segunda-feira, 18 de dezembro de 2023

 

Comércio de Armas e Cultura de Paz: Quando Lucrar se Torna Cumplicidade

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Uma notícia publicada na página do Instituto Humanitas, da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS) – https://www.ihu.unisinos.br/635234-grupo-de-freiras-processa-fabricante-de-armas-smith-wesson-por-armas-de-assalto, dá conta de que quatro congregações de religiosas consagradas entraram com uma ação contra o conselho da fabricante de armas Smith &Wesson em 5 de dezembro em um tribunal de Las Vegas, no dia anterior a um atirador matar três pessoas e ferir gravemente uma quarta no campus da Universidade de Nevada, em Las Vegas, a 8 quilômetros de distância.

 

 

Segundo a reportagem de Dan Stockman, publicada por America, 13-12-2023, as dominicanas de Adrian, Irmãs de Bon Secours, Irmãs de São Francisco de Filadélfia e as Irmãs dos Santos Nomes de Jesus e Maria entraram com o que é conhecido como um processo derivado, que, conforme explicado ao site Global SistersReport, é quando acionistas da empresa processam conselhos corporativos por supostamente falharem em suas responsabilidades com os acionistas. As irmãs afirmam que os diretores corporativos da Smith &WessonBrands expuseram a empresa a passivos enormes pela fabricação, venda e marketing de rifles estilo AR-15.

 

 

A perspectiva que se abre com o processo, se bem-sucedido, é a responsabilizaçãodos diretores da empresa por quaisquer custos associados ao marketing supostamente ilegal de rifles de assalto e quaisquer danos seriam pagos à Smith &Wesson, não aos autores da ação. O advogado das irmãs disse que este processo é o primeiro caso derivado contra um conselho corporativo sobre rifles de assalto: “Assim como as empresas farmacêuticas sendo castigadas por julgamentos civis e multas depois de anos de lucros com a venda de opioides perigosos, o conselho da Smith &Wesson ignora voluntariamente a exposição potencialmente arruinante que a empresa enfrenta por seu marketing e venda de armas projetadas especificamente para matanças em massa”, disse o advogado Jeffrey Norton em um comunicado anunciando o processo. “Estamos orgulhosos de nos associar a essas congregações de irmãs católicas que há muito buscam responsabilidade corporativa por meio de sua atividade acionista”.

 

 

A arma usada no tiroteio na UNLV acabou sendo uma pistola Taurus PT92, segundo a polícia, mas o processo das irmãs lista vários tiroteios em massa que envolveram rifles estilo AR-15 da Smith &Wesson.

 

 

Protocolado em um tribunal do distrito de Nevada, onde a empresa está registrada, o processo observa que cinco tiroteios em massa amplamente divulgados envolvendo rifles estilo AR-15 da Smith &Wesson foram perpetrados por homens entre 19 e 28 anos, alegando que a empresa os comercializou especificamente “para aproveitar o comportamento impulsivo e a falta de autocontrole de jovens homens”, apesar de um acordo anterior. O processo é o mais recente de uma série de ações movidas por freiras católicas; geralmente, elas se apresentam na forma de resoluções acionárias.

 

 

A ação das dominicanas segue uma linha de formulação político-moral que a partir da sociedade civil, sobretudo nos Estados Unidos, vêm propugnado porfimà violência com medidas que valorizem cultura de paz. Cidades norte-americanas entram na Justiça para receber de volta gastos com danos provocados por armamentos. Não só para buscar reparações (EUA processam fabricantes de armashttps://www1.folha.uol.com.br/fsp/mundo/ft28069905.htm); mas até para fazer incidir em co-autoria, o fabricante que descuida de salvaguardas para prevenir o excesso letal do uso de armas (https://www.estadao.com.br/internacional/em-decisao-inedita-fabricante-de-armas-e-condenado-nos-eua/).

 

 

No Brasil, já temos a demarcação dessas salvaguardas. Também da página do IHU -https://www.ihu.unisinos.br/categorias/632432-justica-determina-retirada-de-propaganda-on-line-de-armas-da-taurus-apos-acao-civil-publica-movida-por-comissao-arns-idec-rede-liberdade-e-intervozes, recupero decisão que define que a veiculação de anúncios publicitários de armas de fogo na internet e nas redes sociais viola a Constituição, o Estatuto do Desarmamento e o Estatuto da Criança e do Adolescente.

 

 

A iniciativa foi da Comissão Arns, que levou a 27ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) a decidir que a propaganda online de armas de fogo é ilegal e determinou a retirada “imediata e incondicional” de anúncios publicitários de armamentos da fabricante Taurus no Instagram e em seu site, sob pena de multa diária. A decisão foi tomada em recurso contra a fabricante de armas interposto por Comissão de Defesa dos Direitos Humanos D. Paulo Evaristo Arns – Comissão Arns, Idec (Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor) e Intervozes, com advogados da Rede Liberdade.

 

 

O acordão foi elaborado pelo desembargador Alfredo Attié, relator designado para o caso. O voto de Attié (com Alfredo Attié e outros colegas participamos de iniciativa judicial no STF para estabelecer a incapacidade de governar de Jair Bolsonaro e sua necropolítica – ver aqui no Jornal Brasil Popular: https://www.brasilpopular.com/o-judiciario-poderia-ter-definido-a-incapacidade-de-bolsonaro-para-governar/).

 

 

O acórdão sustenta que a publicidade de armas de fogo viola não só a definição constitucional de paz e segurança, mas também o Estatuto do Desarmamento e o Estatuto da Criança e do Adolescente. Assim, diante de anúncios publicitários de armas de fogo na internet, “fica o público exposto em larga extensão e profundidade a essa propaganda, sobretudo ilegal, o que prejudica sua formação e o futuro da sociedade livre, igual e solidária desejada pela Constituição”.

 

 

Não descuido das exigências de segurança na sociedade democrática. Já manifestei em artigo – Segurança, Democracia e Cidadania, in SOUSA JUNIOR, José Geraldo de. Ideias para a Cidadania e para a Justiça. Porto Alegre: Sergio Fabris Editor, 2008, p. 57-58 – lembrando o papel da polícia, qualquer polícia, de prevenir e gerenciar conflitos. Mas acentuando que a ação da polícia numa democracia tem como pressuposto o estado de direito, no qual, como condição democrática, os cidadãos ou os seus representantes têm ascendência sobre as ações das instituições e dos agentes públicos.

 

 

Todos os dias o noticiário exibe ocorrências de altíssima gravidade envolvendo atitudes letais facilitadas pela disponibilidade de armas de fogo. Enquanto escrevo localizo matéria atual – https://www.terra.com.br/noticias/brasil/cidades/quem-e-e-como-agiu-empresario-que-atirou-em-policiais-nos-jardins-segundo-policia,cf6cb89eb8af2f4b6f1deadec0888b36dbqkjqpg.html# – dando conta de homicídio duplo e morte decorrente de intervenção policial pelo Departamento Estadual de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP), unidade da Polícia Civil acionada quando o caso envolve a morte de agentes da corporação. Segundo o boletim de ocorrência inicial, a perícia encontrou na casa duas pistolas de calibre .45 e .380, usadas pelo dono da casa durante a reação à abordagem.

 

 

Mas o quadro geral da violência pela facilitação de acesso a armas de fogo, hoje sabidamente, uma intencional política para a formação de milícias, não só urbanas mas também rurais, ao limite engajáveis em mobilizações golpistas contra a democracia, a constituição e ao estado de direito democrático, está configurado em estudos e pesquisas que dão uma medida visível de sua resultante. Para números gerais ver o estudo do IPEA – https://www.ipea.gov.br/atlasviolencia/filtros-series/5/bitos-por-armas-de-fogo.

 

 

Na mesma linha, levantamentos oficiais – https://forumseguranca.org.br/publicacoes_posts/armas-de-fogo-e-homicidios-no-brasil/. Nesse estudo específico, a conclusão é a de que “a violência letal no Brasil atingiu o recorde histórico em 2017, quando mais de 64 mil pessoas foram assassinadas e a taxa de mortalidade chegou a 30,9 por 100 mil habitantes. Desde 2018, no entanto, o país tem reduzido anualmente a taxa de mortes violentas intencionais, chegando a 22,3 em 2021. A partir de 2019 o Governo Federal passou a afrouxar a legislação sobre armas e munições, fazendo com que houvesse crescimento vertiginoso nos registros e compras de armas em todo o país. O objetivo principal desse trabalho foi investigar se a redução da letalidade violenta seria consequência da mudança na legislação. Para tanto, desenvolvemos uma análise econométrica de dados em painel com o uso de variável instrumental, como forma de resolver os problemas de endogeneidade presentes. Os resultados robustos e estatisticamente significantes indicaram que quanto maior a difusão de armas, maior a taxa de homicídios. Isso implica dizer que se não fosse a legislação permissiva quanto às armas de fogo, a redução dos homicídios (provocada por outros fatores, como o envelhecimento populacional e o armistício na guerra das facções criminosas após 2018) teria sido ainda maior do que a observada. Com base nesse cálculo aproximado, estimamos que se não houvesse o aumento de armas de fogo em circulação a partir de 2019, teria havido 6.379 homicídios a menos no Brasil. Ou seja, o aumento da difusão de armas terminou por impedir, ou frear uma queda ainda maior das mortes”.

 

 

Uma escalada, aliás, já antevista pela UNESCO, desde 2015, conforme https://brasil.un.org/pt-br/69515-unesco-mapa-da-viol%C3%AAncia-revela-que-116-brasileiros-morrem-todos-os-dias-por-arma-de-fogo.

 

 

E olha que nem estou recortando os dados no sentido da violência como ação política em sua aplicação neocolonial (ou decolonial), racista, misógina, de classe, que se institucionaliza e se faz estrutural, contra negros, mulheres, indígenas, camponeses, trabalhadores, presidiários.

 

 

Já me debrucei sobre esses enfoques ao resenhar estudos muito qualificados, aos quais remeto, conforme https://estadodedireito.com.br/comissao-pastoral-da-terra-conflitos-no-campo-brasil-2022/, a propósito de Comissão Pastoral da Terra. Conflitos no Campo Brasil 2022. Centro de Documentação Dom Tomás Balduino (Cedoc-CPT). Goiânia: CPT Nacional, 2023, 254 p.

 

 

Também tratei disso na minha Coluna O Direito Achado na Rua, aqui no Brasil Popular ao comentar a recente publicação do Relatório do CIMI – Conselho Indigenista Missionário, organismo da CNBB – Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, conforme https://www.brasilpopular.com/as-chamas-do-odio-e-a-continuidade-da-devastacao-relatorio-do-cimi-sobre-violencia-contra-os-povos-indigenas/.

 

 

Nessa direção caminhava o esforço dos segmentos mais democráticos e politizados do país, quando o Congresso Nacional estabeleceu a realização, em 23 de outubro de 2005, um referendo popular, previsto no Estatuto do Desarmamento, como instrumento de consulta democrática, para que a população, com o voto obrigatório dos eleitores, decida se é ou não favorável à “proibição da comercialização de armas de fogo, acessórios e munições”.

 

 

Com o Estatuto do Desarmamento, procurava-se estabelecer mecanismos de restrição à posse de armas tanto para os cidadãos como para policiais e militares; controle de armas de fogo com a centralização dos registros e portes e de munições. Com a Campanha, busca-se a adesão da população para os fundamentos morais dessa política, voltados para o desenvolvimento de uma cultura de paz.

 

 

Precisamos retomar esse imperativo político-democrático, pois essa é uma questão que se coloca na perspectiva ética que busca desenvolver e aperfeiçoar sistemas alternativos de produção, fundados em concepções de comércio justo, que reclamam regimes jurídicos especiais para atribuir condições justas às suas práticas, inspiradas em movimentos que se põem contra toda forma de mercadorização e trivialização da vida no social.

 

 

 

 

 

(*) José Geraldo de Sousa Junior é professor titular na Faculdade de Direito e ex-reitor da Universidade de Brasília (UnB)


José Geraldo de Sousa Junior é graduado em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal – AEUDF, mestre e doutor em Direito pela Universidade de Brasília – UnB. É também jurista, pesquisador de temas relacionados aos direitos humanos e à cidadania, sendo reconhecido como um dos autores do projeto Direito Achado na Rua, grupo de pesquisa com mais de 45 pesquisadores envolvidos.

 

Professor da UnB desde 1985, ocupou postos importantes dentro e fora da Universidade. Foi chefe de gabinete e procurador jurídico na gestão do professor Cristovam Buarque; dirigiu o Departamento de Política do Ensino Superior no Ministério da Educação; é membro do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil – OAB, onde acumula três décadas de atuação na defesa dos direitos civis e de mediação de conflitos sociais.

 

Em 2008, foi escolhido reitor, em eleição realizada com voto paritário de professores, estudantes e funcionários da UnB. É autor de, entre outros, Sociedade Democrática (Universidade de Brasília, 2007), O Direito Achado na Rua. Concepção e Prática 2015 (Lumen Juris, 2015) e Para um Debate Teórico-Conceitual e Político Sobre os Direitos Humanos (Editora D’Plácido, 2016).

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