quarta-feira, 1 de dezembro de 2021

 

DICIONÁRIO DOS ANTIS: a cultura brasileira em negativo

Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito.

 

 

 

 

 

DICIONÁRIO DOS ANTIS: a cultura brasileira em negativo. Direção: Luiz Eduardo Oliveira / José Eduardo Franco (Orgs.). Campinas: Pontes Editores, 2021, 842 p.

Foto Adilson Andrade

 

         Gosto de viajar entre verbetes de dicionários e desvendar a lógica organizativa de seus enunciados. Em entrevista para Maria Lúcia Garcia Pallares-Burke (As Muitas Faces da História. Nove Entrevistas. São Paulo: Editora UNESP, 2000), Robert Darnton que escreveu uma história do livro do século XVIII, considera para a sua escrita que a Enciclopédia de Diderot e D’Alembert “é o livro mais importante do século XVIII, e que para ele, escrever sobre o processo de sua elaboração, representou poder trabalhar não a “biografia de uma pessoa”, mas, na verdade “a biografia de um livro”.

            Um tanto desse meu gosto eu o revelei aqui neste espaço da Coluna Lido para Você, mergulhando na leitura prazerosa de algumas obras com essa característica:  http://estadodedireito.com.br/enciclopedia-latino-americana-dos-direitos-humanos/; em que ponho em relevo o preciso verbete Direito Achado na Rua, elaborado por Ricardo Prestes Pazello; ou http://estadodedireito.com.br/diccionario-critico-de-los-derechos-humanos/, que me lembra o ambiente criativo de La Rábida, a Universid Internacional de Andalucia, onde me encontrei pela primeira vez com Joaquín Herrera Flores.

            Dicionários guardo-os em minha biblioteca de todos os gêneros. Temáticos: sobre marxismo, Gramsci, Educação do Campo, Sociologia, Política, Filosofia. Entre os últimos, o do Bobbio (aliás, também de Nicola Matteucci e Gianfranco Pasquino), na bela edição da Editora da UnB, um sucesso editorial; o Lalande, preciosa indicação de Roberto Lyra Filho, meu orientador no mestrado, para iniciação de seus alunos de pós-graduação (Vocabulaire Techinique et Critique de la Philosophie, de André Lalande), inafastável em nossas pesquisas. Claro, também os jurídicos, dentre eles o sempre reeditável desde 1955,  Dicionário das Decisões Trabalhistas, de Benedito Calheiros Bomfim (por suas mãos me tornei membro do Instituto dos Advogados Brasileiros e agora, por indicação da presidenta Rita de Cássia Sant’Anna Cortez, membro honorário, formando com Bernardo Cabral os dois únicos membros honorários vivos da Casa de Montezuma);e o insuperável Dicionário Enciclopédico de Teoria e de Sociologia do Direito, dirigido pelo querido André-Jean Arnaud (sobre Arnaud basta o que me respondeu Michel Miaille quando certa vez lhe perguntei sobre ele: “Arnaud est une institution!”). Uma pena e um alerta: mesmo considerando a edição brasileira, da Renovar, de 1999, com tradução e direção de Vicente Barreto, o único latino-americano com verbete no dicionário é Luis Alberto Warat (meu dileto amigo e orientador do doutorado).

            Quanto tem me valido, nos momentos ternos ou evocativos, o meu sempre consultado Dicionário de Rimas; e nas ocasiões em que uma referência se faz necessária, o utilíssimo Dicionário de Citações (Paulo Rónai).

           Não falo aqui dos dicionários de línguas, tão necessários para não perder o latim (para lembrar de novo Paulo Rónai), nem os vernaculares, lexicais, semânticos. Sempre é necessário uma visita ao Houaiss, e até ao Novo Dicionário Aurélio, já erigido a metonímia de dicionário: o Aurélio. Claro, sempre com a cautela recomendada por Barthes sobre o fascismo da língua (Aula. São Paulo: Cultrix, s/d; o original francês da Seuil é de 1978), não porque estrutura de poder imponha censura, mas porque obriga a dizer o que permite dizer). Considere-se que no Aurélio, honestidade atributo do masculino, é probidade; da mulher virtude; homem público é político, mulher pública é prostituta.

           Mas faço questão de anotar o Dicionário Analógico da Língua Portuguesa. Ideias Afins/Thesaurus, do Professor Francisco Ferreira dos Santos Azevedo (2ª ed. atualizada e revista. Rio de Janeiro: Lexikon, 2010). Cito essa edição porque nela há um prólogo escrito por Francisco Buarque de Holanda, o Chico Buarque: Os Dicionários de Meu Pai. Claro que ele se refere a Sérgio Buarque de Holanda, o autor de Raízes do Brasil. Diz Chico, no prólogo:

Pouco antes de morrer, meu pai me chamou ao escritório e me entregou um livro de capa preta que eu nunca havia visto. Era o dicionário analógico de Francisco Ferreira dos Santos Azevedo. Ficava quase escondido, perto dos cinco grandes volumes do dicionário Caldas Auleteentre outros livros de consulta que papai mantinha ao alcance da mão numa estante giratória. Isso pode te servir, foi mais ou menos o que ele então me disse, no seu falar meio grunhido. Era como se ele, cansado, me passasse um bastão que de alguma forma eu deveria levar adiante. E por um bom tempo aquele livro me ajudou no acabamento de romances e letras de canções, sem falar nas horas que eu o folheava à toa […]”.

           Guardo também com igual desvelo a minha edição, que recebi com uma dedicatória sensível de minha querida amiga Terezinha Ferreira Fonsêca, me oferecendo para auxiliar meus estudos “o dicionário de meu saudoso pai…”. Terezinha me contou um fato curioso. O professor Francisco Ferreira levara os originais datilografados para a primeira edição, ainda antes de sua morte. O material, embrulhado num pacote, por alguma distração, foi esquecido num banco de jardim e perdeu-se. O professor não tinha cópia, teve que reescrever todo o texto e é essa dedicação que nos lega essa obra única.

           Obrigado Terezinha. Mas não me contenho em recuperar uma estória deliciosa, protagonizada por Terezinha. Querida amiga, esposa de um companheiro de minha Turma do Futebol, João Roller (não uma simples Turma, mas uma irmandade com quase quarenta anos de fundação, uma verdadeira legenda contada em verso e prosa, entre outros registros conferir o livro Uma Senhora Pelada – http://estadodedireito.com.br/meninos-do-rio-vermelho/). Aluna do curso de Direito numa universidade em Brasília, Terezinha reagiu numa classe de Sociologia Jurídica ao entusiasmo da professora que se estendia na exposição de um tópico dedicado a minha contribuição ao campo. Disse Terezinha: Ah, mas a Senhora está falando do Zé Geraldo! Como!? Reagiu a professora: você conhece o professor José Geraldo de Sousa Junior, um dos mais importantes juristas brasileiros, criador de O Direito Achado na Rua???. Claro, redarguiu Terezinha, é o Zé do Frango, goleiro da Turma de Futebol, meu marido João cansa de fazer gol nele! Ora pois, Zé do Frango… tenho em casa um troféu que me foi conferido pelo Master do Flamengo, em torneio do qual nossos times participaram, o Flamengo com Adílio, Rondinelli, Júlio Cesar, Nunes, Carlinhos. Meu time perdeu por 5 a 1, mas eu defendi um pênalti, para delírio da torcida, cobrado por Carlinhos o artilheiro do máster. Recebi um troféu pela façanha. O nosso gol foi obra mágica de nosso centro-avante Luizinho (que disputava a artilharia do time com João Roller) jornalista nacionalmente conhecido por sua inesquecível locução na antiga Voz do Brasil:  Luiz Augusto Mendonça.

           Noutro registro. Como negligenciar o achado do escritor argentino Jorge Luis Borges, que no conto O idioma analítico de John Wilkins, faz a advertência que cuido de transmitir aos meus alunos de Pesquisa Jurídica, segunda a qual, “sabidamente não há classificação do universo que não seja arbitrária e conjectural”. No exemplo dado pelo autor, narra ele “essas ambiguidades, redundâncias e deficiências recordam as que o doutor Franz Kuhn atribui a certa enciclopédia chinesa intitulada ‘Empório celestial de conhecimentos benévolos’. Em suas remotas páginas está escrito que os animais se dividem em 14 categorias:

(a) pertencentes ao Imperador; (b) embalsamados; (c) amestrados; (d) leitões; (e) sereias; (f) fabulosos; (g) cães vira-latas; (h) os que estão incluídos nesta classificação; (i) os que se agitam feito loucos; (j) inumeráveis; (k) desenhados com um pincel finíssimo de pêlo de camelo; (l) et coetera; (m) os que acabaram de quebrar o vaso; (n) os que de longe parecem moscas”.

          Acabo de receber, por postagem de um de seus autores, o Dicionário Crítico-Hermenêutico Zygmunt Bauman (E-Book). Autor(es): Claudionei Vicente Cassol , João Nicodemos Martins Manfio , Sidinei Pithan da Silva. IJUÍ: Editora INIJUI, 2021, 268 p.: “Depois de alguns meses organizando, lendo, discutindo e escrevendo alguns verbetes… compartilho com vcs a nossa versão final. Primeira versão do Dicionário de Zygmunt Bauman. A capa foi presente que ganhei da filha do Bauman, Lydia Bauman, que é artista plástica e mora em Londres”.

           Segundo a Editora, que oferece a obra no formato e-book, acesso gratuito, “o Dicionário crítico-hermenêutico de Bauman apresenta-se para nós como 1) um debate em torno do pensamento de Zygmunt Bauman, na tentativa de assegurar algumas gêneses teóricas da Sociologia e da Filosofia, identificadoras de seu constructo teórico; 2) possibilidade de elevar o conhecimento acerca do complexo, amplo e original pensamento de Bauman, professor das incertezas, das contingências, das ambivalências que povoam a vida, a existência, os discursos e os imaginários; 3) possibilidade de estabelecer, ainda que na transitoriedade/relatividade do pensamento, situado na pós-modernidade ou, para ser fiel a Bauman, na modernidade líquida, alguns elementos teóricos da identidade de Bauman sobre as quais podem ser construídos e desconstruídos aprendizados na perspectiva da condição humana; 4) um movimento de demarcação de um novo paradigma, uma nova forma de pensar, compreender e agir na influência, na crítica e na interpretação do pensamento de Zygmunt Bauman”.

           Uma oportunidade para um mergulho orientado no reservatório líquido de conceitos que nos ajudam a dissolver o que parecia sólido com a modernidade, lembrando com Marshal Berman (Tudo que é Sólido Desmacha no Ar), que a expressão metafórica que Marx lançou com a crítica do Manifesto de 1848, ele certamente a capturou no Shakespeare, da Tempestade, como está no discurso de Próspero: “eram todos espíritos e dissolveram-se no ar, em pleno ar, e, tal qual a construção infundada dessa visão, as torres, cujos topos deixam-se cobrir pelas nuvens, e os palácios, maravilhosos, e os templos, solenes, e o próprio Globo, grandioso, e também todos os que nele aqui estão e todos os que o receberem por herança se esvanecerão, nada deixará para trás um sinal, um vestígio”, cf. em Lido para Você http://estadodedireito.com.br/a-cruel-pedagogia-do-virus/.

           Recebi a recém-lançada obra Dicionário dos Antis. A Cultura Brasileira em Negativo, com dedicatória, de Carmela Grüne, a sempre mobilizada e comprometida com a Justiça editora do Jornal Estado de Direito, que abriga a Coluna Lido para Você.

           Carmela é uma das Coordenadoras da modelagem brasileira do Dicionário dos Antis. Na descrição da edição, está dito que

o leitor tem nas mãos uma obra inesperada. É uma história ao contrário, ou melhor, feita pelo prisma dos contrários. Resulta da observação crítica dos discursos de oposição, de conspiração, de negação, de combate ao Outro que pensa, age, crê e vive diferente de Nós que tem alimentado o campo da cultura em negativo. Estabelecer conhecimento crítico, de modo sistemático, sobre o universo fantástico dos estereótipos, dos mitos, das visões enviesadas que a dimensão do negativo produziu ao longo dos séculos permite-nos revisitar a cultura brasileira à luz de uma chave hermenêutica nova, na linha do que se está a fazer a nível internacional neste domínio, e compreender a complexidade das derivas da nossa história até aos dias de hoje. Um pequeno exército de pesquisadores, especialistas de vários campos do saber (História, Direito, Literatura, Educação, Antropologia, Sociologia, Teologia, Filosofia, Ciências Médicas, Estudos Culturais …), aceitou o desafio de escrever em conjunto esta obra que, além de um thesaurus de conhecimento único, nos pode ajudar a desconstrutir os mecanismos discursivos que geram a intolerância e impedem a construção de sociedades democraticamente maduras e a formação para uma cidadania inclusiva”.

           Li, há poucos dias, uma bem elaborada resenha sobre a obra: “Dicionário dos Antis” apresenta o Brasil como o país do contra –  https://gauchazh.clicrbs.com.br/cultura-e-lazer/livros/noticia/2021/08/dicionario-dos-antis-apresenta-o-brasil-como-o-pais-do-contra-cksomnefd001i013bayfitgee.html, escrita por Jorge Barcellos.

           Ele informa na resenha que o livro reúne artigos de 131 pesquisadores em 133 verbetes que descrevem o processo de demonização das diferenças, a obra é uma história da cultura brasileira em negativo. Produto da parceria de caráter internacional entre o Núcleo de Estudos de Cultura da Universidade Federal de Sergipe e o Centro de Literaturas e Culturas Lusófonas e Europeias (CLEPUL) da Universidade de Lisboa, com o apoio de mais 13 instituições nacionais e internacionais, a obra dirigida pelos pesquisadores Luiz Eduardo Oliveira e José Eduardo Franco tem a versão brasileira organizada por Carmela Grüne, Cristiane Nunes, Jean Chauvin, José dos Santos e Sandro Marengo, reunindo famosos pesquisadores brasileiros, como Luis Mott, Maria Luiza Tucci Carneiro e Valdete Souto Severo”, ele próprio um dos autores, com o verbete Antibolsonarismo, importante para compreender aspectos da conjuntura obscurantista que atravessamos.

           Próxima de meu tema de mais detida atenção, a estimada Carmela Grüne, além de coordenadora, é autora do verbete Anti-Direitos Humanos (p. 190-196). Bem documentado – fico feliz de encontrar entre suas referências O Direito Achado na Rua, e a ocasião de ter podido conceitualmente contribuir para uma abordagem crítica, dada a característica da edição, mas que não se conforma na denúncia e carrega impulso convocatório para disputar possibilidades éticas e emancipatórias. Ao estilo de Frei Betto que sugere deixar o pessimismo para tempos melhores. Nesse sentido é que a autora faz um chamamento inscrito na dimensão política da vontade de agir: “Precisamos oportunizar vivências positivas ao maior número de pessoas, para que essas possam por uma experiência marcante, que modifique ou aprofunde a maneira de viver, reativando registros, conectando alternativas e fontes de conhecimentos para encontrar novas respostas e caminhos para a valorização da experiência humana por práticas de afetos com alteridade e solidariedade”.

 

           

José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil,  Professor Titular, da Universidade de Brasília,  Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua

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