segunda-feira, 8 de julho de 2024

 

Cartas Espanholas – Um retrato do intercâmbio

                                   Julia Taquary.

Escrevo essa carta como uma recordação da minha experiencia de cinco meses como estudante intercambista de Direito no sul da Espanha, na cidade de Granada. Foi uma grande aventura de conhecimento e de autoconhecimento que fico feliz por ter vivido.

Granada tem o ar de cidade pequena, mas sua importância na história espanhola é grande: foi o último território a ser conquistado pelos espanhóis na guerra de reconquista marcando o fim do califado na região e ainda foi a cidade onde Cristóvão Colombo recebeu o aval da Rainha Isabel para desbravar a América, inclusive posteriormente colonizou e denominou os territórios do Peru à Colômbia de Nova Granada. A cidade de Granada é muito bonita, seu horizonte é marcado pela Alhambra, antiga fortaleza árabe nunca de fato invadida pelos espanhóis e sim cedida pelo último governante mulçumano após longo cerco, e suas ruas evidenciam o grande sincretismo entre Europa e África Mediterrânea.

A verdade é que embora tenhamos a imagem da Europa como o centro de influência mundial, por muito tempo, e até hoje, a influência de muitas outras culturas caracteriza a vida europeia. Enquanto estive na Espanha, a influência árabe era visível na arquitetura e na comida, por exemplo, os prédios possuíam a decoração de azulejos árabes, os chás mais famosos eram marroquinos. Em Granada em especial, talvez por ter sido o ultimo território a ser reconquistado ou por ser mais ao sul, muitos cidadãos eram oriundos da Tunísia ou do Marrocos. Tamanha a quantidade de imigrantes residentes naturalizados espanhóis que muitos outros cidadãos do norte africano que vinham para Granada não se importaram em aprender espanhol, pois apenas com o árabe era possível conviver na cidade.

Durante meu intercâmbio tive a oportunidade de visitar e conhecer outros países e foi perceptível que esse cenário de influência árabe não se limita apenas à Espanha. Portugal possui um estilo de arte marcado pelo azulejo branco e azul, mas a forma de arte em azulejos é tipicamente árabe. A Grécia, cuja culinária conquista os turistas, possui diversos pratos árabes inseridos em seu menu grego. Até na França, que eu pensava ser dominada apenas pelas lojas de grife francesas, as ruas ricas estavam marcadas pela presença de lojas de artigo de luxo com símbolos e escrita árabe. Ou seja, muito antes da Europa colonizar o mundo, ela antes foi colonizada em sua cultura, em suas entranhas pelo mundo do outro lado do mediterrâneo.

Essa noção de mundo me deixou maravilhada. Como pode, mesmo séculos antes do advento da internet ou dos aviões, o mundo ter se conectado de tal maneira que se quer notamos suas interseções? As pessoas, as culturas não vivem separadas pelas fronteiras, elas se entrelaçam de maneira tão natural que se quer nos perguntamos de onde veio essa arquitetura, arte ou comida, apenas a apreciamos. Não existe fronteira, grade ou muro que possa segurar as pontes que a humanidade cria. Todavia, todo mar de rosas possui espinhos. Mesmo com todas as maravilhas que chegam e se entranham na cultura europeia, a ignorância, especialmente em sua forma xenofóbica, se faz presente.

Como disse, na cidade onde eu vivia, Granada, muitas pessoas eram oriundas de países árabes e uma grande maioria seguia o islamismo, ouso dizer que, mesmo morando no país mais católico da Europa, convivi com mais mulçumanos do que cristãos, e ainda assim não deixei de ouvir comentários grosseiros sobre o ramadã, por exemplo. Observo infelizmente que a falta de informação não se restringe a religião, pois eu mesma já fui questionada em diversas ocasiões como poderia eu ser uma mulher branca e ao mesmo tempo brasileira como se a imagem de um brasileiro estivesse confinada a similitude do Neymar.

O que muitas vezes eu ouvia sobre o mundo fora da Europa me faziam sentir como se tivesse adentrado à caverna de Platão, o senso comum era apenas uma sombra estereotipada do brilhante mundo multicultural que existe para além dos oceanos. A impressão é de que as notícias sobre as colônias nunca serão de grande relevância para os cidadãos das metrópoles.

E devo dizer que não os culpo, a Europa enfrenta rixas e desafios internos que me surpreenderam pela sua complexidade. Nesse assunto não estou mencionando os problemas econômicos ou sociais, como acredito que a maioria dos brasileiros como eu pensaria, estou falando do dissenso sobre a própria história europeia. Explico com uma situação que vivenciei durante um café da manhã com meus colegas: uma discussão de Napoleão foi ou não um bom homem.

Para mim a analise ética e moral sobre os atos de Napoleão não parece relevante. Napoleão e todos os seus feitos são parte da história, reviver a dor ou glória de seus comandos nunca me passou pela cabeça, apenas usufruímos daquilo que frutificou de sua época como, por exemplo, o código napoleônico que inspirou diversas leis em inúmeros países. Contudo, para meus colegas europeus não. Em uma manhã fria meus colegas intercambistas franceses e italianos travavam uma discussão acalorada sobre a moral de Napoleão como se suas vidas dependessem daquele resultado. Veja que desafio complexo colocar no tribunal do júri uma figura histórica que faleceu a mais de décadas para ser julgada por pessoas de diferentes localidades.

Haviam dois lados, os que enalteciam Napoleão, sem grandes surpresas afinal em seu país existem diversos monumentos que engrandecem a história do imperador, e os que tinham os olhos horrorizados pela história de devastação do comandante. É um debate sem saída. Ambos os lados apenas se uniram com a sensação de espanto quando eu declarei que nunca antes havia pensado em discutir sobre isso.

O choque de culturas, claro, era inevitável, mais que isso, esperado. Uma das razões pelas quais decidi me aventurar em um intercâmbio foi conhecer o diferente e por mais que momentos desagradáveis possam ocorrer o descobrimento de novas visões de mundo é maravilhoso, é se iluminar por um sol que faz brilhar inclusive lugares que eu pensava que conhecia.

Um desses lugares que brilhou diferente em minha mente foi o meu próprio país, Brasil. Como ex-colônia é muito comum termos a síndrome do vira-lata e valorizarmos tudo que vem de fora sem perceber os tesouros que temos em nossas mãos, mas ao sair de casa e ver que o “fora” não tem samba ou açaí, fica claro como o nosso país tropical é uma pátria que merece muito ser amada.

Ao encontrarem o Brasil, Pero Vaz de Caminha relatou ao Rei que nessa terra recém descoberta “em se plantando tudo dá” e não poderia ser o contrário. Temos música desde Chico Buarque até Anitta, temos comida desde feijoada até sushi frito, temos natureza de praias até florestas, temos inúmeras variantes da língua portuguesa com sotaques lindos e divertidos de todos os tipos. Aqui temos uma riqueza cultural inigualável que, todavia, somente percebemos quando sentimos sua falta.

Como pode uma festa tocar no máximo dois ou três estilos de música? Alternar entre salsa e tecno? Onde está o funk, samba, sertanejo, pagode e todas as variantes de cada um desses gêneros? Como pode irmos ao mercado e haver apenas um tipo de banana? Onde estão as arvores quebrando esse cenário de longas paredes de pedra? Como podem se acostumar a sair com três casacos pesados para sobreviver ao frio congelante? Que desastre.

Claro, o Brasil sofre de inúmeros problemas estruturais, mas viver em um país aconchegante como o nosso, é um privilégio.

A respeito dos problemas socioeconômicos do Brasil devo dizer que o sol do intercâmbio também iluminou uma parte que eu não havia percebido com tamanha clareza: como somos parecidos com nossos conterrâneos da América Latina. Tive a oportunidade de fazer amizades não apenas com europeus, mas também com intercambistas latinos de variados países como Mexico, Peru, Argentina e Chile e a convivência com eles aclarou como nosso continente é mais unido que eu imaginava. Uma coisa é ler sobre os problemas econômicos ou sociais que nossos vizinhos sofrem, outra completamente distinta é conversas com os cidadãos sobre esses problemas.

Primeiramente ressalto como foi mais fácil me conectar com outros latinos, pois os costumes culturais são muito parecidos. Encontrar alguém em um país distante e desconhecido que te compreende nos detalhes do cotidiano é como se sentir abraçado. Uma das minhas maiores amizades eu fiz com uma mexicana que se ficou tão espantada quanto eu ao perceber que na república em que morávamos não havia um tanquinho na lavanderia para lavar os tênis ou panos de chão.

Quando começamos a conversar e aumentar o nosso ciclo de amizades com peruanos e chilenos percebemos que quando falávamos de nossos países era como se estivéssemos falando do mesmo lugar. Todos sofrendo com a alta do euro ou com a instabilidade política de cada governo como se fossemos compatriotas. Os problemas que afligem os brasileiros, ouso dizer, são os problemas que afligem todas as ex-colônias latino-americanas.

Embora seja um cenário triste, vejo também como um cenário de grandes oportunidades, pois se tantos sofrem com desafios tão parecidos, talvez as respostas não estejam nos acadêmicos estrangeiros, mas sim nos registros e estudos feitos pelos nossos irmãos. São muitas cabeças pensando no mesmo problema, pois são muitos sofrendo com as mesmas instabilidades e assim talvez se as pequenas conquistas que cada um atingiu fossem mais valorizadas e reproduzidas, os resultados fossem melhores. Vejo que é muito comum tentarmos imaginar soluções nos espelhando no que aconteceu na Europa, mas talvez a verdadeira resposta esteja ainda para ser descoberta no solo latino-americano.

Por fim não posso deixar de comentar sobre o mais importante do intercambio, a faculdade em que estudei. Fui durante o primeiro semestre de 2024 estudar Direito na Universidade de Granada pelo programa de intercambio da Universidade de Brasília e cursei diversas matérias interessantes que não havia encontrado antes no currículo das faculdades de Direito brasileiras, por exemplo, a disciplina de psicologia do testemunho na qual aprendemos sobre os efeitos da memória ao descrever um fato para o júri.

Contudo, creio que o mais interessante dessa experiência de estudar em outro continente é poder provar uma metodologia de ensino e aprendizagem distintos do que eu estava acostumada. Diferente não é necessariamente melhor, porém, o diferente nos enriquece na medida em que auxilia a mente a imaginar novas formas de pensar.

A maneira como os espanhóis escrevem seus textos ou o modo de conduzir a aula mudam em pequenos detalhes do jeito que os brasileiros fazem e embora seja uma mudança muito sutil me forçou a acostumar com esse novo modelo de apresentar uma informação e assim ampliou a resiliência da minha mente para aprendizagem. Esse ganho de resiliência, principalmente na minha área de estudo, Direito, que é muitas vezes complexa devido a linguagem utilizada para apresentar o assunto, é imprescindível para superar os desafios intelectuais e por isso sou muito grata por ter tido a oportunidade de estudar em outro país. Esse é o sentimento que prevalece dessa experiência que é fazer um intercambio: gratidão por tudo que vivi.

Em suma, por mais que haja momentos difíceis, ampliar sua visão de mundo é uma aventura maravilhosa. Agradeço a todos aqueles que sempre me incentivaram a ir nessa jornada, meus pais em primeiro lugar por serem as pessoas que me dão forças para ser quem sou e que me apoiam para eu fique mais forte a fim de me tornar alguém melhor. E não posso deixar de agradecer pelo incentivo que meu querido professor José Geraldo de Sousa Junior que, como o excelente docente que é, sempre apoia seus alunos a alcançarem novas conquistas.

Obrigada a todos que abriram minhas asas para voar cada vez mais alto.

 

Julia Taquary.

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