terça-feira, 3 de novembro de 2020

 

SOCIOLOGIA JURÍDICA E AUTO-REFLEXIVIDADE: DESAFIOS ATUAIS

 

*Leonardo Cunha de Brito[1]

 

O artigo produzido pelo prof. José Geraldo de Sousa Júnior, para além representar uma importante síntese acerca das perspectivas epistemológicas atuais da Sociologia Jurídica, suscita fortemente o espírito autorreflexivo, sobretudo quando se leva em condição o atual contexto sociopolítico brasileiro e porque não dizer, mundial, de ultraliberalização dos mercados e da cultura, de  crise das democracias liberais, da escalada autoritária, inclusive no Poder Judiciário, da retirada de direitos em sua dimensão estatal e do enfraquecimento dos movimentos sociais e de seus sujeitos coletivos.

O desafio proposto por  Boaventura de Sousa Santos no sentido de captura da complexidade e irregularidade da co-presença social, política, jurídica ou epistemológica para indicar o grau de auto-reflexividade necessário para erigir conhecimentos que tenham de dar conta de complexidades transitivas e que sejam, portanto, abertos à própria variação sociológica (2000: 253) continuam absolutamente presentes e necessários para uma abordagem atual de tal problemática.

Essa postura autorreflexiva traz à baila, após décadas de evolução do pensamento jurídico crítico, representado nos movimentos alternativistas do Direito, mas, principalmente, de forma mais longeva, na perspectiva pluralista do Direito Achado na Rua, traz um conjunto de questões sobre as quais a sociologia jurídica deve se debruçar nos dias atuais.

Eis algumas delas:  quais são os impactos sociojurídicos resultantes do contexto de retirada de direitos sociais, precarização das relações de trabalho e criminalização dos movimentos sociais? Como identificar os novos sujeitos coletivos criadores de novos ordenamentos jurídicos em um contexto de atomização social individualista? Como fortalecer modelos de cidadania participativa em um contexto em que até mesmo as democracias liberais se encontram em crise, permitindo uma escalada autoritária, presente inclusive nos tribunais, que sufoca os movimentos sociais? Como garantir que os novos ordenamentos jurídicos sejam construídos em uma perspectiva de cidadania ativa, não submetidos a uma lógica de mercado?

É evidente que as respostas científicas para tais questões, embora pertinentes ao campo da sociologia jurídica, requerem uma abordagem interdisciplinar como o âmbito próprio para os estudos sociojurídicos. A complexidade própria da pós-modernidade exige tal postura do ponto de vista científico, sobretudo no que atine às ciências sociais.

Nesse sentido, o reinventar epistemológico da sociologia jurídica, a partir das realidades concretas, da vivência, da cultura, de forma descentralizada, para além da dicotomia positivismo versus jusnaturalismo constitui, sem dúvidas, um desafio permanente.

Assim, procurando responder aos grandes desafios sociojurídicos da pós-modernidade, a sociologia tem o escopo não apenas de cumprir o papel de identificar os novos ordenamentos jurídicos surgidos a partir da realidade concreta das lutas sociais preconizadas pelo pluralismo jurídico, em um contexto criativo de novos direitos, como também de avaliar os impactos sociais causados pelo contexto crescente de retirada de direitos sociais e da escalada autoritária em um contexto de globalização.

Nesse último sentido, é de grande valia o papel da sociologia jurídica trazido no artigo por Arnaud (1999), no sentido de identificar os valores e ideologias não explicitados que a legislação, a jurisprudência e a dogmática jurídica contêm. Assim, cabe à sociologia jurídica identificar o porquê das influências ideológicas que estão por trás, por exemplo, da retirada de direitos sociais, da precarização das relações de trabalho e da criminalização de movimentos sociais, que vêm tomando corpo tanto na produção legislativa nacional, quanto nas decisões dos tribunais.

Ao mesmo tempo, em uma perspectiva pluralista, caberá à sociologia jurídica analisar como tais sujeitos afetados podem agir na construção de novos ordenamentos jurídicos como forma de sobrevivência em tais contextos de recrudescimento da opressão.

Observe-se aqui que, ao contrário do contexto fértil dos novos movimentos sociais das décadas de 70, 80 e 90, que conseguiram inclusive transformar práticas jurídicas informais em conquistas jurídico-formais, o que se percebe nos dias atuais é uma conjuntura de involução no campo dos direitos sociais positivados.

Há de se ressaltar outros desafios apresentados no atual contexto para o Direito Achado na Rua. O modelo econômico e cultural da chamada globalização neoliberal veio a enfraquecer o caráter comunitário da ação político-jurídica e, via de consequência, os movimentos sociais, uma vez que as relações sociais se encontram cada vez mais individualizadas e, porque não dizer, muitas vezes, monetarizadas. Tal realidade pode engendrar a perigosa consequência de transformação dos ordenamentos plurais em espaços de reprodução de padrões ideológicos neoliberais, e que, via de consequência, pode ocasionar a perda do estatuto da cidadania dos trabalhadores e oprimidos propalada por Boaventura de Sousa Santos

No mesmo sentido, a chamada “renovação da teoria democrática”, proposta por Lyra Filho, resultante da articulação entre democracia representativa e democracia participativa, também se apresenta em uma conjuntura complexa.

A democracia representativa, de origem liberal, encontra-se fortemente em crise no mundo, tanto por sua dificuldade em dar respostas concretas aos problemas dos cidadãos, em uma conjuntura de assenhoramento dos orçamentos públicos pelo mercado global, quanto pela manipulação maquínica de resultados eleitorais, como aconteceu no plebiscito do Brexit no Reino Unido, nas eleição norte-americanas de 2016 e na eleição presidencial brasileira de 2018.

Quanto à perspectiva da democracia participativa, essa também encontra seus paradoxos, tanto por conta do enfraquecimento das experiências de Conselhos, dos Orçamentos Participativos, dentre outras, e, como dito anteriormente, pelo enfraquecimento dos movimentos sociais e sujeitos coletivos, mas também, por conta da legitimação de movimentos reacionários e, porque não dizer, fascistas, que se apossaram de ambientes virtuais  e das ruas para disseminar pautas contrárias às práticas dos direitos humanos e de movimentos sociais progressistas.

É inegável a importância que um movimento de auto-reflexividade tem para a sociologia jurídica nos dias atuais, em uma perspectiva de evolutiva do ponto de vista epistemológico. Nesse sentido, depois de décadas, o olhar pluralista, representado pelo Direito Achado na Rua persiste como um paradigma sociojurídico de grande atualidade, adequado para dar respostas científicas, mesmo com as rápidas mudanças sociais ocorridas desde a sua criação.

Contudo, o contexto atual de involução dos direitos sociais, aumento das desigualdades sociais, precarização das relações de trabalho, enfraquecimento dos movimentos sociais e dos sujeitos coletivos, enfraquecimento das democracias e escalada do autoritarismo, do obscurantismo e do fascismo tanto na sociedade quanto nas instituições apresenta-se, de fato, muito desafiador.

 



[1] Doutorando no DINTER – UNB/UFAC/IFAC

Nenhum comentário:

Postar um comentário