sexta-feira, 10 de dezembro de 2021

 

Sentipensar os Direitos dos Povos Originários

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Agora no dia 3 de dezembro, em decisão unânime, proferida por aclamação e muitos aplausos, o Conselho Universitário da Universidade de Brasília conferiu a Ailton Krenak, o título de Doutor Honoris Causa.

 

Tive ensejo de elaborar com minha colega Vanessa Castro e com o apoio expresso de Boaventura de Sousa Santos e de Marilena Chauí, eles também doutores honoris causa pela UnB, o memorial com a proposta. É fundamental que em nosso espaço acadêmico, com reconhecimento doutoral, venham a atuar em interlocução, com troca de saberes, as expressões fortes do conhecimento intercultural, sem colonização de um modo de conhecer em relação a outros, cada um deles aptos a apreender o mundo e a orientar a ação humana que o constitui e transforma, atribuindo consistência à inserção, por políticas afirmativas, de negros, indígenas e de outros segmentos que requisitam essas políticas. Também seus saberes, suas epistemologias, suas concepções de mundo devem adentrar a Universidade.

 

Com Ailton Krenak aprendemos que os povos originários ainda estão presentes neste mundo não porque foram excluídos, mas porque escaparam, é interessante lembrar isso. Em várias regiões do planeta, resistiram com toda força e coragem para não serem completamente engolfados por esse mundo utilitário. Os povos nativos resistem a essa investida do branco porque sabem que ele está enganado, e, na maioria das vezes, são tratados como loucos. Escapar dessa captura, experimentar uma existência que não se rendeu ao sentido utilitário da vida, cria um lugar de silêncio interior. Nas regiões que sofreram uma forte interferência utilitária da vida, essa experiência de silêncio foi prejudicada (disso tudo trata a instrução do processo cuja síntese pode ser vista pela transmissão da sessão que outorgou o título: https://www.youtube.com/watch?v=xw5z2KLgMiU.

 

 

Esse reconhecimento faz parte de uma agenda histórica que assinala a presença dos povos originários e sua luta. No momento, seu ítem mais dramático está em discussão no Supremo Tribunal Federal, no debate sobre a titularidade ancestral de seus direitos, contra a tese neocolonizadora do marco temporal, assim designado pelos usurpadores e pela ganância extrativista e do agro-minerário-negócio (ver a respeito https://www.brasilpopular.com/brasil-terra-indigena/).

 

Felizmente, embora pontualmente, são assinalados ganhos interpretativos-constitutivos desses valores. Também nesta semana (1/12), a Quinta Turma do Tribunal Regional Federal da 1ª Região – com a Relatoria do Desembargador Federal Souza Prudente, mas por unanimidade, rechaçou a pretensão de empresários desses setores contra os direitos de povos indígenas, representados por suas entidades (Agravo de Instrumento (202) 1026716-47.2021.4.01.0000), entre outros fundamentos, um que merece vivo aplauso:

 

O de que a tutela constitucional, que impõe ao Poder Público e a toda coletividade o dever de defender e preservar, para as presentes e futuras gerações, o meio ambiente ecologicamente equilibrado, essencial à sadia qualidade de vida, como  direito difuso e fundamental, feito bem de uso comum do povo (CF, art. 225, caput), já instrumentaliza, em seus comandos normativos, o princípio da precaução (quando houver dúvida sobre o potencial deletério de uma determinada ação sobre o ambiente, toma-se a decisão mais conservadora, evitando-se a ação) e a conseqüente prevenção (pois uma vez que se possa prever que uma certa atividade possa ser danosa, ela deve ser evitada). No caso em exame, impõe-se com maior rigor a observância desses princípios, por se tratar de tutela jurisdicional em que se busca, também, salvaguardar a proteção da posse e do uso de terras indígenas, com suas crenças e tradições culturais, aos quais o Texto Constitucional confere especial proteção (CF, art. 231, §§ 1º a 7º), na linha determinante de que os Estados devem reconhecer e apoiar de forma apropriada a identidade, cultura e interesses das populações e comunidades indígenas, bem como habilitá-las a participar da promoção do desenvolvimento sustentável (Princípio 22 da ECO-92, reafirmado na Rio + 20).

 

Cumprimentei o desembargador Prudente pela avançada decisão, consentânea com o melhor entendimento dos sistema internacional, universal e regional, de direitos humanos e dos povos, mas levantei a minha preocupação sobre a eficácia da decisão, com a suspensão da segurança até o trânsito em julgado. Posso dizer ter entendido que a suspensão de segurança deve ser cassada pela Corte Especial Judicial do Tribunal, quando o Presidente levar o Agravo Regimental do MPF, aliás subscrito por um brilhante Procurador, para decisão dessa Instância.

 

É um bom passo. Quem sabe o curso “O Poder Judiciário e os Direitos dos Povos Indígenas”, promovido pela Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados- ENFAM, com objetivo educacional de levar às magistradas e magistrados noções que os capacitem a dialogar com outros saberes amplie a sua percepção a ponto de reconhecer neles, e em seus sujeitos, sua legitimidade, com impacto positivo na concretização dos direitos coletivos indígenas, reconhecidos pelo Texto Constitucional de 1988, porque a ele pré-existentes.

 

Quem sabe, alcance o objetivo de que as juízas e juízes adotem uma postura dialógica com as diferentes partes envolvidas no processo, capacite-os a utilizar os referenciais teórico-empíricos, precedentes judiciais e legislação que auxiliem na fundamentação das decisões judiciais, fazendo dialogar o Direito Internacional dos Direitos Humanos e o Direito Brasileiro e suprindo défices de formação, desde as faculdades, em direitos humanos e em conhecimento das decisões das cortes internacionais, que integram sistematicamente os ordenamentos nacionais (agradeço a doutoranda Andrea Brasil essas informações).

 

Quem sabe, as imersões, que mais de uma vez os participantes de diferentes turmas vivenciaram nos espaços culturais das aldeias em recônditos amazônicos, leve a que assimilem, e muitos o fizeram, a concretude do modo sentipensante sugerido por Fals Borda, sociólogo colombiano, aludindo a um novo paradigma de conhecimento emancipatório, levando a outras decisões, a exemplo da que foi constituída no acórdão do TF1 e que possa a se consolidar na matéria em debate no Supremo Tribunal Federal.

 

 

 

(*) José Geraldo de Sousa Junior é professor titular na Faculdade de Direito e ex-reitor da Universidade de Brasília (UnB)

 


José Geraldo de Sousa Junior é graduado em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal – AEUDF, mestre e doutor em Direito pela Universidade de Brasília – UnB. É também jurista, pesquisador de temas relacionados aos direitos humanos e à cidadania, sendo reconhecido como um dos autores do projeto Direito Achado na Rua, grupo de pesquisa com mais de 45 pesquisadores envolvidos.

 

Professor da UnB desde 1985, ocupou postos importantes dentro e fora da Universidade. Foi chefe de gabinete e procurador jurídico na gestão do professor Cristovam Buarque; dirigiu o Departamento de Política do Ensino Superior no Ministério da Educação; é membro do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil – OAB, onde acumula três décadas de atuação na defesa dos direitos civis e de mediação de conflitos sociais.

 

Em 2008, foi escolhido reitor, em eleição realizada com voto paritário de professores, estudantes e funcionários da UnB. É autor de, entre outros, Sociedade Democrática (Universidade de Brasília, 2007), O Direito Achado na Rua. Concepção e Prática 2015 (Lumen Juris, 2015) e Para um Debate Teórico-Conceitual e Político Sobre os Direitos Humanos (Editora D’Plácido, 2016).




 

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