sexta-feira, 28 de julho de 2023

 

A Reforma Trabalhista e a Percepção de Lesões a Direitos

Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito.

 

 

 VERÔNICA FONSECA DE RESENDE. A Reforma Trabalhista e a Percepção de Lesões a Direitos: O fim da homologação sindical das rescisões e a questão do acesso à justiça. Monografia apresentada na Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (FD/UnB). Brasília, 2023, 78 fls.

 

A monografia, requisito para a obtenção do grau de bacharel em Direito, foi orientada pelo professor Antonio Sergio Escrivão Filho e contou com a participação da professora Talita Tatiana Dias Rampin, assim como a minha participação também, todos docentes da Faculdade de Direito da UnB.

Do que trata a monografia diz o seu resumo:

O presente estudo busca analisar o impacto do fim da homologação sindical das rescisões de contratos de trabalho na capacidade do trabalhador de percepção de lesões a direitos trabalhistas. Em um primeiro momento, será examinado o papel assumido constitucionalmente pela Justiça do Trabalho sob uma perspectiva histórica, a partir da análise da evolução ocorrida nos três grandes paradigmas constitucionais e da teoria de justiça igualitária de Rawls. Para além disso, será estudado o impacto da Lei n.º 13.467/2017 (Reforma Trabalhista) na pirâmide de litígios trabalhistas, a partir de teorias desenvolvidas no campo dos estudos de soluções de conflitos, em conjunto com a concepção de garantia ao acesso efetivo à justiça de Cappelletti e Garth. Em especial, será visto como a revogação dos §§ 1º e 3º do artigo 477 da CLT impacta diretamente na base da pirâmide de litígios trabalhistas, na medida em que afeta a capacidade de percepção de lesões a direitos trabalhistas. Por fim, será analisado como o tema da homologação sindical da rescisão contratual vem sendo tratado no pós-Reforma Trabalhista, tanto em normas coletivas quanto na jurisprudência do Tribunal Superior do Trabalho, por meio de exame de relevante julgado da Seção Especializada em Dissídios Coletivos.

 

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO

  1. A JUSTIÇA DO TRABALHO COMO MODELO DE JUSTIÇA SOCIAL

1.1. DOS DIREITOS INDIVIDUAIS AOS DIREITOS SOCIAIS: DEBATE SOBRE O

IGUALITARISMO

1.1.1. Os três grandes paradigmas constitucionais

1.1.2. O Igualitarismo de Rawls

1.2. O SURGIMENTO DO DIREITO DO TRABALHO E DA JUSTIÇA DO TRABALHO NO BRASIL: ENTRE AVANÇOS E RETROCESSOSII. UMA LEITURA DA REFORMA TRABALHISTA A PARTIR DA PIRÂMIDE DE LITÍGIOS

2.1. A PIRÂMIDE DE LITÍGIOS E O ACESSO À JUSTIÇA APLICADOS AOS CONFLITOS TRABALHISTAS

2.1.1. A base da pirâmide e a capacidade de percepção de lesões

2.1.2. Para além da percepção da lesão: a reclamação, sua rejeição, a correspondente reação

e os meios de resolução dos litígios

2.1.3. O fim do litígio e conclusões a respeito do acionamento da via judiciária estatal

2.2. IMPACTOS DA LEI N.º 13.467/2017 NA PIRÂMIDE DE LITÍGIOS TRABALHISTAS

2.2.1. Escolhas da Lei n.º 13.467/2017 e seus impactos no acesso à Justiça do Trabalho: o topo da pirâmide de litígios trabalhistas

2.2.2. A fragilização dos sindicatos: impactos promovidos pela Reforma Trabalhista no

corpo da pirâmide de litígios

2.2.3. O fim da homologação sindical da rescisão contratual: ataque à capacidade de percepção de lesões a direitos trabalhistas

III. HOMOLOGAÇÃO SINDICAL DA RESCISÃO CONTRATUAL NO PÓSREFORMA TRABALHISTA

3.1. PREVISÃO DA HOMOLOGAÇÃO SINDICAL DAS RESCISÕES CONTRATUAIS

EM NORMAS COLETIVAS NO PÓS-REFORMA TRABALHISTA

3.2. ENTENDIMENTO DO TST SOBRE A MATÉRIA NO PÓS-REFORMA TRABALHISTA

3.2.1. O grande quiproquó: confusão entre a homologação de rescisões de contratos de trabalho e a homologação de acordos extrajudiciais

3.2.2. Suposto precedente da SDC que legitima o entendimento de que os entes coletivos não podem condicionar a assistência sindical à fiscalização do sindicato laboral

3.2.3. Análise do voto vencido

CONSIDERAÇÕES FINAIS

REFERÊNCIAS

ANEXO A

 

            Vou me deter mais atentamente aos pressupostos filosófico-políticos do trabalho de Verônica, no que ela assenta no que denomina três grandes paradigmas constitucionais – Estado Liberal, Estado Social e Estado Democrático de Direito. Conquanto ela se ponha preventivamente em resguardo de posições esquemáticas reducionistas, aludindo a esses paradigmas.

            Com efeito, apoiando-se em Renata Dutra, para quem “mudanças de paradigmas e de racionalidade não ocorrem de modo linear ou necessariamente em um rumo progressista. Há avanços e recuos no caminho e eles são decisivamente atravessados pela dialética das relações sociais”, a nossa Autora é bastante atenta em afirmar que o caminho adotado em sua monografia, o é “por motivos didáticos, [tal como o] é apresentado na maioria das vezes de maneira linear e progressista é permeado de progressos e retrocessos.

Assim, ela diz, “sem perder isso de vista e aceitando o reducionismo histórico e teórico que ocorre inevitavelmente nesse tipo de explanação, faz-se relevante destacar algumas das particularidades de cada paradigma constitucional e, principalmente, as inovações propostas, que constituem o principal fator para os categorizarmos dessa maneira”.

Até aqui ela está como Borges (Jorge Luís), que no conto O idioma analítico de John Wilkins, sugere que “sabidamente não há classificação do universo que não seja arbitrária e conjectural”. Ora, arbitrariedade e conjectura podem estabelecer, no limite, resguardo racional. A questão que se coloca é, qual o limite. Por isso que o seu livro se intitula “Direito do Trabalho: Uma Introdução Político-Jurídica. Belo Horizonte: RTM, 2021). Fiz uma recensão dessa obra – http://estadodedireito.com.br/direito-do-trabalho-uma-introducao-politico-juridica/, para acentuar que os ensaios reunidos no livro de Renata Queiroz Dutra, para além de seu interesse pedagógico, se prestam a contribuir para esse momento de retomada democrática e de resgate do valor trabalho como centro ético das relações de produção. Conforme ela própria indica: “Ao pensar sobre esse projeto, me veio a curiosa percepção de que escrever um texto sobre o paradigma político-jurídico de afirmação do direito do trabalho e suas interfaces com diversos aspectos da regulação do trabalho, no lugar de me ocupar de um texto de crítica ao paradigma político-jurídico neoliberal, era algo pouco usual no período recente de minha vida acadêmica…Me fio na esperança de que esse texto, por sua pretensão introdutória e ao se propor a um nível mediano de aprofundamento dos conteúdos, possa se apresentar também como opção de aproximação de leitores e leitoras que não sejam necessariamente estudantes universitários/as, mas que, como pessoas que vivem do seu trabalho, possam se interessar pelo tema e encontrar aqui um canal de aproximação com a regulação social em torno do qual gira a vida da maior parte das pessoas: o trabalho”.

Verônica tem as qualidades de rigor do que melhor caracteriza um intelectual. Desenvolve com precisão os elementos caracterizadores dos paradigmas constitucionais, todos assentados na perspectiva ideológica da hegemonia liberal, no social e na construção do democrático, bem assim, no sistema de justiça que deriva dessa perspectiva, forte no distributivismo da teoria de justiça de Rawls, que é muito mais ocultada do que revelada quando se rasga o véu da ignorância aparentemente uma idealizada metáfora de que tudo é equitativo por baixo dos panos.

Não tenho reparos ao bom enquadramento que faz. Me move a responsabilidade de cooperar para que ela se projete para além da síntese que elaborou nos dois planos, e dê impulso a pelo menos duas categorias muito consistentes que de modo criativo pois em causa, ambas aptas a lhe permitir sai fora do interior da esfera em que fica circulando, como nos aparatos dos “globos da morte” dos antigos circos dentro dos quais os motociclistas rodavam, rodavam, e não iam para lugar nenhum.

Fiquei bastante satisfeito, na banca, em ter essa perspectiva corroborada pela análise de minha colega Talita Rampin, sabidamente uma qualificada formuladora do tema teoria da justiça, conforme se pode inferir da leitura de sua tese de doutoramento Estudo sobre a reforma da justiça no Brasil e suas contribuições para uma análise geopolítica da justiça na América Latina (https://repositorio.unb.br/handle/10482/32203).

Retive da colocação de Talita, nesse passo, o seu preciso comentário:

E aqui acho que há um aspecto a ser aprofundado, por você, em estudos futuros: os limites da teoria da John Rawls (liberal). Sua leitura sobre a teoria de Rawls é correta (a avançada!). Mas será que a teoria dele é a mais ‘adequada’ para desenvolver o potencial crítico que você apresenta sobre o tema? Não seria ele um teórico do capital? Não se trata de negar a relevância de seus estudos (inclusive, ele contribui para a crítica ao utilitarismo, que é muito importante), mas, sim, seus limites. E tanto é assim que muitos/as autores/as posteriores o estudam, aprofundam a análise e tecem críticas contundentes. Você verá que é surpreendente a centralidade que a obra de Rawls ocupa nos esforços das críticas capacitária de Amartya Sen, comunitarista de Alasdair Chalmers MacIntyre, procedimentalista de Jürgen Habermas e de reconhecimento em Nancy Fraser (em diálogo com Axl Honneth). Rawls trabalha dentro de uma chave do contratualismo, que estabelece um ‘véu da ignorância’ como ‘posição original’ dos sujeitos em sociedade. Mas que posição é essa? O que é esse véu e o que ele esconde? Amartya Sen é um dos críticos mais famosos (ganhador do prêmio Nobel), ao desvelar a centralidade que as causas reais de injustiça e desigualdade ocupam na vida em sociedade (e na exploração do capital ao trabalhador, para dialogar diretamente com seu trabalho), e denunciar o quanto Rawls deixa tudo isso de fora em suas formulações. E por que deixar tudo isso de fora é um problema?

 

No que diz respeito aos paradigmas, a linearidade das continuidades paradigmáticas, nos seus formuladores, não dá conta para o salto para fora do “globo”, pensando outros constitucionalismos. Notadamente, no recorte latino-americano, em que a liberdade (na perspectiva dos autores que cita, Berlin a frente de todos eles), não é uma dádiva da evolução paradigmática, mas uma conquista dramática da emancipação.

Por isso falamos já com muita base de um novo constitucionalismo latino-americano. Como anota a peruana Raquel Yrigoyen Fajardo, aferindo as experiências constitucionais na América Latina, incluindo o Canadá, há um primeiro ciclo caracterizado como “constitucionalismo multicultural” (Canadá, 1982), (Guatemala, 1985), (Nicarágua 1987) e (Brasil, 1988). O segundo ciclo referente ao “constitucionalismo pluricultural” (Colômbia, 1991), (México e Paraguai, 1992), (Peru, 1993), Bolívia e Argentina, 1994), (Equador, 1996 e 1998) e (Venezuela, 1999). E o terceiro ciclo, finalmente, é reconhecido pelo alcance de um “constitucionalismo plurinacional”, a partir das inovadoras Constituições do (Equador, 2008) e (Bolívia, 2009), nas quais, diz Raquel, já se trata de um ciclo pluricultural, plurinacional e ecológico, nas quais “se pluraliza a definição de direitos, a democracia e a composição dos órgãos públicos e as formas de exercício do poder”.

Raquel Yrigoyen, que já inscrevera em sua concepção a tese de um constitucionalismo plurinacional, tem avançado fortemente, desde seu diálogo com as cosmogonias e cosmovisões dos povos ancestrais, em direção a um constitucionalismo ecológico ou eco-constitucionalismo, sem contudo abdicar de suas teses originais sobre o pluralismo jurídico.

Ainda que nessa passagem o foco da leitura do pluralismo jurídico, desde a leitura de Raquel Yrigoyen, compreendido propriamente como pluralismo jurídico igualitário (consulte-se entre outros estudos, os escritos fundamentais com aberturas inéditas para a aplicação dessa categoria, de Boaventura de Sousa Santos – sempre presente nas atividades do IIDS -, até o mais recente de Antonio Carlos Wolkmer e de Maria de Fatima S. Wolkmer, se dirija aos povos indígenas e originários, essa acepção, orientada “por uma racionalidade jurídica diferente”, que nela, alcança também os ronderos campesinos, em enfoque autoral bem conhecido:

Tal como dissemos eu e meu colega Antonio Escrivão Filho (ESCRIVÃO FILHO; SOUSA JUNIOR, 2019), mais que reconhecimento de direitos, tais ciclos tratam do grau de abertura à efetiva participação constituinte das distintas identidades, aliado à efetiva incorporação de seus valores sociais, econômicos, políticos e culturais não apenas no ordenamento jurídico, mas no desempenho institucional dos poderes, entes e entidades públicas e sociais.

Ou seja, a partir do que atualmente, com as experiências constituintes em curso na América Latina, com as novidades trazidas pela proposta de Constituição do Chile, aprofundam-se temas emergentes de um constitucionalismo em chave decolonial, que para Antonio Carlos Wolkmer em texto publicado há poucos dias – Notas para Pensar la Descolonización del Constitucionalismo en Latinoamérica in Constitucionalismo en clave descolonial / Amélia Sampaio Rossi … [et al.].; Liliana Estupiñán- Achury, Lilia Balmant Emerique, editoras académicas. — Bogotá: Universidad Libre, 2022.

 

A novidade agora vem do Chile, e aponta para o que Wolkmer identifica como propostas de um constitucionalismo crítico na ótica do sul global referida a aportes do constitucionalismo transformador de que fala Boaventura de Sousa Santos, do constitucionalismo andino, pluralista, horizontal decolonial, comunitário da alteridade, ladino-amefricano e, ainda, do constitucionalismo achado na rua.

É a partir dessa perspectiva, algo que deixo como sugestão ao autor para suas pesquisas futuras considerando que o que vou dizer não se colocava quando o trabalho foi publicado. Ou seja, a partir do que atualmente, com as experiências constituintes em curso na América Latina, aprofundar temas emergentes de um constitucionalismo em chave decolonial.

Disso cuida Antonio Carlos Wolkmer em texto publicado há poucos dias – Notas para Pensar la Descolonización del Constitucionalismo en Latinoamérica in Constitucionalismo en clave descolonial / Amélia Sampaio Rossi … [et al.].; Liliana Estupiñán- Achury, Lilia Balmant Emerique, editoras académicas. — Bogotá: Universidad

Para Wolkmer, “la propuesta de un constitucionalismo crítico bajo la óptica del sur global puede ser contemplada en los aportes innovadores de la propuesta del consti tucionalismo transformador de Sousa Santos, B. de y de las variaciones presentes que tienen en cuenta las epistemologías del sur y, más directamente, del constitucionalismo andino, ya sea en la vertiente del constitucionalismo pluralista (Yrigoyen Fajardo, 2011; Wolkmer, 2013, p. 29; Brandão, 2015), del constitucionalismo horizontal descolonial (Médici, 2012), constitucionalismo comunitario de la alteridad (Radaelli, 2017), constitucionalismo crítico de la  liberación (Fagundes, 2020), constitucionalismo ladino-amefricano (Pires, 2019) o aún del constitucionalismo hallado en la calle (Leonel Júnior, 2018)”.

Realmente Gladstone Leonel Junior trouxe essa designação, ainda sem a aprofundar em seu livro de 2015, reeditado – Novo Constitucionalismo Latino-Americano: um estudo sobre a Bolívia, 2a. Edição. SILVA JUNIOR, Gladstone Leonel. Rio de Janeiro: Editora Lúmen Júris, (SILVA JUNIOR, 2018).

Na segunda edição, novas questões ensejam novas análises para a construção de um projeto popular para a América Latina a partir do que a experiência na Bolívia e em outros países nos apresenta. Das novidades dessa edição, a Editora e o Autor destacam: Um capítulo a mais. Esse quarto capítulo debate “O Constitucionalismo Achado na Rua e os limites apresentados em uma conjuntura de retrocessos”. A importância do mesmo está na necessidade de configurar um campo de análise jurídica que conjugue a Teoria Constitucional na América Latina com o Direito Achado na Rua, situando então, o Constitucionalismo Achado na Rua.

O livro, aliás, pavimenta o caminho para estudos e pesquisas nessa dimensão do constitucionalismo e o próprio professor Gladstone Leonel, em sua docência na Faculdade de Direito da Universidade Federal Fluminense, criou a disciplina “O Constitucionalismo Achado na Rua e as epistemologias do Sul”, ofertada no programa de pós-graduação em Direito Constitucional na UFF.  O programa da disciplina e maiores informações podem ser obtidos no seguinte site: http://bit.ly/2NqaABn.

Resenhei esse percurso em http://estadodedireito.com.br/novo-constitucionalismo-latino-americano-um-estudo-sobre-bolivia/. Claro que em O Direito Achado na Rua: Concepção e Prática, volume 2, cit., no capítulo (Parte IV): O Direito Achado na Rua: Desafios, Tarefas e Perspectivas Atuais, já inscrevemos uma anotação programática nessa direção, ao indicar (p. 224): que “Essas experiências refletem uma espécie de ‘Constitucionalismo Achado na Rua’, em que os atores constituintes, os protagonistas desses processos, que envolveram povos indígenas, feministas, campesinas e campesinos, trabalhadoras e trabalhadores e setores historicamente excluídos, arrancam do processo constitucional novas formas de pluralismo jurídico e conquistas de Direitos”.

Com Gladstone eu também trabalhei o tema, procurando fixar a sua mais precisa enunciação. Assim, em Revista Direito e Práxis, On-line version ISSN 2179-8966 (http://old.scielo.br/scielo.php?pid=S2179-89662017000201008&script=sci_abstract&tlng=pt). LEONEL JUNIOR, Gladstone  and  GERALDO DE SOUSA JUNIOR, José. A luta pela constituinte e a reforma política no Brasil: caminhos para um “constitucionalismo achado na rua”. Rev. Direito Práx. [online]. 2017, vol.8, n.2, pp.1008-1027. ISSN 2179-8966.  https://doi.org/10.12957/dep.2017.22331, valendo o resumo: “A crise política brasileira, evidenciada a partir de junho 2013, enseja novas reflexões para a conjuntura recente. A reforma do sistema político é necessária e um das formas de viabilizá-la é por meio de uma Assembleia Constituinte. Sobretudo, se observado os movimentos político-jurídicos dos últimos 15 anos nos países da América Latina. Cabe refletir sobre o momento e as possibilidades dessa aposta pautando-se em um ‘constitucionalismo achado na rua’”.

Quase que simultaneamente, também com Gladstone publicamos em La Migraña… Revista de Análisis Político, nº 17/2016. Vicepresidencia del Estado Plurinacional de Bolívia: La Paz, o artigo La lucha por la constituyente y reforma del sistema político em Brasil: caminhos hacia um ‘constitucionalismo desde la calle’.

Com essas referências, alcança-se o patamar que, juntamente com Antonio Escrivão Filho (ESCRIVÃO FILHO; SOUSA JUNIOR, 2016), especialmente no Capítulo V – América Latina, desenvolvimento e um Novo Constitucionalismo Achado na Rua, páginas 123-150), enunciamos, vale dizer, que o Constitucionalismo Achado na Rua vem aliar-se à Teoria Constitucional que percorre o caminho de retorno a sua função social. Uma espécie de devolução conceitual para a sociedade, da função constitucional de atribuir o sentido político do Direito, através do reconhecimento teórico-conceitual da luta social como expressão cotidiana da soberania popular. Um reencontro entre a Teoria Constitucional, e o Direito compreendido como a enunciação dos princípios de uma legítima organização social da liberdade (p. 149).

Para o Professor Menelick de Carvalho Netto, prodigamente referido pela Autora, o mais importante é escapar do reducionismo dos modelos paradigmáticos. Discorrendo a propósito da Contribuição do Direito Achado na Rua para um Constitucionalismo Democrático (SOUSA JUNIOR, José Geraldo de et al (orgs). O Direito Achado na Rua, vol. 10: Introdução Crítica ao Direito como Liberdade. Brasília: Editora UnB/Editora OAB Nacional) – p.232 – “a problemática levantada pela teoria acerca da relação entre o Direito e a Democracia encontra-se assim no cerne do debate e da produção reflexiva da filosofia, da filosofia política, da ciência política e da história das ideias e das instituições, desaguando na necessária revisão e reconstrução da doutrina constitucional. Sendo imperativo concluir que os abusos institucionais não mais podem ser aceitos seja como democracia, seja como Direito, e nem mesmo como constitucionais. A democracia só é democrática quando constitucionalmente construída, a Constituição só é constitucional quando democrática. Do mesmo modo, a legitimidade impõe que a igualdade que reciprocamente nos reconhecemos constitucionalmente só possa ser entendida como o direito à diferença, pois carrega em si também o sentido oposto do reconhecimento recíproco do direito à liberdade de cada um. Por isso mesmo o Direito só pode ser atualmente compreendido em sua complexidade que se tornou visível como a ‘legítima organização social da liberdade’”.

Sigo considerando o quanto é importante recordar que o constitucionalismo é permanente tentativa de se instaurar e se efetivar concretamente a exigência idealizante que inaugura uma modernidade no nível da organização de uma sociedade complexa, incapaz de lançar mão de fundamentos absolutos e que, por isso, só pode legitimar seu próprio sistema de direitos na medida em que os potenciais podem se reconhecer como coautores e autoras das normas que os regem. Ou seja, ou o direito é constitucionalmente achado na rua e nas ruas, e com as ruas, é construído e reconstruído de forma plural e inclusiva, ou, sem dúvida, tende-se a privatizar o próprio Estado, mediante a colonização do direito por uma lógica simplista binária de cunho plebiscitário e nada democrática, pois infensa a qualquer eficaz debate”.

Por isso que, nesse passo, com Verônica, quero por em causa a categoria protagonismo, não só do Direito do Trabalho, mesmo concordando com ela, que é o trabalho que tem centralidade no processo de transformação do social. Mas para distinguir os sujeitos que operam essas transformações, fazem o trânsito paradigmático e instauram sociabilidades emancipatórias, alargando as vias de acesso à Justiça, na melhor qualificação que ela trouxe para a sua monografia, num belo capítulo em que nos encontramos todos os que forma esta banca, com nossos textos, nossos enunciados e modos de fundamentar direito e direitos humanos.

Em texto que publiquei recentemente (http://estadodedireito.com.br/esquerda-e-poder/), aludi, citando Marx, que sem renunciar ao que divisa o horizonte revolucionário, há como antecipar o fim de todo domínio de classe e de privilégios que o revestem (Programa de Gotha), e arrancar direitos iguais para todos (naturalmente o direito do trabalho e não o direito do capital, cf. Roberto Lyra Filho. Direito do Capital e Direito do Trabalho. Porto Alegre: Sergio Fabris Editor, 1982) e vislumbrar essa dimensão transformadora nas ações que podem mobilizar a consciência emancipadora: “A fixação de uma jornada de trabalho normal escreve Marx — é o resultado de uma guerra civil prolongada, mais ou menos encoberta, entre a classe capitalista e a classe proletária. Para libertar-se da víbora que provoca os seus sofrimentos (Heine) os trabalhadores devem unificar-se como classe, e arrancar a lei que, poderosa barreira social, os impede de se venderem livremente ao capital, condenando-os, e a seus descendentes, à escravidão e à morte.” (O Capital). Naquele momento, revolucionário foi lutar pela jornada de oito horas. A referência eu a encontrei em Roberto Lyra Filho, exatamente em sua preciosa obra Direito do Capital e Direito do Trabalho, citada, para com ele distinguir o protagonismo do sujeito coletivo trabalhador, pois sem esse protagonismo o direito que nos cerca será ainda o Direito do Capital, mas nossa práxis há de ser voltada, segundo as aptidões de cada um, para a sociedade em que todo Direito seja Direito do Trabalho (o que equivale a uma instigadora teoria de justiça).

Assim que, postas essas duas categorias divisadas por Verônica – protagonismo e centralidade de trabalho – se justifica um certo desalento que a Autora revela, sobretudo com o sistema judicial incluindo a jurisdição do trabalho.

Esse o fecho de sua monografia:

Portanto, tendo em vista que as disputas – sociais, jurídicas e até mesmo semânticas – que se encontram na ordem do dia, principalmente no pós-Reforma Trabalhista, não só fazem referência aos conceitos trabalhados, como também colocam muitos deles em xeque, conclui-se que o resgate à função da Justiça do Trabalho historicamente assumida a partir da Constituição de 1988, em contraste com o que foi decidido no âmbito da Seção Especializada em Dissídios Coletivos do Tribunal Superior do Trabalho, mostra-se extremamente necessário. Conforme nos ensina Sousa Junior, “realizar a promessa democrática da Constituição, eis o desafio que se põe para o Judiciário e para responder a esse desafio precisa ele mesmo recriar-se na forma e no agir democrático, nessa parte, uma referência ao meu SOUSA JUNIOR, José Geraldo de. Por uma concepção alargada de Acesso à Justiça. Revista Jurídica, Brasília, v. 10, n. 90, Ed. Esp., p.01-14, abr./maio, 2008. p. 11.

Essa, pode-se dizer, é uma constatação realista, mas não derrotada. Lembrei isso ao fazer a recensão do livro de Renata Dutra, por nós ambos mencionado, com tanto mais ênfase quanto estrategicamente tendo Renata assumido a presidência da ABET poderá trazer para agenda de seus grandes debates essas grandes questões.

Questões que vêm sendo assumidas por integrantes da Corte. Estou pensando em Delaíde Alves Miranda Arantes, de cuja dissertação Trabalho Decente: Uma Análise na Perspectiva dos Direitos Humanos Trabalhistas a Partir do Padrão Decisório do Tribunal Superior do Trabalho (PPGD-Programa de Pós-Graduação em Direito. Brasília: Universidade de Brasília/Faculdade de Direito, 2022), já transformada em livro, participei com vivo interesse.

Aliás, fiz também uma recensão da dissertação (http://estadodedireito.com.br/trabalho-decente-uma-analise-na-perspectiva-dos-direitos-humanos-trabalhistas-a-partir-do-padrao-decisorio-do-tribunal-superior-do-trabalho/), para acentuar a perspectiva posta no trabalho que “a pessoa humana na centralidade do trabalho, como um dos fundamentos da República Federativa do Brasil, a relevância da Organização Internacional do Trabalho na vanguarda da elaboração e aprovação de normas de direitos humanos trabalhistas e o papel do Judiciário Trabalhista brasileiro, podem concretizar o objetivo de justiça social como opção pela pesquisa dos direitos humanos trabalhistas, levando o padrão decisório do Tribunal Superior do Trabalho a compreender a necessidade de fundamentar e contribuir para dar consistência aos enunciados do trabalho decente”.

A questão que se coloca para todos nós, tal como suscitei no exame de outra dissertação  – A dimensão da saúde no direito fundamental ao trabalho digno: uma análise justrabalhista do trabalho na limpeza urbana do Distrito Federal”. Helena Martins de Carvalho. Dissertação de Mestrado. Brasília: UnB/Faculdade de Direito, 2020, já publicada no formato livro: Varrendo para cima do tapete: da invisibilidade social à regulamentação jurídica do trabalho na limpeza urbana. Helena Martins de Carvalho. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2022, ver a propósito a minha resenha http://estadodedireito.com.br/a-dimensao-da-saude-no-direito-fundamental-ao-trabalho-digno-uma-analise-justrabalhista-do-trabalho-na-limpeza-urbana-do-distrito-federal/, são, em si, e em seu modo de apresentação não só tomar posição, mas interpela os operadores do Direito e os agentes políticos na direção de convocá-los a compromissos de aplicação e de interpretação do Direito do Trabalho, como arena de resistência ao processo de desdemocratização e de desconstitucionalização em curso.

Se se pudesse acrescentar questões para a Autora, eu diria, aliás, como questões que também me proponho. Estarão esses operadores e esses agentes à altura das expectativas civilizatórias que os desafiam, no plano constitucional e no plano convencional. A Corte Interamericana de Direitos Humanos em diversos julgados tem assentado a irrenunciabilidade e a reparabilidade do projeto de vida frustrado. Indiquei com Antonio Escrivão Filho, em nosso livro Para um Debate Teórico-Conceitual e Político sobre os Direitos Humanos (Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2016), várias aplicações desse fundamento para orientar formas de reparação, reivindicáveis em sede de litígio estratégico em direitos humanos. Assim como recuperei formas de resistência e de intransponibilidade, mesmo no Supremo tribunal Federal em tempos de ditadura, para lembrar com Victor unes Leal a necessidade que tem a jusrisprudência, inclusive do STF, de andar nas ruas, para que a promessa do Direito não se torne vazia. Em voto célebre contra as interdições da ditadura ao exercício de greve, esse grande juiz afastou aplicação porque segundo definiu em voto “a lei não pode exigir do operário que ele seja herói ou soldado a serviço do patronato”.

Considero de muita pertinência o enquadramento que Verônica faz de sua proposição sob a perspectiva do alargamento não só funcional e modernizante mas também epistemológico do acesso à Justiça. Percebo que ela dialoga com autores muito qualificados nesse tema. A partir dessa interlocução na qual me reconheço, tenho com ela é que podemos nos entender sobre realizar a promessa democrática da Constituição que era e é ainda o desafio que se põe para o Judiciário e para responder a esse desafio precisa ele mesmo recriar-se na forma e no agir democrático. Mas o desafio maior que se põe para concretizar a promessa do acesso democrático à justiça e da efetivação de direitos é pensar as estratégias de alargamento das vias para esse acesso e isso implica encontrar no direito a mediação realizadora das experiências de ampliação da juridicidade. Com Boaventura de Sousa Santos podemos dizer que isso implica dispor de instrumentos de interpretação dos modos expansivos de iniciativas, de movimentos, de organizações que, resistentes aos processos de exclusão social, lhes contrapõem alternativas emancipatórias.

Com seu orientador, com o qual sei Verônica prepara uma participação em obra que está sendo organizada pela professora Gabriela Rebouça, tenho discutido muito essa questão, e também com a professora Talita Rampin, presente na banca examinadora da monografia. Aludo aos livros nos quais travamos uma boa parte desse diálogo: REBOUÇAS, Gabriela Maia; SOUSA JUNIOR, José Geraldo de; CARVALHO NETO, Ernani Rodrigues de (Organizadores). Experiências Compartilhadas de Acesso à Justiça: Reflexões teóricas e práticas. Santa Cruz do Sul: Essere nel Mondo, 2016, 281 p. Texto Eletrônico. Modelo de Acesso World Wide Web (gratuito). www.esserenelmondo.com.br; REBOUÇAS, Babriela Maia; SOUSA JUNIOR, José Geraldo de; ESTEVES, Juliana Teixeira (Organizadores). Políticas Públicas de Acesso à Justiça: Transições e Desafios. Santa Cruz do Sul: Essere nel Mondo, 2017, 177 p. E-Book (gratuito). www.esserenelmondo.com.br. Sobre essas obras ver a minha recensão em http://estadodedireito.com.br/experiencias-compartilhadas-de-acesso-a-justica-reflexoes-teoricas-e-praticas/.

Aliás, nessa resenha, abro uma nota de identidade que se estabelece para aferir a coerência e o potencial utópico desse material, está na sua virtualidade, inclusive semântica (CORREIA, Ludmila Cerqueira, ESCRIVÃO FILHO, Antonio; SOUSA JUNIOR, José Geraldo de. Exigências Críticas para a Assessoria Jurídica Popular: Contribuições de O Direito Achado na Rua. Coimbra: CesContexto, Debates  n. 19, outubro de 2017), de se instalar como plataforma para um direito emancipatório (SOUSA JUNIOR, José Geraldo de. Concepção e Prática do O Direito Achado na Rua: Plataforma para um Direito Emancipatório. Brasília: Cadernos Ibero-Americanos de Direito Sanitário, 6(1), abril/junho, 2017), para o exercício protagonista, crítico e criativo, operando novos e combinados mecanismos políticos e técnicas jurídicas, para o alargamento democrático do sistema de justiça.

Deixo pois, de avançar na arguição sobre esse tema. Entretanto, repito aqui para concluir, a questão que ponho para Verônica: estarão os operadores e os agentes políticos à altura das expectativas civilizatórias que os desafiam, no plano constitucional e no plano convencional? Nessa quadra dramática de interpelação a um paradigma civilizatório, serão alcançados nos seus misteres para, com a tempestade que desaba sobre o mundo, limpar “a maquilhagem dos estereótipos com que mascaramos o nosso «eu» sempre preocupado com a própria imagem; (e deixar) a descoberto, uma vez mais, aquela (abençoada) pertença comum a que não nos podemos subtrair: a pertença como irmãos”, como exorta o Papa Francisco em sua HOMILIA Adoração do Santíssimo e Bêncão Urbi et Orbi, pronunciada em seu exemplar distanciamento social na grande praça de São Pedro, totalmente vazia, nesse 27 de março de 2020?

Será o Direito, realmente Direito se, como exortou Francisco, não for “capaz de resgatar, valorizar e mostrar como as nossas vidas são tecidas e sustentadas por pessoas comuns (habitualmente esquecidas), que não aparecem nas manchetes dos jornais e revistas, nem nas grandes passarelas do último espetáculo, mas que hoje estão, sem dúvida, a escrever os acontecimentos decisivos da nossa história: médicos, enfermeiros e enfermeiras, trabalhadores dos supermercados, pessoal da limpeza, curadores, transportadores, forças policiais, voluntários, sacerdotes, religiosas e muitos – mas muitos – outros que compreenderam que ninguém se salva sozinho”, e operar para realizar e ser instrumento por meio da eficácia horizontal dos direitos humanos nas relações justrabalhistas, para além da pacificação social, (a) concretização dos ideais de igualdade material, de democracia e de justiça social, com a consolidação do valor trabalho (digno) ancorado na centralidade da pessoa humana e sua dignidade”?

 

José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil,  Professor Titular, da Universidade de Brasília,  Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua

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