quarta-feira, 3 de fevereiro de 2021

 

O Direito Achado na Rua V.8

Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito.

 

O DIREITO ACHADO NA RUA V.8 – INTRODUÇÃO CRÍTICA AO DIREITO À COMUNICAÇÃO E À INFORMAÇÃO. Organizadores José Geraldo de Sousa Júnior, Murilo César Ramos, Elen Cristina Geraldes, Fernando Oliveira Paulino, Janara Kalline Leal Lopes de Sousa, Helga Martins de Paula, Talita Tatiana Dias Rampin, Vanessa Negrini. – Brasília: FACUnB, edição impressa (ISBN 978-85-9-3078-06-4), 2016, 455p. Edição e-book file:///C:/Users/Jos%C3%A9%20Geraldo/Pictures/faclivros_direitoachadorua8.pdf

 O livro O Direito Achado na Rua v.8 – Introdução Crítica ao Direito à Comunicação e à Informação.

                                    

         Idealizado pelo grupo de pesquisa O Direito Achado na Rua e pelo Laboratório de Políticas de Comunicação – LaPCom, o volume conta com textos de Boaventura Santos, Nita Freire, além de reunir a produção de 40 autoras e autores sob a organização dos professores José Geraldo de Sousa Junior, Murilo César Ramos, Elen Cristina Geraldes, Fernando Oliveira Paulino, Janara Sousa, Helga Martins de Paula, Talita Tatiana Dias Rampin e Vanessa Negrini.

         A obra ganhou ilustrações inspiradas na arte gráfica russa do início do século XX, em homenagem aos 100 anos da Revolução Russa, realizadas de conformidade com edital lançado com esse objetivo. O volume, assim, se destaca pelas ilustrações, tanto quanto, neste aspecto, os sete que o antecedem e os dois posteriormente editados no espírito da Série O Direito Achado na Rua.

         Conforme a Apresentação da obra, o desafio foi debater sobre o direito à comunicação e à informação como um direito humano “achado na rua”, ou seja, fruto da luta dos movimentos sociais e dos sujeitos coletivos de direito. A obra coletiva envolveu quase 60 pessoas, entre organizadores, autores, ilustradores e colaboradores diversos, ao longo de quase dois anos de trabalho, e serve de pontapé inicial desta interlocução entre Direito e Comunicação, a partir da perspectiva de O Direito Achado na Rua.

Créditos: PixaBay / MichaelGaida

         Assim que, ainda conforme a Apresentação “Este livro é o resultado dos debates empreendidos naquele semestre, com as aulas ministradas em formato de palestras, por vários de professores dos dois programas e diversos convidados externos, pesquisadores e representantes de movimentos sociais. Contribuíram para o amadurecimento deste trabalho, as reflexões ao longo de eventos como Conversa de Justiça e Paz, com o ministro das Comunicações Ricardo Berzoini (2015); Em Defesa da Comunicação Pública (2016); VI Encontro Nacional da União Latina da Economia Política da Informação, da Comunicação e da Cultura (ULEPICC) – Capítulo Brasil (2016); A Democracia Difícil, aula magna do professor Boaventura de Sousa Santos (2016)”.

         A obra é uma leitura útil e pertinente na conjuntura. Basta examinar o seu Sumário e a qualificação autoral que a estrutura:

Parte I – Conceitos e categorias para compreensão do Direito Humano à Comunicação e à Informação sob a perspectiva do Direito Achado na Rua.

– Introdução Crítica ao Direito à Informação e à Comunicação na Perspectiva de “O Direito Achado na Rua”,\  José Geraldo de Sousa Junior, Helga Maria Martins de Paula e Talita Tatiana Dias Rampin;

– O Direito Humano à Comunicação e à Informação: em busca do tempo perdido | Elen Geraldes, Murilo César Ramos, Janara Sousa, Fernando Paulino, Vanessa Negrini, Luiza Montenegro e Natália Teles;

– A Constituinte e a Reforma Universitária | Roberto Lyra Filho (in memoriam);

– A Democracia difícil: é possível um novo contrato social? | Boaventura de Sousa Santos;

– Acesso à Justiça e a pedagogia dos vulneráveis | Ana Maria Araújo Freire (Nita Freire);

– Ciência, comunicação, relações de poder e pluralismo epistêmico | Alexandre Bernardino Costa e Eduardo Gonçalves Rocha;

– Comunicação como exercício da liberdade | Antonio Escrivão Filho e Ísis Menezes Táboas;

Parte II – Reflexões e trajetórias de luta pelo Direito Humano à Comunicação e à Informação.

Marco Legal

– Sociedade da Informação, Direitos Humanos e Direito à Comunicação | Marcos Urupá;

– As mudanças no marco regulatório das telecomunicações no Brasil | Elizabeth Machado Veloso;

– Radiodifusão comunitária: das barreiras do processo de outorga à criminalização da prestação irregular do serviço | Gisela Aguiar Wanderley e Marcelo Barros da Cunha;

– A TV Brasil e o debate conceitual em torno do Artigo 223 da Constituição Federal de 1988 | Natália Oliveira Teles;

– Os direitos autorais como expressão de liberdade seletiva no audiovisual | Pedro Andrade Caribé;

Comunicação e Governo

– O discurso democrático entre governo e esfera pública digital: a construção do portal Dialoga BrasilKarenina M. Cabral e Francisco Rocha;

– O Direito à Comunicação nos sites de rede social: análise das interações mútuas na página do Humaniza Redes no Facebook | Leonardo Luiz de Souza Rezio;

– Os sites governamentais na era da transparência e da interatividade: um estudo de caso sobre o site do Senado | Valéria Castanho;

– O acesso à cultura e o reconhecimento dos direitos culturais: experiência cubana | Janny Carrasco Medina;

Direito à Informação

– Direito de informar: a participação do cidadão comum | Delcia Maria de Mattos Vidal;

– Jornalismo e Direitos Humanos: o papel do jornalista na concretização do acesso à informação |Angélica Peixoto e Marcela D’Alessandro;

– As verdades da e na gestão pública: uma leitura da lei de acesso à informação e da comissão nacional da verdade | Dirlene Santos Barros e Mônica Tenaglia;

– Direito à Verdade e Comissões da Verdade: direito de informação sobre graves violações de direitos humanos | José Carlos Moreira da Silva Filho;

– Direito à informação sobre transgênicos e agrotóxicos | Viviane Brochardt;

Comunicação e Minorias

– Educação Jurídica Popular e Direito à Comunicação e à Informação: experiências de loucura e cidadania | Ludmila Cerqueira Correia e Olívia Maria de Almeida;

– TV Universitária e o direito à comunicação e à informação | Neuza Meller e Flávio Castro;

– Políticas públicas de comunicação e de cultura em uma perspectiva multicultural: desafios para a diversidade racial e étnica | Luísa Martins Barroso Montenegro;

– Ciberfeminismo e o “Direito Achado na Rede”: o ciberespaço como plataforma de inteligência coletiva e enfrentamentos na luta feminista | Patrícia Vilanova Becker;

– Radiodifusão Sonora Comunitária em Terras Indígenas: os obstáculos da colonialidade na legislação de RadCom | Rosane Freire Lacerda;

Comunicação e Golpe

– Mídia e a nova metodologia de golpe na América Latina: o caso de Honduras | Sílvia Alvarez e Jacques de Novion;

– Cultura, política e moral: as diversas faces da censura na ditadura militar brasileira Cristiano Paixão e Claudia Paiva Carvalho;

– Comunicação e democracia: o impacto da cobertura televisiva nas manifestações de março no Brasil | Vanessa Negrini, Elen Geraldes e Janara Sousa;

Comunicação Achada na Rua

– O Intervozes e a luta dos movimentos sociais pelo direito à comunicação | Bia Barbosa e Helena Martins;

– Histórico da comunicação popular e contra-hegemônica do MST | Solange I. Engelmann e Ana Iris Nogueira Pacheco;

– Entre Ocupar e Invadir: a disputa midiática sobre o Direito | Geraldo Miranda Pinto Neto;

– Resistência e Arte: o teatro do Movimento de Mulheres Camponesas | Ísis Menezes Táboas, Letícia Pereira e Rosângela Piovesan;

– Fotografia Achada na Rua: dialética e práxis sob o foco de uma câmera | Daniel Vitor de Castro;

– A relação entre a luta sindical e a pauta pela democratização da comunicação | Vanessa Galassi;

            Na base dessas reflexões o que a edição põe em causa, é antes de tudo o princípio da liberdade de imprensa contra toda forma de censura e de cerceamento de seu papel como veículo da livre expressão. Mesmo em sistemas em que os meios de comunicação se constituem, como tudo o mais, bem de mercado e de apropriação de grandes proprietários, mantêm-se a salvaguarda de que há prerrogativas a proteger e de que o controle e a fiscalização de suas atividades não podem ser subterfúgios para reduzir o princípio fundamental que é a liberdade de imprensa. Liberdade de imprensa permeada pela perspectiva de se traduzir enquanto espaço de amplo debate e informação, com responsabilidades éticas balizadoras do cuidado que se deve ter quando se é compreendido como formador de opiniões.

         Certamente a contrapartida para essa valorização simbólica é não descuidar, que mesmo propriedade, os meios de comunicação se constituem uma esfera pública e têm que realizar os valores democráticos que asseguram o direito à livre informação. Por essa razão, controles sociais não são estranhos em um mundo impulsionado por acelerados processos de globalização, com racionalidades afetadas por demandas regulatórias inéditas e por complexas formas de interação, no plano dos valores, da produção, dos processos democráticos e de garantia dos direitos específicos das e dos profissionais de comunicação.

         Não é o que assistimos no Brasil quando a opinião fica adstrita a uma linha editorial que confere aos meios de comunicação o aparato político de ideologização da opinião única, divulgada como se fosse proselitismo de um partido político. E, principalmente quando se associa ou se articula com estratégias de rotulação estigmatizante que se prestam a forjar uma orientação criminalizadora.

         É esse o fenômeno que estamos presenciando no Brasil hoje, com os grandes meios mobilizando a sociedade para assumir pontos de vista sobre os problemas sociais, espetacularizando de forma prestidigitadora, manipulando mesmo, a opinião, para alcançar objetivos que servem as suas alianças políticas e econômicas (em países mais nitidamente constituídos no modelo capitalista o que acontece no Brasil é inaceitável e a divulgação espetacularizada de procedimentos de ofício – como denúncias – com o ilusionismo de apresentações valendo-se de efeitos especiais, têm sido base para a anulação judicial dos processos levados a cabo com esses artifícios). E é desastroso quando esse processo agrega agentes públicos que se valem desse espetáculo ilusório para calçar seus objetivos confessáveis ou inconfessáveis de vigilantismo messiânico. São, aqui, os vazamentos seletivos (conferindo perfis criminais sob o manto da informação jornalística), ali, a glamourização do arbítrio (a justificação eficiente da colheita de provas ilegais e abusivas, a tolerância com a banalização das prisões cautelares e preventivas), ali a introdução de instrumentalidade processual na contracorrente do avanço civilizatório (a desqualificação do habeas corpus, da proteção recursal e do duplo grau de jurisdição) e, em suma, para subliminarmente inculcar na mentalidade social a imagem do bode expiatório oferecido em expiação para cumprir  função sacrificial, e logo entregar-se às acomodações ao modo de reformas, cujo único intuito, lembra Giuseppe Tomasi Di Lampedusa, é conservar: “se queremos que tudo fique como está é preciso que tudo mude”.

         Não alcançaremos amadurecimento democrático e verdadeiramente republicano, sem uma profunda transformação institucional do campo da política e sem introduzir no sistema democrático, como impõe a Constituição Federal de 1988, formas claras e legítimas de controle social dos meios de comunicação, para garantir pluralidade e acesso pleno à informação.

         A comunicação no conceito de transparência ativa, de diálogo com a cidadania e com a sociedade, realiza o direito à informação, como direito do cidadão. É condição inescapável, no plano de qualquer institucionalidade, para a construção de um ambiente mais democrático, participativo e transparente, incluindo tanto o direito de ser informado quanto o direito de informar. Não apenas visando ao sujeito da informação e da comunicação, mas também ao produtor da comunicação e da informação, quando se organize de modo independente, autônomo relativamente à propriedade dos grandes meios e engajado em seus compromissos sociais e democráticos. A comunicação, em suma, como lócus da práxis para a necessária transformação social, livre de assédios.                   

         O texto que acompanha a atividade O jornalismo sob assédio judicial, preparado por suas organizadoras e organizadores, é bem contundente:

A Constituição Federal do Brasil assegura a plenitude da Liberdade de Imprensa como um dos pilares do Estado Democrático de Direito. Isso significa afirmar que a liberdade de expressão e o direito à informação não podem sofrer qualquer tipo de restrição, sob pena de grave violação à democracia, daí porque a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal rejeitou a censura prévia como mecanismo de controle do conteúdo a ser divulgado. O pensamento crítico é inerente ao jornalismo livre e, caso haja violação a direitos individuais, como o direito à honra, por exemplo, o direito de resposta e a indenização são mecanismos legítimos para proporcionar a devida reparação e a coibição de novos abusos. Ocorre que, ao longo dos últimos tempos, o Sistema de Justiça vem adotando mecanismos de controle prévio – edição de textos, supressão de artigos, proibição de publicações, dentre outros – em clara desobediência à previsão constitucional. Além disso, são inúmeros os casos em que o salutar exercício da crítica, assegurando o livre trânsito de ideias e opiniões, é interpretado como ofensivo à honra, hipótese em que o Sistema de Justiça privilegia o direito individual em detrimento do interesse público, o que desafia os preceitos constitucionais. E, ainda, nas hipóteses de condenação à indenização após a publicação da matéria jornalística, o valor estabelecido com base no instituto da responsabilidade civil tem asfixiado o jornalismo independente, que não possui musculatura financeira par arcar com os custos judiciais das demandas que lhe são ajuizadas. Por fim, é preciso destacar que as decisões, marcadas por nítida perseguição ideológica, sufocam o contraditório, próprio do pluralismo de ideias e indispensável ao gozo do direito à informação. Muito embora revestidos de um verniz de legalidade, o chamado “assédio judicial” – controle judicial prévio dos conteúdos jornalísticos, adoção de valores desproporcionais e condenações ideológicas – está submetendo a nossa democracia a risco. Nesse sentido, é essencial que esse debate seja realizado por toda a sociedade, com a colaboração dos profissionais do jornalismo e do sistema judicial. É preciso assegurar que a independência judicial – pilar também essencial do Estado Democrático de Direito – não implique ameaça ao jornalismo livre, plural e independente”.

         Participante do debate e tendo sido um dos organizadores da obra tema deste Lido para Você, fui tanto mais mobilizado para essa discussão necessária, quanto ela demonstre que há em nosso país, uma onda obscurantista que nubla o processo democrático, a institucionalidade republicana e turva a função contramajoritária do sistema de justiça e do próprio Judiciário. Mas com a expectativa de que, se recaídas eruptivas de autoritarismo reassentam o sitio à cidadela da autonomia e da liberdade de ensinar, de criticar e de expressão, capturando os caminhos da própria judicialização, há a salvaguarda do monitoramento internacional, em sede de aplicação dos enunciados cogentes do sistema jurídico convencional. Tanto mais se em causa, ameaças à dinâmica democrática.

         Nos últimos meses acumularam-se os atos de assédio explícito contra os meios independentes, combinando instrumentos políticos e econômicos, para cujo sucesso obstrutivo do exercício livre do direito de informar, a partir de igrejas, setores econômicos e de áreas da governança, acabou por mobilizar o judiciário numa enxurrada de ações distribuídas país afora. Algumas dessas ações instauradas por juízes inconformados com a crítica à ação judicante numa conjuntura acirrada pelo uso político da jurisdição num fenômeno denominado lawfare. Jornalistas e estruturas independentes de notícias passaram a ser o alvo desse verdadeiro assédio a ponto de tornar praticamente impossível o exercício profissional do jornalismo ou o próprio empreendimento, abalado por condenações, inclusive financeiras, desproporcionais senão exorbitantes. Jornalistas e seus veículos, entre eles Leonardo Sakamoto, Amaury Ribeiro Jr, Elvira Lobato, Vitória Famer e mais gritantemente Luís Nassif, junto com seu trabalho à frente do GGN, caracterizando ainda o que “relatório da Repórteres Sem Fronteira também introduz um tema cada vez mais urgente, embora menos abordado ou questionado do que deveria: a ‘perseguição judiciária como mecanismo de censura’” (veja em: https://noticias.uol.com.br/colunas/camilo-vannuchi/2021/01/14/crescem-os-ataques-a-veiculos-de-comunicacao-e-jornalistas.htm?cmpid=copiaecola; veja também em: https://noticias.uol.com.br/colunas/camilo-vannuchi/2021/01/14/crescem-os-ataques-a-veiculos-de-comunicacao-e-jornalistas.htm?cmpid=copiaecola; conforme também, https://apublica.org/2017/08/e-quando-o-jornalista-e-vitima-de-perseguicao/; situações que estão na raiz da formação de coletivos de solidariedade e de defesa da liberdade de imprensa, no que se enquadra no tema desse debate no qual participei recentemente.

         Neste caso, a leitura dos bens tutelados ainda mais robustece o sentido relacional que o conjunto normativo civilizatório mais preserva, tal como, aliás, já decidiu a Corte Interamericana de Direitos Humanos (OEA), conforme expressa o Caso López Lone e outros Vs. Honduras (Sentença de 5 de outubro de 2015), ocasião em que a Corte reconheceu a relação existente entre os direitos políticos, a liberdade de expressão, o direito de reunião e a liberdade de associação. Reconheceu também que, em conjunto, esses direitos tornam possível a dinâmica democrática. Em situações de ruptura institucional, após um golpe de Estado, ou na iminência de que se consume, a relação entre esses direitos torna-se ainda mais manifesta. Do mesmo modo, a Corte apontou que as manifestações e expressões a favor da democracia devem contar com a máxima proteção possível, e, dependendo das circunstâncias, podem estar ligadas a todos ou a alguns desses direitos.

         Certamente essa é uma questão que provoca cuidados preventivos no mundo civilizado e engaja os sistemas regionais, tal como a OEA e os sistemas universais, desde a ONU – Organização das Nações Unidas. No Sistema ONU ponho em relevo as Diretrizes para promotores de justiça em casos de crimes contra jornalistas, que a UNESCO atualizou agora ao final de 2020 (unesdoc.unesco.org/in/rest/annotationSVC/DownloadWatermarkedAttachment/attach_import_d89be8ce-3007-4184-8dba-0ef4ccc22585?=375138por.pdf?to=16&from=1).

         Remetendo às diretrizes propriamente ditas, chamo a atenção para o trecho do preâmbulo sobre os riscos e ameaças reais e recorrentes contra a liberdade de de expressão e de comunicação:

Por   conseguinte, estas   diretrizes   reconhecem   a   importância da liberdade de expressão e de meios de    comunicação    livres, independentes,  plurais    e   diversificados,   tanto   online   quanto   offline.   Os   promotores de justiça devem considerar esse direito fundamental   como   essencial   na   construção   e   no   apoio a sociedades inclusivas, à cidadania informada, ao Estado de direito e à participação nos assuntos públicos, assim    como    na    responsabilização    das    instituições públicas e suas autoridades. Em todo o mundo, as atividades dos jornalistas frequentemente os colocam em situações de risco específico de violações e abusos a direitos humanos, incluindo assassinato, tortura, desaparecimento forçado, detenção ou prisão arbitrária, expulsão arbitrária, violência física e sexual, bem  como  intimidação,  ameaças  e  todos  os  tipos  de  assédio,  inclusive  visando  a  seus  familiares.  Essas táticas nocivas e perigosas muitas vezes dissuadem os jornalistas de  continuar  suas  atividades,  ou  incentivam  a  autocensura,  consequentemente,  privando a sociedade de informações importantes. Assim sendo, as Nações Unidas instam os  países  a  fazer  com  que  suas  leis,  políticas  e  práticas  estejam  em    conformidade    com    suas    obrigações    e    seus    compromissos no âmbito da legislação internacional de direitos humanos…”. Estas diretrizes – diz ainda o preâmbulo, “não visam  a  atribuir  uma  condição  especial   aos   jornalistas,   sendo   todos   os   cidadãos   iguais perante a lei. O objetivo consiste em assegurar o   direito   de   exercer   as   atividades   relacionadas   ao    jornalismo    sob    condições    que    permitam    a    consecução dos direitos fundamentais”.

         Não posso deixar de recuperar, também já tema de um de meus comentário nesta coluna Lido para Você, a obra Todos temos que Lembrar – A lição e a missão do jornalista. CUNHA, Maria Jandyra C. (Org.), CUNHA, Luiz Cláudio, SOUSA JUNIOR, Jose Geraldo de, MOTTA, Luiz Gonzaga, TAVARES, Flávio e BUARQUE, Cristovam. Brasília: Editora UnB, 2013.

         O livro reúne os memoriais, pareceres e discursos que precedem e se materializam na cerimônia de concessão do título de Notório Saber em jornalismo a Luiz Cláudio Cunha, pela Universidade de Brasília, em sessão solene do seu Conselho Universitário, no dia 9 de maio de 2011 e foi organizado pela esposa do agraciado, a também professora Maria Jandyra C. Cunha, que agregou à obra, além do material já  mencionado, a saudação do Professor Luiz Gonzaga Motta, a minha manifestação na qualidade de Reitor e de Presidente do Conselho, acrescentando um prefácio a cargo do Jornalista Flávio Tavares, ex-professor da UnB e um posfácio do senador e ex-Reitor da UnB, Cristovam Buarque. E, naturalmente, o discurso do homenageado, jornalista Luiz Cláudio Cunha, um dos mais conhecidos e reconhecidos profissionais do jornalismo do Brasil.

         Muito pertinente essa evocação, quando na edição, a propósito das inquietações da conjuntura, a  Organizadora tenha incluindo na edição, um anexo, contendo uma série de doze artigos de Cunha sobre eventos como o golpe civil-militar de 1964, a tortura, a repressão, os desaparecimentos forçados, a autoanistia, a violência e a impunidade que marcam a alma brasileira, mesmo após o fim da ditadura temas que estão sempre presentes no fascismo inconsciente que se aninha na sociedade brasileira e que em momentos tensos, nos quais se agudizam os dissensos sociais, rapidamente afloram. Por isso, do mesmo modo, anexou o texto A força da palavra, a palavra da força, conferência proferida por Cunha no encerramento do XIV Congresso Internacional de Humanidades Brasil-Chile: Palavra e Cultura na América Latina – heranças e desafios (2011). A Organizadora justifica essa inserção, expressiva sobre ser essa dimensão do trabalho jornalístico de Cunha, algo que o identifica profissionalmente, em temas e estilo. Mas, sobretudo, tal qual uma premonição, porque o texto, tal como Cunha o apresenta, se entrelaça com o tema maior do evento pondo em relevo, no presente e para o futuro, o ancestral conflito entre a liberdade e o autoritarismo no uso da palavra, assunto em boa parte retomado no seu discurso na cerimônia de outorga do Notório Saber.

         Com efeito, digo no meu comentário “é a palavra que define o jornalismo, assim se posicionou Flávio Tavares, no prefácio (p. 15-160). E ao dizer isso, referindo-se a Luiz Cláudio Cunha, pontifica para os que se dedicam a esse ofício, principalmente hoje: No mundo da sociedade de consumo, cada vez mais as palavras perdem valor e significação e viram sons indefinidos e difusos, sem compromisso com a realidade. Já não se exige que a palavra se ligue à dignidade da existência. De tanto ser usada em vão, defendendo a mesquinhez, justificando guerras ou a degradação do planeta, a palavra perde o sentido e vira simples som de tambor”.

         Vem a calhar a lição de Luiz Claúdio Cunha, se conferimos o seu texto, sobretudo quando ele lembra quadra sombria da história brasileira, uma história de extrema violência institucional, de enorme perigo, principalmente para a higidez das próprias instituições. O alcance da lição está em que ela não isola no passado um acontecimento para recuperá-lo por meio de uma narrativa embora crítica. Mas porque ela mostra que o passado se enrosca no presente e furtivamente se prorroga para o futuro. É recidivo, repristinatório. Sua sombra densa se estende na paisagem e eventualmente ganha nitidez. Como nesse momento, ainda obscuramente mas já se prenunciando em meandros palpáveis. Uma institucionalidade que se fragiliza, uma representação que se falseia, uma juridicidade que se esgarça e eis o paroxismo que volta à tona. O monstro do fascismo não dorme, hiberna.

         Por isso que para advertir no presente o que o passado ensina, mencionei uma outra grande lição, esta do historiador (Walter Benjamin, Sobre o Conceito da História. In Obras Escolhidas, Magia e Técnica, Arte e Política. São Paulo: Editora Brasiliense, 3a. edição, 1987, p. 222-232): construir a história como um relampejar do momento em que vivemos no perigo para que a nossa consciência aberta sobre o seu significado nos oriente à ação transformadora, para o nunca mais.

         Em Luiz Cláudio Cunha, em Vladimir Herzog,  em Luiz Nassif, no jornalismo independente e de resistência democrática, a lição é antes de tudo um dever de casa, porque visa a abrir o ofício para a experiência política e para a democracia, para recuperar o sentido legítimo da anistia que não se preste de abrigo para perpetradores de crimes contra a humanidade e para a realização plena do projeto de sociedade inscrito na Constituinte de 1988. Projeto contra o qual estão em permanente armação golpes letais de opressões e de espoliações de ontem e de hoje, e dos autoritarismos impertinentes, de qualquer natureza, legislativos, judiciários, midiáticos, civis e militares com os quais se instalam, felizmente, nunca de forma permanente.

         Tratei disso também em outros textos, em coluna que mantive durante muitos anos na Revista do SindjusDF, o Sindicato dos Servidores do Judiciário e do Ministério Público do Distrito Federal, ferindo temas como Atividade jornalística e liberdade de imprensa e Liberdade de Expressão e Limites ao Acesso à Informação, depois reunidos em SOUSA JUNIOR, José Geraldo de. Ideias para a Cidadania e Para a Justiça. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2008.

         Ao fim e ao cabo, lembrava Marx em seus libelos sobre a liberdade de imprensa e de comunicação, que “a primeira condição que precisa ter a liberdade é a autoconsciência” e, em sua autodefesa, aliás seguida de absolvição pelo júri, sob aplausos da audiência, derrubou a denúncia à sua condição de editor: “Por que deveria a imprensa fazer qualquer denúncia post festum, depois de uma decisão ter sido tomada? A função da imprensa é ser o cão-de-guarda público, o denunciador incansável dos dirigentes, o olho onipresente, a boca onipresente do espírito do povo que guarda com ciúme sua liberdade” (O Papel da Imprensa como Crítica de Funcionários Governamentais|).

         Revendo esses textos, dou-me conta que então como agora, as coisas estariam se passando, para lembrar conhecida crítica de Marx (Debates sobre a Liberdade de Imprensa e Comunicação, em A Liberdade de Imprensa, L&PM Editores, Porto Alegre, 1980), num crescendo de restrições à liberdade como prova irrefutável de que os governantes foram convencidos de que a liberdade deve ser restringida. Alguns comentários até se preocuparam com o desfocamento da questão, mostrando o maniqueísmo que acabou resultando do acirramento de posições (Luiz Gonzaga Motta, Além do Maniqueísmo, http://www.unb.br/acs/artigos/at0804-04.htm, a ponto de se perder de vista a dimensão republicana do debate, uma vez que “o jornalismo é um espaço público, não pertence a governos nem deve ter donos. Pertence à sociedade”.

 

José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil,  Professor Titular, da Universidade de Brasília,  Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua.

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