domingo, 12 de outubro de 2025

 

A defesa da soberania e as emergências do nosso tempo

Por: José Geraldo de Sousa Junior (*) – Jornal Brasil Popular/DF

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Entre os dias 8, 9 e 10 de outubro, o Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP), em parceria com o Conselho Nacional das Defensoras e Defensores Públicos-Gerais (Condege), realizou o Encontro Nacional de Democratização do Acesso à Justiça. O evento aconteceu na sede do MJSP, em Brasília e teve como objetivo construir uma agenda nacional voltada à ampliação do acesso à justiça, por meio do diálogo qualificado entre os diversos atores envolvidos na formulação e implementação de políticas públicas.

O encontro promoveu a troca de experiências e a identificação de demandas comuns, além de ouvir diferentes segmentos sociais. Além disso, buscou qualificar o debate institucional e impulsionar mudanças no modelo de justiça, visando à construção de políticas públicas mais inclusivas, adaptadas às realidades locais e comprometidas com a garantia de direitos e da cidadania.

A iniciativa foi da Secretaria de Acesso à Justiça (Saju), do MJSP, numa concepção de sua equipe liderada pela Secretária Sheyla de Carvalho visando fortalecer a articulação entre o Sistema de Justiça, o Executivo Federal, o Legislativo, a advocacia, as universidades, os movimentos sociais e as organizações da sociedade civil.

A programação contou com painéis expositivos e mesas de debate sobre temas da soberania e as emergências do nosso tempo como empoderamento jurídico comunitário, justiça socioambiental e direitos territoriais.

O painel que abriu o evento teve como tema “O acesso à justiça como pilar da democracia”, seguido do painel “Movimentos sociais como vetores da democratização da justiça” e do painel “O sistema de justiça frente às novas formas de organização do trabalho: desafios, limites e possibilidades”.

Além de lançamento do livro “Democracia, Sistema de Justiça e Luta dos Povos”, do Observatório Justiça e Democracia da ABJD, livro que tive a satisfação de prefaciar, o Seminário foi ocasião para o lançamento da Escola Nacional de Acesso à Justiça (Enaju) — plataforma on-line e gratuita que irá ofertar capacitações para democratizar o conhecimento sobre o sistema de justiça, fortalecer a cidadania e ampliar os instrumentos de acesso à justiça para populações historicamente vulnerabilizadas.

Iniciativa da Secretaria Nacional de Acesso à Justiça (Saju), a Escola também é um mecanismo de ampliação de saberes entre operadores da Justiça, promovendo um constante intercâmbio digital entre aqueles que atuam com a prática jurídica e as comunidades, grupos e sociedades que pretendem melhor atender os cidadãos.

A primeira capacitação, o Curso Aberto de Acesso à Justiça, já está disponível. São sete módulos estruturados em aulas expositivas de 30 minutos, ministradas por especialistas reconhecidos em suas áreas de atuação. Cada módulo é acompanhado de materiais pedagógicos complementares, como cartilhas, textos de apoio e indicações de leitura, ampliando as possibilidades de aprofundamento dos participantes. O curso pode ser acompanhado pelo enlace https://sajuenaju.mj.gov.br/.

Com uma participação muito ativa de pesquisadores do Grupo de Pesquisa O Direito Achado na Rua, da UnB (Diretório de Grupos de Pesquisa do CNPQ), aliás, uma concepção e prática claramente discerníveis na formulação temática do Seminário, participei da sessão de encerramento (mesa de debate). Coordenada pela Secretária Sheyla de Carvalho, foram debatedores e debatedoras, o advogado popular Ney Strozake (MST/ABJD), a professora Gisele Cittadino (Grupo Prerrogativas/ABJD), o professor Thiago Amparo (FGV) e a jurista Angelita da Rosa, Secretária-Executiva Adjunta do Ministério da Justiça. O tema da mesa, exatamente, o que dá título a este artigo: A Defesa da Soberania e as Emergências do Nosso Tempo.

Claro que eu já esboçara antes o roteiro de mina exposição, orientada pela aplicação de conceitos e de categorias que derivam do acervo conceitual do Direito Internacional que eu sabia, atravessaria as manifestações de meus colegas de mesa. Mas me senti provocado a inserir um nariz de cera em meu rascunho, instigado por duas notícias do dia (10/10). A primeira, a admoestação do Presidente Trump, insatisfeito por não ter sido galardoado com o Nobel da Paz 2025 (“Nobody knows more about […] than me”), muito provavelmente auto-distinguindo-se por forçar o fim de um conflito (Gaza) que muito contribuiu para se instalar, agudizar-se e agora para aproveitar-se da geopolítica de reconstrução.

A segunda notícia, alusiva à insegurança alimentar no Brasil que recuou em 2024, com a proporção de domicílios nessa condição caindo de 27,6% para 24,2%, em comparação a 2023. Os dados, divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) no dia 10/10, mostram que, em números absolutos, o total de lares com restrição de alimentos diminuiu de 21,1 milhões para 18,9 milhões. Isso representa que 2,2 milhões de domicílios saíram da situação de insegurança alimentar no período.

As duas notícias me instigaram a conduzir minha exposição na Mesa, recuperando, por sua alta importância não só conjuntural mas paradigmática, os principais elementos relacionados à soberania, no discurso do Presidente Lula na abertura da 80ª Assembleia da ONU.

Sob o enfoque da Soberania como questão inegociável –  “nossa democracia e nossa soberania são inegociáveis”, a afirmação do Presidente está ligada à ideia de que o país será “nação independente” e “povo livre de qualquer tipo de tutela”, principalmente quando se armam para afrontá-lo sanções unilaterais e intervenções externas: “sanções arbitrárias e unilaterais”, que se tornam assim instrumentos que ferem a soberania dos Estados.

Assim que, no plano externo e no plano interno, a chave de compreensão da Soberania, deve ser a do “Multilateralismo vs. desordem internacional”, condição para que a Soberania possa ser plenamente defendida num mundo plural em que as regras internacionais e o direito sejam respeitados. Para o Presidente Lula há “desordem internacional, quando marcada por concessões à política do poder, atentados à soberania, sanções arbitrárias e intervenções unilaterais”.

Na minha análise do pronunciamento do Presidente Lula, ao acicate do meu nariz de cera, deduz-se uma necessária ligação entre soberania, democracia e justiça social, de modo que a soberania não seja apenas autonomia política do Estado, mas a capacidade de garantir direitos básicos (saúde, educação, moradia etc.), reduzir desigualdades, proteger democracia, gênero, infância, migrantes — tudo isso como parte integrante de uma soberania digna. A fome, a desigualdade social e a pobreza são ameaças concretas à democracia e, portanto, à plenitude da soberania nacional.

Ainda que Soberania, no Direito Internacional clássico, continue a se conceituar como o poder jurídico supremo do Estado de autodeterminar-se e governar-se livremente, no interior e no exterior, em igualdade com os demais Estados, sem submissão a qualquer autoridade superior, no Direito Internacional contemporâneo o conceito clássico foi relativizado. Com efeito, a noção de soberania, originalmente pensada no Direito Internacional como independência dos Estados, ganhou novos usos substantivos no plano interno dos países, especialmente a partir da segunda metade do século XX, quando começou a se associar à autodeterminação dos povos, à cidadania ativa e à efetividade dos direitos fundamentais e dos direitos humanos.

No caso do Brasil, essa ampliação é particularmente expressiva porque o país articula o conceito clássico de soberania (autonomia nacional) com políticas públicas que buscam garantir a soberania popular e material, isto é, a capacidade concreta de o povo decidir seu destino.

Basta ver os principais usos e políticas associadas à soberania no plano interno brasileiro, anotando-se a forma de soberania popular constitucional e política (art. 1º, parágrafo único, da CF/88). Ela se expressa quando se criam e se fortalecem conselhos e conferências nacionais (como os de saúde, educação, direitos humanos, meio ambiente, cidades, povos indígenas etc), expressão da soberania participativa, uma marca das gestões democráticas pós-1988.

A Soberania dita alimentar e nutricional, conceito consolidado no Brasil com a Lei nº 11.346/2006 (Lei Orgânica de Segurança Alimentar e Nutricional – LOSAN), que instituiu o Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (SISAN), é entendida como o direito dos povos de definir suas próprias políticas agrícolas e alimentares, priorizando a produção local e sustentável, e garantindo o acesso universal à comida saudável, alimentação e nutrição como direitos humanos.

Soberania energética e tecnológica que se refere à autonomia nacional para produzir, administrar e usar recursos energéticos e tecnológicos. Aqui, soberania se expressa como autonomia estratégica, reduzindo dependências externas e fortalecendo o controle social sobre recursos naturais.

Soberania ambiental e climática. Inspirada na Declaração do Rio (1992), que reconhece o “direito soberano dos Estados de explorar seus recursos naturais conforme suas políticas ambientais”, ela se realiza mesmo quando o país se integra a compromissos ambientais globais (como o Acordo de Paris), mantendo autonomia na formulação de metas nacionais (NDCs).

Soberania sanitária e científica, fortemente evidenciada durante a pandemia de Covid-19, quando realizá-la envolveu a capacidade nacional de produzir vacinas, medicamentos e insumos estratégicos, além de decidir sobre políticas públicas de saúde sem submissão a interesses privados internacionais, muitas vezes interpostos de modo necropolítico, negacionista, impondo à vida uma subjugação sobredeterminada pela economia e os negócios. E Viva ao SUS.

Soberania territorial e defesa nacional, sempre no sentido de que seu alcance é alusivo ao controle do território e à capacidade de defesa, sem aviltar-se jamais, tergiversando do indicativo constitucional (o nefasto impulso autoritário de exceder o art. 142), porque o que incumbe às Forças Armadas é a defesa da soberania, e não a proteção a projetos de poder.

Soberania cultural e comunicacional, relacionada ao direito de o país preservar, produzir e difundir sua cultura e informação sem dominação externa, o que inclui a defesa da diversidade cultural, o fortalecimento da produção audiovisual, editorial e educacional nacionais e, com forte emergência contemporânea, a adoção de políticas legislativas, judiciais e governamentais de regulação da mídia e de plataformas digitais.

Forte no pronunciamento do Presidente Lula, a afirmação de que a internet não pode ser uma ‘terra sem lei’, cabendo ao poder público proteger os mais vulneráveis: “Regular não é restringir a liberdade de expressão. É garantir que o que já é ilegal no mundo real seja tratado assim no ambiente virtual”. Para mais, ver https://brasilpopular.com/contra-a-truculencia-unilateralista-no-global-e-os-silverios-dos-reis-no-local-preservar-a-soberania-nacional-e-a-opcao-multilateral/; e no Correio Braziliense, o meu artigo: https://www.correiobraziliense.com.br/direito-e-justica/2025/07/7207540-revogacao-de-vistos-medida-arbitraria-e-falaciosa.html.

Em síntese interpretativa do discurso do presidente Lula, que procurei por em relevo, é que ele desloca a soberania da sua dimensão clássica (territorial e estatal) para uma dimensão social e popular.  Soberania como poder de um povo decidir sobre seu destino com liberdade, justiça e dignidade, dentro e fora de seu território. O resultado é uma “soberania democrática”, que rejeita tutelas externas; protege direitos internos; busca parcerias internacionais baseadas na igualdade e não na subordinação. Minha homenagem ao querido embaixador Alessandro Candeas que organizou na Cisjordânia, a repatriação dos brasileiros confinados em Gaza no início dos bombardeios (https://www.publico.pt/2025/08/30/publico-brasil/entrevista/embaixador-conta-livro-experiencia-resgatar-brasileiros-faixa-gaza-2145501).

Uma Soberania que não seja sufocada com a paz dos cemitérios” (Conforme o Dom Carlos, Infante de Espanha de Friedrich Schiller escrito em 1787, dramatizando o conflito entre Dom Carlos, filho do rei Filipe II da Espanha, e o Marquês de Posa, em torno da liberdade, da tirania e da paz imposta pelo poder real: “Sire, esta é a paz dos cemitérios.”). Por isso a firme reprimenda do Presdente Lula: “Ali (em Gaza) também estão sepultados o Direito Internacional Humanitário e o mito da superioridade ética do Ocidente”.

Uma Soberania, em suma, que nos mova na consciência filosófica, sociológica, política, teológica, jurídica, mas radicalmente ética de que – disse o Presidente Lula, “A única guerra de que todos podem sair vencedores é a que travamos contra a fome e a pobreza.”

(*) José Geraldo de Sousa Junior é professor titular na Faculdade de Direito e ex-reitor da Universidade de Brasília (UnB)

sábado, 11 de outubro de 2025

A defesa da soberania e as emergências do nosso tempo 11/10/2025 5:33 pm Por: José Geraldo de Sousa Junior (*) – Jornal Brasil Popular/DF Facebook Twitter WhatsApp Entre os dias 8, 9 e 10 de outubro, o Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP), em parceria com o Conselho Nacional das Defensoras e Defensores Públicos-Gerais (Condege), realizou o Encontro Nacional de Democratização do Acesso à Justiça. O evento aconteceu na sede do MJSP, em Brasília e teve como objetivo construir uma agenda nacional voltada à ampliação do acesso à justiça, por meio do diálogo qualificado entre os diversos atores envolvidos na formulação e implementação de políticas públicas. O encontro promoveu a troca de experiências e a identificação de demandas comuns, além de ouvir diferentes segmentos sociais. Além disso, buscou qualificar o debate institucional e impulsionar mudanças no modelo de justiça, visando à construção de políticas públicas mais inclusivas, adaptadas às realidades locais e comprometidas com a garantia de direitos e da cidadania. A iniciativa foi da Secretaria de Acesso à Justiça (Saju), do MJSP, numa concepção de sua equipe liderada pela Secretária Sheyla de Carvalho visando fortalecer a articulação entre o Sistema de Justiça, o Executivo Federal, o Legislativo, a advocacia, as universidades, os movimentos sociais e as organizações da sociedade civil. A programação contou com painéis expositivos e mesas de debate sobre temas da soberania e as emergências do nosso tempo como empoderamento jurídico comunitário, justiça socioambiental e direitos territoriais. O painel que abriu o evento teve como tema “O acesso à justiça como pilar da democracia”, seguido do painel “Movimentos sociais como vetores da democratização da justiça” e do painel “O sistema de justiça frente às novas formas de organização do trabalho: desafios, limites e possibilidades”. Além de lançamento do livro “Democracia, Sistema de Justiça e Luta dos Povos”, do Observatório Justiça e Democracia da ABJD, livro que tive a satisfação de prefaciar, o Seminário foi ocasião para o lançamento da Escola Nacional de Acesso à Justiça (Enaju) — plataforma on-line e gratuita que irá ofertar capacitações para democratizar o conhecimento sobre o sistema de justiça, fortalecer a cidadania e ampliar os instrumentos de acesso à justiça para populações historicamente vulnerabilizadas. Iniciativa da Secretaria Nacional de Acesso à Justiça (Saju), a Escola também é um mecanismo de ampliação de saberes entre operadores da Justiça, promovendo um constante intercâmbio digital entre aqueles que atuam com a prática jurídica e as comunidades, grupos e sociedades que pretendem melhor atender os cidadãos. A primeira capacitação, o Curso Aberto de Acesso à Justiça, já está disponível. São sete módulos estruturados em aulas expositivas de 30 minutos, ministradas por especialistas reconhecidos em suas áreas de atuação. Cada módulo é acompanhado de materiais pedagógicos complementares, como cartilhas, textos de apoio e indicações de leitura, ampliando as possibilidades de aprofundamento dos participantes. O curso pode ser acompanhado pelo enlace https://sajuenaju.mj.gov.br/. Com uma participação muito ativa de pesquisadores do Grupo de Pesquisa O Direito Achado na Rua, da UnB (Diretório de Grupos de Pesquisa do CNPQ), aliás, uma concepção e prática claramente discerníveis na formulação temática do Seminário, participei da sessão de encerramento (mesa de debate). Coordenada pela Secretária Sheyla de Carvalho, foram debatedores e debatedoras, o advogado popular Ney Strozake (MST/ABJD), a professora Gisele Cittadino (Grupo Prerrogativas/ABJD), o professor Thiago Amparo (FGV) e a jurista Angelita da Rosa, Secretária-Executiva Adjunta do Ministério da Justiça. O tema da mesa, exatamente, o que dá título a este artigo: A Defesa da Soberania e as Emergências do Nosso Tempo. Claro que eu já esboçara antes o roteiro de mina exposição, orientada pela aplicação de conceitos e de categorias que derivam do acervo conceitual do Direito Internacional que eu sabia, atravessaria as manifestações de meus colegas de mesa. Mas me senti provocado a inserir um nariz de cera em meu rascunho, instigado por duas notícias do dia (10/10). A primeira, a admoestação do Presidente Trump, insatisfeito por não ter sido galardoado com o Nobel da Paz 2025 (“Nobody knows more about […] than me”), muito provavelmente auto-distinguindo-se por forçar o fim de um conflito (Gaza) que muito contribuiu para se instalar, agudizar-se e agora para aproveitar-se da geopolítica de reconstrução. A segunda notícia, alusiva à insegurança alimentar no Brasil que recuou em 2024, com a proporção de domicílios nessa condição caindo de 27,6% para 24,2%, em comparação a 2023. Os dados, divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) no dia 10/10, mostram que, em números absolutos, o total de lares com restrição de alimentos diminuiu de 21,1 milhões para 18,9 milhões. Isso representa que 2,2 milhões de domicílios saíram da situação de insegurança alimentar no período. As duas notícias me instigaram a conduzir minha exposição na Mesa, recuperando, por sua alta importância não só conjuntural mas paradigmática, os principais elementos relacionados à soberania, no discurso do Presidente Lula na abertura da 80ª Assembleia da ONU. Sob o enfoque da Soberania como questão inegociável – “nossa democracia e nossa soberania são inegociáveis”, a afirmação do Presidente está ligada à ideia de que o país será “nação independente” e “povo livre de qualquer tipo de tutela”, principalmente quando se armam para afrontá-lo sanções unilaterais e intervenções externas: “sanções arbitrárias e unilaterais”, que se tornam assim instrumentos que ferem a soberania dos Estados. Assim que, no plano externo e no plano interno, a chave de compreensão da Soberania, deve ser a do “Multilateralismo vs. desordem internacional”, condição para que a Soberania possa ser plenamente defendida num mundo plural em que as regras internacionais e o direito sejam respeitados. Para o Presidente Lula há “desordem internacional, quando marcada por concessões à política do poder, atentados à soberania, sanções arbitrárias e intervenções unilaterais”. Na minha análise do pronunciamento do Presidente Lula, ao acicate do meu nariz de cera, deduz-se uma necessária ligação entre soberania, democracia e justiça social, de modo que a soberania não seja apenas autonomia política do Estado, mas a capacidade de garantir direitos básicos (saúde, educação, moradia etc.), reduzir desigualdades, proteger democracia, gênero, infância, migrantes — tudo isso como parte integrante de uma soberania digna. A fome, a desigualdade social e a pobreza são ameaças concretas à democracia e, portanto, à plenitude da soberania nacional. Ainda que Soberania, no Direito Internacional clássico, continue a se conceituar como o poder jurídico supremo do Estado de autodeterminar-se e governar-se livremente, no interior e no exterior, em igualdade com os demais Estados, sem submissão a qualquer autoridade superior, no Direito Internacional contemporâneo o conceito clássico foi relativizado. Com efeito, a noção de soberania, originalmente pensada no Direito Internacional como independência dos Estados, ganhou novos usos substantivos no plano interno dos países, especialmente a partir da segunda metade do século XX, quando começou a se associar à autodeterminação dos povos, à cidadania ativa e à efetividade dos direitos fundamentais e dos direitos humanos. No caso do Brasil, essa ampliação é particularmente expressiva porque o país articula o conceito clássico de soberania (autonomia nacional) com políticas públicas que buscam garantir a soberania popular e material, isto é, a capacidade concreta de o povo decidir seu destino. Basta ver os principais usos e políticas associadas à soberania no plano interno brasileiro, anotando-se a forma de soberania popular constitucional e política (art. 1º, parágrafo único, da CF/88). Ela se expressa quando se criam e se fortalecem conselhos e conferências nacionais (como os de saúde, educação, direitos humanos, meio ambiente, cidades, povos indígenas etc), expressão da soberania participativa, uma marca das gestões democráticas pós-1988. A Soberania dita alimentar e nutricional, conceito consolidado no Brasil com a Lei nº 11.346/2006 (Lei Orgânica de Segurança Alimentar e Nutricional – LOSAN), que instituiu o Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (SISAN), é entendida como o direito dos povos de definir suas próprias políticas agrícolas e alimentares, priorizando a produção local e sustentável, e garantindo o acesso universal à comida saudável, alimentação e nutrição como direitos humanos. Soberania energética e tecnológica que se refere à autonomia nacional para produzir, administrar e usar recursos energéticos e tecnológicos. Aqui, soberania se expressa como autonomia estratégica, reduzindo dependências externas e fortalecendo o controle social sobre recursos naturais. Soberania ambiental e climática. Inspirada na Declaração do Rio (1992), que reconhece o “direito soberano dos Estados de explorar seus recursos naturais conforme suas políticas ambientais”, ela se realiza mesmo quando o país se integra a compromissos ambientais globais (como o Acordo de Paris), mantendo autonomia na formulação de metas nacionais (NDCs). Soberania sanitária e científica, fortemente evidenciada durante a pandemia de Covid-19, quando realizá-la envolveu a capacidade nacional de produzir vacinas, medicamentos e insumos estratégicos, além de decidir sobre políticas públicas de saúde sem submissão a interesses privados internacionais, muitas vezes interpostos de modo necropolítico, negacionista, impondo à vida uma subjugação sobredeterminada pela economia e os negócios. E Viva ao SUS. Soberania territorial e defesa nacional, sempre no sentido de que seu alcance é alusivo ao controle do território e à capacidade de defesa, sem aviltar-se jamais, tergiversando do indicativo constitucional (o nefasto impulso autoritário de exceder o art. 142), porque o que incumbe às Forças Armadas é a defesa da soberania, e não a proteção a projetos de poder. Soberania cultural e comunicacional, relacionada ao direito de o país preservar, produzir e difundir sua cultura e informação sem dominação externa, o que inclui a defesa da diversidade cultural, o fortalecimento da produção audiovisual, editorial e educacional nacionais e, com forte emergência contemporânea, a adoção de políticas legislativas, judiciais e governamentais de regulação da mídia e de plataformas digitais. Forte no pronunciamento do Presidente Lula, a afirmação de que a internet não pode ser uma ‘terra sem lei’, cabendo ao poder público proteger os mais vulneráveis: “Regular não é restringir a liberdade de expressão. É garantir que o que já é ilegal no mundo real seja tratado assim no ambiente virtual”. Para mais, ver https://brasilpopular.com/contra-a-truculencia-unilateralista-no-global-e-os-silverios-dos-reis-no-local-preservar-a-soberania-nacional-e-a-opcao-multilateral/; e no Correio Braziliense, o meu artigo: https://www.correiobraziliense.com.br/direito-e-justica/2025/07/7207540-revogacao-de-vistos-medida-arbitraria-e-falaciosa.html. Em síntese interpretativa do discurso do presidente Lula, que procurei por em relevo, é que ele desloca a soberania da sua dimensão clássica (territorial e estatal) para uma dimensão social e popular. Soberania como poder de um povo decidir sobre seu destino com liberdade, justiça e dignidade, dentro e fora de seu território. O resultado é uma “soberania democrática”, que rejeita tutelas externas; protege direitos internos; busca parcerias internacionais baseadas na igualdade e não na subordinação. Minha homenagem ao querido embaixador Alessandro Candeas que organizou na Cisjordânia, a repatriação dos brasileiros confinados em Gaza no início dos bombardeios (https://www.publico.pt/2025/08/30/publico-brasil/entrevista/embaixador-conta-livro-experiencia-resgatar-brasileiros-faixa-gaza-2145501). Uma Soberania que não seja sufocada com a paz dos cemitérios” (Conforme o Dom Carlos, Infante de Espanha de Friedrich Schiller escrito em 1787, dramatizando o conflito entre Dom Carlos, filho do rei Filipe II da Espanha, e o Marquês de Posa, em torno da liberdade, da tirania e da paz imposta pelo poder real: “Sire, esta é a paz dos cemitérios.”). Por isso a firme reprimenda do Presdente Lula: “Ali (em Gaza) também estão sepultados o Direito Internacional Humanitário e o mito da superioridade ética do Ocidente”. Uma Soberania, em suma, que nos mova na consciência filosófica, sociológica, política, teológica, jurídica, mas radicalmente ética de que – disse o Presidente Lula, “A única guerra de que todos podem sair vencedores é a que travamos contra a fome e a pobreza.” (*) José Geraldo de Sousa Junior é professor titular na Faculdade de Direito e ex-reitor da Universidade de Brasília (UnB)

sexta-feira, 3 de outubro de 2025

 ARTIGO

A educação como condição para a soberania de um povo

Por um projeto educacional à altura de um país verdadeiramente soberano

A palavra soberania voltou ao centro do debate político brasileiro com a questão das tarifas impostas unilateralmente ao Brasil, no conturbado contexto geopolítico mundial. A palavra em si estava meio em desuso, embora elementos já houvessem suficientes para erigi-la ao centro de um projeto de país de forma cotidiana, uma vez se tratar o Brasil de uma economia periférica e dependente, do chamado sul global, e que ainda luta para encontrar seu destino no planeta ou, como diria o saudoso Darcy Ribeiro: se tornar uma Roma dos trópicos.

Por óbvio, o conceito de soberania irradia para vários aspectos da construção de um povo. Com ele se pode conectar o desafio de desenvolvimento de sua capacidade industrial, de sua autonomia tecnológica, redução das desigualdades – pois não pode se falar em povo soberano com fome -, condições militares de auto defesa e, para chegar ao ponto deste texto, todos esses elementos são indissociáveis de uma proposta ou um projeto a longo prazo de educação. Educação, claro, de qualidade, de amplo acesso e igualdade de condições.

Ao longo desses anos, alguns passos foram dados como a política de cotas. Padece o país de um projeto educacional levado a sério. Não obstante os esforços da nova gestão, é preciso muito mais. É urgente, se queremos ser um país soberano, resgatar e atualizar a memória de Darcy Ribeiro que deixou como legado uma vida dedicada ao sonho de fazer, pela educação, o Brasil dar certo.

Darcy foi um dos intelectuais brasileiros mais ativos e profícuos de nossa história, sendo dele inúmeros projetos educacionais muito à frente do seu tempo, como os CIEPS e a luta por uma educação integral de qualidade para todos e todas.

Não podemos deixar de falar, também, do gigante e parceiro de Darcy, Roberto Salmeron, intelectual fundamental para a criação e funcionamento da Universidade de Brasília (UnB), então coordenador-geral dos Institutos Centrais de Ciências e Tecnologia. Salmeron relatou as inovações que a UnB introduziu na estrutura universitária da época, adotadas depois pelas outras universidades em um livro fundamental intitulado “A Universidade Interrompida: Brasília 1964-1965”. Nesta obra relata, ainda, como se formou a crise que abalou profundamente a universidade, cujo ponto culminante foi a demissão coletiva solicitada por 223 professores, em outubro de 1965, depois de 29 docentes terem sido demitidos arbitrariamente.

Neste ponto, documento importante deste momento histórico e que ainda é muito atual, é a mensagem enviada ao Congresso Nacional pelo ex-presidente João Goulart, o que primeiro formulou um programa de metas orientado por grandes reformas para inserir o Brasil no contemporâneo e criar condições de desenvolvimento com justiça social.

Vale ler um trecho:

“Quanto ao ensino superior, o esforço governamental destina-se a transformá-lo, efetivamente, em meio para a formação de técnicos de alto nível e que atendam às necessidades do progresso industrial. Mediante reformulação dos currículos universitários e pela duplicação de matrículas no primeiro ano dos cursos de nível superior, estamos dando os primeiros passos para, efetivamente, integrar a Universidade no processo nacional de emancipação econômica e cultural e para abrir-lhe mais largamente as portas ao maior número de jovens aptos a receber preparo científico e treinamento técnico moderno.

É justo pôr em relevo o papel pioneiro da Universidade de Brasília, novo modelo de universidade, inspirado, não só na experiência das mais avançadas organizações mundiais de ensino superior, como também nos reclamos da sociedade brasileira nessa fase decisiva de transformação sociocultural.”

O sonho de Darcy, Jango, Salmerom e Anisio Teixeira, precisa ser constantemente resgatado. Mais que isso, precisa ser colocado em prática.

No contexto da educação no campo, importante ressaltar o papel do Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária, (Pronera), política pública criada ainda na gestão do governo FHC, mas que, ao longo das gestões petistas, ampliou-se bastante com diversos cursos e trabalhadores formados. O Pronera apresenta e apoia projetos de ensino voltados ao desenvolvimento das áreas de reforma agrária e é fruto da luta de milhares de trabalhadores e trabalhadoras brasileiras por educação.

A política pública é direcionada a jovens e adultos moradores de assentamentos criados ou reconhecidos pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), quilombolas, professores e educadores que exerçam atividades educacionais voltadas às famílias beneficiárias, além de pessoas atendidas pelo Programa Nacional de Crédito Fundiário (PNCF).

Em que pese o esforço enorme de milhares de educadores, trabalhadores e professores das universidades, não tem sido incomum ações de judicialização contra o programa por absoluta falta de compreensão ou por questões ideológicas que visam manter os grilhões sob os pés e as mãos de milhões de brasileiros sem acesso à educação de qualidade.

Para o bem do Programa, muitas decisões judiciais favoráveis de tribunais em todo o país têm contribuído para a formação de centenas de trabalhadores nos mais variados cursos e graus de ensino e, oxalá, este programa seja cada vez mais ampliado e fortalecido como uma verdadeira política de Estado.

O Brasil só poderá falar em soberania quando fizer um profundo e amplo programa nacional de educação, com acesso total das classes sociais a todos os seus níveis. Isso se coaduna com um projeto popular e uma visão de longo prazo. Condições sem as quais, ainda que temporariamente liderados por governantes que respeitem o povo brasileiro, estaremos sempre vulneráveis e fragilizados no contexto geopolítico. Bons exemplos educacionais como o da China e Índia, não faltam mundo a fora.  Como diria o grande pensador e herói cubano José Martin “Só o conhecimento liberta”.

Que nos inspiremos todos no legado de Martín, Darcy, Paulo Freire, Anísio Teixeira, Antonieta de Barros, Nise da Silveira, Salmeron e tantos outros vultos, para recuperar e construir um projeto educacional à altura de país verdadeiramente soberano.

*José Geraldo de Souza Junior e ex-reitor da Universidade de Brasília (UnB)

*Patrick Mariano Gomes é doutor em Filosofia e Teoria Geral do Estado pela Universidade de São Paulo (USP)

**Este é um artigo de opinião e não necessariamente representa a linha editorial do Brasil do Fato.

quarta-feira, 1 de outubro de 2025

 

Sonhos que Viram Pesadelos: o tráfico de pessoas e a zona do não-ser

Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito

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Sabrina Beatriz Ribeiro, Sonhos que Viram Pesadelos: o tráfico de pessoas e a zona do não-ser. Salvador: Editora Segundo Selo, Coleção Monografias (Direito), 2025.

 

Sobre o livro diz Gabriela Costa do Programa de Pós-graduação em Sociologia do IFCH-Unicamp: “Neste livro, Sabrina Beatriz Ribeiro dialoga com Frantz Fanon e seu conceito de ‘zona do não-ser’ para abordar de forma crítica a cidadania, as desigualdades sociais e o racismo, com ênfase no contexto do tráfico de pessoas. A partir de uma perspectiva multidimensional, centraliza o debate nos sujeitos invisibilizados e marginalizados que são as vítimas recorrentes deste crime, como a população negra e a comunidade LGBTIQAPN+. Com muita sensibilidade nos apresenta um panorama histórico que desmistifica estereótipos sobre as vítimas e aponta os dilemas da legislação sobre o tema.

 

Convidando-nos a refletir sobre o importante papel que a educação popular e as organizações da sociedade civil têm no combate ao tráfico de pessoas, no acolhimento e na prevenção de novas vítimas. Esta é uma reflexão urgente diante das desigualdades estruturais que vivemos hoje”.

O livro, já em pré-venda, na página da Editora: https://editorasegundoselo.com.br/shop/proximos-lancamentos/sonhos-que-viram-pesadelo-o-trafico-de-pessoas-e-a-zona-do-nao-ser-sabrina-beatriz-ribeiro/., convidando-nos a refletir sobre o importante papel que a educação popular e as organizações da sociedade civil têm no combate ao tráfico de pessoas, no acolhimento e na prevenção de novas vítimas. Esta é uma reflexão urgente diante das desigualdades estruturais que vivemos hoje.

A pretensão editorial da Segundo Selo/Organismo é promover publicações que somem na e assumam a tarefa de promover tanto a afirmação das singularidades como potências existenciais, como também construir um diálogo entre essas diferenças, sejam elas raciais, étnicas, históricas, de gênero ou sexuais.

Conforme a nota editorial da Segundo Selo, o Grupo acredita que o diálogo entre as diversas possibilidades de existência é a base discursiva para modelos de sociabilidade nos quais a hierarquização, pela exclusão ou pela violência, ou por qualquer outro meio, não triunfe sobre o compartilhamento de experiências e saberes:

Não acreditamos em um modelo de sociabilidade que apague as diferenças e estabeleça uma forma hegemônica e universal de existência, mas sim, que o diálogo, tensivo e extensivo, o debate de ideias, a contraposição de perspectivas, podem nos ajudar a compreender mais a nós mesmos e aos outros, possibilitando assim a produção de um circuito de solidariedade existencial e epistemológica que não seja compreendido a partir de hierarquias e exclusões.

Para isso publicamos cada texto como teoria, compreendemos que um romance negro, um livro de poema homoafetivo, uma narrativa indígena, a produção intelectual negro-feminista, e ainda a tradição canônica, são igualmente produção teórica, que nos informa sobre esses diversos modos de existir e pensar a vida e as diversas formas de produzir a sociedade. Nesse sentido, um livro acadêmico e um texto literário têm para nós a mesma importância epistêmica, pois, a diferença entre os gêneros não significa, em nossas publicações, hierarquia conceitual.

 

O primeiro lançamento do livro acontecerá no dia 9/10 às 19h no Goethe Institut Salvador-Bahia. O evento terá a participação da convidada Paulett Furacão, que é coordenadora do Coletivo LGBTQIANP Laleska D’ Capri, Conselheira municipal LGBTQIIANP, Conselheira Estadual de Educação, atriz, poetisa, primeira trans a ocupar um cargo público no Estado da Bahia e Assessora da deputada Olivia Santana.

A autora é advogada, pesquisadora, educadora popular e Secretária de Modernização, Gestão Estratégica e Socioambiental (SMG) no Tribunal Superior Eleitoral (TSE), biênio 2024-2026. Mestra em “Direito, Estado e Constituição” pela Universidade de Brasília (UnB), com intercâmbio na Universidade de São Paulo (USP). Bacharela em Direito pela UnB, com título de graduação sanduíche na Universidad Nacional de Colombia (UNAL) – Sede Bogotá, bolsista CAPES do Programa Abdias Nascimento.

Acompanhei o percurso de Sabrina Beatriz na UnB, na Faculdade de Direito, mais diretamente no projeto de extensão que supervisionei academicamente Vez e Voz, voltado para a educação e conscientização em face do tráfico de pessoas, com foco no cuidado com crianças e adolescentes do sistema educacional de Águas Lindas de Goiás, no entorno de Brasília. Sobre esse projeto, no qual se destacou como liderança coordenadora a ativista Roda Maria, participante de nossos programas de capacitação em gênero e direitos humanos PLP –Promotoras Legais Populares. A propósito, ver  TV61 O Direito Achado na Rua: Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas. Projeto Vez e Voz. Entrevista Rosa Maria e Sabrina Beatriz (https://www.youtube.com/watch?v=KaT3sUwW-RE&t=2539s).

Esse acompanhamento me levou também a acompanhar até como orientador de trabalhos de Sabrina – monografia e dissertação – o que me deu condições de contribuir com Prefácio para o livro.

No meu prefácio anoto que por ofício tenho lido, comentado, resenhado ou prefaciado, em geral livros, mas também teses e dissertações, às vezes relatórios, sempre com o intuito de sugestões a pesquisadores e a editores. Aqui e ali, por conta de ofício, acabo me deparando com excelentes monografias e TCCs, concluídos depois de sabatinados, e aptos à publicação como artigos e até, boas plaquetes perfeitamente editáveis.

Venho acompanhando a trajetória acadêmica de Sabrina Beatriz Ribeiro Pereira da Silva, com seu sobrenome tão brasileiro, ela própria um ideal tipo de todo o empenho de nossa universidade para se realizar como a universidade necessária proposta por Darcy Ribeiro, capaz de exercer lealdade com o povo e poder contribuir para satisfazer as expectativas do social, até poder se expandir em atualização como universidade emancipatória tal como me empenhei em meu reitorado, para se fazer ainda mais democrática, participativa, inclusiva (cf. SOUSA JUNIOR, José Geraldo de. Da Universidade Necessária à Universidade Emancipatória. Brasília: Editora UnB, 2012).

Sobre assim se posicionar, basta ver o depoimento de Sabrina, nos Agradecimentos, nos quais o reconhecimento ao institucional que a acolheu em políticas de acesso e de permanência, foi apto a recepcionar todo o potencial que sua inteligência e caráter e lhe apoiar para que se realizasse em plenitude transportando para o instante de certificação todas as expectativas de um projeto tanto pessoal – projeto de vida, quanto coletivo, de seus familiares, de sua comunidade, de sua raça, de seu gênero, de sua classe – projeto de sociedade. Sabrina revela todos esses vínculos, os apoios que teve, a confiança que conquistou, tudo expresso na qualidade de sua formação, que o tema da monografia expõe.

Ainda antes de ler a monografia de Sabrina, na condição de coordenador acadêmico no projeto Vez e Voz na UnB, eu já vinha me debruçando sobre relatórios e avaliação da execução desse projeto, formulando meus juízos críticos sobre o que ele representa.

Assim é que, depois do exame de relatórios mais recentes pude elaborar artigo de divulgação: “Tráfico de pessoas: crime agravado pela desigualdade social”, publicado no qualificado espaço da REVISTA IHU ON-LINE (https://www.ihu.unisinos.br/611641-trafico-de-pessoas-crime-agravado-pela-desigualdade-social), para concordar com o que é praticado nesse projeto, de que “é impossível falar de Tráfico sem falar de vulnerabilidade social, racismo, violência de gênero e sem citar a evidente desigualdade social, em que uns ganham muito e outros nada’”.

Em sua monografia, Sabrina remete ao Protocolo de Palermo (2000), texto adicional à Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional Relativo à Prevenção, Repressão e Punição do Tráfico de Pessoas, em Especial Mulheres e Crianças, 2000, ratificado pelo Brasil (Decreto n. 5017/2004), definindo o tráfico de pessoas: “o recrutamento, o transporte, a transferência, o alojamento ou o acolhimento de pessoas, recorrendo à ameaça ou ao uso da força ou a outras formas de coação, ao rapto, à fraude, ao engano, ao abuso de autoridade ou de situação de vulnerabilidade ou à entrega ou aceitação de pagamentos ou benefícios para obter o consentimento de uma pessoa que tem autoridade sobre outra, para fins de exploração. A exploração deverá incluir, pelo menos, a exploração da prostituição de outrem ou outras formas de exploração sexual, o trabalho ou serviços forçados, a escravatura ou práticas similares à escravatura, a servidão ou a extração de órgãos”, de onde deriva a atualização do Código Penal brasileiro, com a inclusão tipo definido no artigo 149-A incluído pela Lei 13.344/2016.

Mesmo com essa avançada normativa internacional, ainda é o muito difícil vencer a sutileza ocultadora de “práticas” naturalizadas de relações sociais patriarcais que nem as autoridades de controle criminal, nem os meios de comunicação, nem as muitas catequeses, delas se dão conta. Todavia, elas carregam o núcleo do tipo criminal: o “amor romântico” que encobre o chamado “escravismo branco”; a ilusão do patrocínio na prática do sugar baby e, tão comum no trânsito entre desigualdades, a “generosidade” da casa grande que mantém a senzala quando recruta nas periferias os serviços de jovens que serão acolhidas como parte da família, para serem educadas, terem uma oportunidade, claro, com a retribuição de alguns serviços domésticos, sem limite de jornada, muitas vezes sem salário (porque lhes damos tudo), praticamente em cárcere privado.

Ponho em relevo duas assertivas fortes na monografia. A primeira, no afirmar que o “tráfico de pessoas é um conceito jurídico, e não é uma categoria sociológica, inventado desde a preocupação e “discursividade da necessidade de policiamento das fronteiras transnacionais”. As rejeições ao tráfico de pessoas negras, dos mais diversos países do continente africano, para práticas escravistas tomaram força na comunidade internacional em meados do século XIX”.

A segunda, diz a Autora, forte na verificação do “recorrido histórico, a conceituação de tráfico de seres humanos presente no Protocolo de Palermo é uma consequência mais elaborada do mesmo debate originado a partir de uma iniciativa branca, eurocêntrica, racista, sexista e, verdadeiramente, pouco (ou nada) preocupada com a dignidade sexual das vítimas, pois, inicialmente, o que se buscava tutelar era uma suposta moralidade pública sexual e a construção de pureza e fragilidade da mulher branca. Todavia, ainda assim, trata-se de um documento oficial elaborado, aprovado e firmado pelas Nações Unidas, destarte foi ratificado pelo Estado brasileiro no ano de 2004 pelo Decreto nº 5.017”.

A articulação desses mitos sobre exibir as contradições de um social clivado de hierarquias e lugares legitimados, acaba permitindo à análise de Sabrina, ainda que que se ancore numa caracterização do fundamento criminal do tráfico mas que vai fixar um achado de sua monografia. Determinar empiricamente a afirmação de um pânico moral que abre ensejo para mobilizar ações de resgate social, mais designadamente uma empreitada moral conforme suas referências teóricas: “As percepções de que “elas não se percebem exploradas” são justificadas pela síndrome pós-traumática de reação aguda ao stress, no campo da ciência é dita psi ou transtorno de adaptação. Nesse caso, a “atuação dos poderes jurídicos, outorgados aos detentores dos saberes ‘psi’ o direito de dizer sobre o outro, é tema relevante de reflexões e debates no campo da sexualidade”.

Na prática, uma modelagem colonizadora, permeada por vieses raciais, patriarcais e de classe, segundo o que, recorrendo a Fanon, com a sua metáfora da Zona do não-ser, escancara a condição de cidadania inexistente das vítimas do tráfico de pessoas.

A publicação de DOS “SONHOS QUE VIRAM PESADELOS” PARA A ZONA DO NÃO-SER: O Tráfico de Pessoas e a Cidadania Inexistente, pela Editora Segundo Selo, na Coleção Monografias – área Direito, além de revelar o talento autoral de Sabrina Beatriz Ribeiro Pereira da Silva, é também uma ação mobilizadora de resgate social de sujeitos que buscam emancipação, em suma, lugar na zona do ser.