quarta-feira, 13 de abril de 2022

 

Direito à moradia no Brasil e a Copa do Mundo de 2014

Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito.

 

 

 

 

Direito à moradia no Brasil e a Copa do Mundo de 2014. Marcelo Eibs Cafrune. São Paulo: Editora Dialética (https://www.editoradialetica.com/a-editora/), 2022, 328 p. (Em breve no formato e-book)

 

                                   

O livro de Marcelo Cafrune Direito à Moradia e a Copa do Mundo de 2014 – que a Editora Dialética publica em formato impresso e, em breve, em formato e-book, se constitui uma importante contribuição para os estudos do tema, atendendo pelo menos dois aspectos fundamentais.

O primeiro, numa abordagem de caso, jogar luz para discernir, a partir do mega evento inscrito na realização da Copa do Mundo no Brasil, em 2014, a singularidade de uma ocorrência com impactos ainda não totalmente avaliados, política e teoricamente.

De certo nada foi negligenciado, sobretudo a partir das mobilizações da sociedade civil, inquieta com as injunções prejudiciais decorrentes da submissão rendida aos interesses, notadamente econômicos, da jurisdição da Copa. Também, os atingidos, aviltados em seus direitos e dignidade, marcaram com seu protagonismo de resistência a crônica desses fatos.

Menciono, entre muitas ações nesse sentido, o dossiê Megaeventos e Violações de Direitos Humanos no Brasil – https://apublica.org/wp-content/uploads/2012/01/DossieViolacoesCopa.pdf, que teve (e tem ainda) a pretensão de chamar a atenção das autoridades governamentais, da sociedade civil brasileira, das organizações de defesa dos direitos humanos, no Brasil e no exterior, para o verdadeiro legado que estes eventos nos deixarão: destruição de comunidades e bairros populares, aprofundamento das desigualdades urbanas, degradação ambiental, miséria para muitos e benefícios para poucos.

Também o dossiê serviu para convocar os movimentos populares, sindicatos, organizações da sociedade civil, defensores dos direitos humanos, homens e mulheres que amam e buscam a justiça social e ambiental, no impulso da formação de Comitês Populares da Copa e das Olimpíadas, que se multiplicaram, sobretudo nas cidades que sediaram os jogos, em cada bairro, em cada escola, nas universidades e nos locais de trabalho, nos sindicatos e nos movimentos sociais, nos grupos e associações culturais, para a discussão dessas questões impactantes decorrentes da Copa e das Olimpíadas.

Conforme os organizadores, é disso também que fala o dossiê: da legitimidade incontestável dos cidadãos de lutarem por seus direitos sem serem criminalizados. Do direito de responsabilizarem as autoridades que abusarem de seu poder e substituírem o arbítrio e a violência pelo princípio da democracia participativa inscrito em nossa Constituição e nos tratados internacionais assinados pelo Brasil. Daí o lema dessas mobilizações: Copa e Olimpíadas com Respeito aos Direitos Humanos.

Assim é que acompanhamos, em Natal, no Rio Grande do Norte, com o apoio das assessorias jurídicas populares e universitárias, a resistência, no campo judicial, em defesa dos direitos fundamentais da cidadania e dos titulares do direito de morar e do direito à cidade, logrando impedir com decisão do Superior Tribunal de Justiça, remoções arbitrárias e a proibição de ocupação de vias públicas para manifestações asseguradas na Constituição.

Ali despontou, para mim de forma notável, a estudante de Direito da UFRN, Natália Bonavides, no exercício desse assessoramento emancipatório, ela que certamente soube aprofundar suas leituras acadêmicas de O Direito Achado na Rua e desenvolver a altíssima qualificação que a guindou depois à vereança em Natal e, atualmente, a titularidade de mandato legislativo na Câmara Federal, guardando inteira fidelidade, aos fundamentos de sua formação.

Veja-se nesse sentido, a sua forte mobilização para aprovar e para derrubar veto da presidência hoje indiciável conforme o relatório da CPI da Covid, no Senado, projeto de lei de sua autoria que suspende despejos durante a crise sanitária da Covid-19.

Em artigo que elaborou em co-autoria com Lorena Cordeiro para livro que co-organizei (A Defesa da Moradia na Pandemia: uma Análise sobre a Aprovação do Projeto de Lei que Suspende Despejos Durante a Crise Sanitária da Covid-19. In SOUSA JUNIOR, José Geraldo de; RAMPIN, Talita Tatiana Dias; AMARAL, Alberto Carvalho (orgs). Direitos Humanos & Covid-19. Respostas Sociais à Pandemia. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2021), ela explica como mais de um ano após sua apresentação, o projeto de lei que suspende os despejos na pandemia foi finalmente aprovado, com modificações e restrições, pela Câmara Federal e pelo Senado. Após ser vetado integralmente pelo presidente da República, Jair Bolsonaro (sem partido), o projeto retornou à pauta do Congresso Nacional, que derrubou o veto, sendo finalmente transformado na Lei nº 14.216, de 08 de outubro de 2021. Durante todo esse período, articulações foram realizadas com diversas instituições e setores da sociedade e junto a outros mandatos de parlamentares, de modo que o projeto reuniu uma série de manifestações de apoio, como a CNBB, Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC), Conselho Nacional dos Direitos Humanos, Conselho Nacional de Saúde, Instituto Brasileiro de Direito Urbanístico (IBDU), Associação Nacional das Defensoras e dos Defensores Públicos (ANADEP),  Alto Comissariado das Nações Unidas para América do Sul Programa das Nações Unidas para os Assentamentos Humanos no Brasil, e ONU-Habitat Brasil, com alta mobilização da sociedade civil que construiu a Campanha Despejo Zero – pela vida no campo e na cidade, que reuniu pessoas, movimentos e entidades de várias cidades do país, e que, através das atividades, debates, estudos e monitoramento dos despejos realizados em todo o território nacional, foi fundamental para dar visibilidade ao tema, ampliando a pressão sobre o poder legislativo para que o projeto de lei da suspensão dos despejos fosse aprovado.

O livro expõe toda a competência do autor, professor da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Grande, Doutor em Direito (UnB), Pesquisador do Grupo de Pesquisa O Direito Achado na Rua (UnB) e líder do Grupo de Pesquisa Direito e Sociedade (FURG) associado ao Instituto Brasileiro de Direito Urbanístico; ao Instituto de Pesquisa, Direitos e Movimentos Sociais; e à Rede de Estudos Empíricos em Direito, articulando as suas aptidões teóricas e engajamento político, o manejo preciso das categorias epistemológicas do tema, assimiláveis aos protagonismos dos movimentos sociais.

Essas aptidões foram valiosas para a edição do volume 9, da Série O Direito Achado na Rua: Introdução Crítica ao Direito Urbanístico, edição produzida pelos pesquisadores do Grupo de Pesquisa O Direito Achado na Rua e do IBDU – Instituto Brasileiro de Direito Urbanístico, aos quais se vincula. Na obra – https://livros.unb.br/index.php/portal/catalog/book/17 – em que é co-organizador e co-autor, junto com Lucas P. Konzen, ele reafirma os pressupostos de sua compreensão do tema, no texto Direito e Espaço Urbano: uma Perspectiva Crítica e Progressista, pressupostos que, tal como na obra prefaciada, representam  a exigência de pensar esses temas para contrapor-se aos momentos políticos em que as liberdades democráticas, núcleo central do direito à cidade, encontram-se fortemente ameaçadas. Abordagem que balizou também, a contribuição do Autor no tema Direito à Cidade: Desafios e Insurgências, em co-autoria com Adriana Nogueira Vieira Lima e Sabrina Durigon Marques, na obra de referência Introdução Crítica ao Direito como Liberdade. Série O Direito Achado na Rua, volume 10. Brasília: Editora UnB/Editora da OAB Nacional, 2021. Sobre essas obras conferir em Lido para Você http://estadodedireito.com.br/introducao-critica-ao-direito-urbanistico/ e http://estadodedireito.com.br/o-direito-achado-na-rua-volume-10-introducao-critica-ao-direito-como-liberdade/.

O livro de Cafrune deriva, eu o disse no Prefácio da obra, de forma revisada e ajustada à conjuntura da tese de doutorado defendida em 2016 junto ao Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade de Brasília, que tive ensejo de orientar.

Se o interesse acadêmico, no contexto de elaboração da tese, traduziu o interesse acadêmico e profissional, do Autor, então relacionado à análise e à implementação de políticas públicas para a efetivação de direitos, em especial, relacionados à moradia, à cidade e ao território, diante de um projeto de desenvolvimento com grande impacto nas dinâmicas de produção do espaço urbano, pretendia fazer um trabalho descritivo, analítico e crítico da agenda do direito à moradia (e da reforma urbana), sua motivação, conforme ele próprio indica,  era colaborar para a compreensão da complexidade em que se imbricam os direitos, as relações jurídicas, o Estado e as dinâmicas do poder econômico e político.  Dadas as dimensões do projeto Copa do Mundo no Brasil, era acertado imaginar sua repercussão para as metrópoles brasileiras. Entretanto, de alguma forma, o calendário da Copa foi se confundindo com as disputas – ou impasses – mais profundos do Brasil.

No livro o Autor traz essas circunstâncias para aferir, nesse contexto, a captura das instituições do Estado brasileiro, no geral, pela agenda do neoliberalismo autoritário, implementada com o Golpe de 2016 que levou ao afastamento da presidência da República legitimamente eleita.

O livro, conforme ainda o Autor, pretende ser uma contribuição para futuros estudos nas áreas que se dedicam ao espaço urbano, considerando o papel ativo da produção jurídica para a apropriação do território. Isso porque, será imprescindível, nos próximos anos, enfrentar o legado da Copa no que diz respeito à produção de cidades e de moradias, especialmente no que diz respeito ao caráter democrático do planejamento e da produção habitacional. Para tanto, espero que a pesquisa realizada contribua para uma adequada apreensão acerca da dimensão jurídica das disputas pela moradia e pela cidade, ao passo que seja uma prevenção às promessas feitas pela normatividade desprovida de sujeitos concretos.

Elemento forte na tessitura da obra a luta dos movimentos sociais urbanos por moradia, e por todas as especificações do que se acumulará no período pós-constituinte com a formação do direito à cidade e das política urbana, vai impulsionar a produção técnica e teórica que resultou em diversos instrumentos jurídicos para sua efetivação e em um repertório de análises acerca de seus fundamentos.

O Autor passa em revista crítica esses fundamentos para, ao final, relatar novas lutas urbanas de reivindicação do direito à cidade e do uso de espaços públicos. Trata-se, diz ele, de aferir o aprendizado de uma conjuntura que representou também aprendizado para os movimentos e os interpretes das tensões que se constituíram como contraposição ao modelo de planejamento próprio dos megaeventos, baseado em processos de mercantilização das cidades, privatização de áreas públicas e gentrificação.

No livro, o autor considera que diferentes em suas formas de expressão, o conjunto dessas tensões, sobretudo as que geraram ações de reivindicação e exercício de direitos renova a cidadania, e o fazem de um novo jeito, pois têm as cidades não apenas como palco, mas também como objeto. As remoções realizadas sob justificativa da Copa, mesmo que consideradas as importantes vitórias da resistência, recolocam a necessidade de atualização do regime jurídico urbanístico protetivo ao direito à moradia, por meio da articulação entre os setores progressistas.

O autor considera que a realização da Copa do Mundo de 2014 no Brasil, ao mobilizar as instituições públicas para viabilizar as mudanças legislativas e as obras de infraestrutura exigidas pela FIFA, é um exemplo privilegiado da tensão gerada sobre conquistas jurídicas pela implementação de projetos de desenvolvimento. Por isso a necessidade de investigar como a realização da Copa impactou a efetividade do direito social à moradia e a força normativa do seu regime jurídico urbanístico e, ao mesmo tempo, analisar o papel das novas lutas urbanas, que emergiram nesse contexto, como estratégia de resistência.

Se esse âmbito de investigação pudesse carecer de estudos de fundo, o livro Direito à Moradia e a Copa do Mundo de 2014 contribui para suprir lacunas nesse campo, indo além dos esforços políticos de anotação das ocorrências, e assim salvaguardar o seu registro para a memória factual e suas múltiplas implicações, políticas e teóricas.

 

 

 

José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil,  Professor Titular, da Universidade de Brasília,  Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua

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