segunda-feira, 29 de dezembro de 2025

 

O STF: Legitimidade e Mecanismos de Autocontenção

Por: José Geraldo de Sousa Junior (*) – Jornal Brasil Popular/DF

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A pedido de Correio Braziliense, que pautou esse tema com insistente pertinência, acabei por oferecer um ponto de vista sobre o assunto, n a forma de uma entrevista que saiu em sua edição de 27 do corrente, Seção Eixo Capital, respondendo a algumas questões propostas pela jornalista (também Diretora da Redação, Ana Dubeux: https://blogs.correiobraziliense.com.br/cbpoder/o-codigo-de-etica-fortalecera-o-supremo-diz-ex-reitor-jose-geraldo-de-sousa-junior/.

Dado o espaço restrito para o arco de questões que o tema, na sua atualidade e urgência, reclama, continuei a refletir sobre as questões propostas à queima-roupa, identificando nuances que não se comportaram no formato da entrevista.

O tema, com efeito, que me gora proposto, era a continuidade de uma pauta que tem sido enfatizada pelo Correio Braziliense. Minhas observações seguiram essa linha de ponderação e se ligaram ao que há alguns dias fora abordado pelo advogado e professor Melillo Dinis – https://www.correiobraziliense.com.br/cidades-df/2025/12/7320346-um-codigo-de-conduta-e-mais-que-urgente-afirma-o-advogado-melillo-dinis.html – para quem, “Um código de conduta é mais que urgente”, tal como a coluna Eixo Capital, do Correio Braziliense, divulgou trazendo sua análise sobre os desafios da autorregulação do Judiciário.

Esse tema não é novo, nem para Melillo, nem para mim. Com Melillo, aliás, e com outros colegas (conforme PINHEIRO, Pe. José Ernanne; SOUSA JUNIOR, José Geraldo de; DINIS, Melillo; SAMPAIO, Plínio de Arruda (orgs). Ética, Justiça e Direito. Reflexões sobre a Reforma do Judiciário. Petrópolis: Editora Vozes, 1996), organizamos em Brasília, sob os auspícios da CNBB, o Seminário “Ética, Justiça e Direito. Reflexões sobre a Reforma do Judiciário”. O encontro cuidou de uma questão relevante para o desenvolvimento da democracia no país: “[…] o divórcio crescente entre o sistema judiciário e a demanda de prestação jurisdicional das camadas populares, com o objetivo de fornecer elementos de reflexão sobre a realidade da justiça brasileira, e buscar contribuições visando a reforma do judiciário à luz de critérios éticos e tendo em vista a experiência dos participantes, sem, contudo, esquecer uma abordagem prospectiva da questão mais ampla da relação entre a justiça e o judiciário brasileiro”.

O Seminário foi realizado a partir de uma situação concreta: a desconfiança generalizada acerca dos fundamentos que organizam a sociedade e os valores que estruturam as bases éticas das instituições levando a contradições entre o direito oficialmente instituído e formalmente vigente e a normatividade emergente das relações sociais, gerando questionamentos sobre os pressupostos da cultura legalista de formação dos operadores do direito e sobre os fundamentos relativos ao papel e à função social sobretudo dos magistrados.

Questões que guardam pertinência com aquela filosofia do agir humano, de que falava o padre Henrique Cláudio de Lima Vaz, S.J., no texto com que abriu o Seminário, transcrito no livro: “No momento em que os temas ‘ética e política’ ou o ‘direito de todos e a justiça de todos’ tornam-se temas de sensação nos meios de comunicação de massa, e em que o problema do exercício eficaz da administração da justiça deixa o recinto austero dos tribunais para tornar-se problema social das ruas e dos campos, convém voltar nossa atenção e nossa reflexão para a tarefa primordial da educação ética que é a verdadeira educação para a liberdade. O mundo ético não é uma dádiva da natureza. É uma dura conquista da civilização. Como também tem sido uma conquista longa e difícil o estabelecimento e a vigência do Estado democrático do Direito”.

Essa é a dimensão relevante para debater questões relativas a autorregulação ética de condutas, como ocorre em todas as partes. O Governo instituiu uma Comissão de Ética Pública, muito ativa, na avaliação da conduta dos agentes públicos em todos os níveis e o próprio sistema corporativo tem se valido da modelagem de códigos de ética para orientar seus procedimentos.

Menciono, a propósito, o “Código de Ética do Correio Braziliense” que, nesse contexto costuma se inserir na discussão mais ampla sobre ética jornalística — um tema que, de forma geral, engloba princípios como veracidade, precisão, independência e responsabilidade social da imprensa, itens também presentes em códigos de ética jornalística organizados por entidades profissionais. Sobre o “Código de Ética do Correio” publiquei logo que lançado, um comentário publicado um comentário, O Código de Ética do Correio Braziliense. Correio Braziliense, Brasília, DF, p. 13, 17 nov. 1997.

Não é, pois, extravagante, a notícia de que o ministro Edson Fachin, presidente do STF, propôs um código de conduta para ministros, inspirado em modelos como o alemão, o norte-americano e o canadense, visando maior transparência e prevenção de conflitos de interesse, com regras sobre divulgação de verbas, quarentena para aposentados e proibição de advogar no tribunal, enfrentando resistência interna, mas com apoio de ex-presidentes e busca por diálogo para implementá-lo.

Claro que há resistência interna, mas o presidente insiste na ideia de buscar fortalecer a credibilidade do STF, que tem cobrado transparência de outros Poderes, sempre na linha de uma disposição consciente e orientadora, não correcional, autorreferente mesmo quando incidem na discussão sobre os limites éticos da atuação de cônjuges ou parentes de ministros em processos relacionados ao STF e como isso deveria ser tratado em um código de conduta.

Ora, no direito brasileiro, a atuação de cônjuges ou parentes de magistrados em processos judiciais é regulada principalmente pelos institutos do impedimento (vedação objetiva) e da suspeição (avaliação subjetiva), complementados por regras deontológicas (códigos de ética e de conduta). O objetivo central é preservar a imparcialidade judicial e a confiança pública na Justiça, podendo levar inclusive a situações de nulidade judicial.

Já há previsão legal para essas ocorrências (Códigos de Procedimentos, Lei Orgânica da Magistratura e Código de Ética da Magistratura Nacional, estabelecido pelo CNJ). Essas normas não protegem apenas as partes, mas a legitimidade do Poder Judiciário como instituição democrática. A imparcialidade judicial é compreendida hoje não só como um requisito técnico, mas como um valor público, indissociável da ética, da transparência e da confiança social — tema que dialoga diretamente com a crítica democrática do direito e com a noção de justiça como prática social.

Penso que o tema ganha mais repercussão na medida em que questões éticas e de conduta impactam a imagem do STF perante a sociedade. Este, aliás, é um tema ao qual venho me dedicando há algum tempo. Às vésperas da instalação da Assembleia Nacional Constituinte, no âmbito do Centro de Estudos e Acompanhamento da Constituinte instalado pelo Reitor Cristovam Buarque, na UnB, publiquei o artigo “Triste do Poder que Não Pode, p. 25-29 in Constituinte: temas em análise / Vânia Lomônaco Bastos, Tânia Moreira da Costa, organizadoras. Brasília, Universidade de Brasília, Centro de Estudos e Acompanhamento da Constituinte, 1987.

O núcleo argumentativo de meu texto foi “o Judiciário e a hesitação para constituir-se poder”. Meu pressuposto assentou na tese de que a representação moderna do princípio formulado por Montesquieu de que o poder controla o poder proporcionou que sociedades de democracias representativas, como a norte-americana, desenvolvessem mecanismos eficazes de contrapesos e contenções entre poderes. Ninguém duvida que no presidencialismo praticado nos Estados Unidos o Judiciário, assim como o Legislativo, não estejam habilitados a conter os poderes do Executivo.

Entre nós, a polêmica acesa em torno da habilitação do Judiciário constituir-se uma expressão de poder, numa configuração mais precisa de seu papel contramajoritário de controle da constitucionalidade e de jurisdição sobre as garantias da cidadania, associou-se também, a desconfiança das propostas democratizadoras do Judiciário com propostas e soluções visando à amplitude da participação popular também na Justiça.

No primeiro caso, a solução de compromisso acalmou o mal-estar que causava uma necessária redefinição do Supremo Tribunal Federal diante da ideia de criação de um Tribunal Constitucional. No outro, a acusação de democratismo em certos meios, afirmando a intenção de romper o elitismo da Justiça tendendo a confundir aperfeiçoamento e busca de eficiência no Poder Judiciário com a simples participação popular nas decisões tendentes a transformar a Justiça em cenário preferencial de paixões pessoais e políticas.

Ora, a popularização da Justiça, se este é o objetivo, sequer colocou sugestões em curso noutros países de criação de tribunais populares ou de eletividade da magistratura. E o receio de assumir a realidade política das leis e da função dos juízes não pode erigir-se em obstáculo às iniciativas de reavaliação do papel do próprio Judiciário na sociedade.

Em Porteiro ou Guardião? O Supremo Tribunal Federal em Face aos Direitos Humanos, Antonio Escrivão Filho. São Paulo: Friedrich-Ebert-Stiftung (FES) Brasil/Articulação Justiça e Direitos Humanos (JusDh), maio de 2018, meu colega na UnB, afirma que para contextualizar os dados de análise, sobretudo no manejo comparativo das situações tomadas como referência, o eixo interpelante dos dados, o percurso institucional do sistema de justiça, notadamente o Supremo Tribunal Federal em seu trânsito de refundação entre conjunturas políticas em deslocamento (da ditadura civil-militar de 1964 ao sistema de enunciado democrático pós 1985 e delineadamente pós 1988 com a Constituição da transição),  foi designado pelo Autor como o espocar de um curto-circuito histórico: autonomia, independência e protagonismo judicial no Brasil.

Do que cuidou foi conferir a ocorrência de uma expansão política do judiciário em face de sua interação com o sistema político e a sociedade civil. E de modo mais preciso, a necessidade de considerar nesse processo, não bastar compreender a ideologia que compromete a ação individual de juízes sem entender o fluxo de interação ideológica entre tribunais e academia, mídia, grupos sociais organizados e outras instituições políticas.

Não é difícil estimar o potencial curto-circuito, quando se constata a súbita sobrecarga política sobre uma estrutura destreinada a participar democraticamente da deliberação sobre conflitos de elevada intensidade política, econômica e social, na medida da fórmula que alia expansão política e blindagem institucional e em oposição à sua abertura democrática ao dialogo nos termos da participação e controle social.

Para Escrivão Filho, ao contrário da disposição de fomentar noções de autonomia e independência concebidas como princípios políticos próprios da função judicial diretamente referentes à garantia da sociedade contra a arbitrariedade do Estado, as alianças então construídas sobretudo durante a mediação constituinte (1988), ao invés de forjar requisitos de neutralização do sistema – reconhecimento ontológico da condição política da justiça – deixou que esse se visse permeado pela ideologia da neutralidade – enredando-o em injunções a serviço da reprodução das tradições de uma cultura institucional acostumada e orientada à manutenção do status quo.

Eis o tamanho do desafio que se coloca para a sociedade na qual se constitui a expressão de soberania popular que deve designar o perfil do Judiciário no desenho da institucionalidade em construção, sobretudo por que o STF tem sido visto como protagonista na resolução de temas que caberiam ao Legislativo, abrindo áreas de fricção com os demais poderes e, em consequência, riscos que derivam dessa dinâmica.

Parte da discussão, então, busca focalizar medidas normativas, institucionais ou culturais poderiam fortalecer a legitimidade do STF e reequilibrar a relação entre os Poderes, num enquadramento que pode levar a crises, não só de natureza jurídica, política ou de percepção pública, como perda de confiança popular afeta a autoridade das decisões judiciais.

Para responder a essas questões, combinadas, recorro mais uma vez a minha contínua interlocução com Melillo Dinis, agora como membros integrantes do Grupo de Análise de Conjuntura da CNBB – Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, que oferece periodicamente, ao episcopado brasileiro, avaliações sobre a realidade brasileira e internacional, sob a perspectiva social (há um outro Grupo que faz a análise sob a perspectiva eclesial).

Na análise de abril deste ano – https://www.cnbb.org.br/wp-content/uploads/test-for-pdf/CONJUNTURA-NACIONAL-Abril-2025-1.pdf – o tema foi Conjuntura Nacional: Desafios e esperanças. Um capítulo específico foi dedicado ao Poder Judiciário. Embora uma criação de um qualificado e amplo coletivo acadêmico e profissional, nesse ítem foi forte a incidência de Melillo e também minha.

Partindo das exortações do Papa Francisco nessa questão, convocando para uma atuação humanizadora da Justiça, deixamos claro que uma agência sobredeterminante do justo (Judiciário) sobre o legal (legislativo e executivo), não afronta a tese abstrata da separação dos poderes, como a formulou Montesquieu.

O Papa não foi o primeiro a se dar conta de um parti pris embutido na formulação do autor do “Espírito das Leis”. Louis Althusser relativamente ao Judiciário, como aparece em “O Espírito das Leis (1748), no Livro XI, Capítulo 6, não deixava de expressar a visão (o parti pris) do estadista sobre a necessidade de divisão entre os poderes Legislativo, Executivo e Judiciário para evitar o abuso de poder. Longe da designação que “os juízes da nação não são, pois, mais que a boca que pronuncia as palavras da lei, seres inanimados que não podem moderar nem sua força nem seu rigor“, para que se constitua “um poder invisível e nulo, embora independente, mas nunca ativo como os outros poderes. Para Althusser, a posição de Montesquieu refere-se à sua condição de classe e ao viés ideológico subjacente à sua teoria. Apesar de defender a separação dos poderes como um mecanismo para evitar o despotismo, sua proposta não era neutra, mas refletia os interesses da burguesia emergente. O objetivo era garantir um equilíbrio entre a monarquia e a aristocracia, mantendo o Judiciário como um poder separado, mas sem verdadeira autonomia política. A separação dos poderes não significa igualdade entre eles, pois o Legislativo e o Executivo mantêm um papel dominante. Ao se exercitar por “juízes naturais” e não por instâncias políticas, a Justiça termina por favorece uma elite jurídica e aristocrática.

Não beneficia toda a sociedade, mas sim consolida um modelo de Estado que equilibre os interesses da monarquia e da burguesia, evitando tanto o absolutismo quanto a revolução popular.

É verdade, pois, na sequência do reposicionamento institucional da estrutura de poderes que foram estabelecidos com a modernidade e com a ideologia liberal, que o equilíbrio entre eles passou a ser uma mediação da política, uma disputa entre os fatores reais de poder que formam a sociedade, um intento de captura, um esforço de cooptação, junto com o próprio ethos corporativo que muitas vezes prevalece na sua configuração.

Tratei desse tema num artigo SOUSA JUNIOR, José Geraldo de. Reflexões sobre o princípio da separação de poderes: o ‘parti pris’ de Montesquieu. Revista de Informação Legislativa, v. 17, n. 68, p. 15-22, out./dez. 1980, que vi chegou a ser inscrito pelo professor Alexandre de Moraes na bibliografia de seu festejado compêndio Constituição do Brasil Interpretada. São Paulo: Editora Atlas, 4ª dição, 2004.

Vem daí a questão central. O STF deveria adotar mecanismos de autocontenção para recuperar legitimidade? A transparência e colegialidade seriam suficientes? Onde está o limite entre controle de constitucionalidade e ativismo judicial? O STF tem extrapolado sua função constitucional ao atuar na política?

Nos Estados Unidos hoje, juízes temem pela própria segurança em meio a críticas que recebem de setores articulados na nova governança1. Segundo John Roberts, presidente da Suprema Corte dos EUA, em seu relatório anual de fim de ano em dezembro (2004), o número crescente de ameaças à independência do Judiciário, incluindo pedidos de violência contra juízes e sugestões “perigosas” de autoridades eleitas para desconsiderar decisões judiciais das quais discordam. Nas mídias sociais, Musk e parlamentares republicanos descreveram os juízes como ameaças à democracia, transformando o papel do judiciário federal — um ramo do governo criado para controlar o Poder Executivo e o poder do Congresso — em algo negativo. “A única maneira de restaurar o governo do povo nos Estados Unidos é destituir os juízes“, escreveu Musk em uma publicação (Juízes dos EUA temem por sua própria segurança em meio a críticas de Musk. (Disponível em: https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/reuters/2025/03/05/exclusivo-juizes-enfrentam-aumento-de-ameacas-nos-eua-em-meio-a-criticas-de-musk-as-suas-decisoes.htm. Acesso em 27/12/2025).

De toda sorte, estamos vendo que essas questões têm hoje uma globalidade que inquieta. Também tenho tratado desse tema, inclusive no que concerne à soberania e à salvaguarda da independência do Judiciário, tendo me posicionado com perplexidade diante de atitudes extravagantes do mandatário da principal potência global. A propósito, em https://brasilpopular.com/contra-a-truculencia-unilateralista-no-global-e-os-silverios-dos-reis-no-local-preservar-a-soberania-nacional-e-a-opcao-multilateral/ – considerar que “a  perplexidade não se deu apenas pela dimensão econômica internacional incidente na modelagem de trocas, mas também pela condicionante política de vincular a iniciativa a uma exigência de suspensão de jurisdição em face do indiciamento de autores de uma trama golpista, capitaneada por ex-presidente da República contra a democracia e contra a constituição. Essa conexão extravagante, por um ou por outro motivo, logo ativou uma forte reação social, não necessariamente com identidade de fundamentos ou disposição, mas muito consensualmente pela rejeição ao seu duplo pressuposto”.

Certamente contribui para a disposição prepotente que não hesita em apontar caminhos de interferência, a experiência subordinante ainda praticada em estados historicamente consolidados, nos quais os sistemas de justiça são hierarquizados administrativamente pelo executivo ou em conselhos de estado. Mas não é o caso do Brasil, por sua história institucional e do próprio Supremo Tribunal Federal (a propósito, https://brasilpopular.com/supremo-tribunal-federal-esse-desconhecido-intimo/).

Também no Correio Brazilense – https://www.correiobraziliense.com.br/direito-e-justica/2024/09/6939975-moraes-tem-o-poder-que-a-constituicao-lhe-atribui-diz-jurista-e-ex-reitor-da-unb.html – sobre o principal debate jurídico que precisa ser travado neste momento, foi ocasião que me permitiu afirmar que o essencial é não fazer da lei uma promessa vazia de realização do Direito. Discutir o acesso democrático à Justiça e a própria Justiça a que se quer acesso. Ser guardião, como escreveu um colega meu Antonio Escrivão Filho, e não porteiro da Constituição (Kafka), principalmente em temas como direitos humanos (vida), em face do neoliberalismo (coisificação do humano). Fazer-se teoricamente sensível às exigências do justo (conforme vem indicando o CNJ sobre protocolos para decisões com enfoque de gênero, antirracistas, atentas a sistemas ancestrais de juridicidade). Compreender que a Constituição não é só o texto que a veicula, mas são as disputas por posições interpretativas que a realizam. Em suma, com Victor Nunes Leal (antigo ministro do STF, aposentado pelo AI-5), referindo-se ao Supremo, esperar que a sua atenção capte o movimento do direito a andar pelas ruas porque, “quando anda pelas ruas, colhe melhor a vida nos seus contrastes e se prolonga pela clarividência da observação reduzida a aresto”.

(*) José Geraldo de Sousa Junior é professor titular na Faculdade de Direito e ex-reitor da Universidade de Brasília (UnB)

quarta-feira, 24 de dezembro de 2025

 

Território Livre – Marcos da Memória da UnB – Residência Artística Erica Ferrari

Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito

Território Livre – Marcos da Memória da UnB – Residência Artística Erica Ferrari. / Organização, Alex Calheiros, Estefânia Dália, Erica Ferrari e Gregório Soares. – Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2022. 68 p.

https://www.editora.unb.br/downloads/Cat%C3%A1logo_Territ%C3%B3rio_Livre_DIGITAL2024.pdf

 

 

No dia 12 dezembro, em cerimônia na Reitoria da UnB foram entregues os prêmios de direitos humanos (Anísio Teixeira) e de educação em direitos humanos (Myreia Suárez), em cerimônia presidida pela Reitora Rozana Naves (https://noticias.unb.br/8249-premios-de-direitos-humanos-da-unb-conheca-as-iniciativas-vencedoras-em-2025).

O Prêmio Anísio Teixeira – IV Edição (2025) premiou três iniciativas, uma em cada categoria: Igualdade, diversidade e não discriminação: Caleidoscópio – Profª Viviane de Melo Resende (IL/UnB); Saúde, meio ambiente e bem-estar: População em situação de rua em Brasília: avaliação da presença de transtornos mentais e demandas por saúde – Profª Andrea Donatti Gallassi (FCTS/UnB) e Democracia e participação: Projeto Formação Comunitária em Direitos Humanos (projeto desenvolvido em parceria com o Conselho Nacional de Direitos Humanos, o Ministério dos Direitos Humanos e o Setor de Direitos Humanos do MST – Prof. José Geraldo de Sousa Junior,  Profª Tatiana Rampin (FD/UnB) e Prof. Antonio Sérgio Escrivão Filho. Em nome do projeto recebeu a distinção Ayala Ferreira, coordenadora nacional da área de formação em direitos humanos do MST.

Já o Prêmio Mireya Suárez – IV Edição (2025) contemplou e agraciou cinco categorias: Educação básica: LeiA – Leitura e Ação Lúdico-Pedagógica – Prof. Erlando Reeses (FE/UnB); Educação superior: Ubuntu: Frente Negra na Ciência Política da UnB – (IPOL/UnB); Educação em contextos não escolares: Território Livre: Marcos da Memória – Estefania Dália; Educação para profissionais dos sistemas de justiça e/ou segurança: Guia do Transtorno do Espectro Autista – Matheus Rudo; e Educação e mídia: Memória e Ditadura Militar no DF – Prof. Matheus Gamba Torres

Pelo Prêmio Myreia Suárez DH 2025 – Território Livre: Marcos da Memória, falou o historiador Paulo Parucker. Ele começou por agradecer a oportunidade, com o registro também da passagem de 10 anos desde que esteve na mesma cerimônia para apresentar a público a síntese do Relatório final da CATMV-UnB, então premiada.

Sobre a CATMV/UnB – Comissão Anísio Teixeira de memória e Verdade da UnB, e do belíssimo e consistente Relatório que produziu, remeto a meus comentários em https://estadodedireito.com.br/relatorio-da-comissao-anisio-teixeira-de-memoria-e-verdade-da-universidade-de-brasilia/.

Na sua manifestação Prarucker recuperou da UnB – o projeto inicial (Anísio/Darcy): artes integradas ao conhecimento acadêmico, não como apêndice ou anexo mas como parte do todo: sensibilização, mobilização, transformação.

No tema, relembrou o Golpe de 1964 – para assinalar o projeto interrompido (referência a Roberto Salmeron). 1964, 1965, … 1968: invasões, prisões, demissões, perseguições, mas também brava resistência: “Território Livre” da UnB (expressão tomada das lutas anti-coloniais na Ásia, na África, nas Américas).

Aqui também remeto à recensão que fiz sobre o livro de Salmeron –  https://estadodedireito.com.br/a-universidade-interrompida-brasilia-1964-1965/ – principalmente à reedição comemorativa de 2012, ano do jubileu (50 anos) da UnB, na qual insiro um prefácio.

Depois Parucker fez remissão à Justiça de Transição, assinalando seus 4 pilares:  a) estabelecimento da verdade e memorialização; b) reparação (vítimas, familiares, sociedade); c) responsabilização judicial dos perpetradores de graves violações DH;  d) transformação das instituições para não-repetição. DH e Direito à Memória e à Verdade.

Com efeito, esses pilares estão designados com qualificada fundamentação e referências autorais fortes em Sousa Junior, José Geraldo de. O direito achado na rua: introdução crítica à justiça de transição na América Latina / José Geraldo de Sousa Junior, José Carlos Moreira da Silva Filho, Cristiano Paixão, Lívia Gimenes Dias da Fonseca, Talita Tatiana Dias Rampin. 1. ed. – Brasília, DF: UnB, 2015. – (O direito achado na rua, v. 7), obra paradigmática que pode ser consultada aqui: https://www.gov.br/mj/pt-br/central-de-conteudo_legado1/anistia/anexos/direito-achado-na-rua-vol-7_pdf.pdf.

Para Parucker, lembrar é resistir: memorializar as graves violações DH (torturas, sequestros, prisões, assassinatos, ocultação de cadáveres, espionagem, e também as lutas de resistência).

E foi nesse diapasão que aludiu à Convocatória Residência Artística Território Livre: (2012-2015: CATMV-UnB e relatório); (2019 Edital DEX; seleção: nov/2019, Érica Ferrari; previsão: abril/2020); (Pandemia março/2020); (Residência remota/virtual, 2º semestre de 2020: lives, debates, entrega do projeto: marcos de memória); (2022, publicação do Catálogo 2022); (Editais SDH/UnB – Prêmios: 2024, CATMV-UnB; 2025, Resid.Art.Território Livre).

E, finalmente, ao projeto premiado: marco de memória a ser instalado no campus, replicado em pontos diversos, não como elemento único e monumental na paisagem mas em pontos diversos e menores, lugares de memória que incentivem o encontro e a troca de experiências, visando passado e futuro. Lugares de abrigo do corpo (corpo que, na repressão, foi espaço de privação e dor, e na democracia  é território livre e palco de encontro), acentuando o quanto a proposta incide nas várias formas do fascismo que seguem vivas, também a luta pela liberdade e pela democracia segue viva e pulsante: lutas intergeracionais, para poder seguir, disse ele, “sorrindo”, porque “A vida presta”.

A manifestação de Paulo Parucker, em si e pelo tema distinguido pela premiação, me instigou buscar o material a ele referente inteiramente exibido na publicação objeto deste Lido para Você, que aproveito para fazer acessível por meio do link que leva a seu inteiro teor.

Em todo caso, extraio do texto, em registro do próprio Paulo Parucker, um excelente esboço do que representa a publicação:

Com a edição do presente catálogo, fica assinalado mais um passo, pequenino que seja, na caminhada coletiva em prol da Memória e contra o Esquecimento. Graves violações de direitos humanos foram cometidas, por agentes públicos ou não, durante a ditadura, atingindo violentamente a comunidade universitária e, de modo peculiar, algumas pessoas, grupos e entidades.

Variadas formas de luta, resistência e oposição à ditadura foram colocadas em movimento. “Se lembrar é um dever”, o relatório da Comissão Anísio Teixeira de Memória e Verdade da UnB (CATMV-UnB) pode até sinalizar uma etapa do dever cumprido. Mas, o registro, apenas, é pouco: lembrar não basta.

É preciso diversificar os meios de levar adiante essa história, evitando que ela se restrinja a notas repousadas numa estante remota. Trata-se de trazê-la viva para, sob as luzes e sombras do presente, enfrentar as inquietações e desafios que não cessam de nos confrontar no tempo.

Desde que se encerraram, formalmente, os trabalhos da Comissão da Verdade da UnB, em abril de 2015, com a divulgação do seu relatório final, algumas e alguns dos membros seguiram articulando pequenas ações de publicidade dos esforços da CATMV, inclusive um projeto de memorialização no campus.

O início desse trabalho de memória foi cogitado para se dar, circunscritamente, no estacionamento da Associação dos Docentes da UnB (ADUnB), próximo de onde, cinco décadas antes, situou-se o “Barracão da FEUB”, espaço institucional e histórico de mobilização estudantil. Especulou-se dar forma a um parlatório de cimento, ou algo nessa linha, que pudesse se constituir numa marca (de memória), tornando presentes memórias tão caras.

A ação, pensada desde fins de 2018 e reelaborada em seus limites e propósitos, recomposta e redimensionada, acabou por ser alinhavada no âmbito da Diretoria de Difusão Cultural do Decanato de Extensão da UnB, em registro colaborativo com pessoas da CATMV-UnB, da ADUnB, da alta direção universitária e de outras interfaces.

A Convocatória Residência Artística Território Livre, cujo nome evoca estratégias da luta anti-imperialista do Vietnam, dos anos 1960, e suas ressonâncias no movimento estudantil – e igualmente na repressão ditatorial contra ele desencadeada -, dialoga com essa construção coletiva.

Esse chamamento veio a público no dia 31 de maio de 2019, no bojo de um debate, organizado por militantes da memória e das lutas estudantis.

O ato-debate aconteceu, propositalmente, na entrada centro-norte do Instituto Central de Ciências da UnB – o charmoso “Minhocão” – num espaço caro às lutas dentro da universidade, o chamado “Ceubinho” – brilhante solução arquitetônica de estada e de passagem no campus Darcy Ribeiro, ela mesmo um peculiar lugar-testemunho.

Passados 42 anos, rememorava-se o início da histórica greve de 1977, na UnB, marco temporal relevante a ligar os acontecimentos da Universidade e de Brasília à agitada conjuntura nacional de então, e ao processo de hesitante distensão política do regime, após mais de uma década de repressão violenta: vivia-se o retorno de manifestações estudantis e populares pela volta das liberdades democráticas.

Vale acrescentar, às várias camadas dessa história, os tempos bicudos do presente, de ataques ao pensamento, à educação, à universidade; tempos de militarização do serviço público, de saudação oficial a torturador, tempos de negacionismo obscurantista.

E, contra isso, seguir lutando. Lançado o edital, tratou-se do processo de seleção de proponente para, no transcurso de uma breve residência artística, achegar-se a essas memórias, discuti-las, reelaborá-las e apresentar seu projeto de memorialização. A experiência, com as contingências ligadas à Covid-19, foi vivida em chave remota, via internet, redes sociais, webinários, lives, gravações. Em pauta, um projeto factível de monumento ou obra artística no campus, a partir de orçamento módico, tendo no horizonte margem para projeto mais amplo, no sentido de sinalizar, espacialmente, algumas marcas de memória.

Penso que, em relação ao resultado concreto da seleção, a Convocatória Território Livre foi bastante bem sucedida, nomeadamente na escolha de Erica Ferrari e, depois, no segundo semestre de 2020, na conclusão da residência artística com debate e apresentação dos produtos, nos termos do instrumento de chamada.

Celebro, assim, a estimulante troca de informações, apreciações, experiências e visões de mundo, possibilitada pelo ambiente virtual durante os dias de pandemia. Saúdo, com muito gosto, os interessantes projetos artísticos, afinal apresentados, e torço para que, oportunamente, ganhem materialidade e atuação no labor memorial. Sobre o sucesso, o catálogo fala por si mesmo.

Em vez de agradecimentos nominais, e ante a circunstancial restrição sanitária a efusivos abraços, deixo uma afetuosa saudação a tanta gente com quem temos compartilhado essa caminhada, que segue. Um pé depois do outro. Entre memórias e utopias.

A estrutura do catálogo se sustenta pelo sumário conforme os temas que a organizam:

Território Livre – Um marco de diálogo e criação

Breve memória de um processo de memória

O exercício constante da memória

Comissão de seleção e curadoria

Registros de uma Residência: memória, resistência e virtualidade

A artista selecionada

Território Livre

Projeto Laboratório-Memória

 

E ponho em relevo como chave de leitura da obra, a apresentação que prepararam os professores Alex Calheiros (Departamento de Filosofia da UnB) e Gregório Soares (Departamento de Artes Visuais da UnB):

A Lei nº 3.998, de 15 de dezembro de 1961, que autoriza a criação da Fundação Universidade de Brasília e o seu Plano Orientador, tinha como princípio a garantia do livre exercício de cátedra, da diversidade de pensamento, de liberdades científica, artística, cultural e política. Assim, no texto de sua criação, a Universidade de Brasília afirmava sua absoluta autonomia didática e científica. Mas, não tardou muito tempo, o país, e com ele suas instituições, em especial as educacionais e culturais, foram duramente perseguidas. São inúmeros os relatos e documentos que comprovam os momentos de terror, pelos quais a UnB passou. Sucessivas ocupações, interferências em suas atividades científicas, demissões e perseguições, fatos que deixaram marcas profundas. Como forma de afirmar a sua essência, entre 1964 e 1985, quando a Universidade viu sua autonomia ser mais gravemente ameaçada, surge entre os discentes a expressão: “UnB: Território Livre”. A sentença, que se espalhou pelas paredes da UnB, resgatada pela memória de uma fotografia emblemática numas das tantas conversas com a Comissão Anísio Teixeira de Memória e Verdade, parceira de primeira hora desta iniciativa, tornou-se o ponto de partida para convocar a comunidade a pensar um passado que, de tempos em tempos, volta a assombrar a liberdade de reflexão e criação, própria da instituição.

Como forma de reafirmar a Universidade de Brasília como espaço de liberdade, a Diretoria de Difusão Cultural do Decanato de Extensão da UnB e a Associação de Docentes da UnB, resgataram, portanto, a expressão “TERRITÓRIO LIVRE”, mote norteador da residência artística que teve como objetivos o resgate da memória e a criação de espaços de debate e reflexão de um momento histórico vivido pela universidade que, no nosso entender, deve ser sempre renovado. Não permitindo, assim, que atitudes como aquelas, de silenciamento, praticadas por seus algozes, não se perpetuem de nenhum modo, no presente.

O material reunido aqui é o resultado do conjunto de ações promovidas pela residência e serve de registro sobre os debates ocorridos, ao longo dos processos reflexivo e criativo. Por meio dos encontros propositivos, em torno da memória da resistência universitária e afirmação de sua autonomia no presente, é que foram dadas as condições para que se apresentassem os marcos produzidos por Erica Ferrari, artista residente selecionada, e que podem ser consultados neste catálogo.

Por fim, cabe ressaltar que, com a Residência “Território Livre”, feita de encontros e diálogos pertinentes, no momento que nos coube, fizemos aquilo que deveria ser feito.

 

Como se percebe e se depreende do que sinalizam os formuladores aqui destacados relativamente ao projeto e até de um mergulho direto no catálogo livremente acessível, Território Livre nasce a partir de uma residência artística realizada no âmbito da Universidade de Brasília (UnB), articulada pela Diretoria de Difusão Cultural do Decanato de Extensão da UnB, com apoio da Comissão Anísio Teixeira de Memória e Verdade. O projeto parte de uma expressão simbólica — “UnB: Território Livre” — que surgiu entre estudantes como afirmação da autonomia da universidade frente às perseguições sofridas no período da ditadura civil-militar no Brasil (1964-1985). Essa frase foi recuperada pela memória institucional e transformada no motor de reflexão e produção artística da residência.

O livro, que funciona como um catálogo/reflexão instigado pelo resgate da memória da UnB como espaço de resistência intelectual, política e cultural, especialmente nos anos em que sua autonomia foi gravemente ameaçada por intervenções autoritárias.

Enquanto promoveu debates e reflexões sobre a importância de recordar esse passado para afirmar a liberdade de pensamento e criação na universidade contemporânea, culmina em documentar os processos de criação artística e as intervenções realizadas pela artista residente Erica Ferrari, convidando a comunidade acadêmica e o público a dialogar com esses registros.

Na perspectiva dos textos reflexivos que abordam a memória da resistência universitária e os desafios da autonomia acadêmica frente a regimes autoritários, dos registros da residência artística, incluindo imagens, colagens e documentos visuais produzidos por Erica Ferrari ao longo do processo criativo e dos relatos e sínteses de encontros e debates ocorridos durante a residência — muitos deles realizados em formato remoto devido às condições sociais da pandemia de COVID-19, o catálogo acaba por marcar a memória e institucional no modo como as experiências da UnB durante o regime militar produziram essas marcas — materiais e simbólicas — que continuam a influenciar a vida universitária e cultural.

Trata-se, ao fim e ao cabo de um processo criativo e memória histórica, aguçado pela prática artística como mediação para refletir sobre passado e presente,

Levando a que Território Livre não seja apenas um catálogo de obras, mas um documento histórico e artístico que convida à reflexão crítica e à reafirmação da universidade como um espaço livre de pensamento. A publicação busca evitar que episódios de silenciamento e intervenção institucional sejam esquecidos, propondo que a memória da resistência seja constantemente revisitadas e reimaginadas, base para uma pedagogia da não repetição, do nunca mais, tão necessárias aos tempos correntes em que monstros e fantasmas parecem sair do obscuro em que hibernavam.

 

sábado, 20 de dezembro de 2025

 

Assessoria Jurídica Popular: Relatos de uma trajetória formativa

Por: José Geraldo de Sousa Junior (*) – Jornal Brasil Popular/DF

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Retiro o título deste artigo – Relatos de uma trajetória formativa – do documento-registro que os estudantes vinculados ao projeto de extensão “Assessoria Jurídica Popular Universitária Roberto Lyra Filho” elaboraram para sua última atividade de balanço ao final deste semestre letivo (2025) na Faculdade de Direito da UnB.

Impossibilitado de estar presente em razão de viagem acadêmica, não fui esquecido pelos estudantes extensionistas. Basta ver o vocativo do texto, assinado por Júlia Natour, ainda no bacharelado mas já em atuação funcional de relevo no Ministério da Justiça, na Secretaria Nacional de Acesso à Justiça.

Diz Júlia: “Querido professor, Como o senhor não poderá nos acompanhar no nosso último encontro da formação, lhe ofereço um gostinho do que foi esse processo tão bonito e potente. Imagino, talvez, que o senhor leia essa coletânea de relatos escritos pelos próprios formandos em pleno voo. Acho que o cenário combinará com as palavras aqui atenciosamente escritas pelos mais novos ajupianos. Reconheço, professor, que quando li, dei uma choradinha. Essa trabalheira toda que temos parece que dá frutos mesmo… Cada um com seu jeitinho, uns mais inspirados que outros, uns mais líricos, outros mais objetivos, mas todos denotam a sensibilidade desses jovens. E o que queremos se não juristas sensíveis, não é mesmo? Como toda oportunidade que tenho, agradeço do fundo do coração e da mente por ter construído (sempre coletivamente) e mantido (com bastante resiliência) esse espaço que muda a gente dum jeito inimaginável e indescritível. E tenho certeza, que mesmo na sua grande pequeneza, a AJUP Roberto Lyra Filho muda o nosso Brasil”.

Curiosamente, quase na mesma ocasião, eu participava de uma sessão de debate, promovida pelo NAJUC (UFC), com o apoio da AJUP Roberto Lyra Filho, da UnB, e em parceria com o Centro Acadêmico Clóvis Beviláqua, para o minicurso “O Direito Achado na Rua: Interlocuções e Práxis”.

O evento, com a participação do professor Newton de Menezes Albuquerque, professor-orientador do NAJUC, teve a mediação de Victor Müller e Elma de Oliveira Araujo (da AJUPRLF). A justificativa para a sua realização e para a minha participação, tomou em conta que “O Direito Achado na Rua propõe uma ruptura necessária com o elitismo e o formalismo que historicamente afastaram o povo da justiça. Ele nos ensina que o direito não é apenas um instrumento estatal de regulação, mas uma prática social de libertação que nasce nos espaços públicos e nas comunidades. Para as Assessorias Jurídicas Universitárias Populares (AJUPs), essa compreensão é o alicerce de tudo o que fazemos: é ela que nos permite superar o modelo assistencialista e paternalista tradicional. Ao adotar essa perspectiva, entendemos que a função da assessoria jurídica não é atuar “para” os movimentos sociais, mas construir “com” eles estratégias de emancipação. Inspirados na pedagogia de Paulo Freire e no pluralismo jurídico, reconhecemos que a luta dos trabalhadores rurais, das ocupações urbanas e dos coletivos feministas e negros cria legitimidade e novos direitos. As AJUPs são, portanto, a expressão prática desse conceito, transformando a universidade em um espaço de diálogo onde o saber técnico jurídico se une aos saberes populares”.

Em relação a AJUP Roberto Lyra Filho, tanto o texto-registro da Formação quanto as incidências descritivo-analíticas de sua origem relevância pedagógico-prática, há valiosas referências para consulta.

Desde logo um ensaio – “Sobre a AJUP Roberto Lyra Filho” –  postado pelo professor Diego Dihel um dos seus fundadores (março de 2013), no sítio https://assessoriajuridicapopular.blogspot.com/2013/03/sobre-ajup-roberto-lyra-filho.html.

Diz ele: “Felizmente, foi possível congregar um grupo de estudantes da Faculdade de Direito da UnB e de outros cursos jurídicos de Brasília, e, com o apoio do professor José Geraldo de Sousa Júnior, coordenador da AJUP, foi possível a sua formalização no Decanato de Extensão da UnB como Projeto de Extensão de Ação Contínua (PEAC). Com isso foi possível obter apoios na forma de bolsas e fomentos, impulsionados ainda pelo apoio do Núcleo de Prática Jurídica (NPJ), no qual o projeto possui atualmente um espaço para sua organização. A assessoria jurídica popular era até então relativamente desconhecida na FD-UnB, cuja trajetória é forte na construção de projetos de extensão que atuam na educação popular em direitos humanos, sempre sob a perspectiva do Direito Achado na Rua, mas sem maior experiência no campo da advocacia popular (a maior experiência nesse sentido havia ocorrido no caso da Vila Telebrasília, no início dos anos 1990). A AJUP veio portanto para se somar às iniciativas de extensão popular, com o diferencial de buscar articular 3 eixos de atuação: (i) advocacia popular; (ii) educação popular; e (iii) fortalecimento político dos movimentos populares”.

Remeto nesse aspecto descritivo-analítico a duas monografias de bacharelas egressas do projeto, documentos fundamentais para compreender a fortuna crítica desse belo projeto. Aliás, sobre eles desenvolvi recensões em que busco situar o autoral com o contexto de atuação do modelo de assessoria jurídica. Em https://estadodedireito.com.br/praticas-juridicas-extensao-e-acesso-a-justica/ , comento a monografia Práticas Jurídicas, Extensão e Acesso à Justiça, de Rayssa Cavalcante Matos. Monografia apresentada como requisito parcial para a obtenção do grau de bacharel em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Brasília, 2023. Rayssa acaba de ser nomeada vic-epresidente da Comissão de Advocacia Popular da Ordem dos Advogados do Distrito Federal.

O outro estudo é o de Adda Luisa, em sua monografia de conclusão de curso na Faculdade de Direito da UnB (cf. http://estadodedireito.com.br/o-papel-da-extensao-popular-na-democratizacao-da-justica-a-experiencia-da-assessoria-juridica-universitaria-popular-roberto-lyra-filho/ ). Tendo como base teórica, principalmente O Direito Achado na Rua e o Direito Insurgente, Adda sustenta como hipótese de pesquisa “que AJUP-RLF, assim como muitos projetos de extensão, vivenciou, ao decorrer da sua história, gerações, muito marcadas pelos membros que estavam à frente do projeto na época”, todos mobilizados por uma concepção emancipatória de jurídico, notadamente na UnB (http://estadodedireito.com.br/a-pratica-juridica-na-unb-reconhecer-para-emancipar/; também (http://estadodedireito.com.br/o-direito-achado-na-rua-e-as-possibilidades-de-praticas-juridicas-emancipadoras/) e a sua proposta  “é desenvolver essa tese ao decorrer da escrita do artigo, assim como, apresentar a atuação do projeto com os movimentos sociais no DF”.

Mais recentemente me deparei com o artigo Entre a Rua e a Universidade: o Direito Achado na Rua como Fundamento das Assessorias Jurídicas Populares, acessível em https://www.pjed.com.br/entre-a-rua-e-a-universidade-o-direito-achado-na-rua-como-fundamento-das-assessorias-juridicas-populares/.

O artigo, de autoria de Catarina Pierdoná Wasilewski  e Amanda Vaz Tonhá, graduandas em Direito pela Universidade de Brasília (UnB) e membras da Assessoria Jurídica Universitária Popular Roberto Lyra Filho (AJUP-UnB) – As Assessorias Jurídicas Populares: expressão prática do Direito Achado na Rua – indica como as “Assessorias Jurídicas Populares (AJUPs) surgiram no ambiente universitário, principalmente em cursos de Direito de universidades públicas, como desdobramento da prática extensionista e da militância estudantil. Elas têm como objetivo fundamental promover a articulação entre o saber jurídico e os saberes populares, superando o modelo assistencialista e paternalista que tradicionalmente marcou a relação entre operadores do direito e comunidades. Em vez de atuar como representantes passivos, os assessores se colocam como parceiros, construindo com os movimentos sociais estratégias de resistência e emancipação”.

As autoras mostram como essa perspectiva “dialoga diretamente com a pedagogia crítica de Paulo Freire (2011), que enfatiza a necessidade de uma educação dialógica e transformadora. Assim como na educação popular, a assessoria jurídica popular parte da realidade concreta dos sujeitos, buscando problematizar as causas estruturais da opressão e estimular a consciência crítica. Nessa medida, o direito é compreendido como prática social libertadora, e não apenas como ordenamento imposto de cima para baixo”.

As autoras dão à dimensão pedagógica das AJUPs no interior da universidade, afirmando que O Direito Achado na Rua constitui a base teórica indispensável para as Assessorias Jurídicas Populares. Ambas partem da mesma premissa: o reconhecimento de que os movimentos sociais são sujeitos produtores de direito e que a função do jurista crítico é colaborar, em pé de igualdade, na construção desses processos emancipatórios. Pois é nas ruas — onde a lei muitas vezes silencia, mas a vida clama — que o direito renasce. O Direito Achado na Rua é, portanto, mais que uma proposta acadêmica: é um gesto de insurgência, um grito coletivo que recorda à sociedade que o verdadeiro direito se faz de chão, de luta e de povo”.

Destaque para o documento e base do encontro são os Relatos de uma Trajetória Formativa. Os relatos dos extensionistas da AJUP refletem a importância da formação e do engajamento social na construção de uma nova perspectiva jurídica. ​

Além de Julia, há outros relato: Júlio relata a experiência de acolhimento e a busca por um direito mais humano e próximo da realidade social; André discute o papel da educação pública na democracia e a importância da extensão universitária;​ Manuela reflete sobre a construção do Direito e a necessidade de sensibilidade nas práticas jurídicas; Rômulo apresenta uma narrativa cyberpunk que critica a desigualdade social e a exclusão no acesso à justiça; ​Larissa compartilha suas impressões sobre a visita ao acampamento do MST, enfatizando o protagonismo feminino e a luta por direitos;​ Samuel aborda a participação feminina na política e os desafios enfrentados por mulheres em espaços de poder.​

Para mim, não foi surpresa identificar nas apresentações orais e no compartilhamento de conhecimento e nos participantes, expressões fortes de talentos já manifestados, sobretudo autorais, e não só na modelagem acadêmica.

Além de referências anotadas ao longo deste artigo, assinale-se a alta competência na edição do documento funcional Dossiê acesso à justiça socioambiental e direitos territoriais / elaboração técnica Daniel Ferreira dos Reis, Julia Zucchi Natour, Vitor Hugo Moraes – Brasília: Ministério da Justiça e Segurança Pública. Secretaria Nacional de Acesso à Justiça, 2025 (file:///C:/Users/HP/Documents/JG2025/copy_of_DOSSIESEMINRIOACESSOJUSTIASOCIOAMBIENTALEDIREITOSTERRITORIAIS_compressed3.pdf). Me chamou a atenção a narrativa cyberpunk de Rômulo, no melhor estilo literário, nada a dever a Wiliam Gibson, autor de Neuromancer (4 ed. – São Paulo: Aleph, 2008)

Sem dúvida nenhuma, a atividade tal como traduzida nos Relatos demonstrou ser um método eficaz para a integração e reflexão crítica sobre as comunidades. A abordagem pedagógica e inovadora trouxe resultados positivos na integração do grupo. E, no conjunto, certamente terá proporcionado, para a satisfação dos professores orientadores (penso com distinção no professor Antonio Sérgio Escrivão Filho, coordenador acadêmico do projeto. Para mais ver: https://estadodedireito.com.br/programa-terra-de-direitos-de-formacao-em-assessoria-juridica-popular-para-advogadas-e-advogados-de-movimentos-sociais/https://estadodedireito.com.br/direito-caminho-ou-obstaculo-para-a-transformacao-social/https://estadodedireito.com.br/mapa-territorial-tematico-e-instrumental-da-assessoria-juridica-e-advocacia-popular-no-brasil/), uma reflexão crítica sobre o espaço geográfico e a dinâmica social das comunidades apoiadas, além de aquisições político-epistemológicas para todos e todas, especialmente estudantes e docentes.

(*) José Geraldo de Sousa Junior é professor titular na Faculdade de Direito e ex-reitor da Universidade de Brasília (UnB)