Artigo:
Nós, a gente honesta
É possível que essa
sanha punitivista se arrefeça agora que a criminalidade, depois do 8 de janeiro
de 2023, veste colarinho branco
Correio Braziliense, OPINIÃO,
domingo, 11/02/2024, pág. 11
JOSÉ GERALDO DE SOUSA
JUNIOR
Ex-reitor da UnB
(2008-2012); coordena o projeto O Direito Achado na Rua
A Comissão de Segurança
Pública (CSP), do Senado Federal, aprovou na terça-feira, 6 de fevereiro,
Projeto de Lei (PL) 2.253/2022 que restringe o benefício da saída temporária
para presos condenados. O projeto, da Câmara dos Deputados, recebeu relatório
favorável do senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ) e segue para a Comissão de
Constituição e Justiça (CCJ), com requerimento de urgência aprovado para a
votação da matéria no Plenário
Os parlamentares se
pautam numa impressão, muito mais fruto do senso comum que de dados precisos,
de que a saída temporária tem trazido problemas na execução da pena, com a
consideração de evasão e pior, de que esses presos cometem crimes. Essa
impressão é sabidamente errônea, conforme referências técnicas. E mesmo
jornalisticamente, o G1, por exemplo, ofereceu a informação, que "pouco
mais de 52 mil presos deixaram a prisão na saidinha de Natal de 2023. Dos 52
mil, 49 mil retornaram (ou 95%) e somente 2,6 mil (ou 5%), não
retornaram". Um dado quase irrelevante para justificar substituir
políticas penais, de reabilitação e de reinserção social, por opções
punitivistas fáceis e ao gosto da reação social.
A rejeição
epistemológica da abordagem preliminar e causal de crime questiona, em
contrapartida, o próprio fenômeno da incriminação como pressuposto e base de
toda análise das condições de emergência do delito, assim procurando as suas
raízes histórico-sociais. O ponto de partida para o estudo sistemático do crime
não é indagar por que alguns se tornam criminosos e outros não; mas perguntar,
primeiro, por que alguns atos são definidos como criminosos e outros não.
Com esses contornos,
Roberto Lyra Filho traçou um programa dotado de elementos paradigmáticos para
reorientar estudos criminológicos em perspectiva crítica, desde que os direitos
humanos, em vez de definições legais operantes, possam ser adotados para marcar
o comportamento criminoso, tanto de indivíduos que negam esses direitos a
outros, e são criminosos, como igualmente criminosas são as relações e os
sistemas sociais que causam a abrogação destes direitos.
Penso que um tanto
desse apelo ao midiático se reduziu ao que se tem chamado de ideologia do
punitivismo e que esteve no cerne do conjunto de medidas de combate à corrupção
— erigida em metonímia da categoria criminalidade — reunidas no PL 4850/16 —
(Estabelece Medidas Contra Corrupção, que tomou na Comissão Especial da Câmara
instalada para o examinar o número: 1017/16 24/08/2016-16), como no PL que quer
restringir saídas.
Convidado pela
Presidência da Comissão e pela Relatoria da proposta a expor no plenário minha
posição sobre o assunto comecei por lembrar, por exemplo, que a crítica ao
punitivismo é uma leitura de um sentido civilizatório, cujo roteiro, sustenta
Evandro Lins e Silva, revela a história do direito penal como a história da
contínua mobilização na direção da abolição da pena de prisão.
Num texto de Evandro
(De Beccaria a Filippo Gramatica. Uma visão global da história da pena. Edição
do autor, 1991), ele traz para nossa atenção uma leitura do então ministro
Francisco de Assis Toledo, ex-integrante do Superior Tribunal de Justiça, que
presidiu a Comissão Especial para reforma do Código Penal, segundo o qual em
grave equívoco incorrem, frequentemente, a opinião pública, os responsáveis
pela administração e o próprio legislador, quando supõem que, com a edição de
novas leis penais, mais abrangentes ou mais severas, será possível resolver-se
o problema da criminalidade crescente.
Essa concepção do
direito penal é falsa porque o toma como espécie de panaceia que logo se revela
inútil diante do incremento desconcertante das cifras da estatística criminal,
apesar do delírio legiferante de nossos dias. Não percebem os que pretendem
combater o crime com a só edição de leis que desconsideram o fenômeno criminal
como efeito de muitas causas e penetram em um círculo vicioso invencível, no
qual a própria lei penal passa, frequentemente, a operar ou como fator
criminógeno ou como intolerável meio de opressão.
Agora que nos deparamos
com uma nova orientação no campo da Justiça e da segurança pública, talvez se
abra a possibilidade humanista, já demonstrada pelo ministro Lewandowski quando
foi presidente do Supremo Tribunal Federal e colocou no seu programa a educação
dos magistrados para a cidadania e os direitos humanos. Essa sim é uma política
pública de vanguarda, que estimula a pacificação de conflitos, a redução do
desarmamento, o controle de fronteiras e o financiamento de um mercado clandestino
e altamente lucrativo.
É possível que essa
sanha punitivista se arrefeça agora que a criminalidade, depois do 8 de janeiro
de 2023, veste colarinho branco e alcança, passados 85 anos da Conferência de
Sutherland, lançando a tese do white colar crime (1939), e da famosa exposição
de Séverin-Carlos Versele, perante o Consórcio Europa de Investigações
Políticas, em abril de 1976, ocasião em que formulou a sua célebre noção
relativa à cifra dourada da delinquência, a nossa consideração criminológica sob
o impacto de práticas de agentes em posição muito privilegiada, enfim cominadas
de caráter delinquencial. O benefício da saída, que se erigiu em direito, em
sentido civilizatório, corre o risco de voltar a ser um privilégio para nous,
les gens honnêtes, que não entendemos por que nos colocam no calabouço.
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