quinta-feira, 7 de dezembro de 2023

 

A História da CPI é a História do Brasil

Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito.

 

 

Victor de Oliveira Martins. “A História da CPI é a História do Brasil”: Gestão da burocracia, crise democrática e pânicos morais na CPI do MST. Trabalho de conclusão de Curso apresentado ao Curso de Direito do Centro de Ciências Jurídicas da Universidade Federal da Paraíba, no Departamento de Ciências Jurídicas – Santa Rita, como exigência parcial da obtenção do título de Bacharel em Ciências Jurídicas, 2023, 99 fls.

Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito

Victor de Oliveira Martins. “A História da CPI é a História do Brasil”: Gestão da burocracia, crise democrática e pânicos morais na CPI do MST. Trabalho de conclusão de Curso apresentado ao Curso de Direito do Centro de Ciências Jurídicas da Universidade Federal da Paraíba, no Departamento de Ciências Jurídicas – Santa Rita, como exigência parcial da obtenção do título de Bacharel em Ciências Jurídicas, 2023, 99 fls.

 

Tive a satisfação, amplificada por razões que logo se verá o que as justifica, de participar da banca examinadora do trabalho de conclusão de curso de bacharelado em Direito apresentado por Victor de Oliveira Martins, para avaliação da banca examinadora constituída pelo orientador professor Roberto Cordoville Efrem de Lima Filho, e pelos estimados colegas e amigos professores Ana Lia Vanderlei de Almeida e Hugo Belarmino de Morais.

Do que trata o trabalho diz bem o seu resumo:

Neste trabalho, tenho por objetivo analisar a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) instituída com a finalidade de investigar a atuação do Movimento dos Trabalhadores e das Trabalhadoras Rurais Sem Terra (MST). A análise parte de uma observação discursiva, com inspiração etnográfica. Para tanto, utilizo-me de um diário enquanto instrumento de coleta das narrativas produzidas ao longo das atividades da CPI, suas reuniões deliberativas, audiências públicas e diligências. Uma vez reunido o corpus da pesquisa, há um esforço de compreensão sobre os mecanismos que atravessam e, de certa forma, legitimam a atuação dos(as) deputados(as) da comissão: 1) a defesa do discurso técnico; 2) a crise democrática e o contexto político-eleitoral brasileiro; e 3) o acionamento de pânicos morais. Nesse processo, importa compreender a relação dos sujeitos presentes da comissão com os diversos campos da vida social a que eles aduzem, evidenciando engrenagens discursivas, mobilizações políticas e relações de poder

E como ele se desenvolve, indica o seu sumário:

1 INTRODUÇÃO

1.1 A escolha do problema de pesquisa

1.2 Metodologia, instrumento e corpus de pesquisa

1.3 Estrutura do texto e divisão dos temas

2 O REGIMENTO E A POLÍTICA: FATOS (IN)DETERMINADOS, SUJEITOS E O

TERRAPLANISMO AGRÁRIO

2.1 O embate em torno do relator da CPI

2.2 O presidente da CPI enquanto sujeito regimental

2.3 “Essa CPI não tem fato determinado”

 2.4 A verdade dos fatos, guerra cultural e o “terraplanismo agrário”

3 CPMI DO 8 DE JANEIRO, CRISE DEMOCRÁTICA E A FIGURA DO TERRORISTA

3.1 “A democracia. Isso eles estavam defendendo. Essa é a democracia dessas pessoas”

3.2 Lula e Bolsonaro: quem defende a “verdadeira” reforma agrária?

3.3 Outubro de 2022 e Janeiro de 2023: a CPI e suas linhas político-temporais

3.4 Paz, Terror e a Missão da CPI

4 PÂNICOS MORAIS NA CPI: FAMÍLIA, CRIANÇAS, COMUNISMO, TRÁFICO E ESCRAVIZAÇÃO

4.1 Em defesa das crianças e das famílias do Campo

4.2 Gênero, Classe e Raça na CPI

4.3 Trabalho análogo à de escravo

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

5.1 O relatório de Salles

5.2 O relatório paralelo

5.3 Zucco e Salles derrotados no fim trágico da CPI?

 

Devo por em relevo que o trabalho de Victor é a primeira elaboração acadêmica que se debruçou sobre a atuação da CPI do MST, com a perspectiva de uma análise crítica sobre suas motivações, escopo, contradições e resultados.

Eu próprio, em diversos momentos, fiz intervenções públicas, em espaços de opinião, mas para marcar posição, contribuir com a construção de narrativas que explicitasse assumir lado, nessa disputa, inclusive ideológica, de posicionamento.

Logo ao ser instituída na Câmara, mobilizei-me na intenção de caracterizar essa iniciativa parlamentar como uma estratégia que desde há muito venho caracterizando como uma atuação desdemocratizante e desconstituinte, lembrando que contra essas estratégias desconstituintes e desdemocratizantes já há acervo constitutivo para pensar outras possibilidades, em sede constitucional, de conferir “definição jurídica diferente”, descriminalizando e politizando no sentido instituinte, condutas que ampliam acesso a direitos. No volume 3, da Série O Direito Achado na Rua: Introdução Crítica ao Direito Agrário. Brasília: Editora da UnB/Editora da Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2002 organizado por mim, Mônica Castagna Molina e Fernando da Costa Tourinho Neto (então Presidente da Associação dos Juízes Federais), agora com uma astúcia que não disfarça a contrafação dos grupos que aparelham o institucional legislativo (cf. https://www.brasilpopular.com/nova-estrategia-do-latifundio-agronegocio-uma-cpi-para-confrontar-o-mst/).

Logo, no contraponto dessa tomada de posição, o ter podido, nas circunstâncias de ter sido convidado a prestar depoimento na CPI, não só esclarecer o ponto a partir do qual lanço minha vista sobre a questão mas, à luz do convite, o poder discorrer sobre a própria CPI, seu contexto, traçar um diagnóstico da situação agrária no Brasil, e a legitimidade dos protagonismos, o MST em destaque, e a legitimidade de sua ação política para fazer realizar a promessa constitucional da reforma agrária.

Esse foi o centro de minha exposição na CPI, aliás, sintetizada por Victor na monografia. Claro que, para prevenir reduções ou vieses, o que de fato aconteceu e Victor também registra revelando o modo sibilino como o Relator distorce meu depoimento para o apropriar de modo paradoxal em seu relatório, apresentei texto escrito que balizava minha manifestação requerendo – o que foi deferido – mas tendo sido sonegado o seu registro, nos anais da Comissão. Por isso que, cuidei de publicar seu inteiro teor em veículos independentes de comunicação (https://www.brasilpopular.com/cpi-do-mst-contexto-e-diagnostico-da-situacao-agraria-brasileira/).

Deveria me restringir a esses registros. Ocorre que conforme se tornou notório, o meu depoimento ganhou grande visibilidade comunicacional, vindo a se constituir um inusitado fenômeno de projeção do tema e de suas razões, trazendo para o social um outro modo de compreensão sobre a realidade da questão objeto da CPI.

Uma dimensão incidental, mas altamente midiática dessa ressonância que meu depoimento proporcionou, deriva do debate que se travou com a bancada agronegociante e seus aliados à direita do enfrentamento político, gerando um comentário muito agudo do escritor Muniz Sodré, sobre a miséria da cognição (https://www1.folha.uol.com.br/colunas/muniz-sodre/2023/08/a-miseria-da-cognicao.shtml), em sua coluna no Jornal Folha de São Paulo: “Nas redes, uma cena penosa do que se pode hoje chamar de miséria da cognição: a tentativa de diálogo entre um sênior professor de direito e uma jovem deputada na Câmara Federal. Ele procura explicar que toda compreensão implica um recorte da realidade, mas aferrar-se ao recorte com uma visão particular de mundo torna impossível o conhecimento. Ela reage, dizendo-se ofendida por ter ele ousado afrontar o plenário com “conceitos acadêmicos”. O incidente pode soar irrisório, mas é um caso sintomático do que Gramsci chama de “molecular”, isto é, o processo reflexivo sobre formação da subjetividade, em que se declina o problema político da compreensão crítica de si mesmo, e não apenas do social. Implica pesquisar mudanças psíquicas: “as pessoas de antes não são mais as pessoas de depois”, diz o pensador. Molecular, e não macrossocial com suas grandes categorias, é a base conceitual para se entender processos afetivos e protofascistas atuantes na quebra de contenções psíquicas, morais e cognitivas inerentes ao modo civilizatório”.

O que importa é ter logrado fixar um outro ponto-de-vista acerca dessa questão. Por isso que me tocou muito o comentário publicado originalmente no Jornal A Tarde de Salvador (https://www.brasilpopular.com/artigo-contra-o-terraplanismo-agrario/), assinado por Tiago Rodrigues Santos – Jornal Brasil Popular/DF em 4 de julho de 2023. professor do PPGEDUCAMPO/CFP/UFRB, pesquisador do GeografAR-UFBA, do NUCAMPO/UFRB e do LaPPa/CERES/UNICAMP.  Para Tiago Santos:

Após um mês de atuação, a CPI do MST – que insisto, é uma CPI contra os povos do campo, das águas e das florestas – só confirma o propósito para que foi instalada: criminalizar a luta pela terra e territórios. Convenhamos, uma CPI que tem Ricardo Salles como relator, aquele que foi o ministro do desmatamento do Governo Bolsonaro, e convida para falar Ronaldo Caiado, um latifundiário e outrora presidente da UDR, não teria outro objetivo.

Mas chamou atenção numa das audiências da CPI a participação do professor José Geraldo de Sousa Júnior, ex-reitor da UnB . Nas quase quatro horas de conversa e embates, o que se viu foi um depoimento consistente e embasado, técnica e politicamente, que honrou todos os estudiosos da Questão Agrária Brasileira. O que se viu foi um depoimento contra o terraplanismo agrário que permeia a cosmovisão da maioria dos membros da CPI.

O professor lembrou aos membros da CPI que a democracia e a própria existência do Parlamento são frutos das lutas sociais que irromperam o Brasil no processo de redemocratização dos anos de 1980 e foi naquele contexto que MST se tornou um dos maiores e mais destacados movimentos do País. Explicitou que a questão agrária brasileira é marcada pela violência e pelos conflitos, que parte daqueles que temem uma reforma agrária ampla e popular, e, por isso, a questão agrária continua sendo um caso de polícia.

Lembrou a todos que o termo invasão não pode ser atribuído ao MST, pois o Movimento ocupa para fazer cumprir a Constituição e exigir a Reforma Agrária. E, como já disse neste espaço outras vezes: alguma reforma agrária só tem sido feita no País quando os movimentos sociais ousaram lutar e ocuparam áreas improdutivas e em desacordo com a legislação ambiental e trabalhista. Observou que o MST luta contra os cinco séculos de latifúndio, fonte contínua da nossa desigualdade socioterritorial. Lembrou que foi a luta do MST que permitiu a milhares de pessoas acesso à terra, educação e cidadania. Recordou que o MST, e outros movimentos, que durante a pandemia prestaram solidariedade à sociedade, distribuíram alimentos a quem tinha fome e, por este ato, foram lembrados e saudados pelo Papa Francisco. Lembrou a todos que nos países democráticos a reforma agrária se tornou fundamento da justiça social e da própria democracia, sobretudo da democracia participativa.

O depoimento do professor José Geraldo lavou a alma dos pesquisadores e grupos de pesquisa vinculados às causas populares, como o GeografAR-UFBA e o LaPPa/CERES/UNICAMP. Assim como o professor, estes e tantos outros grupos não desvinculam as ações acadêmicas do compromisso com o povo e da esperança de uma terra sem males e sem latifúndios.

 

Volto ao texto de Victor, para conferir a estrutura do texto que ele elaborou e a divisão metodológica dos temas antecipados no Sumário.

Tal como o próprio Autor indica, no primeiro capítulo do texto, intitulado “O Regimento e a Política: fatos (in)determinados, sujeitos e o terraplanismo agrário”, ele busca analisar a dinâmica estabelecida no interior da CPI do MST enquanto um processo constitutivo na produção de suas narrativas e diligências. Trata-se – diz ele – de um esforço analítico preocupado em levantar discussões acerca do “fato determinado” da CPI, requisito constitucional para seu processo de investigação, assim como das contradições que emergem em torno disso. Além disso, importa compreender a relação entre os sujeitos que compõem a CPI e as normas que condicionam a natureza de suas atividades, complexificando os discursos parlamentares em torno de categorias como “verdade”, “técnica” e “ideologia”. Nessa discussão, a sua preocupação, ele esclarece, está em analisar a gestão da burocracia, os métodos produtores da verdade e as fronteiras entre a fantasia e a norma.

No segundo capítulo, conforme o Autor, intitulado “CPMI do 8 de janeiro, crise democrática e a figura do terrorista”, ele situa o contexto histórico-político em que a CPI do MST está inserida, de modo a procurar compreender como o resultado das eleições presidenciais de 2022 e os atos golpistas praticados no dia 8 de janeiro de 2023 contribuem para uma conjuntura de crise democrática na comissão e no Brasil. A partir disso, emergem disputas em torno da defesa/ataque de Lula e de Bolsonaro, em torno da legitimação/deslegitimação da CPI do MST e da CPMI do 8 de janeiro, que se valem de um discurso salvacionista contra a figura do “terrorista”. Nesse passo, ele se vale de reflexões que, negando uma neutralidade valorativa ao tema, aponta que o terrorismo é um fenômeno político e socialmente construído que se inscreve em um processo de regulação e normatização da vida social.

Ainda neste capítulo, ele diz partir da análise na descrição do contexto agrário brasileiro, como forma de evidenciar os conflitos em torno da atuação do MST em relação à luta pela reforma agrária no Brasil. Ele esclarece que, em razão de o movimento ser alvo de investigação da CPI, as discussões travadas em reuniões e audiências públicas envolvem temas que vão desde o embate em torno das ocupações e dos assentamentos ou, como são denominados pelo grupo A, invasões, até quadros político-econômicos de produção agrícola por pequenos agricultores e pelo agronegócio. Ainda que tais questões possam, na dinâmica da comissão, ser consideradas enquanto background de um “revanchismo político”, elas importam na medida em que criam um terreno para o debate sobre a função social da propriedade (Sousa Filho, 2021), os conflitos no campo (CPT, 2023) e a defesa de direitos humanos.

Por fim, no terceiro capítulo, intitulado “Pânicos Morais na CPI: família, crianças, comunismo, drogas e escravização”, o Autor afirma querer descortinar os discursos de deputados e deputadas da comissão que, constitutivamente, atendem a pânicos morais atravessadores do tema da CPI, respaldados em convenções morais de gênero, sexualidade, conservadorismo e religião. Nesse sentido ele quer problematizar o processo de constituição de sujeitos, alguns situados enquanto vítimas, como se observa na defesa das crianças e da famílias, enquanto vetor de comoção e angústia para legitimação das narrativas e das atuações parlamentares na comissão.

O trabalho aponta para o fim melancólico da CPI com o fiasco de sequer ter logrado aprovar seu relatório, constrangida a bancada leal ao movimento ruralista de ter que improvisar em corredor – já não dispondo de plenário oficial para a leitura – um púlpito para seu estertor discursivo.

O Autor procura guardar uma distância prudente no sentido de aferir um ganha e perde que pudesse caracterizar esse fim melancólico. Tal como afirma na conclusão:

Com a multiplicidade de temas levantados pelos(as) deputados(as) que compõem a CPI, tanto no grupo A quanto no grupo B, não apenas nas entrevistas coletivas, mas ao longo de todo o funcionamento da comissão, parece-me simplista a noção de atrelar o desfecho da CPI do MST a uma vitória ou uma derrota. Busco me aproximar mais à perspectiva de Plínio Sampaio, à época Presidente da Associação Brasileira de Reforma Agrária (ABRA), quando ele afirmou, na apresentação da publicação do relatório vitorioso da CPMI da Terra no início dos anos 2000, que “Relatórios de CPIs são documentos históricos. Registram a conjuntura política do momento, não obstante o fato de que uns falseiam a realidade e outros a desvendem.

Estou de acordo com o Autor. Mesmo que se considere uma vitória, o frustrar-se o movimento anti-povo que insistentes CPIs buscam criminalizar a luta social por democracia, direitos e outro projeto de sociedade (essa foi a 5ª CPI, incluindo a do CIMI, que buscou desqualificar o Movimento sem Terra), aqui apenas travou-se mais um round do pugilato tremendo que divide o país, entre exploradores e explorados, opressores e oprimidos.

Por isso, também concordo com o Autor quando diz em sua conclusão, aludindo ao relatório paralelo peça que também forma o acervo discursivo das posições em disputa:

Por fim, em seu tópico mais extenso denominado “Reforma Agrária e Movimentos Sociais”, o relatório paralelo reforça a posição de José Rainha, José Geraldo de Sousa Júnior e João Pedro Stédile, no intuito de defender a legitimidade dos movimentos sociais amparada na liberdade de organização, a ocupação enquanto um método reivindicatório de direitos e a participação social nas políticas públicas. As conclusões decorrentes são que, sem um fato determinado e com o objetivo de criminalizar movimentos sociais do campo, a CPI fracassou, por não comprovar factualmente irregularidades e crimes cometidos pelo MST. Ao contrário, a comissão serviu para evidenciar as desigualdades no campo e para fortalecer as lutas sociais. Nessa toada, o relatório realiza recomendações de fiscalização do PNRA por parte do TCU e da CGU, de recomposição orçamentária do INCRA e de outros órgãos/programas imprescindíveis à reforma agrária no Brasil, além de resolução efetiva dos conflitos fundiários a partir do Sistema de Justiça e do Poder Executivo.

Muito importante, no trabalho, recuperar o relatório alternativo que a articulação progressista atuante na CPI cuidou de elaborar. É certo não ter havido deliberação, nem sobre o relatório do Relator, nem sobre o relatório alternativo. Mas o evento, político no mais agudo sentido dessa expressão, opera não apenas para os anais do Parlamento mas, como indica o título da monografia, para os anais da História. Por isso o gesto performático de instalar um púlpito, mesmo nos corredores, já não havendo plenário para nenhum pronunciamento oficial. E daí a importância de visualizar o relatório alternativo, fortemente examinado na monografia. Pois, o que mais preocupava (preocupa) no Relatório de Salles não é o texto, frágil, falacioso e vulnerável. São os anexos, com muitas propostas de medidas legislativas, essas sim, altamente danosas para os movimentos sociais e para o MST. Se tivesse sido aprovado o relatório, com essa cauda, sem debate, sem exame de suas proposições, teria se dado o condão de repristinar todo o estoque de proposições criminalizadoras que hibernam nos escaninhos do processo legislativo, para se instalar, como parasitas, em qualquer matéria que vise a tipificar ações de movimentos sociais e sujeitos coletivos de direito*.

Do que se cuida, mostra o trabalho de Victor de Oliveira Martins, o que também eu procurei salientar em meu texto apresentado à CPI. Vale dizer, assim como a Academia leva a sério esse tema, também o Congresso que se constitui, pela força instituinte dos movimentos sociais que lhe deram feição e alcance constituinte, pode e deveria ser o promotor da valorização de um programa de atuação emancipadora que caracteriza o MST e que lhe angaria reconhecimento quase universal. Claro que o MST é conflito, mas insisto, também é projeto.

            * Lista dos Projetos de Lei anexados ao Relatório (nº 2) de Ricardo Salles – CPI/MST:

 

1)         PL do Capitão Alden (2023), que aumenta a pena do art. 161 (esbulho possessório)

2)         PL do Capitão Alden (2023), que altera a Lei Antiterrorismo para caracterizar a “invasão armada de terras particulares, terrenos, lotes, casa ou imóvel rural” como crime de terrorismo

3)         PL da Caroline De Toni (2023), que altera dispositivos na Lei 8.629 de 1993 (Lei da Reforma Agrária)

4)         PL da Caroline De Toni (2023), que altera o art. 161 do CP para qualificar o crime de invasão e esbulho possessório (invasão de terreno) – reclusão de 12 a 30 anos

5)         PL da Caroline De Toni (2023), que altera a Lei Antiterrorismo para tornar o crime de terrorismo o esbulho possessório

6)         PL da Caroline De Toni e do Ricardo Salles (2023), que susta o Decreto nº 9.311 de 2018 que regulamenta e Lei da Reforma Agrária e a Lei que trata dos créditos concedidos aos assentados (Lei nº 8.629, de 25 de fevereiro de 1993, e a Lei nº 13.001, de 20 de junho de 2014)

7)         PL do Coronel Assis (2023), que determina que movimentos sociais adquiram personalidade jurídica (esse PL é assinado por outros 24 parlamentares). (“Os movimentos sociais e populares identificados e organizados em mais de três Estados, com destaque na imprensa local e nacional, enquadram-se como entidades do Terceiro Setor, devendo adquirir personalidade jurídica, nos termos disciplinados no Código Civil e na legislação especial, para o seu regular funcionamento e responsabilização civil e penal.”)  

8)         PL do Coronel Chrisóstomo (2023), que altera o art. 161 (esbulho) no CP para aumentar as penas para os crimes de esbulho possessório e usurpação de água

9)         PL do Coronel Ulysses (2023), que altera a Lei do PAA para impedir que participantes de conflitos fundiários sejam beneficiários ou fornecedores no Programa

10)       PL do Delegado Fabio Costa (2023), que Cria as Delegacias Especializadas em Conflitos Fundiários (esse PL é assinado por outros 41 deputados)

11)       PL de 2003 (sem identificação de autoria no texto), que tipifica no CP o crime de terrorismo (inclusive por motivações políticas) – esse PL incorre em vícios formais, uma vez que em 2016 foi aprovada a Lei 13.260/2016, Lei Antiterrorismo)

12)       PL do Marcos Pollon (2023), que dispõe que ocupantes e invasores de terra e os condenados pelo crime de esbulho possessório não podem ser beneficiários de programas do governo federal e/ou tomar posse em cargos públicos

13)       PL do Evair de Mello que altera o CPC, o CP e a Lei Antiterrorismo para aumentar as penas contra turbação e esbulho possessório

14)       Resgata o PL 1595, de autoria do Major Vitor Hugo, que dispõe sobre as ações antiterroristas

15)       Regata projeto de Lei de 2014 de autoria do Jair Bolsonaro para ampliar a concessão de portes de armas

16)       Resgata PL de 2018 do Jerônimo Goergen, que dispõe sobre o abuso do direito de articulação de movimentos sociais

17)       PL do Kim Kataguiri (2023) que altera a Lei 13.465/2017 (regularização fundiária rural e urbana) para reduzir de 5 para 3 anos o tempo de posse mansa e pacífica no imóvel

18)       PL do Kim Kataguiri (2023) que altera o art. 161 do CP (crime de esbulho possessório)

19)       PL do Messias Donato (2023), que altera o art. 19 da Lei da Reforma Agrária para permitir a inscrição online no programa (confirmar que é só isso)

20)       PL do Ricardo Salles (2023), que susta a Resolução nº 510 de 2023 do CNJ que regulamenta a expedição dos mandados de reintegração de posse (a partir da APDF dos Despejos) – “Art. 14 da Resolução. A expedição de mandado de reintegração de posse em ações possessórias coletivas será precedida por audiência pública ou reunião preparatória, na qual serão elaborados o plano de ação e o cronograma da desocupação, com a presença dos ocupantes e seus advogados, Ministério Público, Defensoria Pública, órgãos de assistência social, movimentos sociais ou associações de moradores que prestem apoio aos ocupantes e o Oficial de Justiça responsável pelo cumprimento da ordem, sem prejuízo da convocação de outros interessados”

21)       PL do Rodolfo Nogueira (2023) que “proíbe o financiamento do poder público a organizações envolvidas em atividades ilegais”

22)       PL do Rodolfo Nogueira (2023), que determina a criação do Cadastro de Invasores de Propriedades

23)       PL do Rodolfo Nogueira (2023), que altera as penas para os crimes de esbulho e turbação

24)       PL do Rodolfo Nogueira (2023), que altera a Lei 11.952 de 2009 para fixar tempo para o processo de titularização fundiária

25)       PL do Zucco (2023), que susta a Resolução nº 510 de 2023 do CNJ que regulamenta a expedição dos mandados de reintegração de posse (a partir da APDF dos Despejos) (igual ao do Salles já listado acima, mas esse do Zucco está assinado por outros 46 deputados)

**Agradeço ao professor Pedro Brandão, assessor da bancada do PSOL na Câmara dos Deputados, a preparação da Lista de Projetos.

***A fera do latifúndio hiberna mas tem despertares intermitentes. O perigo não cessa. Me informa ainda o professor Pedro Brandão: [13:20, 03/12/2023] Pedro Brandao: Nesta última semana entrou em pauta o projeto do Pollon. Felizmente, por articulação dos líderes, não chegou a ser votado. Mas precisamos ficar atentos (“12)PL de Marcos Pollon (2023), dispõe que ocupantes e invasores de terra e os condenados pelo crime de esbulho possessório não podem ser beneficiários de programas do governo federal e/ou tomar posse em cargos públicos”).

 

 

José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil,  Professor Titular, da Universidade de Brasília,  Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua.

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