quinta-feira, 1 de setembro de 2022

 

Mercado Sul Fica!

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O título do artigo é a palavra de ordem que ecoou no Beco da Cultura – Taguatinga – desde fevereiro de 2015.  Refere-se ao sonho e esperança que pulsa por lá se tornou em um inédito viável. Agora, o Juiz Carlos Frederico Maroja de Medeiros, da Vara de Meio Ambiente, Desenvolvimento Urbano e Fundiário do DF, em setença prolatada no dia 31 de agosto, em processo de reintegração/manutenção de posse (Processo número: 0003872-11.2015.8.07.0007) reconheceu que o MovimentoOcupação Cultural Mercado Sul Vive atende “ao interesse social e às diretrizes constitucionais e legais relativas à função socioambiental da propriedade e ao direito à cidade” e negou a remoção forçada dos artistas e produtores culturais.

 

 

A decisão foi festejada pela advocacia popular que acompanhou o Movimento na causa. Conforme seus integrantes, o “compromisso com a luta do povo e o projeto de sociedade defendido pelos movimentos sociais e possui como princípio e método a educação popular. Nesse sentido, o direito foi achado e conquistado no beco. Achado porque as teses jurídicas defendidas no judiciário foram construídas com fundamento no fazer cultural comunitário, em longos diálogos e debates entre o Mercado Sul Vive, a Candanga Assessoria Popular e a AJUP Roberto Lyra Filho (Coletivo O Direito Achado na Rua). Conquistado pois foi a organização coletiva e a luta política que possibilitaram a conquista dessa batalha”.

 

 

Para os estudantes da UnB e os advogados populares, decisão reconhece que o movimento requalificou o espaço como equipamento cultural e como tal deve ter a proteção do Estado:“Por isso, seguiremos esperançando e cobrando do governo ações que fortaleçam a produção cultural realizada ali”.

 

 

Com efeito, na Sentença, o Juiz qualifica a Ocupação Cultural Mercado Sul Vive, representada nos autos do processo por artistas, artesãos, produtores culturais, repudiando os termos depreciativos dos pretensos proprietários da área abandonada, acolhendo o argumento de “não ter havido invasão, já que o espaço estava abandonado há mais de dez anos, servindo apenas de especulação imobiliária, além de propiciar a propagação da dengue; menciona que os ocupantes são pessoas reivindicando direito constitucional à moradia, cultura e exercício profissional; enfim, a ocupação é antiga, sendo o espaço conhecido como Beco da Cultura, de modo que o Movimento Cultural Mercado Sul Vive apenas para estabelecer função social ao local”.

 

 

Considerou que o imóvel litigioso permaneceu em estado de franco abandono por razoável período de tempo,donde despontou a oportunidade para a ocupação perpetrada pelos réus. Embora ilegal em sua forma e origem, a ocupação acabou por revitalizar o imóvel até então abandonado, tornando-se um reconhecido centro de produção e reprodução de cultura. O imóvel outrora abandonado agora passou a acolher ateliês, luthiers e outros artistas, além de se tornar palco de eventos dedicados à cultura e lazer, requalificando, na prática, toda uma região que até então era vista pela comunidade apenas como um lugar degradado e perigoso. Antes de ser ocupado, o imóvel abandonado encontrava-se em acelerada deterioração. Sendo um imóvel de razoável proporção, sua deterioração impactava diretamente sobre a região onde está situado, causando notória degradação de todo o espaço urbano local.

 

 

Para o juiz, “são deveras conhecidas as externalidades negativas sobre o espaço urbano causadas pelo abandono e degradação de imóveis da cidade. Deveras representativo do que se está a falar é a célebre teoria das janelas quebradas (“brokenwindowstheory”), tão conhecida pelos criminalistas: se uma janela de um imóvel não é prontamente consertada, parte da população se sente estimulada a quebrar outras, ocasionando uma desordem crescente no ambiente urbano. Embora tematizada entre os criminalistas a partir de uma leitura simbólica, a teoria das janelas quebradas é também uma abordagem de direito urbanístico, pois enfoca exatamente a influência do uso e conservação dos imóveis urbanos sobre todo o ambiente social e, por conseguinte, do bem-estar da comunidade (interesse primordial das ponderações urbanísticas): regiões degradadas e abandonadas tendem a contaminar todo o entorno, expandindo a degradação urbana, em prejuízo crescente ao bem-estar da população, inclusive da situada no entorno dos locais abandonados”.

 

 

Com avançada argumentação a propósito da ordenação e do controle do uso do solo, o juiz põe em relevo na legislação, a diretriz que visa inibir “a retençãoespeculativa de imóvel urbano, que resulte na sua subutilização ou não utilização; adeterioração das áreas urbanizadas”, caracterizando o fato de que “os imóveis litigiosos, conforme já anotado,estavam em estado de abandono até o momento da ocupação e requalificação do local pelosréus. Restituir o imóvel que está atualmente requalificado de modo a oferecer arte e cultura àpopulação representaria fomento à retenção especulativa e prejuízo ao uso socialmenteproveitoso do bem, em frontal contrariedade à diretriz do Estatuto da Cidade, que, vale reiterar,é de ordem pública e interesse social”.

 

 

Assim, segundo a Sentença, “o imóvel litigioso hoje tem a nítida função de bem cultural da cidade, e é assim reconhecido pela comunidade. A relevância do bem cultural é característica inerente ao próprio bem, que não carece da chancela de atos formais como o de tombamento ou registros (os quais têm caráter meramente declaratório, ou seja, apenas certificam a relevância preexistente do bem cultural)”.

 

 

Portanto, ele conclui, “no caso concreto, é inequívoco que o imóvel assumiu a condição de bem cultural, o que atrai aexigência legal ora referida de se prover a sua proteção e preservação. O mesmo princípio ora enfocado é também consagrado no art. 312, VI, da Lei Orgânica do Distrito Federal, como instrumento da política urbana distrital”.

 

 

Em resumo, fixa a Sentença,“é inequívoco que a posse exercitada pelos réus atende, em muito maiormedida, ao interesse social e às diretrizes constitucionais e legais relativas à função socioambiental da propriedade e ao direito à cidade, o que impede o acolhimento da pretensão autoral”.

 

 

Coincidentemente, no dia seguinte à sentença (1º/9) participei na UnB (Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos e Cidadania), da banca de defesa de dissertação de Mestrado, de Willy da Cruz Moura, “Cultura e Vida Noturna em Brasília: Poder, espaço, coletividade e o o Direito Achado na Noite”. Na Dissertação o agora Mestre sustenta, num aspecto que guarda relevância com a Sentença do Juiz Maroja,  que pode-se falar emespaço político, o território no qual “sujeitos podem adquirir consciência coletiva, estabelecer redes, operar afetos, desenvolver práticas sociais, visibilizar e consolidar direitos, conduzir transformação social emancipadora, estruturar solidariedade e materializar alternativas contra-hegemônicas, como sugere o percurso de O Direito Achado na Rua”. Espaços que se afiguram, ontologicamente, nesse passo citando a mim e a meu colega co-autorAntonio Escrivão Filho (Para um Debate Teórico-Conceitual e Político sobre os Direitos Humanos. Belo Horizonte: Editora D‘Plácido, 2016) como lugares  de criação e realização do direito, apresentado e posto à disposição do povo na qualidade de sujeito histórico com capacidade criativa, criadora e instituinte de direitos, e, metaforicamente, como a esfera pública onde se reivindica a cidadania e os direitos, onde se agregam cidadãos, onde se lhes protege da dispersão e da desmobilização.

 

 

Espaços de Cidadania, como sustenta Milton Santos, que formam “cidades educadoras”, enquanto compreendem territórios como lugares em disputa na construção das cidades, quando se envolve relações humanas e suas produções materiais, formando uma geografia cidadã e ativa, conforme lembram Sara da Nova Quadros Cortes e Cloves Araújo, em belo texto – “Dialética Social no Rastro dos Pensamentos de Roberto Lyra Filho e de Milton Santos: aportes teóricos no campo do direito e da geografia” – também publicado nesse dia 1º de setembro, na Revista Direito.UnB (volume 6, número 2 – maio/agosto 2022), com um dossiê em homenagem a O Direito Achado na Rua e a Contribuições para a Teoria Crítica do Direito. Aí aonde bebe, teórica e politicamente, o agir interpelante e comprometido com a emancipação, dos jovens militantes da Assessoria Jurídica Popular Universitária Roberto Lyra Filho e da Assessoria Jurídica Popular Candanga que promovem a causa do Movimento Ocupação Cultural Mercado Sul Vive.

 

 

(*) José Geraldo de Sousa Junior é professor titular na Faculdade de Direito e ex-reitor da Universidade de Brasília (UnB)


José Geraldo de Sousa Junior é graduado em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal – AEUDF, mestre e doutor em Direito pela Universidade de Brasília – UnB. É também jurista, pesquisador de temas relacionados aos direitos humanos e à cidadania, sendo reconhecido como um dos autores do projeto Direito Achado na Rua, grupo de pesquisa com mais de 45 pesquisadores envolvidos.

 

Professor da UnB desde 1985, ocupou postos importantes dentro e fora da Universidade. Foi chefe de gabinete e procurador jurídico na gestão do professor Cristovam Buarque; dirigiu o Departamento de Política do Ensino Superior no Ministério da Educação; é membro do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil – OAB, onde acumula três décadas de atuação na defesa dos direitos civis e de mediação de conflitos sociais.

 

Em 2008, foi escolhido reitor, em eleição realizada com voto paritário de professores, estudantes e funcionários da UnB. É autor de, entre outros, Sociedade Democrática (Universidade de Brasília, 2007), O Direito Achado na Rua. Concepção e Prática 2015 (Lumen Juris, 2015) e Para um Debate Teórico-Conceitual e Político Sobre os Direitos Humanos (Editora D’Plácido, 2016).


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