quarta-feira, 17 de janeiro de 2024

 

Narrativas literárias (des)constituintes

Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito.

 

Liliane Maria Reis Marcon. Narrativas literárias (des)constituintes. Tese de Doutorado defendida no Programa de Pós-Graduação em Direito. Brasília: UnB/Faculdade de Direito, 2023, 180 fls.

 

                             

 

Presidi, como Orientador da Dissertação, a Banca Examinadora da qual resultou a aprovação do trabalho. Também participaram da Banca a professora Angela Araújo da Silveira Espíndola (UFSM) que coordena a Rede Brasileira de Direito e Literatura; e os professores Gladstone Leonel Silva Júnior (UFF), Antônio Sergio Escrivão Filho (UnB) e Menelick de Carvalho Netto (UnB).

O contexto integral da apresentação e da defesa, para além do que demarco na Coluna pode ser conferido pelo Canal Youtube de O Direito Achado na Rua, pelo qual o evento foi transmitido, em cujo repositório permanece catalogado para acompanhamento dos estudiosos do tema: https://www.youtube.com/watch?v=3vjGMbd0Pik (Defesa da Tese de Doutorado de Liliane Mª Reis Marcon (PPGD/UnB)).

Desde logo o Resumo do trabalho para situar a leitura da Tese:

O Constitucionalismo latino-americano percorreu caminhos descontínuos e tracejos coloniais, que oscilaram entre a instituição da linguagem de poder e o silenciamento. Devido à consolidação das democracias, entre o final do século XX e o início do século XXI, certo tensionamento passa a pressionar a sua lógica fundante, de limites ao arbítrio do poder e de legitimidade do poder constituinte. As minorias e os grupos vulneráveis, desapossados do poder e discurso jurídico, social e político dominantes, tornam-se questionadores da vontade hegemônica que, sob os auspícios da legitimidade, não deve comprometer as diferenças radicais e o pluralismo próprio das democracias. Assumindo esses pressupostos e com base nos aportes da Teoria Narrativista do Direito, da Filosofia da Linguagem e do Constitucionalismo Achado na Rua, investigo se as narrativas literárias insurgentes no final do último século, na América-latina, têm o condão de fornecer elementos denunciantes, críticos e reveladores de modo de existir e resistir que importem ao Constitucionalismo, fenômeno que ultrapassa os textos normativos constitucionais e se fortalece na Rua. Para tanto, articulo obras literárias e escritos de Daniel Mundukuru, Julie Dorrico e Férrez, entendidos, nessa pesquisa, como hipóteses reflexivas e privilegiadas de investigação.

Palavras-Chave: Constitucionalismo Achado na Rua; Narativas Literárias latino-americanas; Narrativas Constituintes; Narrativas Literárias. 

 

Esses enunciados resumidos se desdobram no Sumário:

Linhas Introdutórias

CAPÍTULO 1: ÀS MARGENS COM O CONSTITUCIONALISMO  LATINO-AMERICANO

1.1       Dimensões narrativas do Constitucionalismo latino-americano

1.2       O giro narrativo no Direito: possibilidades constitutivas a partir da  Literatura

1.3       História, Literatura e Constitucionalismo: o boom da literatura latinoamericana

1.4       Novas narrativas        literárias          latino-americanas:      perspectivas decoloniais

CAPÍTULO 2: O QUE SE CONSTITUI ÀS MARGENS: NARRATIVAS LITERÁRIAS LATINO-AMERICANAS

2.1       Elementos essenciais para o constitucionalismo latino-americano

2.2       Contar para existir: novas narrativas literárias latino-americanas como   hipóteses reflexivas e privilegiadas de investigação

2.3       Identidade e Pertencimento em Vozes ancestrais: dez contos indígenas, de Daniel Mundukuru

2.4       Subjetividades e Memória em Eu sou Macuxi e outras histórias, de Julie  Dorrico

2.5       Resistência e Emancipação em Capão Pecado, de  Férrez

CAPÍTULO 3: ALÉM DAS MARGENS, HÁ A RUA: NARRATIVAS

(DES)CONSTITUINTES?

3.1       Desconstituir para ser: a utopia e a compreensão dos variados modos de  existência

3.2       Narrativas Descontituintes: possibilidades para além de um protagonismo ressentido em diálogo com as contribuições de Ailton Krenak

3.3       As novas narrativas literárias latino-americanas encontram a Rua: contribuições epistemológicas para o Constitucionalismo Achado na Rua

CONSIDERAÇÕES FINAIS

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Os objetivos estão distribuídos em três capítulos. No primeiro, “Às margens com o Constitucionalismo latino-americano”, procurarei demonstrar como a compreensão do constitucionalismo, enquanto fenômeno, pode se tornar mais apta ao diálogo com outros campos, se entendido a partir de suas dimensões narrativas (1.1); após, explico como o giro narrativo, fenômeno linguístico e filosófico, comum a todos os campos do conhecimento, exerce influência sobre o Direito (1.2); na sequência, apresento a intersecção entre Direito, História e Constitucionalismo, a partir dos influxos ocasionados pelo giro narrativo, para indicar como o boom literário latino-americano, nos anos 60 e 70, modificou as leituras possíveis entre as três áreas do saber (1.3); por fim, as novas narrativas literárias latino-americanas são apresentadas, com as suas características e peculiaridades emancipatórias para as reflexões sobre a decolonialidade do constitucionalismo (1.4).

No segundo capítulo, “O que se constitui às margens: narrativas literária latinoamericanas”, estabeleço quais são os elementos essenciais do constitucionalismo latinoamericano, a partir das experiências locais e suas particularidades (2.1); após, tracejo algumas questões formais e metodológicas necessárias para a realização de análise jus crítico-literária de obras latino-americanas, além de indicar os motivos delas serem entendidas nesta pesquisa como hipóteses reflexivas e privilegiadas de investigação (2.2); por fim, detalho, a partir das narrativas, como elas são reveladoras e denunciantes dos elementos essenciais do constitucionalismo-americano, a partir das análises dos conceitos de identidade e pertencimento em Vozes ancestrais: dez contos indígenas, de Daniel Mundukuru (2.3); de subjetividades e memória, em Eu sou Macuxi e outras histórias, de Julie Dorrico (2.4); de resistência e emancipação, em Capão Pecado, de Férrez (2.5).

No terceiro e último capítulo, “Além das margens, há a rua: narrativas (des)constituintes”, em diálogo com Roberto Lyra Filho, ressalto a importância de compreender o constitucionalismo entre os conceitos de utopia e distopia (3.1); após, indico que a leitura sobre narrativas literárias latino-americanas precisa se efetivar a partir de um olhar de maravilhamento, conceito extraído da filosofia de Ailton Krenak, e que possibilita que os protagonismos se estabeleçam para além do ressentimento, no sentido de ausências (3.2); por fim, no ponto de chegada desta investigação, situo a pesquisa dentro dos referenciais epistemológicos de o Direito Achado na Rua, a partir de sua construção histórica, principais desafios, em diálogo com as pesquisas desenvolvidas no campo, sobre Direito e Literatura, mas sobretudo a partir das contribuições desta pesquisa com o Constitucionalismo Achado na Rua.

Folgo em ter reencontrado na Banca a professora Angela Araujo da Silveira Espindola da UFSM – Universidade Federal de Santa Maria. Meu encontro anterior com ela se deu no Colóquio Internacional de Direito e Literatura que aconteceu em Brasília de 25 a 28 de outubro tendo como tema “Artes, Direito e Cidade”. Por indicação de meu colega Douglas Pinheiro que participa da Rede Brasileira de Direito e Literatura, atualmente sob a coordenação da professora Angela Espíndola, participei do painel (Po)éticas Urbanas: Narrativas de Justiça e Emancipação. Painel, de resto, moderado pela própria professora Angela Espíndola e que contou também com a participação dos professores Luiz Meliante Garcé (Universidad CLAEH/Uruguai; Grupo de Investigación de Derecho y Literatura de Uruguay, GRIDEL) e Marcelo A. Cattoni de Oliveira (UFMG).

O que ali apresentei reúne elementos de uma reflexão que tenho aqui e ali desenvolvido sobre o tema direito e literatura num enfoque que dialoga com a tese de Liliane Reis Marcon. São leituras que desvendam no discurso artístico o intuir que não precisa fundamentar, explicar ou revelar o real, o expõe em compreensão direta e sem mediações. Conforme lembra o grande acadêmico de Coimbra Eduardo Lourenço (Mitologia da Saudade. São Paulo: Companhia das Letras, 1999), “a literatura não é um delírio, mas a apropriação do real por meio de uma outra linguagem” (https://estadodedireito.com.br/lido-para-voce-direito-cinema-e-literatura/).

Em José Geraldo de Sousa Junior. Lido para Você: Direito, Cinema e Literatura – São Paulo: Editora Dialética, 2023. 168 p. (https://loja.editoradialetica.com/humanidades/lido-para-voce-direito-cinema-e-literatura), coleciono várias aproximações a esse tema. Numa delas fazendo alusão ao trabalho de Eliane Botelho Junqueira que só apresentei a Liliane depois de sua tese depositada, mas que considero valioso possa ser lida em suas análises futuras sobre o tema.

Com efeito, em seu livro “Literatura & Direito. Uma outra leitura do mundo das leis” (Rio de Janeiro: LetraCapital Editora/IDES – Instituto Direito e Sociedade, 1998), Eliane Botelho Junqueira trata dessa relação, acentuando vários aspectos dos vínculos entre as ciências sociais e a literatura para ampliar as percepções da realidade social. Ela põe em relevo nesse campo a disputa de diferentes análises sobre o direito desenvolvidas na academia, sobretudo norte-americana a partir do movimento direito e sociedade e direito e desenvolvimento para estabelecer esse novo campo de relações: “As correntes Law and economics, Law and society, critical legal studies, critical race theory e feminist jurisprudence, dentre outras, sem dúvida são conhecidos exemplos dessa efervescente produção acadêmica. Mais recentemente, o ‘movimento’ Law and literature conquistou importante espaço institucional” (pág. 21). A partir daí ela estabelece uma interessante distinção de tendências, a primeira denominada literature in Law, segundo ela, “tendo como origem remota os trabalhos de Benjamin Cardozo, (que) defende a possibilidade dos textos jurídicos – aqui incluindo-se leis, decretos, contratos, testamentos, contestações, sentenças etc – serem lidos e interpretados como textos literários” (pág. 22); e a segunda tendência, “conhecida como Law in literature, voltada para trabalhos de ficção que abordem questões jurídicas” (pág. 23).

No meu prefácio para Direito no Cinema Brasileiro, livro organizado por Carmela Grüne. São Paulo: Saraiva, 2017, anoto que essas tendências continuam fecundantes na cultura jurídica latino-americana, dotada de um imaginário que não se comporta apenas na racionalidade instrumental, mas que aspira a uma razão sensível, afetiva, para assimilar o alcance sugerido por Maffesoli. Ainda mais num ambiente nutrido pelo extraordinário favorável a nos permitir adentrar no realismo. Não sei se procede do Gabo (Gabriel Garcia Marques) a anedota do professor que interpelando seu aluno sobre ele ter lido a “Crítica da Razão Pura de Kant”, recebeu a resposta imediata, “não, mas assisti o filme”.

Registro aqui, o cuidado editorial, por exemplo, do Ministério de Justicia y Derechos Humanos, da Argentina, no sentido de preservar esse imaginário e procurar inculcar na cultura jurídica dos operadores do direito e da justiça portenhos a exigência do enlace entre direito e literatura. Indico a importância da leitura do livro “La letra y la ley. Estudios sobre derecho y literatura” (Buenos Aires: Infojus, 2014), organizado por Alicia E. C. Ruiz, Jorge E. Douglas Price (queridos amigos que estavam presentes no Colóquio de outubro em Brasília e Carlos María Cárcova (também dileto amigo, infelizmente recém-falecido. Tive ensejo de entrevistá-lo para o Observatório da Constituição e da Democracia: https://constituicaoedemocracia.com.br/2022/09/09/entrevista-com-carlos-maria-carcova-crise-de-representacao-e-constitucionalismo-na-america-latina/?fbclid=IwAR11elToEosWpbbzNhTNYfpxXryfA_39LPA20DCoMYwhGLGRBSDq8dNShGU), ele que se destaca como expoente nessa temática, ambos, Alícia e Cárcova, trazidos por Liliane em sua discussão.

Na Introdução a “La letra y la ley. Estudios sobre derecho y literatura”, coincidente com as tendências marcadas por Eliane Junqueira, Carlos Cárcova para além de reafirmá-las, ainda acresce: “outro tipo de articulación, una articulación ‘interna’ que permite descubrir notables analogias en el proceso de produción discursiva del derecho, por una parte y en el de la literatura en sentido amplio, por otra” (pág. IX).

Uma vertente marcantemente seguida em sentido mais epistemológico em Martha Nussbaun (https://estadodedireito.com.br/justicia-poetica-la-imaginacion-literaria-y-la-vida-publica/); e em sentido mais político em Gladstone Leonel Silva Junior (https://estadodedireito.com.br/cartas-de-viagem-historias-de-caminhos-nao-contados/).

Gosto de pensar e de constatar que Liliane valorizou essas vertentes, valendo-se inclusive de minhas referência em Lido para Você: Direito, Cinema e Literatura. E o fez para amarrar epistemologicamente os enunciados literários que escolheu como eixo narrativo para designar uma emancipação que humaniza, tomando a metáfora da rua, tal como assenta em sua conclusão nº 32, segundo o que, a rua, “é o ponto de chegada nesta pesquisa, pelas articulações propostas com o Constitucionalismo Achado na Rua, contribuições voltadas às associações dos desenvolvimentos das suas bases epistemológicas e da Literatura, e, igualmente, como referencial teórico possibilitador dos diálogos acadêmicos e institucionais, a partir daqui”.

Trata-se, ela diz, de compreender, e com isso fecho a resenha, que “o tempo da Literatura atravessa o Direito para fortalecer o Constitucionalismo Achado na Rua, visto ser um processo vinculado aos movimentos históricos. A Literatura foi o instrumento do possível para que os muitos contos, histórias e versos indígenas chegassem aos mais diversos leitores; para que muitos poemas e romances atravessassem os morros e favelas, rompendo a marginalidade. As organizações dos movimentos, que agregaram pessoas com objetivos comuns tornam mais claras as questões e aflições que unem aqueles que escrevem às margens”.

Que encontro notável vejo nessa conclusão, alusiva à ideia de margem. Liliane, tal como Roberto Lyra Filho pensam a margem como o lugar de inflexão do movimento que emancipa. Isso está fortemente designado no humanismo que Roberto Lyra Filho procurou imprimir à Nair – Nova Escola Jurídica Brasileira, a manjedoura de O Direito Achado na Rua. Mas está diretamente posto num fragmento que, curiosamente não se encontra em nenhum de seus textos, recuperado entretanto, num registro leal e fraterno de nosso amigo e colega comum Hildo Honório do Couto (Instituto de Letras da UnB), que salvou a expressão (cf. epígrafe em COUTO, Hildo H. O que é Português Brasileiro. São Paulo: Editora Brasiliense. Coleção Primeiros Passos n 164, 1ª edição, 1986): “Num sistema injusto, se quisermos ser sérios temos que ser marginais. Roberto Lyra Filho”.

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