segunda-feira, 2 de janeiro de 2023

 

Desarmamento: um valor simbólico para marcar que governar é construir a paz fundada na cidadania

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A ilustração que abre este artigo é a foto de capa do The New York Times, uma dentre as muitas que abriram, no dia 2 de janeiro, a primeira página dos principais jornais do Brasil e do mundo, para expressar o significado da posse em seu terceiro mandato, do Presidente Lula.

 

Um menino negro, um indígena (Raoni), um membro da comunidade PCD (anticapacitista), um professor, um metalúrgico, uma catadora de material reciclável e dois apoiadores da Vigília Lula Livre acompanharam o presidente na subida da rampa do Palácio do Planalto na posse neste domingo. Também “subiu” a rampa a cadela Resistência que permaneceu com o grupo de apoiadores do presidente quando ele esteve preso em Curitiba e foi depois “adotada” por ele e sua esposa. Imagino a satisfação de minhas colegas de universidade Vanessa Negrini e Elen Geraldes que lograram instituir no espaço acadêmico da UnB o Núcleo de Estudos dos Direitos Animais (Vanessa também abrindo espaço partidário para o tema, na forma de um setorial de direitos animais). O Presidente Lula recebeu a faixa presidencial das mãos da catadora de materiais recicláveis Aline Sousa. Ela foi articuladora nacional do Movimento Nacional de Catadores, e é uma liderança do movimento de mulheres catadoras no Distrito Federal. Ela foi a última a receber a faixa presidencial que passou de mão em mão pelo grupo, até vesti-la no Presidente,numa forma de dar dignidade ao ato simbólico de transmitir o poder, aviltado pela descortesia de um chefe de Estado que o abandonou deixando o País. O significado é tanto mais forte quando se percebe, na perspectiva da belíssima foto de Ricardo Stuckert, que o povo que toma a Praça também parece “subir a rampa”.

 

“Estou acompanhado em directo a posse”. Sintetizou, em privado, o professor Boaventura de Sousa Santos: “A entrega da faixa é política simbólica mais brilhante  das últimas décadas  a nível mundial”.

 

Com efeito, marca o imaginário político o simbólico de que com o novo governo, o social também toma posse e participa da governança, no conteúdo das propostas e no método de as materializar. É nesse sentido que deve ser entendida a manifestação uníssona, em bom som, na Praça, da sentença popular “sem anistia”, no instante em que o discurso no Parlatório, caracterizava a desconstrução “genocida” da governança que se encerrava.

 

Nesse aspecto simbólico mas também concreto deve ser compreendido o conjunto de atos – despachos e decretos – imediatamente assinados após a posse dos ministros e das ministras (uma fotografia diversa, plural, policolorida).

 

Ponho em relevo, o conjunto denominado “revogaço” e nele, a suspensão de novos registros de CACs e de clubes de tiro (https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2023/01/01/lula-assina-decretos-e-da-posse-a-ministros.htm).

 

De fato, o decreto de armas, conforme mostra a matéria de UOL, suspende registro de novas armas de CACs (Caçadores, Atiradores e Colecionadores); barra a autorização de novos clubes de tiro até a publicação do novo regulamento; reduz de seis para três o número de armas para o cidadão comum; proíbe a prática de tiro desportivo para menores de 18 anos; reduz acesso a armas e munições; autoriza porte de arma apenas a quem comprovar necessidade; ordena que todas as armas adquiridas a partir do decreto n° 9.785, de 2019 (do governo Bolsonaro), sejam recadastradas, em 60 dias, no Sinarm (Sistema Nacional de Armas); cria grupo de trabalho sobre o tema.

 

Com o cuidado que as medidas de governo devem ter, elas definem uma disposição, tal como saliento no título deste artigo: O desarmamento é um valor simbólico para marcar que governar é construir a paz fundada na cidadania.

 

A sociedade não precisa e não deve ser incentivada a privatizar a segurança e à violência. Coincidentemente, ao ensejo do novo ano, o Papa Francisco lança a sua mensagem para o dia mundial da paz de 2023. Claro que os impactos da guerra entre a Rússia e a Ucrânia (OTAN), fazem da mensagemum convite a refletir sobre as lições deixadas pela pandemia e pela guerra, mas indica o caminho para a paz.

 

O tema escolhido pelo Pontífice é “Ninguém pode salvar-se sozinho. Juntos, recomecemos a partir da Covid-19 para traçar sendas de paz”. Mas é no comunitário que está o caminho para essa construção: “Com efeito, é juntos, na fraternidade e solidariedade, que construímos a paz, garantimos a justiça, superamos os acontecimentos mais dolorosos. De fato, as respostas mais eficazes à pandemia foram aquelas que viram grupos sociais, instituições públicas e privadas, organizações internacionais unidos para responder ao desafio, deixando de lado interesses particulares.”

 

Óbvio que no plano sociológico e mais especificamente, no criminológico, o tema já indicava um certo entrelaçamento daquelas “variáveis de um continuum onde a variação depende do grau de espontaneidade de organização e de envolvimento do Estado”, para determinar uma inclusão de modo político, do que se denominava como vigilantismo, porém fora da ação constitucional ou legal da atuação política do próprio Estado.

 

Aprendi isso ouvindo e lendo a caríssima Martha K. Huggins, do Union College de Nova Iorque. Ali em 1990 ela chegou a proferir, em bom português, uma aula muito explicativa para minha turma de Criminologia da UnB (Faculdade de Direito).

 

Um pouco depois, ela chegou a publicar, como co-organizadora, uma obra pela Editora da UnB – Operários da Violência: Policiais Torturadores e Assassinos Reconstroem as Atrocidades Brasileiras, 2006 – que analisa entrevistas com policiais brasileiros, entre eles perpetradores diretos de tortura e assassinato durante as três décadas que incluíram o regime militar de 1964-1985. São o que no livro são designados de ‘operários da violência’ e os membros do grupo de ‘facilitadores de atrocidades’ (que supostamente não participaram diretamente na violência) ajudam a responder às perguntas que assombram o mundo de hoje; por que e como homens comuns são transformados em torturadores e assassinos do Estado? Como os perpetradores de atrocidades explicam e justificam sua violência? Qual é o impacto das suas ações assassinas para eles mesmos, para suas vítimas e para a sociedade?.

 

Entretanto, assim considerados ou em outras denominações esquadrões de morte, justiceiros, parapoliciais, paramilitares, permanecem num limbo de ação privada, mais próximos do ambiente delinquente de organizações criminosas, clandestinas, guerrilheiras, insurreicionais, sem que se pudesse conferir dados precisos de seus eventuais vínculos com o burocrático-estatal, em contexto continental.

 

Por tudo, ver em Martha Huggins – O Vigilantismo e o Estado: uma Vista para o Sul e para o Norte, in O Alferes, Belo Horizonte 10 (33): 17-38, abril/junho 1992. Para a autora, então, faltavam estudos mais profundos para estabelecer, no continuumdas relações entre todas essas formas, “a localização exata desses tipos de um fenômeno já discernível, o vigilatismo”.

 

Nesse contexto ainda indiscernível, em 2005, no primeiro mandato do Presidente Lula, o tema do desarmamento foi colocado na agenda política da Sociedade e do País com a proposta de um Estatuto do Desarmamento que incluía a “proibição da comercialização de armas de fogo, acessórios e munições”. Participei com empenho do debate nessa época. Anoto, entre outras manifestações, meu artigo Comércio de armas e cultura de paz: dilemas de um referendo (Jornal do Sindjus Agosto de 2005 • Nº 26, p. 4).

 

Pela primeira vez um referendo, instrumento democrático de participação direta por meio do qual o eleitorado aprova um ato legislativo ou de governo, seria exercitado no Brasil e, no mundo, sobre este assunto.

 

Com um Estatuto do Desarmamento e a implementação de uma Campanha Nacional de Desarmamento, coordenada pelo Ministério da Justiça procurou-se estabelecer mecanismos de restrição à posse de armas tanto para os cidadãos como para policiais e militares; controle de armas de fogo com a centralização dos registros e portes e de munições. Com a Campanha, buscava-se a adesão da população para os fundamentos morais dessa política, voltados para o desenvolvimento de uma cultura de paz e de cidadania.

 

A meta inicial da Campanha era a de recolher e destruir 80 mil armas em seis meses. A forte mobilização, estimulada pelos meios de comunicação, por organizações da sociedade civil e por organizações governamentais e não-governamentais, logo ultrapassou a meta inicial, alcançando um número recorde de armas recolhidas, tal a força pedagógica de campanhas bem conduzidas.

 

Duas frentes parlamentares antagônicas que se formaram: a Frente Parlamentar por um Brasil Sem Armas pretendeu mobilizar a opinião pública pelo voto “sim” à pergunta proposta pelo referendo; e, em sentido oposto, com a mobilização pelo voto “não”, constituiu-se a Frente Parlamentar pelo Direito à Legítima Defesa.

 

Os defensores do comércio de armas de fogo apoiavam a sua posição num pretendido direito de escolha do cidadão de autodefender-se, especialmente numa sociedade mal estruturada em que a segurança pública é precária. Em tal contexto, enquanto o cidadão se desarma, os criminosos têm acesso a armas de fogo no comércio ilegal, principalmente, no contrabando.

 

Esses foram os dilemas do referendo. Contra uma posição que argumentava com base numa pretensa liberdade de escolha,  desenvolveu-se a perspectiva ética que busca desenvolver e aperfeiçoar sistemas alternativos de produção, fundados em concepções de comércio justo, que reclamam regimes jurídicos especiais para atribuir condições justas às suas práticas, inspiradas em movimentos que se põem contra toda forma de mercadorização da vida social.

 

Apesar do intenso uso de dados estatísticos e cadastrais, ainda prevalecia um certo enquadramento metafísico nesse debate, atribuindo contornos retórico-conceituais ao debate (legítima defesa, liberdade de escolha, condicionantes econômicas), preservando o estatal das contaminações que o debate revela hoje e no Brasil, com força nos últimos quatro anos.

 

Agora não. Agora, no Brasil, já é possível estabelecer-se uma vinculação clara entre ação de estado e mobilização privada da violência, sob a forma de milicianismo. Tratei desse tema aqui no Jornal Brasil Popular em minha Coluna O Direito Achado na Rua. A propósito, conferir (https://www.brasilpopular.com/agrobanditismo-que-mata-e-fere/). Acrescento, ao que mostra a bem desenvolvida e documentada matéria de Carol Castro (https://theintercept.com/2022/11/16/clubes-de-tiro-cercam-indigenas-e-municiam-agromilicias-na-amazonia/) com mapas que revelam todos os pontos de localização caracterizando esse cerco.

 

Ela mostra, além disso, como a “flexibilização torna mais fácil a atuação de empresas de vigilância armada em regiões já marcadas pela violência rural”. Agora, “as agromilícias se formam no mesmo modus operandi, mas com dois facilitadores: os CACs e os clubes de tiro. ‘Você não precisa mais abrir uma empresa, basta ir lá e tirar um registro de caçador’. A lei mudou mesmo o cenário no campo. Em 2019, Bolsonaro aprovou uma lei de posse de arma estendida no campo. Ou seja, desde então, os fazendeiros podem andar armados por toda sua propriedade – e não apenas na sede, como era antes. “Essas propriedades na Amazônia são do tamanho da região metropolitana de São Paulo. Então essa pessoa pode andar por milhares de quilômetros armada. Ela agora pode botar um fuzil legal dentro da sua propriedade”.

 

Ainda sobre o tema, em outra coluna: https://www.brasilpopular.com/artigo-armamentismo-uma-estrategia-miliciana-assumida-como-metodo-de-governo/.

 

Chamo a atenção para o texto de ZALUAR, A.; CONCEIÇÃO, I. S. Favelas sob o controle das milícias no Rio de Janeiro: que paz?. São Paulo em Perspectiva, São Paulo, Fundação Seade, v. 21, n. 2, p. 89-101, jul./dez. 2007. Disponível em: http://produtos.seade.gov.br/produtos/spp/v21n02/v21n02_08.pdf

 

É desse campo minado que advém a Lei nº 12.720/2012, cuja ementa indica a busca para proteger a paz pública, a segurança e os direitos do cidadão, já desmistificando o caráter de vigilantismo ou justiciamento ou qualquer aura de serviço que possa recair sobre milícias, mas entende-las como organizações formadas para a prática de crimes, assim definidos: Constituir, organizar, integrar, manter ou custear organização paramilitar, milícia particular, grupo ou esquadrão com a finalidade de praticar qualquer dos crimes previstos neste Código.

 

Desde a prática da extorsão às ameaças de morte de opositores, os crimes cometidos por uma milícia estão previstos nos casos em que a organização paramilitar:é destinada à prática de crimes previstos na lei de drogas;é destinada à prática de genocídio, ou seja, de extermínio de pessoas;tem como objetivo a mudança do regime vigente ou do Estado;é destinada à prática de crimes previstos na formação de quadrilhas ou bandos, como o transporte alternativo de vans ou mototáxis e a cobrança de taxa por segurança.

 

As medidas ontem adotadas são um começo razoável para debelar uma corrupção sistêmica e devem ser aprofundadas, mobilizando funcional e pedagogicamente as instituições públicas e da sociedade civil para conferir ao desarmamento um valor simbólico que demarque o governar como modo de construir a paz fundada na cidadania.

 

Por isso é importante disposição e inteligência como indicava velho professor Roberto Lyra Filho, para superar “o engenho criminoso a forjar meios e modos para contornar a ação repressora”.Não podemos esquecer que a letalidade conseqüente ao comércio de armas, diferentemente do que sucede, por exemplo, no comércio de drogas, conduz auma atividade que pode considerar-se “com vítima“, porque não se trata apenas deautodestruição física ou moral, que não afronta a tutela penal. Por isso mesmo, nos Estados Unidos, hoje, juízes têm condenado como co-autor de homicídio o fabricante que põe à disposição do mercado armas cuja letalidade exceda a auto-defesa razoável. Já em relação a governantes, vale o julgamento popular: “sem anistia”.

 

 

 

(*) José Geraldo de Sousa Junior é professor titular na Faculdade de Direito e ex-reitor da Universidade de Brasília (UnB)


José Geraldo de Sousa Junior é graduado em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal – AEUDF, mestre e doutor em Direito pela Universidade de Brasília – UnB. É também jurista, pesquisador de temas relacionados aos direitos humanos e à cidadania, sendo reconhecido como um dos autores do projeto Direito Achado na Rua, grupo de pesquisa com mais de 45 pesquisadores envolvidos.

 

Professor da UnB desde 1985, ocupou postos importantes dentro e fora da Universidade. Foi chefe de gabinete e procurador jurídico na gestão do professor Cristovam Buarque; dirigiu o Departamento de Política do Ensino Superior no Ministério da Educação; é membro do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil – OAB, onde acumula três décadas de atuação na defesa dos direitos civis e de mediação de conflitos sociais.

 

Em 2008, foi escolhido reitor, em eleição realizada com voto paritário de professores, estudantes e funcionários da UnB. É autor de, entre outros, Sociedade Democrática (Universidade de Brasília, 2007), O Direito Achado na Rua. Concepção e Prática 2015 (Lumen Juris, 2015) e Para um Debate Teórico-Conceitual e Político Sobre os Direitos Humanos (Editora D’Plácido, 2016).

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