quinta-feira, 18 de dezembro de 2025

 

O Despertar de Tudo. Uma nova história da humanidade

Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito

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O Despertar de Tudo. Uma nova história da humanidade, de David Graeber e David Wengrow. São Paulo: Companhia das Letras, 2022.

 

               

 

Deparei-me com este livro quando organizava meu módulo temático do projeto de pesquisa, ensino e extensão “SUMAK KAWSAY – BEM-VIVER: Culturas Insubordinadas e Invisibilizadas da América Latina em suas Vozes pela Cultura de Paz” (Curso coordenado pelas professoras Regina Fittipaldi e Marta Lobo, numa promoção da UnB/CEAM, Unipaz e União Planetária).

Ainda que meu tema de exposição no curso fosse Decolonialidade: Em busca da Cura, também fui incumbido de ministrar, junto com o professor Marco Aurélio Bilibio, Diretor do Instituto Brasileiro de Ecopsicologia, uma aula de abertura com um outro tema: “Ecopedagogia na Transdisciplinaridade: Um Desafio Possível“.

Para abordar o tema da abertura do Curso, recupero aqui o que desenvolvi em minha conferência inaugural do XXIIIº Congresso Internacional de Humanidades, realizado em Brasília na Universidade de Brasília, em 2021, abordando a chamada do Congresso que foi:  PODER, CONFLITO E CONSTRUÇÃO CULTURAL NOS ESPAÇOS LATINO-AMERICANOS.

Iniciei a minha conferência com uma saudação aos participantes, com uma indagação: apesar das diferenças de percurso para nos constituirmos um espaço comum latinoamericano social e político, qual a história comum que forja a comunidade de culturas e a comunidade de afetos que somos ou que podemos ser e na medida em que nos possamos constituir também como povos que se podem conceber como um destino compartilhado?

Temos sim, os povos que se expressam majoritariamente em línguas muito próximas, notadamente a espanhola e a portuguesa, mas também num imenso painel de línguas originárias, e se somos cada um povo só o somos povos com vínculos comuns porque temos uma história comum que nos forja enquanto comunidade de culturas e comunidade de afetos, e que nos amalgama a partir de algum momento em nossas próprias histórias.

Mas, se temos uma história desde aí comum, o que temos de comum em nossa origem e em nossos destinos?

Ao meu perceber, o que há de comum entre nós, desde um momento objetivo de encontro e de qualquer possibilidade de um destino também comum, é o impacto dramático do colonialismo que se impôs sobre nossas identidades e as projeções decorrentes dessa experiência em nossa atualidade pós-colonial afetada econômica e politicamente pelas injunções do ultra-neoliberalismo e pelos desafios de toda ordem como exigências de libertação e de emancipação num processo de ação decolonial.

Sob a perspectiva da condição ultra-neoliberal, sigo pensando que para as classes dominantes, para as multinacionais e para o seu estado, para as oligarquias que ela fomenta, pouco importa que milhões de pessoas morram de fome e de doenças provocadas pela fome. O que importa, num quadro como este, é acrescentar mais uns quantos privilegiados a este núcleo de elite, que constitui o que entre nós, nos seus estudos sobre o Povo Brasileiro, Darcy Ribeiro denominou de engenho de moer gentes, na sua voragem de contínua concentração dos rendimentos, cada vez mais acentuada e desigual.

A exclusão social crescente é a outra face deste tipo de processo econômico, maliciosamente chamado de desenvolvimento, mas que é um processo perverso ou maligno. Porque a exclusão social é a sua consequência mais dramática, que gera os segmentos descartáveis segundo uma lógica de indiferença, que o MST entre nós qualifica de Brasil rejeitado. Falando de exploradores e explorados, há que levar em conta que se os explorados estavam dentro do sistema (sem explorados não pode haver exploradores), os excluídos estão, por definição, fora do sistema, são inexistentes, descartáveis conforme os tem denominado o Papa Francisco, ao avaliar as dimensões catastróficas desse processo globalizado.

Todos sabemos, porém, que as mudanças necessárias não acontecem só porque nós acreditamos que é possível um mundo melhor. Essas mudanças hão-de verificar-se como resultado das leis de movimento das sociedades humanas, se movidas pela consciência de que há culturalmente um direito à utopia mesmo que na forma de direito a sonhar.

A aproximação mediada pela economia política e pela filosofia, e mais propriamente por teorias da justiça ou instigações teológicas, segue uma linha civilizatória que mais se afasta das opções que mercantilizam a vida, enquanto se orienta para projeções que garantam o direito à vida plena, de homens e mulheres de carne e osso sim, porque ideologicamente o nosso percurso colonial separou seres humanos, para distinguir os que se inserem no contrato social  os que ficam fora dele, os selvagens, os bestializados, os escravizados, os diminuídos, os segregados, os sobrantes “civilizatórios” todos alienados do humano.

Abri essa linha de problematização para ponderar o lugar entre nós latino-americanos do experimento colonial e indicar que desde esse lugar o modo decolonial, e mais incisivamente contracolonial como propõem Nego Bispo e Ailton Krenak,  uma condição enunciada nos objetivos do Curso,a partir do que penso, possamos representar um projeto de libertação, de emancipação e de humanização possíveis.

A questão central que essa abertura diz respeito aos conflitos que se inscrevem na matriz colonial de poder. Fundamentada na teoria da Colonialidade – do Ser, do Saber e do Poder de Anibal Quijano e em autores e autoras do pensamento decolonial, que fornecem os argumentos da constatação da incidência da ideia de raça, patriarcais e de classe (acentuadas pelo capitalismo que se sustenta na modelagem do colonial) marcando aproximações sociais mediadas pela economia política e pela filosofia, e mais propriamente por teorias da justiça, em opções que mercantilizam a vida, desumanizam a natureza, num percurso que separa seres humanos, para distinguir os que se inserem no contrato social  os que ficam fora dele, os selvagens, os bestializados, os escravizados, os diminuídos, os segregados, os sobrantes “civilizatórios” todos alienados do humano.

Abri essa linha de problematização exatamente com um autor português, até para ponderar o lugar de Portugal no experimento colonial e indicar que desde esse lugar o modo decolonial é também uma condição para que a libertação e a emancipação sejam possíveis.

Para Paulo Freire, tão marcante em nossa cultura comum, A DESUMANIZAÇÃO NÃO É DESTINO. “A luta pela humanização, pelo trabalho livre, pela desalienação, pela afirmação dos homens como pessoas, como ‘seres para si’, esta luta pela humanização somente é possível porque a desumanização, mesmo que um fato concreto na história, não é, porém, destino dado, mas resultado de uma ‘ordem’ injusta que gera a violência dos opressores e esta, o ser menos. (…) O ser menos leva os oprimidos, cedo ou tarde, a lutar contra quem os fez menos. E esta luta somente tem sentido quando os oprimidos, ao buscarem recuperar sua humanidade, que é uma forma de criá-la, não se sintam opressores, nem se tornem, de fato, opressores dos opressores, mas restauradores da humanidade em ambos. E aí está a grande tarefa humanista e histórica dos oprimidos – libertar-se a si mesmos e aos opressores. (…) Só o poder que nasça da debilidade dos oprimidos será suficientemente forte para libertar a ambos.”

Reside essa questão no encontro entre indígenas (originário) e alienígenas (o colonizador), no evento colonial, tal como Octávio Paz registra em “Labirinto da Solidão”. Um esforço para compreender, a representação das diferentes formas de compreensão do mundo e da existência. Para Paz, muitas vezes, os colonizadores europeus passam por povos indígenas como seres inferiores e selvagens, incapazes de compreender a complexidade da civilização ocidental. Por outro lado, para os indígenas, os colonizadores eram estranhos, estranhos e invasores de suas terras, que traziam consigo uma cultura e uma forma de vida estranha e muitas vezes destrutiva. Essa divergência de percepções e visões de mundo é central para compreender o conflito e a incompreensão entre os diferentes grupos e culturas presentes no contexto colonial.

O título “Labirinto da Solidão” reflete essa complexidade e profundidade do tema abordado por Paz. O labirinto simboliza a confusão, a incerteza e a complexidade das relações entre diferentes povos e culturas, enquanto a solidão refere-se à sensação de isolamento e estranhamento que muitas vezes acompanha esse encontro. Paz usa o labirinto como metáfora para explorar o intrincado e labiríntico mundo das relações entre indígenas e colonizadores, mostrando como as experiências de ambos os grupos se entrelaçam e se complicam nesse contexto.

Ailton Krenak e Nego Bispo, intelectuais de suas respectivas tradições – indígena e quilombola – explicam esse intrincamento. Para Krenak, Terra e Humanidades, assim mesmo no plural, caminham juntas. Precisamos compreender que somos uma ínfima parcela que compõe a natureza e que, mais do que nunca, está a impossibilitar a vida”. Fiz esse registro em http://estadodedireito.com.br/o-sistema-e-o-antissistema-tres-ensaios-tres-mundos-no-mesmo-mundo/. lembrando que, para Krenak o vital “é que possamos nos abrir para outros mundos onde a diversidade e a pluralidade também estejam presentes, sem serem caçadas, sem serem humilhadas, sem serem caladas. E que possamos também experimentar viver em um mundo no qual ninguém precise ficar invisível, ninguém precise ser Garabombo, o invisível (referência ao personagem do livro Garabombo, o Invisível, de Manuel Scorza) no qual possamos ser quem somos, cada um com a sua singularidade, humanos nas suas competências, nas suas deficiências, nas suas dificuldades. E que sejamos capazes também de reciprocidade, que é um lema que deveria estar entre aqueles que propõem que nos juntemos para pensar mundos”.

Para Krenak, trata-se de regenerar uma Terra canibalizada por uma humanidade que dela se apartou, numa ilusão utilitária, da qual precisa ser libertada para que seus lugares deixem de ser o repositório de resíduos da atividade industrial e extrativista (http://estadodedireito.com.br/a-vida-nao-e-util/). Trata-se, em suma, de passar do estágio de florestania que já se desdobrara da redução política da localização na cidadania, e das múltiplas possibilidades de reivindicar direitos que não se estiolem no esforço de se confinarem em igualdades, para o estágio amplificado das alianças afetivas (que envolve a mim e uma constelação de pessoas e seres na qual eu despareço: não preciso mais ser uma entidade política, posso ser só uma pessoa dentro de um fluxo capaz de produzir afetos e sentidos).

É disso que fala SANTOS, Antônio Bispo dos. Colonização, Quilombos: modos e significações. Brasília: INCTI/INCRA, 2015. Nessa obra — e também em intervenções públicas e cursos realizados em universidades (inclusive na Universidade de Brasília) — Bispo critica o uso acadêmico do termo decolonial, que, segundo ele, tende a permanecer no campo conceitual eurocentrado e institucional. Para ele, a luta dos povos quilombolas, indígenas e campesinos vai além de “descolonizar” o pensamento: trata-se de contrapor-se ativamente à lógica colonial, de criar e sustentar mundos outros com base em epistemologias e práticas autônomas, não subordinadas à gramática do Ocidente. “A decolonialidade ainda fala a língua do colonizador. O contracolonial é a gente afirmando nossa própria língua, nosso próprio jeito de ser e de viver, sem pedir licença.”.  “O decolonial é uma reação. O contracolonial é uma ação: não queremos apenas responder à colonização, queremos viver do nosso modo, a partir dos nossos saberes.”

Foi a partir desses posicionamentos que recorri ao livro tema deste Lido para Você, aliás, uma indicação que já me fizera Marcelo Behar, professor da FGV, atualmente Enviado Especial para a Bioeconomia da COP30, representando o setor de bioeconomia na conferência. E a indicação de Marcelo era forte no sentido de uma inversão de perspectiva. Curiosamente, um modo de pensar a questão da colonialidade que inverte os termos em que ela pode ser proposta, o modo que examina como o iluminismo europeu foi influenciado por relatos de “crítica indígena”.

Segundo Graeber/Wengrow (O Despertar de Tudo. Uma nova história da humanidade, de David Graeber e David Wengrow. São Paulo: Companhia das Letras, 2022), a narrativa convencional de que o Iluminismo surge unicamente na Europa — como uma invenção interna de filósofos europeus — ignora que, desde o século XVII em diante, houve interlocuções entre europeus exploradores/missionários/colonizadores e líderes, estadistas ou filósofos de povos indígenas da América que criticavam explicitamente a sociedade europeia.

Por exemplo, eles destacam o estadista Kandiaronk (da nação Wendat/Hurons), que debateu com o aristocrata francês Louis‑Armand de Lom d’Arce, Baron de la Hontan e, através desse diálogo, lançou críticas estruturais à desigualdade, à autoridade arbitrária e ao contraste entre vida indígena e vida europeia.

A ideia é que tais diálogos indígenas-europeus não foram marginais: os autores sustentam que partes da literatura do Iluminismo europeu foram influenciadas por relatos de “crítica indígena” ou por textos europeus que citaram ou traduziam essas críticas. Por isso, “liberdade”, “autonomia” e “igualdade” como ideais políticos e sociais não são meramente invenções abstratas europeias, mas emergiram em parte a partir de contatos e experiências reais — ou pelo menos alimentados por — perspectivas ameríndias.

Além disso, Graeber/Wengrow argumentam que muitos povos indígenas já tinham formas de organização social nas quais liberdade (como a liberdade de se mover, de desobedecer, de desistir) — e não necessariamente “igualdade” no sentido estrito europeu — eram centrais. Eles sugerem que os termos europeus de “igualdade” só aparecem de modo consciente quando confrontados com sistemas nos quais autoridade arbitrária ou status hereditário não eram a regra.

Eles sublinham que, portanto, o problema da história humana — “qual a origem da autoridade?”, “por que há desigualdade?” — foi formulado (ou pelo menos ganhou nova urgência) no contexto dessa interação entre mundos: a Europa que começou a ver seus próprios regimes sociais questionados pelas sociedades indígenas e os colonizadores que se tornaram interlocutores ou críticos ou réus dessa crítica.

Por que isso importa, se perguntam os autores? Para eles essa localização da origem do pensamento sobre liberdade/autonomia/igualdade fora do centro europeu desloca o centro de gravidade da história das ideias políticas, elas não são apenas “ocidentais”, mas resultado de um encontro/transversalidade entre culturas.

Isso também permite entender que as sociedades indígenas não eram vistas — pelos autores — como “pré-históricas” ou “menos avançadas” simplesmente, mas como interlocutoras com reflexividade e agência política, capazes de propor modelos alternativos ou de criticar os europeus.

Os autores não afirmam que todos os povos indígenas tinham nos moldes europeus idéias perfeitamente formuladas de “igualdade” ou “direito” tal como no Iluminismo; pelo contrário, mostram que há diferenças conceituais — por exemplo, a ênfase em autonomia ou mobilidade, em vez de hierarquia fixa ou status hereditário.  A ideia central é que a crítica indígena ajudou a tornar visível (na Europa) que autoridade, status e desigualdade não eram inevitáveis — o que permite a emergência de ideias de liberdade e igualdade como projetáveis.

No seu argumento, Graeber e Wengrow caracterizam a “origem do Iluminismo” (ou ao menos alguns de seus princípios centrais) como um efeito da confrontação entre sociedades indígenas americanas (que já tinham diferentes tratamentos de autoridade, mobilidade, autonomia) e os europeus visitantes/colonizadores, sendo que, através desse embate, conceitos como liberdade, autonomia e igualdade política passaram a emergir de forma mais consciente na Europa e no pensamento moderno ocidental. Esse diálogo não foi acidental, mas constitutivo — assim, para eles, a história das ideias modernas não se reduz à Europa, mas é resultado de uma trama transatlântica de intercâmbio, crítica e tradução.

O fato é que para esses autores, essas questões eram conhecidas, lidas e debatidas em salões e círculos ilustrados franceses europeus.

Desde o século XVII já há registros de sua incidência. Michel de Montaigne, em seus “Ensaios” (Essais), faz referências diretas e impactantes aos ameríndios que visitam a Europa, essas experiências tiveram um papel crucial na formação de suas ideias sobre a natureza humana, a cultura e a “barbárie”.

A principal e mais famosa referência ocorre no ensaio “Dos Canibais” (Des Cannibales) , no Livro I, Capítulo 31. Montaigne teve a oportunidade de encontrar e conversar com alguns tupinambás (indígenas do Brasil) que foram levados para França, provavelmente em Rouen, em 1562. Esses encontros não foram meros espetáculos, mas oportunidades para Montaigne questionar suas próprias instalações e as de sua sociedade.

O contato com os “novos mundos” e seus habitantes levou Montaigne a questionar a presunção europeia de superioridade e a universalidade de seus valores. Ele sugeriu que o que os europeus chamavam de “progresso” e “civilização” talvez estivesse afastado-os de uma forma mais autêntica e virtuosa de viver.

Ele critica a brutalidade da colonização e o etnocentrismo europeu, que justificava a dominação e a destruição de outras culturas em nome da civilização e da fé. Portanto, as referências aos ameríndios e os impactos que Montaigne recebeu de seu contato com eles são centrais para a sua filosofia. Eles o ajudaram a desenvolver uma crítica profunda à sua própria sociedade, a abraçar o relativismo cultural e a questionar a arrogância europeia, pavimentando o caminho para o pensamento moderno sobre a alteridade e a autocrítica cultural.

É nesse sentido que Graeber e Wengrow, vinculam os célebres concursos da Academia de Dijon em 1753 e 1755, simbolizando o momento em que a Europa começa a refletir sobre a desigualdade não como dado natural, mas como problema político e moral — um espelho crítico trazido do Novo Mundo.

Eles veem esse episódio como um marco no nascimento do pensamento político moderno, mas insistem que ele não pode ser compreendido sem o contexto das trocas e debates transatlânticos entre europeus e ameríndios.

A Academia de Dijon, era uma sociedade de estudos e debates fundada em 1725. Em 1749 ela propôs como tema do concurso se “O restabelecimento das ciências e das artes contribuiu para purificar os costumes?”

Rousseau respondeu com o texto submetido em 1750, e o Discurso foi premiado pela Academia. A tese central do Discurso (1750) de Rousseau, ao contrário da crença dominante de sua época, se firmou no sentido de que o progresso das ciências e das artes não aprimora a moral humana, mas a corrompe.

Ele argumenta que a sofisticação cultural e científica fomenta a vaidade, o luxo e a desigualdade; distancia o homem da virtude natural e da autenticidade; encobre a corrupção moral com aparências de civilização e polidez; não conduz à felicidade humana.

Três anos depois (1753), a mesma Academia de Dijon lança um novo tema, “Qual é a origem da desigualdade entre os homens, e é ela autorizada pela lei natural?”. Rousseau, encorajado pela repercussão do primeiro Discurso, apresenta outro ensaio — o Discurso sobre a Origem e os Fundamentos da Desigualdade entre os Homens (1755). Esse segundo texto aprofunda as ideias do primeiro, com a preocupação de buscar compreender as causas sociais e políticas que levaram à desigualdade.

Em ambos os discursos, sintetiza Boaventura de Sousa Santos em sua Oração de Sapiência proferida na abertura solene das aulas da Universidade de Coimbra, no ano letivo de 1985/86 (Um Discurso sobre as Ciências. São Paulo: Editora Cortez, 2ª edição, 2004), tem-se sempre a “pergunta pelo papel de todo conhecimento acumulado no enriquecimento ou no empobrecimento prático das nossas vidas, ou seja, pelo contributo positivo ou negativo que traz para a nossa felicidade” (ou será o bem-viver?!).

A reflexão sobre a questão da contracolonialidade e do bem viver, me instigou reler a obra seminal de Pierre Clastres, “A Sociedade Contra o Estado” (La Société contre l’État), na qual desenvolve uma tese radical e inovadora sobre a relação entre sociedade e poder, especialmente no contexto das sociedades ameríndias que ele estudou. Livro que é uma das referências bibliográficas de meus cursos na UnB, especialmente nas disciplinas Pesquisa Jurídica (graduação e me Direito) e O Direito Achado na Rua (Pós-Graduação em Direito, na Faculdade de Direito e pós-graduação em Direitos Humanos e Cidadania, no Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos e Cidadania, no CEAM – Centro de Estudos Avançados Multidisciplinares).

O pressuposto central de sua contraposição entre sociedade e Estado reside na ideia de que as sociedades antigas (sem Estado), absurdamente denominadas por uma antropologia colonizadora de sociedades primitivas, não são “sociedades incompletas” ou “atrasadas” que ainda não alcançaram a forma estatal, mas sim sociedades que se recusam e impedem o surgimento do poder separado e coercitivo do Estado.

Clastres argumenta que essas sociedades (que ele estudou principalmente entre os Guayaki, Tupi-Guarani e outras tribos sul-americanas) não são “sem Estado” por deficiência ou ignorância, mas por um mecanismo político ativo de recusa. São sociedades que se organizam para impedir a emergência do poder coercitivo e separado. Os mitos, a oralitura sobre seus usos e práticas, demonstram que são sociedades que já resolveram o problema do poder, ao se estruturarem de modo a neutralizar seu surgimento.

Clastres argumenta que as sociedades primitivas (que ele estudou principalmente entre os Guayaki, Tupi-Guarani e outras tribos sul-americanas) não são “sem Estado” por deficiência ou ignorância, mas por um mecanismo político ativo de recusa . São sociedades que se organizam para impedir a emergência do poder coercitivo e separado .

Ele vira de cabeça para baixo a visão evolucionista que via essas sociedades como avanços anteriores ao Estado. Para Clastres, elas são sociedades que já resolveram o problema do poder, ao se estruturarem de modo a neutralizar seu surgimento. As narrativas recolhidas em campo por Clastres, traduzem a ocorrência de mecanismos sociais de prevenção do Estado (transferência do poder comunitário para uma situação de centralização).

Para Clastres, a passagem de uma sociedade sem Estado para uma sociedade com Estado não é um processo linear de “evolução”, mas uma ruptura trágica. É o momento em que a sociedade perde sua capacidade de conter o poder, e este se autonomiza, se separando da sociedade para dominá-la. Ele sugere que o Estado não surge de uma necessidade social ou de um contrato, mas de uma “fatalidade” ou “alienação” da sociedade que, por algum motivo, falha em manter seus mecanismos de controle sobre o poder.

O fundamento da contraposição de Clastres é que as sociedades antigas são politicamente sofisticadas em sua recusa ativa do poder coercitivo e separado, organizando-se de forma a manter o poder disperso e submetido à sociedade, enquanto o Estado representa a autonomização desse poder e sua consequente dominação sobre a sociedade. Ele nos força a ver as sociedades sem Estado não como um “antes” do Estado, mas como um “contra” o Estado.

Penso que essas questões são a raiz da filosofia e a prática do Bem Viver, síntese das enunciações propostas neste Curso. Elas se evidenciam no potencial transformador para a sociedade e para a educação. Ao valorizar saberes ancestrais, questionar estruturas coloniais e propor alternativas de convivência, aponta para a urgência de mudanças profundas nas esferas políticas, econômicas, educacionais e sociais, visando superar desigualdades e degradação ambiental.

O Bem Viver rompe com visões deterministas, resgatando experiências históricas de reciprocidade com a natureza, solidariedade e diversidade cultural, tratando a natureza como sujeito de direitos. Mostrou-se que a agroecologia, enraizada na ancestralidade, contrasta com o agronegócio, que compromete biodiversidade e convivialidade.

Sua implementação requer esforços coletivos e integrados — interétnicos, intergeracionais, interculturais e transdisciplinares —, reconhecendo a plurinacionalidade e promovendo práticas sustentáveis, inclusivas e emancipatórias. A educação é central nesse processo, devendo estimular consciência crítica, cooperativa e criativa, em oposição à “educação bancária” denunciada por Paulo Freire.

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