O Direito Achado na Rua: nossa conquista é do tamanho da nossa luta
sábado, 11 de outubro de 2025
A defesa da soberania e as emergências do nosso tempo
11/10/2025
5:33 pm
Por: José Geraldo de Sousa Junior (*) – Jornal Brasil Popular/DF
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Entre os dias 8, 9 e 10 de outubro, o Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP), em parceria com o Conselho Nacional das Defensoras e Defensores Públicos-Gerais (Condege), realizou o Encontro Nacional de Democratização do Acesso à Justiça. O evento aconteceu na sede do MJSP, em Brasília e teve como objetivo construir uma agenda nacional voltada à ampliação do acesso à justiça, por meio do diálogo qualificado entre os diversos atores envolvidos na formulação e implementação de políticas públicas.
O encontro promoveu a troca de experiências e a identificação de demandas comuns, além de ouvir diferentes segmentos sociais. Além disso, buscou qualificar o debate institucional e impulsionar mudanças no modelo de justiça, visando à construção de políticas públicas mais inclusivas, adaptadas às realidades locais e comprometidas com a garantia de direitos e da cidadania.
A iniciativa foi da Secretaria de Acesso à Justiça (Saju), do MJSP, numa concepção de sua equipe liderada pela Secretária Sheyla de Carvalho visando fortalecer a articulação entre o Sistema de Justiça, o Executivo Federal, o Legislativo, a advocacia, as universidades, os movimentos sociais e as organizações da sociedade civil.
A programação contou com painéis expositivos e mesas de debate sobre temas da soberania e as emergências do nosso tempo como empoderamento jurídico comunitário, justiça socioambiental e direitos territoriais.
O painel que abriu o evento teve como tema “O acesso à justiça como pilar da democracia”, seguido do painel “Movimentos sociais como vetores da democratização da justiça” e do painel “O sistema de justiça frente às novas formas de organização do trabalho: desafios, limites e possibilidades”.
Além de lançamento do livro “Democracia, Sistema de Justiça e Luta dos Povos”, do Observatório Justiça e Democracia da ABJD, livro que tive a satisfação de prefaciar, o Seminário foi ocasião para o lançamento da Escola Nacional de Acesso à Justiça (Enaju) — plataforma on-line e gratuita que irá ofertar capacitações para democratizar o conhecimento sobre o sistema de justiça, fortalecer a cidadania e ampliar os instrumentos de acesso à justiça para populações historicamente vulnerabilizadas.
Iniciativa da Secretaria Nacional de Acesso à Justiça (Saju), a Escola também é um mecanismo de ampliação de saberes entre operadores da Justiça, promovendo um constante intercâmbio digital entre aqueles que atuam com a prática jurídica e as comunidades, grupos e sociedades que pretendem melhor atender os cidadãos.
A primeira capacitação, o Curso Aberto de Acesso à Justiça, já está disponível. São sete módulos estruturados em aulas expositivas de 30 minutos, ministradas por especialistas reconhecidos em suas áreas de atuação. Cada módulo é acompanhado de materiais pedagógicos complementares, como cartilhas, textos de apoio e indicações de leitura, ampliando as possibilidades de aprofundamento dos participantes. O curso pode ser acompanhado pelo enlace https://sajuenaju.mj.gov.br/.
Com uma participação muito ativa de pesquisadores do Grupo de Pesquisa O Direito Achado na Rua, da UnB (Diretório de Grupos de Pesquisa do CNPQ), aliás, uma concepção e prática claramente discerníveis na formulação temática do Seminário, participei da sessão de encerramento (mesa de debate). Coordenada pela Secretária Sheyla de Carvalho, foram debatedores e debatedoras, o advogado popular Ney Strozake (MST/ABJD), a professora Gisele Cittadino (Grupo Prerrogativas/ABJD), o professor Thiago Amparo (FGV) e a jurista Angelita da Rosa, Secretária-Executiva Adjunta do Ministério da Justiça. O tema da mesa, exatamente, o que dá título a este artigo: A Defesa da Soberania e as Emergências do Nosso Tempo.
Claro que eu já esboçara antes o roteiro de mina exposição, orientada pela aplicação de conceitos e de categorias que derivam do acervo conceitual do Direito Internacional que eu sabia, atravessaria as manifestações de meus colegas de mesa. Mas me senti provocado a inserir um nariz de cera em meu rascunho, instigado por duas notícias do dia (10/10). A primeira, a admoestação do Presidente Trump, insatisfeito por não ter sido galardoado com o Nobel da Paz 2025 (“Nobody knows more about […] than me”), muito provavelmente auto-distinguindo-se por forçar o fim de um conflito (Gaza) que muito contribuiu para se instalar, agudizar-se e agora para aproveitar-se da geopolítica de reconstrução.
A segunda notícia, alusiva à insegurança alimentar no Brasil que recuou em 2024, com a proporção de domicílios nessa condição caindo de 27,6% para 24,2%, em comparação a 2023. Os dados, divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) no dia 10/10, mostram que, em números absolutos, o total de lares com restrição de alimentos diminuiu de 21,1 milhões para 18,9 milhões. Isso representa que 2,2 milhões de domicílios saíram da situação de insegurança alimentar no período.
As duas notícias me instigaram a conduzir minha exposição na Mesa, recuperando, por sua alta importância não só conjuntural mas paradigmática, os principais elementos relacionados à soberania, no discurso do Presidente Lula na abertura da 80ª Assembleia da ONU.
Sob o enfoque da Soberania como questão inegociável – “nossa democracia e nossa soberania são inegociáveis”, a afirmação do Presidente está ligada à ideia de que o país será “nação independente” e “povo livre de qualquer tipo de tutela”, principalmente quando se armam para afrontá-lo sanções unilaterais e intervenções externas: “sanções arbitrárias e unilaterais”, que se tornam assim instrumentos que ferem a soberania dos Estados.
Assim que, no plano externo e no plano interno, a chave de compreensão da Soberania, deve ser a do “Multilateralismo vs. desordem internacional”, condição para que a Soberania possa ser plenamente defendida num mundo plural em que as regras internacionais e o direito sejam respeitados. Para o Presidente Lula há “desordem internacional, quando marcada por concessões à política do poder, atentados à soberania, sanções arbitrárias e intervenções unilaterais”.
Na minha análise do pronunciamento do Presidente Lula, ao acicate do meu nariz de cera, deduz-se uma necessária ligação entre soberania, democracia e justiça social, de modo que a soberania não seja apenas autonomia política do Estado, mas a capacidade de garantir direitos básicos (saúde, educação, moradia etc.), reduzir desigualdades, proteger democracia, gênero, infância, migrantes — tudo isso como parte integrante de uma soberania digna. A fome, a desigualdade social e a pobreza são ameaças concretas à democracia e, portanto, à plenitude da soberania nacional.
Ainda que Soberania, no Direito Internacional clássico, continue a se conceituar como o poder jurídico supremo do Estado de autodeterminar-se e governar-se livremente, no interior e no exterior, em igualdade com os demais Estados, sem submissão a qualquer autoridade superior, no Direito Internacional contemporâneo o conceito clássico foi relativizado. Com efeito, a noção de soberania, originalmente pensada no Direito Internacional como independência dos Estados, ganhou novos usos substantivos no plano interno dos países, especialmente a partir da segunda metade do século XX, quando começou a se associar à autodeterminação dos povos, à cidadania ativa e à efetividade dos direitos fundamentais e dos direitos humanos.
No caso do Brasil, essa ampliação é particularmente expressiva porque o país articula o conceito clássico de soberania (autonomia nacional) com políticas públicas que buscam garantir a soberania popular e material, isto é, a capacidade concreta de o povo decidir seu destino.
Basta ver os principais usos e políticas associadas à soberania no plano interno brasileiro, anotando-se a forma de soberania popular constitucional e política (art. 1º, parágrafo único, da CF/88). Ela se expressa quando se criam e se fortalecem conselhos e conferências nacionais (como os de saúde, educação, direitos humanos, meio ambiente, cidades, povos indígenas etc), expressão da soberania participativa, uma marca das gestões democráticas pós-1988.
A Soberania dita alimentar e nutricional, conceito consolidado no Brasil com a Lei nº 11.346/2006 (Lei Orgânica de Segurança Alimentar e Nutricional – LOSAN), que instituiu o Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (SISAN), é entendida como o direito dos povos de definir suas próprias políticas agrícolas e alimentares, priorizando a produção local e sustentável, e garantindo o acesso universal à comida saudável, alimentação e nutrição como direitos humanos.
Soberania energética e tecnológica que se refere à autonomia nacional para produzir, administrar e usar recursos energéticos e tecnológicos. Aqui, soberania se expressa como autonomia estratégica, reduzindo dependências externas e fortalecendo o controle social sobre recursos naturais.
Soberania ambiental e climática. Inspirada na Declaração do Rio (1992), que reconhece o “direito soberano dos Estados de explorar seus recursos naturais conforme suas políticas ambientais”, ela se realiza mesmo quando o país se integra a compromissos ambientais globais (como o Acordo de Paris), mantendo autonomia na formulação de metas nacionais (NDCs).
Soberania sanitária e científica, fortemente evidenciada durante a pandemia de Covid-19, quando realizá-la envolveu a capacidade nacional de produzir vacinas, medicamentos e insumos estratégicos, além de decidir sobre políticas públicas de saúde sem submissão a interesses privados internacionais, muitas vezes interpostos de modo necropolítico, negacionista, impondo à vida uma subjugação sobredeterminada pela economia e os negócios. E Viva ao SUS.
Soberania territorial e defesa nacional, sempre no sentido de que seu alcance é alusivo ao controle do território e à capacidade de defesa, sem aviltar-se jamais, tergiversando do indicativo constitucional (o nefasto impulso autoritário de exceder o art. 142), porque o que incumbe às Forças Armadas é a defesa da soberania, e não a proteção a projetos de poder.
Soberania cultural e comunicacional, relacionada ao direito de o país preservar, produzir e difundir sua cultura e informação sem dominação externa, o que inclui a defesa da diversidade cultural, o fortalecimento da produção audiovisual, editorial e educacional nacionais e, com forte emergência contemporânea, a adoção de políticas legislativas, judiciais e governamentais de regulação da mídia e de plataformas digitais.
Forte no pronunciamento do Presidente Lula, a afirmação de que a internet não pode ser uma ‘terra sem lei’, cabendo ao poder público proteger os mais vulneráveis: “Regular não é restringir a liberdade de expressão. É garantir que o que já é ilegal no mundo real seja tratado assim no ambiente virtual”. Para mais, ver https://brasilpopular.com/contra-a-truculencia-unilateralista-no-global-e-os-silverios-dos-reis-no-local-preservar-a-soberania-nacional-e-a-opcao-multilateral/; e no Correio Braziliense, o meu artigo: https://www.correiobraziliense.com.br/direito-e-justica/2025/07/7207540-revogacao-de-vistos-medida-arbitraria-e-falaciosa.html.
Em síntese interpretativa do discurso do presidente Lula, que procurei por em relevo, é que ele desloca a soberania da sua dimensão clássica (territorial e estatal) para uma dimensão social e popular. Soberania como poder de um povo decidir sobre seu destino com liberdade, justiça e dignidade, dentro e fora de seu território. O resultado é uma “soberania democrática”, que rejeita tutelas externas; protege direitos internos; busca parcerias internacionais baseadas na igualdade e não na subordinação. Minha homenagem ao querido embaixador Alessandro Candeas que organizou na Cisjordânia, a repatriação dos brasileiros confinados em Gaza no início dos bombardeios (https://www.publico.pt/2025/08/30/publico-brasil/entrevista/embaixador-conta-livro-experiencia-resgatar-brasileiros-faixa-gaza-2145501).
Uma Soberania que não seja sufocada com a paz dos cemitérios” (Conforme o Dom Carlos, Infante de Espanha de Friedrich Schiller escrito em 1787, dramatizando o conflito entre Dom Carlos, filho do rei Filipe II da Espanha, e o Marquês de Posa, em torno da liberdade, da tirania e da paz imposta pelo poder real: “Sire, esta é a paz dos cemitérios.”). Por isso a firme reprimenda do Presdente Lula: “Ali (em Gaza) também estão sepultados o Direito Internacional Humanitário e o mito da superioridade ética do Ocidente”.
Uma Soberania, em suma, que nos mova na consciência filosófica, sociológica, política, teológica, jurídica, mas radicalmente ética de que – disse o Presidente Lula, “A única guerra de que todos podem sair vencedores é a que travamos contra a fome e a pobreza.”
(*) José Geraldo de Sousa Junior é professor titular na Faculdade de Direito e ex-reitor da Universidade de Brasília (UnB)
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