Cuidadania: a (re) existência das mulheres nas encruzilhadas do poder
Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito
Cuidadania: a (re) existência das mulheres nas encruzilhadas do poder. coordenadoras Fernanda Caldas Giorgi, Luciana Lucena Baptista Barretto e o coordenador Antonio Fernando Megale Lopes. Brasília: LBS Advogadas e Advogados: Instituto Lavoro, 2024, 245p
Na página web de LBS Advogados Associados o lançamento dessa obra é indicado com uma nota de relevância:
Fechamos o ano de 2023 com uma publicação repleta de reflexões importantes, o livro “Cuidadania: a (re) existência das mulheres nas encruzilhadas do poder”. Nele, as coordenadoras Fernanda Caldas Giorgi, Luciana Lucena Baptista Barretto e o coordenador Antonio Fernando Megale Lopes buscam ampliar a noção de cidadania, abrangendo o cuidado como direito universal. Conforme explica o prefácio, o pressuposto da publicação é o entendimento que não basta o reconhecimento da existência das mulheres e de seus direitos para que tenhamos uma vida digna. É preciso que se assuma que os seres humanos, partes integrantes da natureza, precisam estar no centro de um sistema social que valoriza a reprodução da vida, a solidariedade, o compartilhamento e o coletivo.
A edição, na verdade, conforme a ficha catalográfica é de 2024 e confirma a dimensão educadora do coletivo de advogados, nessa característica sobre a qual já me referi.
Desde o cuidado com a composição aparentemente divulgadora no estilo do brinde, tal a montagem de uma agenda (https://estadodedireito.com.br/agenda-2021/), com o cuidado, de carregar de simbolismo pedagógico o gesto, eis como o caracterizei: “É notável encontrar tal auto-reflexividade nessas peças inesperadas, agendas e anuários. Vi isso também, no Anuário LBS ADVOGADOS & INSTITUTO LAVORO, orientado por meu querido companheiro de percurso no jurídico e que agora retorna ao doutoramento em Direitos Humanos e Cidadania, na UnB, José Eymard Loguércio. O Anuário 2020 é um repositório, ao estilo dos repositórios acadêmico-profissionais. Esse o seu conceito. Aponta para o futuro que quer disputar (2021) mas avalia o caminho percorrido, com a lucidez de que aqui e lá são “Estranhos Tempos. Tempo único”: “Foi um ano em que nos ajudamos, nos solidarizamos, buscamos construir e ter mais conhecimento. Este Anuário 2020 retrata o trabalho de todas e todos da LBS”.
Mas igualmente, num mergulho mais conceitual, mesmo com ênfase educadora revestida de cuidadania, se me for dado antecipar uma noção que penso poder dizer eu encontro nesse recorte de uma atuação corporativa (https://estadodedireito.com.br/cartilha-antirracista-para-as-carreiras-juridicas/), quando aqui neste espaço da Coluna Lido para Você me debrucei sobre uma primorosa edição – Cartilha Esperança Garcia e Luís Gama. Cartilha antirracista para as carreiras jurídicas. GT LBS Antirracismo. Organização Sarah Cecília Raulino Coly. Brasília: LBS Advogados, 2021:
Nela, o que transparece é a motivação inscrita numa criação corporativa de ofício, na qual transparece aquele sentido que Padura havia surpreendido, com a licença da ficção, pensando o atelier de um mestre de seu ofício, quando cada nova geração tem obrigação de estudá-lo – claro Padura estava pensando na Lei – para ser capaz de ultrapassar o limite da linha. “Estudar – ele diz sugerindo novas aberturas – e só aprender, como disse, pelo gosto de fazê-lo?”. Em Hereges (Boitempo), Leonardo Padura, apresenta Elias Ambrosius Montalbo de Ávila, um adolescente fascinado por Rembrandt, que começa a trabalhar em seu atelier e acaba cometendo a heresia de aprender para ultrapassar limites.
Talvez por isso digam os Organizadores: “somos disruptivos”. O Escritório é mais que um lugar de operadores de uma profissão, o Direito. É uma Corporação, no sentido da medieval corporação de ofício. Assim na forma como a partir do século XII, na Europa, os artífices de diversas atividades começaram a se reunir em organizações que tratavam do conhecimento de determinadas atividades, voltadas para o aprendizado e o compartilhamento do conhecimento dos respectivos trabalhos.
As Corporações de Ofício eram sim ambientes de aprendizado do ofício e de estabelecimento de uma hierarquia do trabalho. A própria organização interna das Corporações de Ofício era baseada em uma rígida hierarquia, composta por Mestres, Oficiais e Aprendizes. Um modelo que que se ampliou e que alcançou todas as formas de atividades artesanais e intelectuais.
De fato, como método de dividir as atividades em tarefas, até as universidades (Século XIII) foram organizadas do mesmo modo que as demais atividades artesanais, ou seja, a corporação de ofício. Conforme Jacques Le Goff, “as escolas são oficinas de onde se exportam as ideias, como se fossem mercadorias” (Os Intelectuais na Idade Média. Lisboa: Gradiva, 1984).
Na Cartilha, o Escritório converte-se em oficina: “Nós, integrantes do GT Antirracismo da LBS Advogados, passamos a nos aquilombar em encontros e reuniões, propondo discussões, reflexões e diálogos sobre pretos e pretas, para todos e todas que se dispusessem a participar. E que grata surpresa olhar para o lado e ver que somos tantos e tantas cores nessa caminhada”.
Logo no Prefácio – A costura da esperança – a cargo de uma das coordenadoras da obra, explica Fernanda Caldas Giorgi, incluindo o alcance do termo que a caracteriza – cuidadania:
Há três anos tomamos a iniciativa de reunir todas as mulheres do escritório de advocacia LBS Advogadas e Advogados, para conversar, compartilhar vivências e construir juntas um espaço de acolhimento e saberes de cidadania. Daí, o nome do projeto, Cuidadania. Inspirado em correntes de pensamento que propõem ampliar a noção de cidadania para abranger o cuidado como direito universal por entender que não basta o reconhecimento de nossa existência e de nossos direitos para que tenhamos uma vida digna.
Não basta porque nossa sociedade é construída em base a crenças da supremacia humana sobre a natureza e da superioridade de alguns humanos sobre outros, o que abre espaço para a destruição do meio ambiente do qual depende nossa sobrevivência e para a exclusão e o extermínio de corpos que não correspondem ao padrão imposto como o melhor e o mais forte. Disso resulta que os avanços sociais conquistados são incompletos e, por vezes, efêmeros. A história e os dados estatísticos demonstram essa realidade. Abolição da escravatura sem inclusão social resultaram numa sociedade racista e estratificada. O direito das mulheres ao voto sem uma reforma eleitoral profunda implica na sub-representação feminina nas esferas de poder. A igualdade constitucional entre homens e mulheres desacompanhada de uma mudança cultural significa que os índices de violência contra a mulher continuam insustentáveis. E a lista de exemplos poderia seguir indefinidamente.
De saída já é notável, o que logo se notará pelo material reunido como conteúdo da obra, que o cuidado aqui é uma categoria ampliada, para além daquela base de serviço, inscrita na preocupação com o trabalho doméstico e suas nuances, conforme, a propósito, eu procurei por em relevo em outra Coluna Lido para Você (https://estadodedireito.com.br/entre-relacoes-de-cuidado-e-vivencias-de-vulnerabilidade-dilemas-e-desafios-para-o-trabalho-domestico-e-de-cuidados-remunerado-no-brasil/) sobre Entre Relações de Cuidado e Vivências de Vulnerabilidade: dilemas e desafios para o trabalho doméstico e de cuidados remunerado no Brasil / organizadores: Luana Pinheiro, Carolina Pereira Tokarski, Anne Caroline Posthuma. – Brasília: IPEA; OIT, 2021.
Na Apresentação feita por Djamila Ribeiro, percebe-se a intenção de cercar com o conceito para abranger exatamente todas as vivências e vulnerabilidades que devem balizar, diz a pensadora, para, mobilizar ações que se orientem por uma ótica de transformação social:
Na primeira reunião que fiz com essas entidades para conhecer a banca e verificar a possibilidade de parceria junto às rodas de conscientização e atendimentos jurídicos gratuitos, conheci a equipe coordenada por Fernanda Giorgi. Naquela reunião remota, ouvi, pela primeira vez, a partir de Fernanda, o termo “cuidadania”. Estava ali sendo apresentado uma iniciativa de desenvolvimento da cidadania com base no cuidado daquelas mulheres. Porém, enquanto categoria teórica, cuidadania vem sendo pensado desde o início do século a partir de teóricas hispano falantes… A partir dessa concepção, penso não devemos abandonar o conceito de cidadania, mas sim mobilizá-lo para, em uma ótica de transformação social, desenvolver políticas públicas, como também em ações da sociedade civil, de orientação social, antirracista e antissexista. Nessa esteira – e voltando ao trabalho do Espaço Feminismos Plurais, junto à equipe da LBS e do Lavoro devemos aproveitar e somar a cuidadania como orientação teórica e prática para visibilizar as atividades desenvolvidas majoritariamente pelas mulheres, bem como exercer o cuidado a elas.
O livro é inteiramente acessível pelo link https://lbs.adv.br/wp-content/uploads/2023/12/e-book-final.pdf . O projeto editorial pode, assim, apreciado na sua ética (o conteúdo, o sistema e o debate que suscita) e na sua estética (a primorosa edição), relevo para a curadoria de arte, realizada por Natália Calamari – Algumas considerações sobre as ilustrações.
Luciana Lucena Baptista Barretto, uma das coordenadoras da obra faz a Introdução e oferece a cartografia para a percorrer:
Na alegoria de uma roda de costura, este livro “Cuidadania – A (re)existência das mulheres nas encruzilhadas do poder” é a reprodução escrita de temas que permeiam as nossas rodas de conversa, um espaço no tempo em que mulheres de várias idades, cores e regiões se unem para produzir e compartilhar suas vivências.
Os bordados desse livro têm a autoria de Natalia Calamari, artista e antropóloga, que nos brindou com ilustrações potentes e questionadoras, imagens que expõem a complexidade da nossa existência e de nosso papel na sociedade.
Ao nos apresentar a construção, Natalia nos mostrou seu processo criativo, com os esboços de como pensou a arte para os textos. Não conhecíamos Natalia. A generosidade da artista em compartilhar conosco seu processo criativo nos mostrou o quanto ela já fazia parte dessa grande roda de costura, surgindo assim o capítulo “Bordando uma colcha de retalhos”.
Arrumar os modelos, “Escolher os moldes” foi o mote para tratarmos sobre a importância do acesso das mulheres à educação formal e científica, à arte, ao esporte, aos espaços em que as mulheres possam socializar não apenas na infância, mas durante toda a sua existência como cidadãs, capazes de contribuir com sua vivência para a construção política que nos enxergue com dignidade.
“Riscando o tecido” é colocar a “mão na massa”, sendo muitos os questionamentos quanto ao trabalho da mulher e ao ambiente de trabalho: a jornada dupla; o valor do trabalho da mulher para a sociedade; a necessidade de um ambiente livre de assédio contra as mulheres. Entre os vários textos, vale destacar o de Rita Serrano, tratando sobre o assédio no ambiente de trabalho e a realidade vivenciada na Caixa Econômica Federal, empresa que presidiu no período de janeiro a outubro de 2023.
Quem cuida de quem cuida? “Usar o dedal protetor” é saber que existe o direito e o dever do Estado quanto à saúde e à proteção da mulher. Nesse capítulo, reunimos os temas relacionados à saúde física e mental da mulher, envolvendo os diversos aspectos de nossas vidas, como a relação com o meio ambiente, o lazer, a alimentação e as condições de moradia e renda.
“Cerzindo tramas rasgadas” trata da violência contra a mulher. Os textos abordam a realidade nua e crua da violência física e psicológica, da objetificação da mulher pela sociedade e de quanto o Estado está ausente. Vanessa Alexandre, no texto “Lutas de uma borboleta”, traz um relato triste de violência doméstica na periferia de São Paulo, no qual é o dono da Biqueira a autoridade capaz de solucionar o conflito.
O capítulo “Entrelaçando lutas” traz as várias interseccionalidades que permeiam a questão de gênero. Os textos enfrentam questões como a diferença da carga tributária entre homens e mulheres; a ocupação de cargos políticos pelas mulheres e a depreciação daquelas que ousam ocupar esses espaços; a questão climática e as diferentes formas como homens e mulheres são afetados; a proteção integral às indígenas.
Por fim, em “Desfiando as encruzilhadas”, a concretude de alguns trabalhos elaboradas no período de 2021 a 2023 pelos Comitês da LBS Advogadas e Advogados: Comitê Antirracista e Comitê LGBTQIA+, além de trabalhos desenvolvidos com entidades parceiras, como Sindicato dos Bancários do Distrito Federal e Sindicato dos Professores de São Paulo.
O desafio é de disseminação do conhecimento do direito para as mulheres como ato capaz de desfazer as tantas encruzilhadas que nos são impostas.
Mas ainda quero dar um realce ao discurso da curadoria de arte: “Para ilustrar os textos dessa coletânea, procurei identificar as comparações e as metáforas, que cada texto sugere, e os símbolos que poderiam ser utilizados para estimular uma atenção e uma reflexão a partir das imagens. A ilustração é diferente do desenho porque ela sugere um sentido, um significado, não é apenas figurativa. Por meio dos elementos escolhidos para compor a imagem, ela pode complementar o sentido do texto; estimular sentimentos (ternura, afeto, humor) e, se utilizada em forma de símbolo, trazer em si mesma, de forma concisa, a mensagem que o texto trata com mais minúcia…”
Além do que representa a obra, na sua oferta singular, ela é ainda mais oportuna quando em curso um debate amplo sobre a construção de uma política nacional de cuidados. Com efeito, A Câmara dos Deputados aprovou em novembro o projeto de lei que cria a Política Nacional de Cuidados com o objetivo de garantir o direito ao cuidado, tanto para quem o recebe quanto para quem cuida. A proposta será enviada ao Senado (Agência Câmara de Notícias (https://www.camara.leg.br/noticias/1110687-camara-aprova-projeto-que-cria-a-politica-nacional-de-cuidados/)
Entretanto, o texto aprovado – um substitutivo da relatora, deputada Benedita da Silva (PT-RJ), ao Projeto de Lei 5791/19, de autoria da deputada licenciada Leandre (PR). A relatora tomou como base o PL 2762/24, do Poder Executivo – já antecipa adoção de diretrizes que em boa medida são alcançadas pela noção de cuidadania, posto que “envolvem a garantia de participação da sociedade na elaboração das políticas públicas de cuidados e seu controle social; a simultaneidade na oferta dos serviços para quem cuida e para quem é cuidado; a descentralização dos serviços públicos ofertados relacionados ao cuidado; e a formação continuada e permanente nos temas de cuidados para servidores públicos e prestadores de serviços que atuem na rede de cuidados”.
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