Quais as relações entre neoliberalismo, florestania e o agronegócio desenvolvido na Amazônia e no Acre
Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito
César Claudino Pereira. Quais as relações entre neoliberalismo, florestania e o agronegócio desenvolvido na Amazônia e no Acre. Tese defendida no Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade de Brasília – UnB, 2025, 256 fls.
A tese foi defendida e aprovada perante a Banca Examinadora presidida pelo professor Alexandre Bernardino Costa, orientador, do PPGD/UnB, dela participando como membros arguidores as professoras Andrea Maria Lopes Dantas, Universidade Federal do Acre /UFAC, Josina Maria Pontes Ribeiro do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Acre/IFAC e por mim. O trabalho se desenvolveu no âmbito do programa interinstitucional de doutorado em Direito UnB/UFAC.
Do que trata a tese diz o seu resumo, no qual é apresentada também a síntese dos capítulos em que o trabalho está organizado:
Esta tese analisa quais as relações entre o neoliberalismo, Florestania e o agronegócio desenvolvido na Amazônia e no Acre. O estudo foi realizado a partir da realidade do Acre e da forma como a Florestania foi idealizada, implementada e seus possíveis resultados, sendo esse o objetivo geral desta pesquisa. Trata-se, assim, de uma pesquisa qualitativa, pois buscou compreender as percepções e entendimentos sobre a Florestania e o Neoliberalismo no contexto amazônico. Para isso, foram utilizados documentos públicos e particulares, análise de livros, artigos científicos e publicações acadêmicas sobre o tema. O problema da pesquisa consiste em responder à seguinte pergunta: Da forma como a Florestania foi implementada, pode ser considerada uma política neoliberal? A tese foi estruturada em cinco seções. Inicialmente, foram discutidos aspectos históricos relacionados à Amazônia, à Florestania e ao Neoliberalismo, sendo de suma importância entender que o bioma existe há mais de 11 mil anos. A história nos possibilita ultrapassar as narrativas contemporâneas promovidas pelos grandes meios de comunicação que polarizam a informação sem considerar as peculiaridades da Amazônia. No terceiro capítulo, o objetivo foi realizar uma análise crítica e abrangente da política da Florestania no Acre, implementada nas últimas três décadas. A pesquisa focou em compreender a origem e o desenvolvimento dessa política, bem como as suas características e a influência que ela exerceu sobre o curso do Estado. No quarto capítulo, buscou-se contextualizar o conceito de Florestania com base na realidade da Resex (Reserva Extrativista Chico Mendes) e na linha de pesquisa do O Direito Achado na Rua. A Resex é uma área territorial protegida que visa preservar os modos de vida e a cultura das comunidades tradicionais, garantindo o uso sustentável dos recursos naturais locais, o que se alinha com o ideal da Florestania. Esse ideal busca promover a cidadania para os povos da floresta e a construção de um novo pacto social e natural no qual a humanidade se relacione com o meio ambiente de maneira respeitosa e saudável, em consonância com os princípios do desenvolvimento sustentável. Por último, o quinto capítulo analisou a expansão do agronegócio na Amazônia Legal, com ênfase no estado do Acre. Defende-se que a política de integração nacional, aplicada durante o regime militar, desempenhou um papel crucial em estimular a ocupação da região e o crescimento das atividades agropecuárias. Outro objetivo foi destacar caminhos viáveis e elementos concretos, com o propósito de investigar novas estratégias e soluções inovadoras para superar os obstáculos ambientais e promover uma convivência harmoniosa entre a sociedade e o meio ambiente, visando, assim, estabelecer um futuro no qual a relação entre o ser humano e a natureza seja equilibrada e sustentável. A pesquisa revelou que a Florestania dependia totalmente de recursos financeiros provenientes tanto de fontes nacionais quanto internacionais para a realização de seus objetivos. Isso levou o Estado do Acre a assumir dívidas que impactam negativamente sua capacidade de investimento na atualidade, devido aos encargos financeiros decorrentes dos empréstimos obtidos, muitos dos quais ainda estão ativos.
O Auto da tese exercita uma abordagem difícil que é a de estabelecer relações entre neoliberalismo e agronegócio por meio de uma mediação inscrita na categoria florestania adotada como política regional de desenvolvimento numa governança de extração popular instalada como enclave num sistema capitalista radical.
Ora, Florestania é um conceito que articula direitos, cidadania e práticas de manejo sustentável em territórios de floresta, especialmente na região amazônica. A palavra combina “floresta” e “cidadania”, indicando uma proposta de desenvolvimento que valoriza os modos de vida tradicionais, o uso sustentável dos recursos naturais e a garantia de direitos socioambientais. Surgiu como parte do debate sobre sustentabilidade e políticas públicas na Amazônia, principalmente nas décadas de 1990 e 2000.
Na origem, Florestania refere-se à cidadania associada às populações que vivem em e da floresta. É o reconhecimento do direito desses grupos ao uso sustentável dos recursos naturais, à manutenção de seus modos de vida tradicionais e à proteção de seus territórios. Está vinculada à ideia de justiça socioambiental, que busca equilibrar a preservação ambiental com o bem-estar social e econômico das comunidades locais. Enfatiza uma nova forma de pertencimento e desenvolvimento sustentável, distinta da lógica de produção agrícola tradicional voltada para monoculturas e pecuária intensiva.
O conceito emergiu no contexto de discussões sobre modelos de desenvolvimento para a Amazônia que respeitassem os modos de vida das populações tradicionais, como seringueiros, povos indígenas, ribeirinhos e quilombolas. Foi influenciado por movimentos sociais, como o liderado por Chico Mendes, que promoviam a ideia de que a floresta poderia ser economicamente viável sem a sua destruição. E está relacionado a políticas públicas como a criação de Reservas Extrativistas (RESEX), que têm como objetivo garantir o uso sustentável dos recursos naturais e os direitos das comunidades locais.
Na prática, florestania se localiza em contextos onde as populações manejam a floresta de forma sustentável, extraindo produtos como látex, castanha, açaí, óleos vegetais e outros bens não madeireiros. Difere da lógica da agropecuária tradicional, pois prioriza a biodiversidade, a conservação do bioma e a valorização das práticas locais. Está profundamente associada a economias de base comunitária e a iniciativas que integram agroecologia e conservação ambiental. Enquanto tal, o conceito de florestania é uma resposta ao modelo tradicional de desenvolvimento agrário que frequentemente resulta em desmatamento e exclusão social. É uma categoria que pode ajudar a reimaginar políticas agrárias que conciliem produção, sustentabilidade e inclusão social, particularmente em territórios florestais.
Quero dizer que então Chefe de Gabinete do Reitor Cristovam Buarque quando da redemocratização da universidade brasileira e da Universidade de Brasília em concreto, a partir dos anos 1985 a 1989 (período do mandato), acompanhei a ação de diálogo (universidade necessária, leal às expectativas do social, conforme Darcy Ribeiro), participei da agenda estabelecida na universidade sobretudo com os movimentos sociais. Vi se instalar na UnB o 1º Encontro de Seringueiros, sob a liderança de Chico Mendes e da presença ativista de militantes sindicais do Acre (Xapuri), nas discussões que resultaram no criação do conceito de Reserva Extrativista (RESEX), um espaço territorial protegido que tem como objetivo a preservação da cultura e dos meios de vida das populações tradicionais, além de garantir o uso sustentável dos recursos naturais da área. As RESEX são áreas públicas, mas o uso é concedido às populações extrativistas tradicionais.
Sobre esse conceito e outros que lhe são associados já fiz aqui neste espaço da Coluna Lido para Você um exercício de compreensão, a partir da banca de titulação do professor José Heder Benatti, da UFPA, um notável formulador nesse tema, depois de ter participado como examinador da banca (UMA TRAJETÓRIA ACADÊMICA: DO AGRARISMO AOS DIREITOS SOCIOAMBIENTAIS. JOSÉ HEDER BENATTI MEMORIAL ACADÊMICO. Concurso para Professor Titular da UFPA. Instituto de Ciências Jurídicas da Universidade Federal do Pará. Belém, 2021) – https://estadodedireito.com.br/uma-trajetoria-academica-do-agrarismo-aos-direitos-socioambientais/.
A partir do escopo da discussão referida, é possível dar-se conta de que a experiência brasileira no reconhecimento das terras tradicionalmente ocupadas (ou territórios tradicionais) levou à criação de diferentes estatutos dominicais e, consequentemente, de diferentes categorias fundiárias. Na prática, temos as terras indígenas – TI; os quilombos; as reservas extrativistas (terrestres e marítimas) – Resex; as reservas de desenvolvimento sustentáveis – RDS; os projetos de assentamentos agroextrativistas – PAE; e os projetos de desenvolvimento sustentáveis – PDS. E que, apesar de se tratar de categorias fundiárias de dominialidade pública, na lógica legal do Estado cada categoria estabelece suas próprias regras de utilização (usus), desfrute (usus fructus), disposição material (abusus) e disposição jurídica (alienatio), fortemente marcadas pela concepção civilista do direito de propriedade e que têm repercussões direta na autonomia dos povos e comunidades tradicionais no usufruto de seus territórios tradicionais.
Assim, pois, a experiência da política pública levada a efeito na conjuntura e nos contornos que formam a base empírica da Tese, que se deteve principalmente, na experiência tópica mas exemplar, aplicada no Estado do Acre, como uma prorrogação que pretenda afirmar uma modalidade amazônica
Assim que, na articulação desses termos a partir da realidade do Acre, tratada na Tese, penso dever-se fixar que o conceito de florestania esteve intimamente ligado à essa realidade, tendo sido articulado especialmente durante o governo de Jorge Viana (1999–2006) e consolidado no projeto político conhecido como “Florestania”, que orientou a gestão pública do estado. Esse conceito surgiu em um contexto de busca por modelos de desenvolvimento sustentável e de valorização das populações tradicionais da Amazônia, como seringueiros, ribeirinhos, indígenas e quilombolas.
Com efeito, Jorge Viana, enquanto governador do Acre, e Tião Viana, que o sucedeu, implementaram políticas públicas baseadas na ideia de florestania, colocando em prática um modelo de desenvolvimento que articulava sustentabilidade ambiental, inclusão social e valorização dos recursos naturais renováveis. “Florestania” foi uma marca registrada de suas gestões e incluiu ações como a criação de reservas extrativistas, fortalecimento da educação comunitária e incentivos à economia florestal sustentável. Ela remete simbolicamente a Chico Mendes, mas sua implementação foi mediada por desenhos da alta burocracia especializada do Estado e da academia – aliás, confirmado pela professoras integrantes da banca examinadora da tese, que atuaram e ainda atuam no sistema, numa ou noutra condição ou em ambas. No Acre, o conceito de florestania foi articulado principalmente por gestores públicos como Jorge Viana, mas suas raízes e inspiração vêm de movimentos sociais liderados por figuras como Chico Mendes. Acadêmicos e pesquisadores que analisam o tema destacam a relevância do conceito como um modelo alternativo de desenvolvimento que alia sustentabilidade e cidadania, com foco na preservação do patrimônio ambiental e cultural amazônico (Elson Pereira, José Ribamar Bessa Freire e Mary Allegretti analisaram e discutiram o conceito de florestania, sua aplicação no Acre e sua relevância como modelo alternativo de desenvolvimento sustentável. Alegretti, que conheci na UnB, em particular, é uma figura central no estudo do legado de Chico Mendes e das reservas extrativistas).
Mas teve também no seu simbólico uma projeção sublimada pelo literário e que o Autor da Tese caracteriza (p. 57):
O grupo político (governos Viana) idealizou um governo da floresta para os povos da floresta, voltado para concretizar os ideais de Chico Mendes, um modelo que garantisse cidadania para os povos onde pudessem viver em harmonia com o meio ambiente e respeitassem os recursos naturais.
Em publicação no site Literacia biodiversidade: Florestania, Toinho Alves (Antônio Alves – Jornalista e escritor acreano) um dos idealizadores do termo e integrante do grupo político mencionado acima, descreve a trajetória da seguinte forma:
Foi assim, numa brincadeira, que a palavra apareceu, na metade da última década do século XX. Havíamos passado quinze anos andando pela floresta, acompanhando a luta de índios e seringueiros, trabalhando em organizações não-governamentais com projetos de saúde, educação, cooperativas etc. A novidade, naquele momento, é que alguns de nós tinham sido chamados a participar da nova administração da Prefeitura Rio Branco, capital do Acre. Uma cidade com trezentos mil habitantes, inchada, caótica, cheia de problemas. E com uma particularidade: a maioria da população havia migrado para a cidade há pouco tempo e ainda mantinha fortes traços culturais adquiridos em um século de vida na floresta. A cidadania a ser construída, portanto, deveria ser um pouco diferente (Literacia Biodiversidade, literaciabiodiversidade.blogspot.com).
Conforme descrito pelo autor, o ideal surgiu a partir das andanças pela floresta e da oportunidade de conhecer e vivenciar os problemas de seus habitantes, comunidades que possuem um estilo de vida próprio. Certamente essa foi uma oportunidade de observar soluções criativas e sustentáveis praticadas pelos povos ao longo dos séculos, demonstrando uma completa interação entre o homem e o meio ambiente.
César Pereira resguarda a contribuição de todos esses e todas essas personagens. Mas acho que teria feito bem à Tese, até por conta das relações acadêmicas entre a UnB e a UFAC/Instituto Federal, uma referência ao professor Manoel Pereira de Andrade. Esse docente da Faculdade de Agronomia e Medicina Veterinária (FAV/UnB) é o coordenador do Núcleo de Estudos Amazônicos (NEAz) do Centro de Estudos Avançados Multidisciplinares (CEAM) da Universidade de Brasília. Ele foi um dos agraciados com o Prêmio Chico Mendes de Florestania 2014. Na ocasião da premiação ele lembrou que o prêmio é “um reconhecimento ao nosso compromisso com a vida e a luta de Chico Mendes” que “representa, para a nossa geração, a luta e a esperança por melhores condições de trabalho e de vida no campo, nas florestas e nas águas. O seu saber e prática foram importantes para unificar as pautas sindicais e ecológicas em defesa da floresta, dos povos indígenas e das populações tradicionais”.
O professor também lembra o ano de 1985, quando os seringueiros da Amazônia, liderados por Chico Mendes, realizaram, no campus Darcy Ribeiro, o primeiro congresso da categoria. Na ocasião, fundaram o Conselho Nacional dos Seringueiros (CNS). E eu acrescento, a decisão do Reitor Cristovam Buarque vivamente impressionado com a presença criativa e mobilizada dos seringueiros na UnB, o convite que fez e que foi atendido para que duas lideranças notáveis do movimento – seu Jaime da Silva Araújo e Osmarino Amâncio – que sucederam Chico Mendes na direção sindical, participassem de visita docente na qualidade de mestres não acadêmicos para trazerem seus conhecimentos para o diálogo universitário nas dimensões de ensino, extensão e pesquisa.
A tese cumpre bem seus objetivos. Mas eu pressinto a necessidade de cuidado extremo do Autor para não se enredar nas armadilhas sutis da miragem desenvolvimentista do neoliberalismo e do agronegócio. Não são estratégias racionais, são predatórias; não são solidárias, são, como diz Krenak, canibalizadoras. Não promovem nem cidadania, nem florestania, espoliam e oprimem, não têm a dimensão da função social que até o privado compreende como viável, ao limite da sobrevivência de seu modo de produzir.
O Autor se vale de O Direito Achado na Rua, na sua projeção em quanto O Direito Achado nos Varadouros:
As aproximações entre “O Direito Achado na Rua” e a Florestania podem ser observadas num contexto em que ambos compartilham uma visão de mundo em que os sujeitos coletivos são protagonistas na formulação de direitos e na definição do próprio futuro. A luta por territórios livres de desmatamento e exploração insustentável, por exemplo, reflete o direito construído nas ruas e na floresta, expressando a vontade de movimentos sociais. No entanto, essa realidade nem sempre é pacífica, conforme descreve Molina (2002, p. 30).
Os conflitos que se sucedem no campo não mudaram apenas de velocidade, alteraram sua natureza. Não se encontram mais em cena antigos atores em conflitos individuais ou pequenas guerras familiares que contrapunham fazendeiros e grileiros de terra de um lado; posseiros, populações indígenas e pequenos produtores de outro. Há conflitos coletivos envolvendo milhares de homens, mulheres e crianças. Estes conflitos são conseqüência de um problema não enfrentado até hoje pela sociedade: os absurdos níveis de concentração da propriedade da terra vigentes no Brasil e as distorções no acesso ao trabalho que ela gera.
Outra questão relevante para a Florestania e “O Direito Achado na Rua” é a questão territorial como espaço de vida e de produção de cultura e direitos. Para “O Direito Achado na Rua”, o direito territorial dos povos é uma construção coletiva que resiste às práticas de espoliação e violência histórica. A Florestania, por sua vez, articula esse direito territorial com uma visão sustentável, reconhecendo a interdependência entre os sistemas humanos e naturais.
Nesse sentido, a proteção de terras indígenas e reservas extrativistas se apresenta como um exemplo concreto em que esses dois conceitos se encontram, na medida em que reforçam tanto a autonomia das comunidades quanto a preservação ambiental.
Em síntese, a relação entre “O Direito Achado na Rua” e a Florestania sugere uma concepção renovada de cidadania e justiça, pautada na integração entre direitos sociais, ambientais e culturais. Essa perspectiva não apenas desafia os modelos existentes na Amazônia, mas também fortalece as bases para uma construção social mais justa, sustentável e solidária, em que os interesses dos povos da floresta dialogam com as ruas, em prol de um mundo mais sustentável.
Volto a Ailton Krenak. Em Futuro Ancestral, assim como em Ideias para Adiar o Fim do Mundo, (http://estadodedireito.com.br/ideias-para-adiar-o-fim-do-mundo/), Ailton já falava de uma humanidade fecundada numa ancestralidade que junta ao invés de separar, e que, ao contrário do senso antropofágico de humanos que se consomem numa reivificação e que se presta ao entredevorar-se uns pelos outros, supra a falta de sentido de um cosmos esvaziado por essa antropofagia: “Sentimo-nos como se estivéssemos soltos num cosmos vazio de sentido e desresponsabilizados de uma ética que possa ser compartilhada, mas sentimos o peso dessa escolha sobre as nossas vidas. Somos alertados o tempo todo para as consequências dessas escolhas recentes que fizemos. E se pudermos dar atenção a alguma visão que escape a essa cegueira que estamos vivendo no mundo todo, talvez ela possa abrir a nossa mente para alguma cooperação entre os povos, não para salvar os outros, mas para salvar a nós mesmos” (p. 44, de Ideias para Adiar o Fim do Mundo).
Trata-se de regenerar uma Terra canibalizada por uma humanidade que dela se apartou, numa ilusão utilitária, da qual precisa ser libertada para que seus lugares deixem de ser o repositório de resíduos da atividade industrial e extrativista (http://estadodedireito.com.br/a-vida-nao-e-util/). Trata-se, em suma, ele propõe, de passar do estágio de florestania que já se desdobrara da redução política da localização na cidadania, e das múltiplas possibilidades de reivindicar direitos que não se estiolem no esforço de se confinarem em igualdades, para o estágio amplificado das alianças afetivas.
Aliás, devo dizer, inseri essa passagem em texto-guia preparado para seminário internacional (O presente texto-guia foi elaborado pelo professor José Geraldo de Sousa Junior como subsídio para o Seminário Internacional de Pensamento Crítico, “Como e Por Quê Repensar o Pensamento Crítico: Emergências, Revisitações, Travessias e (Re)Invenções”, a ser realizado na Universidade Pablo de Olavide – UPO – Sevilha, dias 21 e 22 de janeiro de 2025. https://www.joaquinherreraflores.org.br/post/programa-seminario-internacional-de-teoria-critica-dos-direitos-humanos).
Devo dizer, como já o fiz em minhas leituras, que considero que Ailton Krenak, importante pensador indígena, trabalha conceitos relacionados à relação entre humanidade e natureza, mas não utiliza diretamente o termo “florestania” como categoria central de sua obra. No entanto, sua visão dialoga profundamente com os princípios que o termo representa, especialmente no que diz respeito ao reconhecimento dos modos de vida tradicionais e à conexão entre seres humanos e o meio ambiente.
De fato, em Krenak, a terra é compreendida como sujeito. De fato, Krenak defende que a relação humana com a Terra deve ser de respeito e reciprocidade, vendo-a como um organismo vivo, e não como um recurso a ser explorado. Essa visão converge com a ideia de florestania ao valorizar práticas sustentáveis e modos de vida que respeitam os ciclos naturais.
Em suas obras, como “Ideias para Adiar o Fim do Mundo”, Krenak critica o modelo ocidental de progresso que subordina a natureza ao desenvolvimento econômico. Essa crítica ressoa com o conceito de florestania ao propor alternativas ao modelo produtivista tradicional. Ele enfatiza a importância de compreender o território como um espaço de coexistência entre humanos, outras espécies e o ecossistema. Isso se alinha à noção de florestania, que valoriza a vida em harmonia com a floresta, considerando-a parte da identidade e dos direitos de seus habitantes.
Embora Krenak não use o termo “florestania”, ele propõe, conforme pus em relevo acima, uma cidadania que transcende as fronteiras nacionais e inclui a natureza como parte essencial das comunidades humanas. Essa visão é mais ampla, mas dialoga com a ideia de uma cidadania construída em conexão com os biomas locais, como na Amazônia.
Em conclusão, Ailton Krenak ainda que não trabalhe diretamente com o conceito de florestania, sua visão está profundamente conectada a uma crítica ao modelo produtivista e à valorização dos modos de vida tradicionais e sustentáveis. Ele oferece uma base filosófica que amplia os horizontes do conceito, desafiando as limitações impostas por perspectivas meramente econômicas ou políticas.
Mas, a bem da verdade, histórica, social e politicamente ele associa a categoria, a Chico Mendes, mas de tal modo contextualizado, que não sequestra a noção para a isolá-la, como que concentrada, num esquematismo que se reduza ao formal-operacional. Em Futuro Ancestral, no capítulo Alianças Afetivas, ele esclarece a abertura de sentido trazida por essa noção (p. 75-76): “A palavra cidadania é bem conhecida: está prevista na Declaração Universal dos Direitos do Homem e em várias constituições. Faz parte desse repertório, digamos, branco. Já o enunciado de florestania nasceu em um contexto regional, em um momento muito ativo da luta social dos povos que vivem na floresta. Quando Chico Mendes, seringueiros e indígenas começaram a se articular, perceberam que o que almejavam não se confundia com cidadania – seria um novo campo de reivindicação de direitos (afinal, estes não são uma coisa preexistente, nascem da disposição de uma comunidade em antecipar o entendimento de que algo deveria ser considerado um direito, mas ainda não é)”.
Direito Achado na Floresta, talvez, ou como propõe César Claudino Pereira, atento ao modo empírico de realidade do Acre, Direito Achado nos Varadouros (Tese p. 93): “Ao promover a equidade ambiental e garantir consequentemente a construção de uma governança participativa e inclusiva, o modelo converge com os ideais estudados no “O Direito Achado na Rua”, com um olhar voltado para os “Varadouros”, demonstrando que tudo o que foi idealizado por Roberto Lyra Filho pode ser contextualizado também no interior da Amazônia e que essa concepção teórica está alinhada com um pensar o Direito a partir de comunidades amazônicas. Num mundo mais justo, seria pensar um diálogo entre Roberto Lyra Filho e Chico Mendes sobre suas concepções de Direito, por isso o trocadilho para ‘O Direito Achado nos Varadouros’, um Direito verdadeiramente coletivo e emancipatório para os povos da floresta (Varadouro é como os povos da floresta chamam os caminhos que percorrem dentro da mata)”
Suspeito que há na tese uma indulgente concessão ao agronegócio e sua promessa de rentabilidade no sentido de uma soberba contribuição à balança comercial do país. Peço cuidado a César. E lembro a ilusão do Quixote, sonhando com Dulcineia mas abraçado a Maritornes. A César digo o que antes indiquei a Diego Vedovatto. (MST na Bolsa de Valores? Análise sobre a primeira emissão pública de um Certificado de Recebíveis do Agronegócio – CRA para financiar cooperativas em assentamentos de Reforma Agrária. Dissertação apresentada, defendida e aprovada no Programa de Pós-Graduação em Direito da Faculdade de Direito, Universidade de Brasília, 2024) – https://estadodedireito.com.br/mst-na-bolsa-de-valores-analise-sobre-a-primeira-emissao-publica-de-um-certificado-de-recebiveis-do-agronegocio/.
Para Diego Vedovatto, “sem pretensões de fechamento do assunto, mas, para retomar as questões centrais postas no início da pesquisa, verificou-se que, a luta social organizada pela conquista de direitos, permitiu que agricultores familiares sem-terra acessassem a terra, políticas públicas nas mais diferentes áreas, e, com a construção de cooperativas ampliassem a sua produção e acessassem mercados complexos. Foi por meio da luta social organizada que conseguiram, até mesmo, a emissão de certificados de recebíveis do agronegócio, aberto à participação do público em geral, para financiar atividades de produção agropecuária de forma cooperada com práticas sustentáveis”.
Finalizo dizendo, com Diego, que a estratégia adotada pelo MST em “ocupar” a Bolsa de Valores, não representa cair numa “armadilha” que o neoliberalismo pudesse armar para domesticar um movimento em si revolucionário, que Celso Furtado considerou o mais importante no mundo no século XX. A interrogação, no título da dissertação, não significa uma rendição reformista.
Roberto Lyra Filho em Direito do Capital e Direito do Trabalho (Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1982), vale-se Marx exatamente para, com ele, (p. 16), lembrar que a incidência política dos trabalhadores nas ações reformistas promovidas nas injunções do capital não significa “quebrar a energia revolucionária”, mas uma ação inserida num projeto consciente de sociedade, voltada para “extrair – e, evidentemente fruir – todas as concessões possíveis encampando e tirando novas consequências dos projetos reformistas”. É desse modo que o próprio Marx via como importante e se inserir na senda da luta revolucionária, a atuação política emancipatória nas conquistas incidentes, com os trabalhadores logrando arrancar da burguesia e seu estado capitalista, a limitação legal da jornada de trabalho (8 horas) (cf. LYRA FILHO, Roberto. Karl, meu Amigo: diálogo com Marx sobre o Direito. Por Alegre: Co-edição Sergio Antonio Fabris Editor e Instituto dos Advogados do RS, 1983, p. 60).
Lembrei a força instituinte do MST, o sujeito coletivo de direito que se instala no movimento social, no caso o MST, que Celso Furtado considerou o mais importante no mundo no século XX, ao mergulhar no seu programa de formação (https://estadodedireito.com.br/o-mst-e-a-memoria-mst-1984-2024-caderno-de-formacao-no-61/) e constatar a sua força para instaurar aquele movimento que corresponde ao vaticínio de Marx sobre a caminhada dos trabalhadores em direção a sua emancipação.
Recupero esse vaticínio em Roberto Lyra Filho (Desordem e Processo: Um Posfácio Explicativo. In LYRA, Doreodó Araujo (org). Desordem e Processo. Estudos sobre o Direito em Homenagem a Roberto Lyra Filho. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1986) p. 273: “É também nesse movimento dos fatos que se pode buscar o rumo da História, isto é, o sentido objetivo duma caminhada para a emancipação humana, que traz na filosofia o cérebro condutor e nos trabalhadores o seu coração destemido (Marx-Engels, Werke, 1983, 1, 391). Porque estes últimos têm um elemento de sucesso: o número – que, entretanto, ‘só pesa na balança quando se unifica, na associação, e é guiado pelo saber’ (Marx-Engels, Werke, 1983, 16, 12)”, e devo dizer que vejo no trabalho de Diego Vedovatto uma expressão forte desse processo em movimento, projeto de transformação.
O que Vedovatto nos diz é que a luta do MST, por reforma agrária, ou por reforma do sistema de financeirização de investimentos na produção, é luta democrática sem perder o horizonte do socialismo, um socialismo a inventar, mas que se reconhece como herança das lutas da classe trabalhadora que o antecederam, e que também se enraíza no presente como referência para experiências no futuro. Há uma memória do MST, construída pelo legado das lutas dos trabalhadores, de sua classe, e ela nos conecta com o futuro e para além de nós, um futuro socialista.
Com Krenk mais uma vez, e espero com a atenção de César Claudino Pereira, contra o modelo de desenvolvimento, na configuração neoliberal pretendeu, nos anos 1970 por impulso de uma governança autoritária a seu serviço, numa voragem colonizadora a serviço do capital, diz Krenak (p. 76), “os que se colocavam ao lado de Chico Mendes se levantaram, pois estavam no modo florestania. Junto com os indígenas – num contágio positivo do pensamento, da cultura, uma reflexão sobre o comum – numa aliança que continua atualmente aliança dos Povos da Floresta, criada em 1980 na conjuntura constituinte, “criaram as reservas extrativistas equipararam o status dessas unidades de conservação de uso direto com o das terras indígenas” (p. 77-78), no horizonte e na “disposição de constituir uma florestania”, como “busca por igualdade nessa experiência política” de confrontar “o cancro do capitalismo [que] só admite propriedade privada e é incompatível com qualquer outra perspectiva de uso coletivo da terra” (p. 78-79).
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