaram pessoas com objetivos comuns tornam mais claras as questões e aflições que unem aqueles que escrevem às margens”.

Também Pensilvania trilha esse caminho, no qual, ela diz, topografando a rua para nessa espacialidade (pensando em Milton Santos e a sua noção de espaços de cidadania, enquanto compreendem territórios como lugares em disputa na construção de sociabilidades quando se envolve relações humanas e suas produções materiais, formando uma geografia cidadã e ativa): “Reflexo e visibilidade capinam a diferença do cenário da igualdade excludente. Cegueira muda que entorna na discussão acerca da efetividade dos direitos humanos e do descompasso entre o mundo e o silêncio, a fala e o lugar: redução estrutural. O papel do direito problematizando o ser sendo narrativo com o outro diálogo, na Rua. A prática dos direitos humanos em um contexto de desordem”.

            Eis que, nessa topografia, dá-se o que para a Autora é Esconde-Esconde: Mas Fala, Mal Ouve, Mal Vê, título do capítulo 3, de seu livro, e modo de aferir “a efetividade dos direitos humanos [que] narra uma perspectiva que contempla, a partir do reconhecimento dos seus devires, a sua dimensão pedagógica”, pois, “narrar, pedagogicamente, os direitos humanos se traduz na intenção da diferença com a visibilidade – dela decorrente – com o outro; com a positividade do conflito e com o diálogo inseridos no espaço vazio das lutas sociais mediadas por tais direitos”.

            Então, com aquelas palavras soltas á guisa de apresentação, o querido colega e amigo Carlos Alberto Reis de Paula, o sensível ministro do TST, benemérito do América de Minas Gerais, natural de Pedro Leopoldo, de onde veio também seu contemporâneo e pasmem também ministro do TST, nosso querido amigo comum José Luciano de Castilho Pereira (tive a alegria de ter podido contribuir com um texto Novas sociabilidades, novos conflitos, novos direitos, para o livro organizado por Cristiano Paixão, Douglas Alencar Rodrigue e Roberto de Figueiredo Caldas – Os Novos Horizontes do Direito do Trabalho. Homenagem ao Ministro José Luciano de Castilho Pereira. São Paulo: Editora LTr, 2005), diz de encantamento, com o ler, e reler a dissertação e de novamente lê-la em sua forma livro, e poder re-encontrar “as ideias que transmite [e] têm vida. Mexem conosco. E as palavras também são vivas. Criam uma teia que nos envolve e, ao nos envolver, nos libertam. O jogo da forma e do fundo. Tudo com muita liberdade e espírito libertário”, enquanto mostram “direitos humanos que vêm sendo usados como reprodutores da ordem que domina, ao passo que o seu núcleo gerador é a liberdade”.

            Assim que para Pensilvania, “esses elementos combinados demonstram a dinamicidade que caracteriza a complexidade social e as diversas nuances dentro de um contexto que destaca a construção de direitos em relação. Construção que não se remete, apenas, à criação de novos direitos, mas, sobretudo, è indicativa da sua materialidade vivida em seus devires, em narração, no caminho da outridade, da rua”. Ao fim e ao cabo, Direitos Achados na Rua.

Em Poucas Palavras a autora resume o seu trabalho: “A formalização dos direitos humanos não é garantia para a sua efetivação. Ao contrário, observa-se a tutelar exclusão social no âmbito do estado democrático de direito. A compreensão da extensão e do alcance da temática que envolve a efetividade de direitos ultrapassa os limites de uma concepção normativa e antidialógica para fincar suas expectativas na aprendizagem, ou seja, considerando a possibilidade pedagógica dos direitos humanos e do direito. Movendo-se de um discurso verticalizado para a existência compartilhada…Trato, portanto, de uma outra dimensão jurídica dos direitos humanos – não normativa -, da sua perspectiva simbólica considerando as possibilidades pedagógicas que possam ser construídas com eles”.

               Talvez tenha sido essa a perspectiva que definiu os termos da relação de orientação. Eu ainda não havia, com Antonio Escrivão Filho, publicado Para um Debate Teórico-Conceitual e Político sobre os Direitos Humanos (Para um Debate Teórico-Conceitual e Político sobre os Direitos Humanos. Antonio Escrivão Filho e José Geraldo de Sousa Junior. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2016).

            Neste livro, aproveitamos uma reflexão por nós acumulada numa sequência de cursos e escritos que realizamos em conjunto em diferentes espaços e auditórios, construindo uma rica interlocução à base de algumas singularidades.

Sobre o que tratamos nesse livro pode ser melhor indicado em https://estadodedireito.com.br/para-um-debate-teorico-conceitual-e-politico-sobre-os-direitos-humanos/. Mas, de modo muito resumido cuidamos de uma condição de posicionamento.

De um lado, recusar a abordagem linear segundo a qual os direitos humanos se manifestam por etapas, como se fossem um suceder de gerações, em espiral evolutiva,  de cujo evolver naturalizado derivassem os direitos individuais, civis e políticos, seguidos dos direitos econômicos, sociais e culturais. Em vez disso, buscar conferir os processos ou as dimensões, designadas num cotidiano de afirmação e de reconhecimento, do qual emergem de modo indivisível, interdependente e integralizados os direitos humanos, manifestados ontologicamente na realidade instituinte e deontologicamente, abrigados num plano de garantias institucionalizado.

De outra parte, rastrear a emergência dos direitos humanos como projeto de sociedade. Vale dizer, na consideração de que não se realizam enquanto expectativas de indivíduos, senão em perspectiva de coletividade, como tarefa cuja concretização se dá em ação de conjunto.

Assim sendo, partimos do debate conceitual dos direitos humanos, para esboçar o panorama do cenário internacional e de sua emergência histórica, no mundo e no Brasil. Para, desse modo, articular o seu percurso no contexto da conquista da democracia, assim designada enquanto protagonismo de movimentos sociais, ao mesmo tempo sujeitos de afirmação e de aquisição dos direitos humanos. Em relevo, pois,  a historicidade latino-americana para acentuar a singularidade da questão pós-colonial forte na caracterização de um modo de desenvolvimento que abra ensejo para um constitucionalismo “Achado na Rua”. Problematiza-se, em conseqüência, os modos de conhecer e de realizar os direitos humanos, em razão das lutas para o seu reconhecimento, a partir das quais se constituem como núcleo da expansão política da justiça e condição de legitimação das formas de articulação do poder e de distribuição equitativa dos bens e valores socialmente produzidos”.Em suma, compreender os direitos humanos dentro de “um programa que dá conteúdo ao protagonismo humanista, conquanto orienta projetos de vida e percursos emancipatórios que levam à formulação de projetos de sociedade para instaurar espaços recriados pelas lutas sociais pela dignidade”.

Em todo caso, de modo compartilhado com Pensilvânia e outros estudantes, algo desse posicionamento já pudera ter sido antecipado em nossas rodas pedagógicas de conversas, por exemplo, em Educando para os Direitos Humanos: pautas pedagógicas para a cidadania na universidade. José Geraldo de Sousa Junior, Nair Heloisa Bicalho de Sousa, Alayde Avelar Freire Sant’Anna, José Eduardo Elias Romão, Marilson dos Santos Santana, Sara da Nova Quadros Côrtes (organizadores). Porto Alegre: Síntese, 2004,

            Também, para melhor referência, remeto a https://estadodedireito.com.br/educando-para-os-direitos-humanos/. Identificar então, uma exigência dialética de validação simultaneamente política e filosófica contida numa afirmação de princípio e na constatação de que “a história das declarações de direitos humanos não é a história de ideias filosóficas, de valores morais universais ou das instituições. É sim, a história das lutas sociais, do confronto de interesses contraditórios. É o ensaio de positivação da liberdade conscientizada e conquistada no processo de criação duma sociedade em que cessem a exploração e opressão do homem pelo homem”.

            Uma satisfação e um bom augúrio encontrar, no livro, ocupando as suas duas “orelhas”, o contundente comentário de minha colega, a professora Loussia Mousse Felix: “A obra demonstra a capacidade da autora de refletir sobre direitos humanos a partir do lugar em que, todos desejamos (…) no lugar das relações pedagógicas, em que somos simultaneamente aprendizes e mestres; em que modelos de formação centrados no docente, no professor ou instrutor devem se integrar a novas propostas que acolham tanto dimensões de autoridade acadêmica quanto perspectivas de reconstrução, tanto de conteúdos quanto de metodologias”.

            Retirei essa passagem abonadora do comentário. Mas gostaria de repô-la em seu contexto, referido a modelos de formação centrados no docente, no professor ou instrutor e não só no excerto, pois, como ela sustenta, devem se integrar a novas propostas:”Essa reconstrução não prescinde da ação discente. E Pensilvania, fiel a suas convicções teóricas e metodológicas, não se inibe em nos trazer suas escolhas narrativas centradas em uma mescla de considerações teóricas e linguagem poética”.

            Para concluir:

Estamos em tempos de afirmação de nossa igualdade pela garantia de que nossas diferenças sejam acolhidas e mesmo protegidas da homogeneização perniciosa dos valores, discursos e expectativas. E Pensilvania, nesse sentido, foi generosa em nos alertar que a linguagem, quando tradutora de conteúdos pertinentes, como é o caso de seu livro, deve também incorporar e expressar imaginação e subjetividade. Sua obra contém e oferece tanto criatividade quanto uma contribuição valiosa para a disseminação das relações entre Direitos Humanos e Educação. Por tudo isso, a publicação será, com certeza, uma contribuição importante em tempos em que essa vinculação, Direitos Humanos e processos educacionais formais e não formais, torna-se tanto mais sólida quanto deva garantir a multiplicidade de suas manifestações.

Falei antes em augúrio. É que ao reler o livro de Pensilvania para incluí-lo no acervo de recensões da Coluna Lido para Você deparei-me com a coincidência de que o revisitava no exato instante em que o MEC encaminha ao Conselho Nacional de Educação (Ofício Nº 45/2024/ASTEC/GM/GM-MEC, Processo SEI nº 23001.000054/2023-65), ato de criação da Comissão da Câmara de Educação Superior que trata da revisão geral das Diretrizes Curriculares Nacionais do curso de Graduação em Direito, concernente à Portaria CNE/CES nº 9, de 29 de novembro de 2023.

No ofício o ministro, “tendo em vista a relevância do tema e considerando a publicação da Portaria CNE/CES nº 13, de 15 de dezembro de 2023, encaminho, para avaliação desse Conselho, a indicação dos seguintes especialistas para contribuírem com os trabalhos da Comissão”.

O elenco é notável. Especialistas de alta representatividade e notoriedade, incluindo – algo estranhável dado o status do nomeado, o professor Silvio Luiz de Almeida, atual Ministro de Estado dos Direitos Humanos e da Cidadania. Mas um grupo muito heterogêneo cujos membros, na academia e nos espaços institucionais, associativos e corporativos de crítica e avaliação do ensino jurídico, alcançaram relevo nos anos recentes.

O bom augúrio é que registro entre os indicados, exatamente a professora Loussia Penha Musse Felix, cujas credenciais estão assim descritas no ato de indicação: “Doutora em Educação pela Universidade Federal de São Carlos – UFSCar, 1997; Mestre em Ciências Jurídicas pela Pon cia Universidade Católica do Rio de Janeiro, 1988; Bacharel em Direito pela Universidade Católica de Petrópolis – UCP, 1982. Professora, pesquisadora, líder de grupo de pesquisa (Direito e Educação da Universidade de Brasília – UnB). Especialista em Educação Jurídica, e em redes acadêmicas nacionais e internacionais nas áreas de Direito e Educação Superior. Docente no sistema público federal de ensino superior, atuando na Faculdade de Direito da Universidade de Brasília. Foi Erasmus Mundus Scholar da Rede de Ação Humanitária. Coordenadora da Área de Direito na América La na do Projeto Tuning – Inovação Social e Acadêmica. Membro do Comitê Execu vo da DHES – Rede de Direitos Humanos e Educação Superior – ALFA-Comissão Européia. Presidente do Conselho da Clínica de Direitos Humanos e Democracia da Universidade de Brasília”.

Dentre todos os nomes a professora Loussia de fato acompanha e participa da construção do modelo vigente de educação jurídica, desde os anos 1990, ainda como estudante de doutorado recolhendo material para o seu tema – educação jurídica – e já então participando dos esforços consertados que resultaram na edição da emblemática Portaria-MEC nº 1.886, de 30 de dezembro de 1994, que estabeleceu as diretrizes curriculares e o conteúdo mínimo atuais do curso jurídico.

A professora Loussia é do restrito grupo de operadores e hermeneutas desse campo, se consideramos o panteão que se reuniu para pensá-lo a contrepelo, e que figuram do elenco de autores e autoras que contribuíram para a proposição de enunciados constantes do livro OAB Ensino Jurídico. Diagnóstico, Perspectivas e Propostas. Brasília: OAB Federal/Comissão de Ciência e Ensino Jurídico, 1ª edição, 1992, respondendo aos 15 enunciados que balizaram a conjuntura de crise e a construção de figuras de futuro (expressão trazida para o livro por Roberto A. R. de Aguiar): refletidas na análise da realidade social, das novas demandas sociais, do perfil dos novos conflitos, dos novos processos sociais de autogestão da vida democrática e de organização das instâncias de solução de conflitos, das estratégias de ação coletiva e dos novos sujeitos e das novas dimensões da cidadania, de modo a tornar possível o conhecimento e a prática do jurídico e de seu ensino, num contexto de criação contínua de juridicidades que atualizam o social em criação permanente da sociedade.

Não é fraco o grupo constituído por esses formuladores. Entre os que acudiram ao chamado: Ada Pellegrini Grinover, Alberto Venânco Filho, Álvaro Melo Filho, Antonio Carlos Wolkmer, Benedito Calheiros Bomfim, Celso Campilongo, Cláudio Souto, Fábio Konder Comparato, Horácio Wanderlei Rodrigues, João Baptista Herkenhoff, João Maurício Adeodato, João Ricardo W. Dornelles, Joaquim Arruda Falcão, Jonathas Silva, José Eduardo Faria, José Reinaldo de Lima Lopes, José Ribas Vieira, Leonel Severo Rocha, Luciano Oliveira, Luis Alberto Warat, Marília Muricy, Miguel Pressburger, Paulo Lopo Saraiva, Plauto Faraco de Azevedo, Roberto O. Santos, Roberto Kant de Lima, Roberto Rosas, Ronaldo Rabello de Britto Poletti, Solange Souto, Tércio Sampaio Ferraz, Walter Ceneviva. Por trás, a voz silente de Roberto Lyra Filho. Indo além do roda-pé, puderam saltar o limite, da grade curricular, que enquadra a realidade e sua ideologização redutora, para emancipar o conhecimento, assim desdiciplinarizado e emancipado, política e epistemologicamente, pelas matérias (matérias não se confundem com disciplinas) em que se aninham estabelecidas pela sociedade interpelante. A educação é isso, saber dizer belas palavras, mas apropriá-las na direção do conhecimento e da transformação do mundo, como respondeu Fênix a seu pupilo Aquiles, a propósito do valor da sua finalidade (para ir à fonte dessa referência, veja-se Werner Jaegger, na Paidéia).

Na contracorrente do stand up corporativo (comediantes de empresas), permanece o campo reflexivo dos formuladores autoreflexivos que balizaram os esforços de qualificação e de adensamento da educação jurídica cujo trabalho deu lastro ao conjunto de diretrizes que marcam as últimas três décadas no campo, contadas desde a instalação da Comissão de Ensino Jurídico do Conselho Federal da OAB (conferir a farta bibliografia por ela produzida sob a retranca da Coleção Ensino Jurídico), caracterizando verdadeiramente uma reinvenção do ensino jurídico.

Incluo nesse acervo o volume substancioso OAB Recomenda: um Retrato dos Cursos Jurídicos. Brasília, DF: OAB, Conselho Federal, 2001, 164p.), quando do lançamento do selo de qualidade que a Entidade confere para indicar os cursos que alcançam os patamares de qualidade conforme os indicadores das Comissões de Ensino Jurídico e de Exame de Ordem. Trabalho, aliás, bastante referido pelo Autor da Tese.

Entre os trabalhos que emolduram o rol de cursos certificados na primeira edição do Selo OAB Recomenda, chamo a atenção para a exemplaridade ainda insuperável que proporciona, o texto da Professora Loussia P. Musse Felix – Da Reinvenção do Ensino Jurídico: Considerações sobre a Primeira Década. Texto seminal, orienta para o conhecimento e a hermenêutica de uma virada político-teórica-funcional, designada como “ponto de não-retorno” que designa esse formidável movimento de reinvenção do ensino jurídico.

Um pouco desse percurso eu o registrei em vários documentos da OAB, do MEC, do INEP. Da ABEDI, do CONPEDI, e os tenho atualizado criticamente na medida de minhas leituras correntes sobre dissertações e teses que têm se debruçado sobre esse processo dinâmico.

Menciono, para complementar a leitura do livro de Pensilvania, que arrolo entre esses estudos:

APOSTOLOVA,  Bistra Stefanova. Poder Judiciário: do Moderno ao Contemporâneo. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1998.

ENSINO JURÍDICO. A Descoberta de Novos Saberes para a Democratização do Direito e da Sociedade, de Fábio Costa Morais de Sá e Silva. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 2007, 288 p.

VETORES, DESAFIOS E APOSTAS POSSÍVEIS NA PESQUISA EMPÍRICA EM DIREITO NO BRASIL, de Fábio de Sá e Silva. Revista de Estudos Empíricos em Direito, vol. 3, n. 1, jan. 2016, p. 24-53.

SOUSA JUNIOR, José Geraldo de; COSTA, Alexandre Bernardino; e MAIA FILHO, Mamede Said.  A Prática Jurídica na UnB. Reconhecer para Emancipar, Coleção Prática Jurídica, vol. 1. Brasília: Faculdade de Direito da UnB/Ministério da Educação/Ministério da Justiça, 2007

Entrelugares de Direito e Arte: experiência artística e criação na formação do jurista, de Marta Regina Gama. Fortaleza: EdUECE, 2019

Ensino Jurídico, Diálogos com a Imaginação. Construção do projeto didático no ensino jurídico. Inês da Fonseca Pôrto. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2000

BELMONTE AMARAL, Luciana Lombas. Ensino jurídico e educação em direitos humanos: entre hierarquias sociais e redes de poder do mundo do direito — Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2019

A Experiência da Extensão Universitária na Faculdade de Direito da UnB. Alexandre Bernardino Costa (organizador). Brasília: Faculdade de Direito da UnB/Coleção “O que se Pensa na Colina”, vol. 3, 2007

Thiago Fernando Cardoso Nalesso. EDUCAÇÃO JURÍDICA BRASILEIRA: entre as Diretrizes Curriculares Nacionais e o Exame de Ordem.  Doutorado em Direito. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2021

Há outros trabalhos. Mas nesses que acabo de designar encontro um sólido balizamento para demarcar o campo em benefício da atenção atual que o tema vai certamente merecer.

Assim que ainda vou aludir aos trabalhos de Mauro Noleto e de Inês da Fonseca Porto, que juntamente com Bistra Apostolova (hoje professora na UnB), atuaram fortemente na gerência da Comissão de Ensino Jurídico do Conselho Federal da OAB e muito contribuíram para a organicidade do sistema de educação jurídica e as diretrizes de eu ensino.

 NOLETO, Mauro. Sujeitos de Direito. Ensaios Críticos de Introdução ao Direito. São Paulo: Editora Dialética, 2021 – https://estadodedireito.com.br/sujeitos-de-direito-ensaios-criticos-de-introducao-ao-direito/

É reconfortante constatar, no percurso de Mauro Noleto a fidelidade aos princípios que traçam o mapa desse percurso. Isso transparece dos fundamentos de seu projeto de pesquisa atual e também nas participações e intervenções funcionais ativadas nesse seu caminhar. Certo que seu mapa de navegação está tecnicamente aberto às inflexões operadas em razão das injunções que manifestam no seu trânsito, por isso que a sua salvaguarda de ancoragem é coerentemente fincada nos pressupostos de uma teoria crítica em seus fundamentos. Ainda quando o fluxo do seu agir se faça em terreno estritamente funcional, conforme, por exemplo, ao exercer assessoria  junto à Comissão de Ensino Jurídico do Conselho Federal da OAB, a direção que imprime ao seu movimento reflexivo, segue aquele cânone indicado por Boaventura de Sousa Santos, expressamente, no sentido, diz Mauro,  de que a teoria crítica deve partir de uma atitude insatisfeita, mas também autocrítica, pois, para Boaventura, a auto-reflexidade á a atitude de perceber criticamente o caminho da crítica. Mauro sustenta isso enquanto submete a juízo crítico o sistema de avaliação de cursos jurídicos desenvolvido pela OAB (NOLETO, Mauro Almeida. A Recomendação da OAB, Uma Nova Perspectiva para a Avaliação dos Cursos Jurídicos. In Comissão de Ensino Jurídico do Conselho Federal da OAB. OAB Recomenda. Um Retrato dos Cursos Jurídicos. Brasília: OAB Conselho Federal, 2001, p. 101-112).

Mauro aplica assim, concepção que aprofundou em seu trabalho acadêmico, combinando ensino, pesquisa e extensão universitária, quando em situação de responder a interpelações da realidade, no diálogo entre conhecimento e ação no mundo, quando o agir acadêmico é desafiado a abandonar a contemplação para atuar no sentido da transformação do mundo e a reconhecer a influência da teoria crítica, antes de tudo um filosofar na práxis.

 É de Mauro Noleto, o excerto a seguir transcrito:

Por isso, a distinção mencionada acima entre formas de aprendizado prático nos cursos jurídicos (assistência e assessoria) não se limita à questão metodológica, pois tem como pano de fundo os conflitos epistemológicos travados no campo da teoria do direito, em busca de uma compreensão mais alargada desse objeto de estudo…

(…) é possível perceber os elementos inovadores e emancipatórios da teoria jurídica crítica, mais especificamente, os marcos teóricos da Nova Escola Jurídica Brasileira, presentes no curso O Direito Achado na Rua, organizado e coordenado pelo professor José Geraldo de Sousa Jr,, quais sejam: a apreensão dialética do fenômeno jurídico, como enunciação e positivação histórica das conquistas concretas humanas, a partir dos conflitos sociais, pela ampliação e constante reorganização dos espaços de liberdade em sociedade; a compreensão de que este fenômeno, o Direito, é plural, isto é, surge em diversos contextos de produção normativa e, portanto, não se restringe ao contexto jurídico-legal, embora reconheça seja este um espaço privilegiado de produção do Direito na sociedade moderna; a superação do modelo individualista de subjetividade jurídica, de titularidade de direitos, forjado pelo pensamento idealista dos séculos XVII e XVIII, por sua compreensão atualizada da sociedade e de seus conflitos em sua dimensão coletiva, que fazem emergir novas formas de subjetividade em cada contexto em que se apresentam lutas pela superação das condições de opressão e de injustiça social, cultural, étnica, religiosa, classista…(NOLETO, Mauro Almeida. Prática de Direitos. Uma Reflexão sobre Prática Jurídica e Extensão Universitária. In SOUSA Junior, José Geraldo de; COSTA, Alexandre Bernardino (Orgs.). Direito à Memória e à Moradia. Realização de Direitos Humanos pelo Protagonismo Social da Comunidade do Acampamento da Telebrasília. Brasília: UnB/Faculdade de Direito/MJ/Secretaria de Estado de Direitos Humanos, 1996, p. 93-105).

Agora Inês: Ensino Jurídico, Diálogos com a Imaginação. Construção do projeto didático no ensino jurídico. Inês da Fonseca Pôrto. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2000 – https://estadodedireito.com.br/ensino-juridico-dialogos-com-a-imaginacao/

O livro de Inês da Fonseca Pôrto – Ensino Jurídico, Diálogos com a Imaginação – é um achado do selo editorial Sergio Antonio Fabris. Ele se coloca também como “tarefa e promessa” (Mills) de “espionamento do real pela imaginação”, capturando ângulos em que ele não se percebe observado e, desde a perspectiva de testemunho (“testemunho da construção do projeto didático-pedagógico na reforma do ensino jurídico”), avalia “o modelo central do ensino jurídico” e indica, na medida em que “a imaginação dê forma à vontade de transformação”, as possibilidades que ele comporta de abrir-se “a novas experiências – não vividas, mas possíveis”, como projeto de futuro.

Configurado a partir dos seus elementos característicos – a descontextualização (negação do pluralismo jurídico), o dogmatismo (exclusão das contradições e preservação dos processos unívocos de seu pensamento constitutivo) e a unidisciplinaridade (exclusividade de um modo de conhecer) – a Autora demonstra o impasse crítico a que chegou o modelo central de ensino jurídico e o esgotamento paradigmático de sua matriz positivista e formalista.

A abordagem de Inês Pôrto, fruto de seu protagonismo no processo, apreende nitidamente o foco de intervenção dos sujeitos nele engajados, principalmente o da Comissão de Ensino Jurídico do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil e interpreta, fielmente, a visão de crise do Direito que iluminou as reflexões sobre suas determinações e os elementos nucleares que ela articulou. Esses elementos, a meu ver (Anais da XVI Conferência Nacional da OAB) são, em sua dimensão epistemológica: 1) de representação social relativa aos problemas identificados; 2) de conhecimento do Direito e suas formas sociais de produção; 3) de cartografia de experiências exemplares sobre a autopercepção e imaginário dos juristas e de suas práticas sociais e profissionais. É por meio deles que se dá o balizamento para a superação da distância que separa o conhecimento do Direito de sua realidade social, política e moral, possibilitando a edificação de pontes sobre o futuro, através das quais possam transitar os elementos novos de apreensão e compreensão do Direito e de um novo modelo de ensino jurídico. O livro de Pensilvania Silva Neves vem se juntar a esse catálogo. Dou-lhe a palavra final, que aliás, fecha seu livro: “Trilhando essa perspectiva da efetividade dos direitos humanos, na qual se evidencia o caráter histórico, o narrativo, o político, o poético, o complexo, o pedagógico, a imagem, a ação – uma dimensão inconclusiva… – mantendo-me musicalidade, desencadernando a vida, abrindo a boca sentindo sentidos nos redores do mundo, construindo respeito à minha coexistência significativa no mundo, porque menos ar não há, retirando-me de dentro do com (o)pressor, vou me deslocando da quartinha para a terra da vida, do espelho d’água para a visibilidade.”

(*) José Geraldo de Sousa Junior é professor titular na Faculdade de Direito e ex-reitor da Universidade de Brasília (UnB) 

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