Sonhos que Viram Pesadelos: o tráfico de pessoas e a zona do não-ser

Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito

Sabrina Beatriz Ribeiro, Sonhos que Viram Pesadelos: o tráfico de pessoas e a zona do não-ser. Salvador: Editora Segundo Selo, Coleção Monografias (Direito), 2025.
Sobre o livro diz Gabriela Costa do Programa de Pós-graduação em Sociologia do IFCH-Unicamp: “Neste livro, Sabrina Beatriz Ribeiro dialoga com Frantz Fanon e seu conceito de ‘zona do não-ser’ para abordar de forma crítica a cidadania, as desigualdades sociais e o racismo, com ênfase no contexto do tráfico de pessoas. A partir de uma perspectiva multidimensional, centraliza o debate nos sujeitos invisibilizados e marginalizados que são as vítimas recorrentes deste crime, como a população negra e a comunidade LGBTIQAPN+. Com muita sensibilidade nos apresenta um panorama histórico que desmistifica estereótipos sobre as vítimas e aponta os dilemas da legislação sobre o tema.
Convidando-nos a refletir sobre o importante papel que a educação popular e as organizações da sociedade civil têm no combate ao tráfico de pessoas, no acolhimento e na prevenção de novas vítimas. Esta é uma reflexão urgente diante das desigualdades estruturais que vivemos hoje”.
O livro, já em pré-venda, na página da Editora: https://editorasegundoselo.com.br/shop/proximos-lancamentos/sonhos-que-viram-pesadelo-o-trafico-de-pessoas-e-a-zona-do-nao-ser-sabrina-beatriz-ribeiro/., convidando-nos a refletir sobre o importante papel que a educação popular e as organizações da sociedade civil têm no combate ao tráfico de pessoas, no acolhimento e na prevenção de novas vítimas. Esta é uma reflexão urgente diante das desigualdades estruturais que vivemos hoje.
A pretensão editorial da Segundo Selo/Organismo é promover publicações que somem na e assumam a tarefa de promover tanto a afirmação das singularidades como potências existenciais, como também construir um diálogo entre essas diferenças, sejam elas raciais, étnicas, históricas, de gênero ou sexuais.
Conforme a nota editorial da Segundo Selo, o Grupo acredita que o diálogo entre as diversas possibilidades de existência é a base discursiva para modelos de sociabilidade nos quais a hierarquização, pela exclusão ou pela violência, ou por qualquer outro meio, não triunfe sobre o compartilhamento de experiências e saberes:
Não acreditamos em um modelo de sociabilidade que apague as diferenças e estabeleça uma forma hegemônica e universal de existência, mas sim, que o diálogo, tensivo e extensivo, o debate de ideias, a contraposição de perspectivas, podem nos ajudar a compreender mais a nós mesmos e aos outros, possibilitando assim a produção de um circuito de solidariedade existencial e epistemológica que não seja compreendido a partir de hierarquias e exclusões.
Para isso publicamos cada texto como teoria, compreendemos que um romance negro, um livro de poema homoafetivo, uma narrativa indígena, a produção intelectual negro-feminista, e ainda a tradição canônica, são igualmente produção teórica, que nos informa sobre esses diversos modos de existir e pensar a vida e as diversas formas de produzir a sociedade. Nesse sentido, um livro acadêmico e um texto literário têm para nós a mesma importância epistêmica, pois, a diferença entre os gêneros não significa, em nossas publicações, hierarquia conceitual.
O primeiro lançamento do livro acontecerá no dia 9/10 às 19h no Goethe Institut Salvador-Bahia. O evento terá a participação da convidada Paulett Furacão, que é coordenadora do Coletivo LGBTQIANP Laleska D’ Capri, Conselheira municipal LGBTQIIANP, Conselheira Estadual de Educação, atriz, poetisa, primeira trans a ocupar um cargo público no Estado da Bahia e Assessora da deputada Olivia Santana.
A autora é advogada, pesquisadora, educadora popular e Secretária de Modernização, Gestão Estratégica e Socioambiental (SMG) no Tribunal Superior Eleitoral (TSE), biênio 2024-2026. Mestra em “Direito, Estado e Constituição” pela Universidade de Brasília (UnB), com intercâmbio na Universidade de São Paulo (USP). Bacharela em Direito pela UnB, com título de graduação sanduíche na Universidad Nacional de Colombia (UNAL) – Sede Bogotá, bolsista CAPES do Programa Abdias Nascimento.
Acompanhei o percurso de Sabrina Beatriz na UnB, na Faculdade de Direito, mais diretamente no projeto de extensão que supervisionei academicamente Vez e Voz, voltado para a educação e conscientização em face do tráfico de pessoas, com foco no cuidado com crianças e adolescentes do sistema educacional de Águas Lindas de Goiás, no entorno de Brasília. Sobre esse projeto, no qual se destacou como liderança coordenadora a ativista Roda Maria, participante de nossos programas de capacitação em gênero e direitos humanos PLP –Promotoras Legais Populares. A propósito, ver TV61 O Direito Achado na Rua: Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas. Projeto Vez e Voz. Entrevista Rosa Maria e Sabrina Beatriz (https://www.youtube.com/watch?v=KaT3sUwW-RE&t=2539s).
Esse acompanhamento me levou também a acompanhar até como orientador de trabalhos de Sabrina – monografia e dissertação – o que me deu condições de contribuir com Prefácio para o livro.
No meu prefácio anoto que por ofício tenho lido, comentado, resenhado ou prefaciado, em geral livros, mas também teses e dissertações, às vezes relatórios, sempre com o intuito de sugestões a pesquisadores e a editores. Aqui e ali, por conta de ofício, acabo me deparando com excelentes monografias e TCCs, concluídos depois de sabatinados, e aptos à publicação como artigos e até, boas plaquetes perfeitamente editáveis.
Venho acompanhando a trajetória acadêmica de Sabrina Beatriz Ribeiro Pereira da Silva, com seu sobrenome tão brasileiro, ela própria um ideal tipo de todo o empenho de nossa universidade para se realizar como a universidade necessária proposta por Darcy Ribeiro, capaz de exercer lealdade com o povo e poder contribuir para satisfazer as expectativas do social, até poder se expandir em atualização como universidade emancipatória tal como me empenhei em meu reitorado, para se fazer ainda mais democrática, participativa, inclusiva (cf. SOUSA JUNIOR, José Geraldo de. Da Universidade Necessária à Universidade Emancipatória. Brasília: Editora UnB, 2012).
Sobre assim se posicionar, basta ver o depoimento de Sabrina, nos Agradecimentos, nos quais o reconhecimento ao institucional que a acolheu em políticas de acesso e de permanência, foi apto a recepcionar todo o potencial que sua inteligência e caráter e lhe apoiar para que se realizasse em plenitude transportando para o instante de certificação todas as expectativas de um projeto tanto pessoal – projeto de vida, quanto coletivo, de seus familiares, de sua comunidade, de sua raça, de seu gênero, de sua classe – projeto de sociedade. Sabrina revela todos esses vínculos, os apoios que teve, a confiança que conquistou, tudo expresso na qualidade de sua formação, que o tema da monografia expõe.
Ainda antes de ler a monografia de Sabrina, na condição de coordenador acadêmico no projeto Vez e Voz na UnB, eu já vinha me debruçando sobre relatórios e avaliação da execução desse projeto, formulando meus juízos críticos sobre o que ele representa.
Assim é que, depois do exame de relatórios mais recentes pude elaborar artigo de divulgação: “Tráfico de pessoas: crime agravado pela desigualdade social”, publicado no qualificado espaço da REVISTA IHU ON-LINE (https://www.ihu.unisinos.br/611641-trafico-de-pessoas-crime-agravado-pela-desigualdade-social), para concordar com o que é praticado nesse projeto, de que “é impossível falar de Tráfico sem falar de vulnerabilidade social, racismo, violência de gênero e sem citar a evidente desigualdade social, em que uns ganham muito e outros nada’”.
Em sua monografia, Sabrina remete ao Protocolo de Palermo (2000), texto adicional à Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional Relativo à Prevenção, Repressão e Punição do Tráfico de Pessoas, em Especial Mulheres e Crianças, 2000, ratificado pelo Brasil (Decreto n. 5017/2004), definindo o tráfico de pessoas: “o recrutamento, o transporte, a transferência, o alojamento ou o acolhimento de pessoas, recorrendo à ameaça ou ao uso da força ou a outras formas de coação, ao rapto, à fraude, ao engano, ao abuso de autoridade ou de situação de vulnerabilidade ou à entrega ou aceitação de pagamentos ou benefícios para obter o consentimento de uma pessoa que tem autoridade sobre outra, para fins de exploração. A exploração deverá incluir, pelo menos, a exploração da prostituição de outrem ou outras formas de exploração sexual, o trabalho ou serviços forçados, a escravatura ou práticas similares à escravatura, a servidão ou a extração de órgãos”, de onde deriva a atualização do Código Penal brasileiro, com a inclusão tipo definido no artigo 149-A incluído pela Lei 13.344/2016.
Mesmo com essa avançada normativa internacional, ainda é o muito difícil vencer a sutileza ocultadora de “práticas” naturalizadas de relações sociais patriarcais que nem as autoridades de controle criminal, nem os meios de comunicação, nem as muitas catequeses, delas se dão conta. Todavia, elas carregam o núcleo do tipo criminal: o “amor romântico” que encobre o chamado “escravismo branco”; a ilusão do patrocínio na prática do sugar baby e, tão comum no trânsito entre desigualdades, a “generosidade” da casa grande que mantém a senzala quando recruta nas periferias os serviços de jovens que serão acolhidas como parte da família, para serem educadas, terem uma oportunidade, claro, com a retribuição de alguns serviços domésticos, sem limite de jornada, muitas vezes sem salário (porque lhes damos tudo), praticamente em cárcere privado.
Ponho em relevo duas assertivas fortes na monografia. A primeira, no afirmar que o “tráfico de pessoas é um conceito jurídico, e não é uma categoria sociológica, inventado desde a preocupação e “discursividade da necessidade de policiamento das fronteiras transnacionais”. As rejeições ao tráfico de pessoas negras, dos mais diversos países do continente africano, para práticas escravistas tomaram força na comunidade internacional em meados do século XIX”.
A segunda, diz a Autora, forte na verificação do “recorrido histórico, a conceituação de tráfico de seres humanos presente no Protocolo de Palermo é uma consequência mais elaborada do mesmo debate originado a partir de uma iniciativa branca, eurocêntrica, racista, sexista e, verdadeiramente, pouco (ou nada) preocupada com a dignidade sexual das vítimas, pois, inicialmente, o que se buscava tutelar era uma suposta moralidade pública sexual e a construção de pureza e fragilidade da mulher branca. Todavia, ainda assim, trata-se de um documento oficial elaborado, aprovado e firmado pelas Nações Unidas, destarte foi ratificado pelo Estado brasileiro no ano de 2004 pelo Decreto nº 5.017”.
A articulação desses mitos sobre exibir as contradições de um social clivado de hierarquias e lugares legitimados, acaba permitindo à análise de Sabrina, ainda que que se ancore numa caracterização do fundamento criminal do tráfico mas que vai fixar um achado de sua monografia. Determinar empiricamente a afirmação de um pânico moral que abre ensejo para mobilizar ações de resgate social, mais designadamente uma empreitada moral conforme suas referências teóricas: “As percepções de que “elas não se percebem exploradas” são justificadas pela síndrome pós-traumática de reação aguda ao stress, no campo da ciência é dita psi ou transtorno de adaptação. Nesse caso, a “atuação dos poderes jurídicos, outorgados aos detentores dos saberes ‘psi’ o direito de dizer sobre o outro, é tema relevante de reflexões e debates no campo da sexualidade”.
Na prática, uma modelagem colonizadora, permeada por vieses raciais, patriarcais e de classe, segundo o que, recorrendo a Fanon, com a sua metáfora da Zona do não-ser, escancara a condição de cidadania inexistente das vítimas do tráfico de pessoas.
A publicação de DOS “SONHOS QUE VIRAM PESADELOS” PARA A ZONA DO NÃO-SER: O Tráfico de Pessoas e a Cidadania Inexistente, pela Editora Segundo Selo, na Coleção Monografias – área Direito, além de revelar o talento autoral de Sabrina Beatriz Ribeiro Pereira da Silva, é também uma ação mobilizadora de resgate social de sujeitos que buscam emancipação, em suma, lugar na zona do ser.
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