quarta-feira, 10 de setembro de 2025

 

O Direito Achado na Rua e os Caminhos do Direito Insurgente. Ruas, Movimentos e Horizontes de Justiça

Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito

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O Direito Achado na Rua e os Caminhos do Direito Insurgente. Ruas, Movimentos e Horizontes de Justiça. José Geraldo de Sousa Junior, Silvane Friebel, Thainá Leite e Aline Padilha (Organizadores). Coleção Direito Vivo volume 9. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2025, 290 p.

Recupero da edição, a apresentação que assinei, juntamente com Thainá Leite e Silvane Friebel, nós os organizadores, grupo que se completa com Aline Padilha. A apresentação localiza a obra no contexto da fortuna crítica de O Direito Achado na Rua, sua concepção e prática e oferece o conteúdo que constitui o sumário do livro.

Numa síntese, levada para a segunda orelha do livro, assinalamos que esta obra coletiva percorre as encruzilhadas do Direito insurgente, ecoando vozes que tradicionalmente não são ouvidas nos espaços institucionais do sistema jurídico. Inspirada nos fundamentos do projeto O Direito Achado na Rua, a coletânea reúne artigos que abordam a função social do Direito, a resistência dos movimentos sociais, a luta por justiça ambiental, territorial, de gênero e a urgência da descolonização jurídica.

E de modo mais analítico, tal como está na apresentação, distinguimos, na obra, que tem seu primeiro lançamento em Brasília, indicando que o livro “O Direito Achado na Rua e os Caminhos do Direito Insurgente: Ruas Movimentos e Horizontes de Justiça” configura-se como uma obra coletiva de caráter crítico e transformador, que busca romper com os paradigmas tradicionais do Direito. Inspirada na proposta teórico-política do projeto O Direito Achado na Rua, a coletânea propõe uma nova leitura do Direito: não como instrumento de dominação ou aparato burocrático, mas como expressão das lutas sociais, das resistências populares e dos protagonismos e das vozes historicamente silenciadas.

Uma nota de localização. A Coleção Direito Vivo da Lumen Juris é coordenada na Editora Lumen Juris por Alexandre Bernardino Costa e por José Geraldo de Sousa Junior, que também lideram o Grupo de Pesquisa O Direito Achado na Rua, do Diretório de Grupos de Pesquisa do CNPq.

A Coleção teve início com o Volume 1 – Direito Vivo: Leituras sobre Constitucionalismo, Construção Social e Educação a Partir do Direito Achado na Rua, org. Alexandre Bernardino Costa, com o selo da Editora UnB, em 2013.

Já na Lumen seguiram-se: Volume 2 – O Direito Achado na Rua: Concepção e Prática, 2015; Volume 3 – O Direito Achado na Rua: Nossa Conquista é do Tamanho da Nossa Luta, 2017; Volume 4 – O Direito Achado na Rua: Lendo a Contemporaneidade com Roberto Aguiar, 2019; Volume 5 – O Direito Achado na Rua: Questões Emergentes, Revisitações e Travessias, 2021; Volume 6 – O Direito Achado na Rua:  do Local ao Universal a Proximidade Solidária que Move o Humano para Reagir e Vencer a Peste, 2022; Volume 7 – O Direito Achado na Rua. Sujeitos Coletivos: Só a Luta Garante os Direitos do Povo!, 2023; Volume 8 – Constitucionalismo Achado na Rua: uma contribuição à Teoria Crítica do Direito e dos Direitos Humanos Constitucionais, 2024.

A localização paradigmática de O Direito Achado na Rua, e o significado de sua contribuição para o conhecimento, pode ser sintetizado em alguns fundamentos, que acabam por consolidar categorias metodológicas de investigação, isto é, analisar as experiências populares de criação do direito, de modo a compreender e refletir sobre a atuação jurídica dos movimentos sociais, ao: 1. Determinar o espaço político no qual se desenvolvem as práticas sociais que enunciam direitos, a partir mesmo de sua constituição extralegal, como os direitos humanos; 2. Definir a natureza jurídica do sujeito coletivo capaz de elaborar um projeto político de transformação social e elaborar a sua representação teórica como sujeito coletivo de direito; 3. Enquadrar os dados derivados destas práticas sociais criadoras de direitos e estabelecer novas categorias jurídicas para as relações solidárias de uma sociedade em que sejam superadas as condições de espoliação e de opressão, e na qual o direito possa realizar-se como um projeto de legítima organização social da liberdade.

Uma síntese atualizada desse percurso crítico na teoria dos direitos e dos direitos humanos, pela mediação político-epistemológica de O Direito Achado na Rua pode ser encontrada, para efeito de contextualização, em v.6 n. 2 (2022): Revista Direito. UnB, maio – agosto, 2022, V. 06, N. 2 Publicado: 2022-08-31. O Direito Achado na Rua. Contribuições para a Teoria Crítica do Direito, uma edição especial, celebratória, da Revista do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade de Brasília.

Em O Direito Achado na Rua (https://estadodedireito.com.br/o-direito-achado-narua-volume-10-introducao-critica-ao-direito-como-liberdade/), com as trilhas emancipatórias que busca desbravar enquanto concepção e enquanto projeto que na UnB, com os professores José Geraldo de Sousa Junior e Alexandre Bernardino Costa e os companheiros e companheiras associados num processo coletivo de pesquisa-ação insiste-se em percorrer ao longo de mais de 30 anos. Referidas a O Direito Achado na Rua, na perspectiva do que temos atribuído a essa concepção, do que se trata é realizar uma espécie de devolução conceitual para a sociedade, da função crítica para de atribuir o sentido político ao Direito, através do reconhecimento teórico-conceitual da luta social como expressão cotidiana da soberania popular, claro, o Direito compreendido como a enunciação dos princípios de uma legítima organização social da liberdade.

Curiosamente, embora essa perspectiva emancipatória crítica (no sentido proposto em https://www.joaquinherreraflores.org.br/post/texto-guia-para-o-15-seminario-de-teoria-critica-dos-direitos-humanos) tenha leito natural no campo da teoria do direito e dos direitos humanos (ESCRIVÃO FILHO, Antonio; SOUSA JUNIOR, José Geraldo de. Para um Debate Teórico-Conceitual e Político sobre os Direitos Humanos. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2016), Roberto Aguiar a traz para o campo do direito privado que historicamente serviu bem ao modo burguês de produção capitalista, assentada na perspectiva privatizante da acumulação.

E não tardou que se pudesse surpreendê-la sustentada de modo muito orgânico, no sentido intelectual e político do termo, em nuances que a pressentem, embora por distintas razões, em autores que se distinguiram em estudos de direito privado. Assim que, em IL DIRITTO DI AVERE DIRITTI, di minima&moralia pubblicato giovedì, 10 Ottobre 2013. Commenti (https://www.minimaetmoralia.it/wp/estratti/stefano-rodota-il-diritto-di-avere-diritti/), notável jurista (e político recém-falecido), Stefano Rodotà nos fala sobre “a necessidade inegável de direitos e de direito manifesta-se em todo o lado, desafia todas as formas de repressão e inerva a própria política. E assim, com a ação quotidiana, diferentes sujeitos encenam uma declaração ininterrupta de direitos, que tira a sua força não de alguma formalização ou reconhecimento de cima, mas da profunda convicção de mulheres e homens de que só assim podem encontrar reconhecimento e respeito pelos seus dignidade e pela sua própria humanidade. Estamos perante uma ligação sem precedentes entre a abstração dos direitos e a concretude das necessidades, que põe sujeitos reais a trabalhar”.

Para ele, certamente, “não os ‘sujeitos históricos’ da grande transformação moderna, a burguesia e a classe trabalhadora, mas uma pluralidade de sujeitos agora ligados entre si por redes planetárias. Não um “intelecto geral”, nem uma multidão indeterminada, mas uma multiplicidade laboriosa de mulheres e homens que encontram, e sobretudo criam, oportunidades políticas para evitar ceder à passividade e à subordinação”.

Mas, realmente, numa aferição que surpreende porque ativa uma categoria metafórica com a qual instalamos toda uma linha de pesquisa (O Direito Achado na Rua, cf. Diretório de Grupos de Pesquisa do CNPq), ele prossegue: “Todos estes sujeitos ignoram o que, no final do século XVIII, começou em torno das duas margens do “Lago Atlântico”, não são dominados por alguma ‘tirania de valores’, mas interpretam, cada um à sua maneira, a liberdade e os direitos ao longo do tempo que vivemos. Aqui não é a ‘razão ocidental’ em ação, mas algo mais profundo, que tem as suas raízes na condição humana. Uma condição histórica, porém, não uma natureza da qual se possa extrair a essência dos direitos. Por que, de fato, só agora tantos condenados da terra os reconhecem, invocam, desafiam? Por que são eles os protagonistas, os adivinhos de um ‘direito achado da rua’? (‘diritto trovato per strada’)”.

Tal como expuseram os organizadores da obra (para referência conferir em http://estadodedireito.com.br/o-direito-achado-na-rua-volume-10-introducao-critica-ao-direito-como-liberdade/), o contexto em que ela foi preparada teve o “sentido plural, ora de revisitar os conceitos teóricos e epistemológicos de O Direito Achado na Rua, desde a sua concepção até os momentos atuais, a partir de suas linhas de pesquisa, ora para se projetar em novas formulações teóricas e práticas, desde uma atualização de temas que hoje, há exatos 30 anos da sua concepção, se reconhece a urgência e necessidade de sua abordagem, sem os quais não se é possível a formulação de um projeto de sociedade livre, justo e solidário, como os são a pauta antirracista e antipatriarcal”.

O volume então publicado (2021) se apresentou também “como uma compilação de autoria do coletivo de pesquisadoras e pesquisadores de O Direito Achado na Rua, bem como intelectuais e representantes de movimentos sociais que ao longo desses 30 anos compõem a fortuna crítica do Direito, e que historicamente estiveram sempre em diálogo com O Direito Achado na Rua, além de anunciar novas e atuais parcerias para a construção de agendas em comum na dimensão teórica e prática”. Assim, a obra pretendeu se constituir “como um espaço com disposição e potencial para colecionar elementos temáticos e estéticos, modos de interpretar, de narrar e de instituir redes e plataformas para a conformação teórico-prática dos protocolos de pesquisa e extensão que se projetaram e se projetarão no tempo, refletindo sobre o atual momento de crise paradigmática do direito e da sociedade brasileira”.

Em O direito para além do capital: janelas e trilhas / Paulo Rosa Torres, Carlos Eduardo Soares de Freitas, Cloves dos Santos Araújo, Celso Antonio Favero, organizadores. – Feira de Santana: UEFS Editora, 2023, José Geraldo de Sousa Junior e   Sara da Nova Quadros Côrtes, com o ensaio sobre “Direito achado na rua e perspectivas para além do capital”, após contextualizarem o momento da escrita e, mais especificamente, pelo balanço    “autorreflexivo da crítica coletiva que ocorreu no evento internacional realizado entre 11 e 13 de dezembro de 2019 na Universidade de Brasília, denominado o Direito como Liberdade: 30 Anos de O Direito Achado na Rua”,  propõem-se  à abertura de um diálogo crítico e autorreflexivo  para interrogar  sobre o lugar da experiência do  Direito Achado na Rua, no sentido  “propor projetos de vida para a humanidade em geral.”

De modo a situar, justificam eixos reflexivos que reflitam e abram janelas para o agir emancipatório: fundamentos e possibilidades; retomada da travessia e as questões emergentes; o “‘achado’ como ‘elo fraco’ do Direito Achado na Rua.” Destacam dimensões imperativas na base do Direito Achado na Rua, como: assumir o sujeito coletivo como central nos movimentos de luta, interpelar os sistemas formais estatais e burocráticos do direito para humanizar a formação jurídica, promover a coparticipação, dentre outras. Por fim, perguntam: “para que serve a teoria? – conquanto respondam que serve para imaginar um mundo melhor, criar as condições subjetivas para práxis transformadora, a partir do otimismo militante.” E, “O Direito Achado na Rua é uma obra em movimento e com formulações tão fecundas quanto incompletas, mas que nasce e cresce para anunciar, denunciar e combater os perigos destas diversas ordens totalitárias presentes no campo e na formação jurídica.”

Esses pressupostos estão também presentes neste 9º volume da Coleção Direito Vivo: “O Direito Achado na Rua e os Caminhos do Direito Insurgente: Ruas, Movimentos e Horizontes de Justiça”. Organizado em cinco eixos temáticos, o livro percorre diferentes territórios de insurgência jurídica.

A primeira parte, Seção 1, com três artigos, intitulada DIREITO DE RUA: REALIDADES BRASILEIRAS, expõe experiências marcadas pela exclusão e pela violência institucional, abordando temas como o encarceramento feminino, a infância em situação de rua e as violências de gênero. I. E NA RUA ENCONTREI APRENDIZAGEM: REFLEXÕES SOBRE A ESCOLA DOS MENINOS E MENINAS DO PARQUE E O DIREITO À INCLUSÃO: Analisa a importância da Escola dos Meninos e Meninas do Parque (EMMP) na escolarização de estudantes em situação de vulnerabilidade social. A pesquisa qualitativa, baseada no Projeto Político Pedagógico (PPP) da escola, destaca a construção de uma educação inclusiva, emancipatória e garantidora dos direitos humanos. O estudo evidencia a necessidade de uma abordagem formativa e humanizadora na avaliação escolar, além de recursos adicionais para apoiar os estudantes. II. O DIREITO ACHADO NA COLMEIA:  A INFLUÊNCIA DO PATRIARCADO NO SISTEMA CARCERÁRIO FEMININO: explora as desigualdades enfrentadas por mulheres no sistema prisional brasileiro, com destaque para a Penitenciária Feminina do Distrito Federal (Colmeia). A análise revela como a estrutura patriarcal da sociedade se reflete e se agrava no ambiente prisional, expondo as mulheres a condições desumanas, como superlotação, escassez de recursos básicos e falta de suporte específico para suas necessidades, incluindo saúde reprodutiva e mental. O texto enfatiza a necessidade de políticas públicas que abordem essas disparidades, promovam a ressocialização e garantam os direitos humanos das detentas, alinhando-se a teorias de justiça e equidade de autores como Foucault, Rousseau e Beccaria, enquanto critica a perpetuação de um sistema que marginaliza e discrimina mulheres em situação de encarceramento. III. O LUTO INVISIBILIZADO EM CASOS DE PERDAS GESTACIONAIS E A VIOLAÇÃO DA DIGNIDADE MATERNA: aborda a problemática do óbito fetal e a perda gestacional, destacando a invisibilidade das mulheres e mães que enfrentam essa situação. A pesquisa bibliográfica analisa a regulamentação infraconstitucional do sepultamento de fetos, a Taxa de Mortalidade Fetal e a importância da institucionalização do direito ao sepultamento. Os resultados evidenciam a necessidade de mudanças legislativas e de políticas públicas para garantir direitos das mulheres e mães.

Em seguida, com dois artigos, a Seção II, A FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE: PROMESSA DA CONSTITUIÇÃO, REALIZAÇÃO PELOS MOVIMENTOS SOCIAIS, a coletânea investiga os conflitos fundiários, o direito à moradia e o papel dos movimentos sociais na efetivação dos direitos garantidos constitucionalmente. I. CONFLITOS PELA TERRA NO MARANHÃO: UMA HISTÓRIA DE RESISTÊNCIAS: aborda os conflitos pela terra no Maranhão, com foco na luta pela efetivação da função socioambiental da propriedade, destacando os casos emblemáticos em Buriticupu entre 1985 e 1996. Expõe-se como movimentos sociais resistiram à grilagem, ao desmatamento e à violência institucional, evidenciando a luta por justiça ambiental e territorial. O texto ressalta que, embora juridicamente garantida pela Constituição Federal de 1988, a função socioambiental da propriedade permanece vulnerável a distorções promovidas por interesses econômicos, exigindo contínua mobilização social para sua concretização. II. GARANTIA NO PLANO CONCRETO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NO ÂMBITO DA JUSTIÇA ELEITORAL: ESTUDO DE CASO: analisa a efetivação dos direitos fundamentais no âmbito da Justiça Eleitoral, utilizando como estudo de caso o registro de candidatura do cacique Marcos Xucuru. O texto discute a necessidade de interpretação jurídica contextualizada que considere as assimetrias sociais, culturais e raciais, contrapondo-se à neutralidade formal das normas. A pesquisa destaca como julgamentos demandam uma abordagem hermenêutica que integre perspectivas de gênero, raça e multiculturalismo, buscando garantir os direitos políticos como expressão dos direitos fundamentais. Com base em protocolos para julgamento com perspectiva de gênero e em análises de decisões judiciais, o artigo propõe a criação de diretrizes específicas para a Justiça Eleitoral, de modo a alinhar os julgamentos aos princípios democráticos e antidiscriminatórios, promovendo maior justiça e inclusão.

A Seção 3, COLONIALISMO, DESCOLONIZAÇÃO, NEOCOLONIALISMO E EMANCIPAÇÃO: ESVAZIAMENTO DAS PROMESSAS DO DIREITO, com quatro artigos, apresenta uma poderosa crítica ao direito ocidental e colonial, propondo a construção de uma justiça decolonial, antirracista e emancipadora, enraizada nas práticas de resistência de mulheres negras, indígenas e comunidades periféricas. I. ELA É UM SER HUMANO IGUAL A VOCÊ: A BUSCA DA DESCOLONIZAÇÃO EFETIVA DA MULHER PRETA E MÃE SOLO: discute as profundas desigualdades históricas e estruturais enfrentadas pelas mulheres pretas, especialmente mães solo, cuja vulnerabilidade é uma herança do período colonial. A pesquisa explora como a objetificação e desumanização impostas às mulheres pretas escravizadas perpetuam desigualdades de gênero, raça e classe na contemporaneidade. Por meio de uma abordagem interseccional, o texto ressalta a necessidade de uma descolonização efetiva, que englobe políticas públicas afirmativas, fortalecimento de redes de apoio e combate ao racismo estrutural. O estudo enfatiza o impacto dessas desigualdades em casos emblemáticos, como o de Mirtes Renata e seu filho Miguel, e argumenta que apenas ações concretas podem garantir às mulheres pretas e mães solo condições dignas de trabalho, autonomia e pleno desenvolvimento pessoal. II. CAMINHOS POSSÍVEIS PARA IMPLEMENTAR UM CURRÍCULO DESCOLONIAL, ANTIRRACISTA E EMANCIPADOR NOS CURSOS DE DIREITO NO BRASIL: aborda a necessidade urgente de implementar um currículo descolonial, antirracista e emancipador nos cursos de Direito no Brasil com o intuito de superar os paradigmas eurocêntricos e coloniais que perpetuam desigualdades raciais e sociais. A pesquisa destaca a importância de incluir a história e cultura afro-brasileira, relações raciais e direito antidiscriminatório como núcleo obrigatório, além de valorizar autores e educadores negros. Propõe-se uma transformação estrutural no ensino jurídico para formar profissionais aptos a lidar com a diversidade e a realidade social do país, promovendo uma justiça inclusiva e equitativa, comprometida com os direitos humanos e a desconstrução do racismo estrutural. III. VIOLÊNCIA DE GÊNERO: DIÁLOGOS ENTRE DIREITO ACHADO NA RUA E O DIREITO AO TRABALHO COMO AGENTES DE EMANCIPAÇÃO: explora a intersecção entre violência de gênero, a Teoria Crítica dos Direitos Humanos e o direito ao trabalho como elementos de emancipação, sob a ótica do Direito Achado na Rua. Destaca a violência estrutural contra mulheres, especialmente as negras e pobres, exacerbada por desigualdades históricas e culturais em um contexto neoliberal. Propõe o acesso ao trabalho digno e à educação como estratégias cruciais para promover autonomia, pertencimento e identidade, combatendo a dependência econômica e o isolamento social que perpetuam relacionamentos abusivos. O texto enfatiza a necessidade de políticas públicas eficazes e a inclusão ativa das mulheres nas discussões sobre direitos, reforçando que a luta feminista e o engajamento coletivo são fundamentais para a construção de uma sociedade mais justa e igualitária. IV. A ADOÇÃO DO PLURALISMO JURÍDICO NO EQUADOR ATRAVÉS DA JUSTIÇA INDÍGENA: UMA TENTATIVA DE DESCOLONIALIZAÇÃO: analisa a adoção do pluralismo jurídico no Equador como tentativa de descolonização por meio do reconhecimento da justiça indígena, destacando os desafios para sua efetivação em um contexto marcado pela colonialidade. A partir da Constituição de 2008, o país se declara plurinacional e pluricultural, mas permanece permeado por estigmatização e racismo estrutural contra práticas indígenas. Apesar do avanço normativo, a efetividade do pluralismo jurídico é limitada por preconceitos eurocêntricos e pela narrativa de superioridade da modernidade ocidental. O texto conclui que a descolonização requer mais do que reconhecimento jurídico, necessitando de políticas públicas consistentes que promovam a aceitação das origens indígenas e a reconstrução da identidade nacional.

A quarta parte da obra, Seção 4, Os Desafios de uma Constituição Global para o Bem-Viver, com, com três artigos, amplia o olhar para a justiça ambiental e para os direitos dos povos indígenas e das mulheres negras, revelando a urgência de uma Constituição que represente a pluralidade e a diversidade dos modos de viver. I. DIREITO DAS ÁGUAS E FLORESTAS E O RESPEITO AOS POVOS INDÍGENAS: aborda a interconexão entre o Direito das águas e florestas, os direitos dos povos indígenas e a preservação ambiental, dialogando com o conceito de Direito Achado na Rua. Propõe-se a compreender como a cosmovisão indígena, marcada pelo respeito e conectividade com a natureza, pode contribuir para a construção de um direito ambiental que respeite os biomas e os direitos dos povos originários. A análise inclui críticas às lacunas da Constituição Federal em relação aos direitos dos povos indígenas e ao meio ambiente, bem como reflexões sobre a necessidade de avanços na proteção dos ecossistemas e no reconhecimento das práticas culturais e territoriais indígenas. Destaca-se que a valorização da cosmovisão indígena e do pluralismo jurídico é essencial para a construção de uma sociedade mais justa, sustentável e comprometida com a preservação do planeta. II. TECENDO MEMÓRIAS E RESISTÊNCIAS: O PAPEL DAS MULHERES NEGRAS NA SOCIEDADE BRASILEIRA: busca investigar os espaços de construção e resistência que visam garantir os direitos das mulheres negras no Brasil, considerando seu papel fundamental na estrutura social brasileira. Aborda a negligência histórica em relação às contribuições dessas mulheres, resultando no apagamento de suas memórias, territórios e expressão de identidade diante das transformações sociais. III. CONVENÇÃO 169 DA OIT: DESAFIOS E PERCURSOS PARA A IMPLEMENTAÇÃO DA CONSULTA PRÉVIA, LIVRE E INFORMADA: busca compreender o papel dos Protocolos Autônomos de Consulta, desenvolvidos pelos povos tradicionais, como um instrumento de diálogo intercultural e como uma ferramenta emancipatória, essencial para a consolidação de um modelo democrático participativo e multicultural. A partir da contextualização histórica do surgimento da Convenção 169 no âmbito da Organização Internacional do Trabalho, é feito um percurso pontuando os principais avanços e desafios para o cumprimento, pelo Estado brasileiro, das obrigações internacionalmente assumidas quando da ratificação da Convenção.

Por fim, a Seção 5, O Direito Achado na Rua como Horizonte Democrático-Participativo, com quatro artigos e uma poesia, encerra o livro com propondo uma aproximação entre o Direito e a democracia viva das ruas, sugerindo que a legitimidade jurídica pode (e deve) emanar da ação coletiva e da participação cidadã. e apresenta os seus quatro artigos e uma poesia. I. DO ESPAÇO INSTITUCIONAL À RUA: ENDIREITAR UM POEMA ACHADO NA RUA: explora o conceito de “O Direito Achado na Rua”, uma perspectiva crítica sobre o direito que desafia a compreensão tradicional de suas fontes e validade. Aborda a importância de reconhecer e abordar as necessidades das comunidades marginalizadas, incluindo mulheres, povos indígenas e a comunidade LGBT. O artigo destaca a necessidade de uma abordagem interseccional para compreender e abordar as necessidades e desafios enfrentados por essas comunidades. II. O DIREITO ACHADO NA RUA: ATRAVESSANDO AS INSTITUIÇÕES DEMOCRATICAMENTE: aborda a relação entre o Direito Achado na Rua e a influência dos movimentos sociais no Direito Digital. Discute a democratização dos espaços digitais, a manipulação de dados cibernéticos e a preservação dos direitos humanos fundamentais no contexto do home office. Além disso, explora a informatização dos procedimentos de justiça restaurativa e seu papel na construção de uma sociedade democrática e participativa. III. DO CAMPO À INSTITUCIONALIDADE: O CASO DA COMUNIDADE DOM TOMÁS BALDUÍNO: examina a luta da comunidade Dom Tomás Balduíno, acampamento do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, localizada em Formosa/GO, contra os despejos forçados, contextualizando-a nas articulações institucionais promovidas por movimentos sociais para assegurar o direito à terra e à moradia. Baseado em metodologia bibliográfica e documental, o estudo aborda a história de resistência da comunidade, o processo judicial relacionado e as articulações institucionais resultantes das reivindicações dos movimentos sociais. O texto destaca iniciativas como a Campanha Despejo Zero, a Campanha Contra a Violência no Campo e a ADPF 828, que demonstram a eficácia das mobilizações em criar espaços institucionais para mediação de conflitos e proteção dos direitos humanos. IV. O DIREITO ACHADO NA LITERATURA E A REALIDADE QUE ELA REFLETE: analisa a relação entre Direito e literatura, destacando como a ficção literária oferece uma crítica atemporal às barreiras estruturais e culturais do sistema jurídico. Por meio de obras como O Processo, de Franz Kafka, e Triste Fim de Policarpo Quaresma, de Lima Barreto, evidencia-se a distância entre o formalismo jurídico e a compreensão dos jurisdicionados leigos. A pesquisa argumenta que a literatura contribui para a humanização do Direito ao expor dinâmicas sociais complexas e estimular a empatia nos operadores jurídicos. Dessa forma, enfatiza-se a importância de decisões judiciais fundamentadas não apenas na norma, mas também na consideração dos contextos históricos, sociais e culturais dos envolvidos, promovendo uma justiça mais inclusiva e eficaz. V. POESIA DIREITO COMO LIBERDADE: explora, de forma densa e engajada, as dimensões político-filosóficas do Direito comprometido com a transformação social, a dignidade humana e a emancipação coletiva.

Ao longo dos textos, observa-se o compromisso dos autores e autoras com uma perspectiva contra hegemônica, capaz de denunciar a seletividade penal, a exclusão estrutural e a violência institucional que marcam o cotidiano de amplas parcelas da população brasileira. A valorização dos sujeitos coletivos de direito, das epistemologias do Sul e da escuta ativa de experiências populares aparece como fio condutor da obra, reafirmando o Direito como uma prática social em disputa.

Mais do que um compêndio teórico, esta coletânea configura-se como um instrumento de formação crítica, pedagógica e política. Destina-se não apenas a estudantes e profissionais do Direito, mas também a educadoras e educadores populares, militantes, movimentos sociais e todas as pessoas comprometidas com a construção de uma sociedade mais justa, igualitária e plural.

Em tempos de esvaziamento democrático e fortalecimento de discursos autoritários, O Direito Achado na Rua e os Caminhos do Direito Insurgente reafirma que o Direito só pode cumprir sua função social quando for capaz de ouvir a rua, caminhar com os oprimidos e transformar a realidade. Neste sentido, a obra representa uma ferramenta indispensável para quem acredita que outro Direito — e outro mundo — são possíveis.

Agradecemos a Lumen Juris que abriu o seu espaço editorial para acolher o rico material que forma a fortuna crítica de O Direito Achado na Rua, sua concepção e prática, formando uma a Coleção Direito Vivo idealizada e nutrida pelo professor Alexandre Bernardino Costa, atualmente Diretor da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília. O professor Alexandre, que é co-líder do Grupo de Pesquisa O Direito Achado na Rua (Diretório de Grupos de Pesquisa do CNPq), também inaugurou a Coleção e coordenou ou co-organizou vários volumes que formam o seu expressivo e consolidado catálogo.

Sobre essa fortuna crítica podem ser consultados aqui neste espaço da Coluna Lido para Você: destacando do rico repositório sobre o tema, principalmente, https://estadodedireito.com.br/o-direito-achado-na-rua-experiencia-de-humanizacao-protagonismos-sociais-e-emancipacao-do-direito-entrevista-com-o-professor-jose-geraldo-de-sousa-junior/https://estadodedireito.com.br/constitucionalismo-achado-na-rua-uma-contribuicao-a-teoria-critica-do-direito-e-dos-direitos-humanos-constitucionais/https://estadodedireito.com.br/sujeitos-coletivos-so-a-luta-garante-os-direitos-do-povo/https://estadodedireito.com.br/a-teoria-e-praxis-do-coletivo-o-direito-achado-na-rua/https://estadodedireito.com.br/o-direito-achado-na-rua-contribuicoes-para-a-teoria-critica-do-direito/. Ver também, na wikpedia, o verbete elaborado por estudantes da disciplina Pesquisa Jurídica (Faculdade de Direito/UnB): https://pt.wikipedia.org/wiki/Direito_Achado_na_Rua.

 

 

Questionar e Enxergar Além das Certezas

Por: José Geraldo de Sousa Junior (*) – Jornal Brasil Popular/DF

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Nesse sábado, dia 6/9, a convite da Hermenêutica, Sociedade de Debates da UnB, participei da atividade de abertura de semestre letivo, da apresentação desse importante Coletivo de Extensão da Faculdade de Direito da UnB. Meu tema, exatamente o que dá título a este artigo.

A minha mobilização para participar do evento é de dupla ordem. Primeiro, por ter sido, em boa medida, um mediador para acolher e apoiar a iniciativa de estudantes da Faculdade de Direito da UnB, para constituir na universidade, uma modalidade de formação quase centenária no sistema universitário.

De fato, me disponibilizei para atuar como docente coordenador de um projeto de extensão, que se configurava como uma prática de ensino jurídico com metodologia ativa, cujo desenho se inspirou nos enunciados da disciplina Pesquisa Jurídica que ministro no primeiro semestre do Curso.

E, por esses fundamentos, a partir desse desenho, a proposta acabou sendo inscrita para o Prêmio Esdras de Ensino do Direito, promovido pela FGV (Fundação Getúlio Vargas), tendo alcançado o Prêmio Destaque na 4ª Edição dessa importante premiação (2022).

O registro do certame, e todos os elementos da caracterização da atividade podem ser conferidos no Banco de Materiais Um acervo de projetos do Núcleo de Metodologia de Ensino da FGV DIREITO SP – https://ejurparticipativo.direitosp.fgv.br/portfolio/hermeneutica-sociedade-de-debates-universidade-de-brasilia, com a designação “Hermenêutica – Sociedade de Debates da Universidade de Brasília. Metodologia Ativa na Aprendizagem do Direito, Autor(a/s): José Geraldo de Sousa Júnior e Julia Caroline Taquary dos Reis, a estudante, monitora da disciplina Pesquisa Jurídica, que acaba de se bacharelar na UnB, tendo sido a oradora da turma.

Claro que não só por esse fundamento, mas Julia Taquary desempenhou com alto desempenho todos os fundamentos da boa formação que o Curso de Direito da UnB proporciona. Também tive ensejo para orientar o seu trabalho monográfico de conclusão de curso e documentar a excelência dessa formação (a propósito https://estadodedireito.com.br/a-seguridade-social-como-expressao-da-fraternidade-um-direito-construido-pela-luta-social/).

Júlia foi a primeira presidente da Hermenêutica, Sociedade de Debates da UnB. Assinalei isso na minha palestra, como também recuperei seus fundamentos de origem recuperando a origem histórico e o conceito que sustenta essa modalidade de desempenho, tal como o anotamos no memorial de candidatura ao Prêmio Esdras: “A Hermenêutica universaliza o conceito de Direito ao colocar em prática os valores que regem a sociedade. Trata-se de uma atividade que atingiu universitários de todo o Brasil e de Portugal que trabalha as habilidades e competências do estudante, principalmente de direito deslocando da formação por conteúdo para a formação por experiência. Tal experiência se dá nos moldes do debate universitário modelo british parliamentary aliado à pesquisa ativa de temas sociais e conta com avaliações constantes do desenvolvimento dos membros pautada em critérios internacionais de excelência de raciocínio realizadas por docentes e monitores experientes. Dessa forma estabelece a conexão entre saberes e conhecimento ao: lapidar a capacidade do estudante de raciocinar criticamente sobre um tema de grande impacto nas estruturas sociais e legais; treinar a oratória como habilidade de expressão de sua vontade e defesa de seu caso; e aumentar a escuta atenta à palavra do terceiro com resiliência e ética”.

Aplicando esses fundamentos ao projeto inscrito na UnB, do que se cuidou foi de ajustá-lo ao ethos constitutivo da própria ideia que sustentou a proposta de sua criação (Darcy Ribeiro, Universidade Para Quê?): “De um lado proporcionar ao estudante a reflexão teórica e epistemológica sobre os fundamentos da Direito e os torna juristas com uma formação para além do simulacro da sala de aula, atingindo o objetivo de Darcy Ribeiro de uma universidade popular cuja educação une ensino, pesquisa e extensão. De outro, insere os acadêmicos brasileiros no contexto mundial de debate universitário possibilitando a entrada do Brasil em campeonatos consolidados de debate os quais acarretam grande prestígios para as instituições de ensino”.

Assim que, no contexto está a disciplina de Pesquisa Jurídica da Faculdade de Direito da UnB a qual se se desenvolve com a união de princípios do Direito Achado na Rua, o que se buscou, nessa proposição, é balizar as condições de um debate, que referido ao Direito, não perdesse de vista que o Direito, só o é, se legítima organização social da liberdade, ou seja, a busca pela emancipação do homem por meio de um processo e modelo de liberdade conscientizada.

Nessa origem, pois, a Hermenêutica, está na proposta premiada, “surge compartilhando a meta da universidade e da disciplina de construir um sujeito de direito capaz de exercer sua liberdade individual enquanto caminha em conjunto com os demais em direção à emancipação humana com o poder do diálogo. Assim, a atividade não limita a participação de apenas estudantes de Direito da FD-UnB, sendo aberta para outros cursos, outras instituições e inclusive outros níveis de educação, podendo atingir as metas de universidade popular e liberdade conscientizada de forma mais eficiente e acolhedora semeando conhecimento jurídico-social para as mais variadas gamas de cidadãos. A Hermenêutica inova como atividade no ensino jurídico pois é um método no qual os próprios alunos se engajam para consolidá-lo, ou seja, não é necessário impor ou pressionar os membros, eles mesmos reconhecem a diferença que a atividade acarreta seu desenvolvimento pessoal e acadêmico. Observa-se que embora a atividade utilize o debate como meio para atingir seus objetivos e colhe os frutos de seus membros nesse âmbito competitivo, um ourives não se resume a seu martelo. A Hermenêutica trabalha o verdadeiro conceito de liberdade de expressão e sua joia jaz na formação de cidadãos capazes de compreender seus direitos e deveres que construirão um país cujo Direito seja liberdade”.

Minha leitura do projeto, no evento de apresentação, seguiu assim, tal como sugere a chamada do evento, questionar e enxergar além das certezas. Não é coincidência essa maneira de interpelar a autonomia crítica de um pensamento que interpela o real para além de suas aparências descritíveis. No meu curso de Pesquisa Jurídica, cujo pressuposto epistemológico é o desentranhar dos discursos teóricos e técnicos do jurídico o que se pré-conceito, pré-juízo, pré-compreensão, neles, consciente ou inconscientemente, está inserido, há a premissa da incerteza, em alcance metodológico (a dúvida cartesiana, a refutabilidade a Popper), necessária aos deslocamentos cognitivos. Daí a nossa atenção ao enunciado de Arthur Schopenhauer, segundo quem “Atarefa não é contemplar o que nunca foi contemplado, mas pensar como ainda não se pensou sobre o que todo mundo tem diante dos olhos”.

Na máxima do grande filósofo, que retirei de Roberto Lyra Filho (Pesquisa em QUE Direito?) e este, por sua vez, de Mdeleine Grawitz (Méthodes des Sciences Sociales, Paris, Dalloz, 1981, p. 347), o que está em causa é a importância da reflexão original e a capacidade de reinterpretar o mundo comum, em vez de buscar apenas o ineditismo superficial ou a mera novidade. A essência dessa citação é a valorização do pensamento crítico e da perspectiva única sobre a realidade, mesmo que os objetos de análise sejam familiares a todos.

Mas não só nas ciências sociais, mas também na mecânica quântica, se seguirmos o físico Werner Heisenberg (O Princípio da Incerteza de Heisenberg, formulado em 1927), que assinala o fim do determinismo clássico – na física newtoniana, acreditava-se que se conhecêssemos a posição e a velocidade de todas as partículas, poderíamos prever o futuro do universo. O princípio de incerteza mostra que isso é impossível, porque o comportamento das partículas é descrito por probabilidades, não por certezas absolutas.

Mas a referência a Schopenhauer, numa apresentação de um projeto de debates acadêmicos, é o de tentar extrair do performático metodológico da iniciativa, o sentido ético da prática de argumentação de universitários (mas de qualquer debate, em qualquer circunstância de argumentação. O que está em causa, a verdade ou a disposição de vencer um debate mesmo sem ter razão.

Aliás, essa a questão colocada por Arthur Schopenhauer, filósofo alemão do século XIX, escreveu um tratado breve e provocativo intitulado Eristische Dialektik, publicado postumamente, que ganhou notoriedade sob o título Como Vencer um Debate sem Ter Razão. O texto não é um manual de busca da verdade, mas uma descrição irônica e crítica das estratégias erísticas – isto é, voltadas não para a verdade, mas para a vitória no embate verbal.

Segundo ele, a maior parte das disputas intelectuais não é movida pelo amor à verdade, mas pela vaidade, pelo orgulho e pela ânsia de vencer. Assim, o interlocutor muitas vezes recorre a artifícios que distorcem os argumentos e desviam a atenção, o que leva à necessidade de identificar e compreender esses métodos, tanto para usá-los quanto para se defender deles.

O livro lista e explica 38 estratagemas ou figuras de retórica erística, que funcionam como “armas” do debate. Eles podem ser classificados em técnicas de ataque, de defesa e de manipulação do público.

Para a nova geração da Hermenêutica, lembrei que Schopenhauer não apresenta esses métodos como legítimos para alcançar a verdade, mas como ferramentas a serem conhecidas. Sua intenção filosófica é mostrar a diferença entre lógica (voltada para a coerência e a verdade) e dialética erística (voltada para vencer).

Considero que o seu texto (que conheci há muitos anos por uma querido amigo e filósofo do Direito e da Hermenêutica Jurídica, João Maurício Adeodato) é, no fundo, um exercício de ceticismo e ironia. Schopenhauer, a meu ver, denuncia a vaidade humana e a superficialidade das disputas intelectuais, mas também entrega, de forma sistemática, um repertório de técnicas que revelam o quanto os debates podem ser mais jogo de poder do que busca honesta da razão.

Acaba sendo, num tempo de aviltamento da argumentação, de recrudescência da mentira, na política e nas predições, do púlpito, da tribuna ou de sistemas editoriais, um alerta que, em muitos casos, o público de um debate não está em condições de julgar a verdade, mas sim a performance retórica. Assim, vencer pode significar apenas seduzir ou manipular os ouvintes.

(*) José Geraldo de Sousa Junior é professor titular na Faculdade de Direito e ex-reitor da Universidade de Brasília (UnB)

quarta-feira, 3 de setembro de 2025

 

8 de Janeiro. Golpe Derrotado Democracia Preservada

Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito

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Gisele Cittadino e Carol Proner (Organizadoras). 8 de Janeiro. Golpe Derrotado Democracia Preservada. Recife: Editora Publius/Instituto Joaquin Herrera Flores, 2025.

LANÇAMENTO GOLPE DERROTADO, DEMOCRACIA PRESERVADA. 8 DE JANEIRO. Carol Proner, uma das organizadoras da obra convida e explica o contexto dessa edição importantíssima – “Eis que, no fim de janeiro deste ano, recebo um zap da Gisele Cittadino. Meu celular tem um toque especial para quando a Gisele escreve, já que não posso perder os comandos. Ela disse: Carol, precisamos organizar um livro imediatamente, já que os golpistas serão julgados este ano! Ela tinha razão. Depois de meses de trabalho, o resultado está aí: 08 de janeiro. Golpe derrotado, democracia preservada! Muito obrigada à centena de autores que participaram, bem como às Centrais Sindicais, ao IJHF e à Editora Publius, do nosso querido Marcelo Labanca, em nome de quem saudamos o compromisso com a memória e a verdade. Vamos nos reunir em Brasília, no dia 09 de setembro, (restaurante Tia Zélia), para declarar nosso apoio à soberania política e judicial do Brasil diante das ameaças internas e internacionais”.

Entre tantos autores e autoras, que mantêm a vigília intelectual em defesa da democracia, também eu e minha esposa, Nair Heloisa Bicalho de Sousa, co-autora em inúmeras publicações com essa característica, ao receber o convite da querida Carol para integrar a obra, logo enviamos a nossa contribuição, com o título: “O Golpe de 1964 e a Tentativa de 2023: Memória, Verdade mas também Justiça. Razões Pedagógicas para o Nunca Mais”.

Com Nair dissemos eu e ela, em nosso texto de apresentação ao volume 7, da Série O Direito Achado na Rua (Série O Direito Achado na Rua: Introdução Crítica à Justiça de Transição na América Latina, https://cjt.ufmg.br/wp-content/uploads/2019/02/DE-SOUSA-JR-Jos%C3%A9-Geraldo.-DA-FONSECA-L%C3%ADvia-Gimenes-Dias.-DA-SILVA-FILHO-Jos%C3%A9-Carlos-Moreira.-PAIX%C3%83O-Cristiano.-RAMPIN-Talita-Tatiana-Dias.-S%C3%A9rie-O-Direito-Achado-na-Rua-vol.-7_compressed.pdf) , “em parte por se manterem deliberadamente ocultados e em parte por apresentarem objeção sonegadora de agentes ainda resistentes e insubordinados ao comando legal e das autoridades constituídas […] isso retrata, de certa maneira, uma tendência a deixar no esquecimento os fatos reveladores das práticas políticas do regime autoritário. Vê-se, assim, com Pollack (1989), que memória e esquecimento são eixos fundamentais da esfera do poder, disputando o modo como a memória coletiva constrói-se em cada sociedade”. Em outro texto (Direito à memória e à verdade, Observatório da Constituição e da Democracia. Brasília: Faculdade de Direito da UnB, n. 17, outubro e novembro de 2007), avançamos esse ponto para reafirmar que “esta memória coletiva está em processo de construção e necessita que as diferentes gerações tenham conhecimento da verdade. É tempo de reivindicar a verdade. É tempo de reivindicar a verdade e de resgatar a memória, como referências éticas para conter a mentira na política, pois, como lembra Hanna Arendt, ‘uma das lições que podem ser apreendidas das experiências totalitárias é a assustadora confiança de seus dirigentes no poder da mentira e na capacidade de reescreverem a história para a adaptar a uma linha política’”.

Agora, no livro organizado por Carol Proner e por Gisele Cittadino, o meu artigo com Nair, insiste em que uma das formas de inibir recrudescências autoritárias, de atentados à democracia e de afronta ao Estado de Direito é o antídoto da memória e da verdade, da responsabilização, da reparação e da justiça. Por isso, é inaceitável qualquer tipo de mediação gatopardista que aceite o expurgo da excrecência armada que se projetou para um novo golpe (8 de janeiro), que não começou em 2023 nem terminou ainda em 2025. O fato é que não recuperamos a nossa subjetividade política de autores de nossa própria história, sem que as lições da Justiça de Transição promovam o nosso aprendizado democrático.

Do que cuidamos, no nosso artigo, resumo aqui, foi sustentar que a Justiça de Transição se estrutura em quatro pilares fundamentais: o direito à memória e à verdade, a reparação às vítimas, a responsabilização penal dos perpetradores e a reforma das instituições democráticas e de segurança. Ela não se limita a promover reconciliação, mas exige enfrentar os crimes cometidos, revelar a verdade, conceder reparações simbólicas e materiais, reformar instituições e promover uma educação voltada para a cidadania, os direitos humanos e a não repetição de atentados contra a democracia. O contexto brasileiro, sobretudo após os eventos de 8 de janeiro de 2023, precisa ser analisado sob essa ótica, considerando que a Comissão e a Corte Interamericana de Direitos Humanos condenam as anistias amplas e incondicionais, pois elas consagram a impunidade e inviabilizam a investigação e punição de crimes contra a humanidade, que têm como vítima a própria humanidade e exigem garantias de não repetição.

Nesse sentido, o relatório da CIDH de 2021 advertiu sobre retrocessos no Brasil, como o enfraquecimento da participação democrática, e recomendou que se investigue, processe e sancione os responsáveis por graves violações, rejeitando figuras como a anistia, o indulto ou a prescrição. Isso reforça a necessidade de manter viva a memória. Milan Kundera (KUNDERA, Milan. O livro do riso e do esquecimento. São Paulo: Companhia das Letras / Companhia de bolso. 2010) já advertia que para liquidar um povo é preciso apagar sua memória, enquanto Michael Pollack (POLLACK, M. Memória, esquecimento e silêncio. Revista Estudos Históricos. Rio de Janeiro, vol. 2, ,n. 3,1989) mostrou que memória e esquecimento estão em disputa constante no exercício do poder. Democratizar a memória, portanto, é condição para que diferentes gerações tenham acesso à verdade e para que o passado ilumine as estratégias do presente. Hannah Arendt (ARENDT, Hanna. Crises da República. São Paulo: Perspectiva, 1973) ressaltava a importância de restaurar a verdade como fundamento da política, enquanto Walter Benjamin (BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito de história. Magia e técnica, arte e política. Ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1987) via a memória histórica como apropriação de reminiscências que surgem em momentos de perigo, permitindo ressignificar experiências do passado para orientar a ação no presente.

No Brasil, a ausência de responsabilização dos crimes de 1964 abriu caminho para repetições, como as ocorridas em 2023. A mentira política, como alertava Arendt, se apoia na manipulação da história e na confiança de líderes totalitários em reescrevê-la. Nesse ponto, Mauro Noleto, em Silêncio Perpétuo?,( NOLETO, Mauro. Silêncio perpétuo? Anistia e transição política no Brasil (República Velha e Era Vargas). Belo Horizonte: D’Plácido, 2024), desmonta a falácia de uma transição conciliatória que apaga antagonismos e naturaliza a violência estrutural, defendendo a superação do “silêncio perpétuo” e da anistia distorcida. Sua análise exige ousadia crítica e hermenêutica para restituir a credibilidade da política, vinculando passado e presente. José Carlos Moreira da Silva Filho (In: SOUSA JR. et al. (Orgs). Direito Achado na Rua vol. 7. Introdução Crítica à Justiça de Transição na América Latina. Brasília / DF. UnB 2015) acrescenta que a anistia brasileira é ambígua: foi bandeira democrática contra a ditadura, mas também instrumento de limitações. A Constituição de 1988 a ressignificou em termos de reparação e repúdio aos atos de exceção, possibilitando a criação da Comissão de Anistia. Contudo, sua atuação oscilou conforme governos, chegando a ser capturada entre 2019 e 2022 por uma “anti-Comissão” de extrema direita, que negou a ditadura e revitimizou perseguidos.

José Carlos, um acadêmico reconhecido por sua atuação construtiva, no plano político e também no teórico, participa da obra, com o artigo “Sem Anistia para golpistas e torturadores de ontem e de hoje – os crimes contra o estado democrático de direito e a prestação de contas pelos crimes da ditadura”. José Carlos, não é o único companheiro e co-contrutor de uma aliança de protagonismo atento e ativo para agir em defesa da democracia e dos direitos humanos. Entre a centena de autores e autoras que formam a obra, além das organizadoras, com José Carlos e Nair, festejo a aliança que entretemos, Cezar Britto, Diego Vedovatto, Euzamara de Carvalho, GladstoneLeonel Silva Junior, José Eymard Loguércio, Eduardo Lemos que mais intensamente atuamos no contexto do Grupo de Pesquisa O Direito Achado na Rua.

Nesse coletivo temos sustentado que a Justiça Transicional, não admite autoanistias, pois crimes como a tortura são imprescritíveis e inanistiáveis. O direito internacional já consolidou, pelo jus cogens, a jurisdição universal para responsabilizar crimes contra a humanidade, como demonstrou o caso Pinochet. No Brasil, é preciso combater medidas de impunidade e, ao mesmo tempo, fortalecer uma pedagogia de direitos humanos, inspirada em Paulo Freire, que dê voz aos sujeitos e promova práticas participativas. A educação em direitos humanos deve se tornar eixo para a formação crítica, como caminho para a construção de uma sociedade democrática, entendida, como afirma Marilena Chauí (CHAUÍ, Marilena. Direitos humanos e educação. Revista do Observatório de Educação em Direitos Humanos, vol. 12, n. 1, 2022), como forma sociopolítica que reconhece a isonomia, o conflito legítimo e a soberania popular.

No entanto, a democracia no Brasil ainda é horizonte a ser alcançado, em meio a uma sociedade autoritária, hierárquica e desigual. Por isso, a educação para os direitos humanos deve ser cultivada como aprendizado coletivo para o “nunca mais”, preservando a memória da ditadura de 1964 a 1985, marcada por torturas, desaparecimentos e assassinatos. Esse processo pedagógico ajuda a enfrentar a cultura do silêncio, a invisibilidade e a impunidade dos responsáveis, ao mesmo tempo em que combate discriminações de gênero, raça, sexualidade, deficiência e outras formas de opressão. A formação permanente em direitos humanos, em espaços formais e informais, é um imperativo para garantir igualdade, equidade e respeito às diferenças.

Educar para a memória, a verdade e a justiça é, portanto, um compromisso pedagógico e ético. Trata-se de construir uma aprendizagem emancipatória que habilite sujeitos para ações concretas em sua realidade local, mas que também se projetem para uma compreensão crítica das contradições nacionais e globais. Dessa forma, a Justiça Transicional não se reduz a punição, mas se afirma como projeto de reconstrução democrática, exigindo memória viva, verdade pública, reparação integral e educação política voltada para uma democracia substantiva e duradoura.

O livro surge como projeto, dessa exigência de compromisso que nos mobiliza. Desde a conspiração armada na etapa de afastamento da presidência legítima, primeira etapa de um golpe ainda não totalmente debelado, estamos organizando a expressão crítica desse compromisso. Não vou aqui arrolar os eventos dessa atuação, apenas alguns dos quais fiz registro: https://estadodedireito.com.br/a-politica-do-esquecimento-os-limites-do-toleravel-e-a-resposta-aos-ataques-do-8-de-janeiro/https://estadodedireito.com.br/anistia-a-atos-antidemocraticos-no-brasil-limites-juridicos-e-protecao-do-estado-de-direito/, este com a participação de outro autor da obra – Marcelo Labanca Cortes de Araújo – também seu editor, juntamente com João Paulo Allain Teixeira em Anistia a Atos Antidemocráticos no Brasil: limites jurídicos e proteção do Estado de Direito / organizada por Marcelo Labanca Corrêa de Araújo, Gustavo Ferreira Santos, João Paulo Allain Teixeira e Glauco Salomão Leite. – 1. ed. – Recife: Editora Publius, 2025. 346  p. ; PDF – https://drive.google.com/file/d/1KfdRODxpn3Kej6tfpW6KWWrkF9jNb3jj/viewhttps://estadodedireito.com.br/novo-velho-inimigo-o-antiterrorismo-no-brasil-e-o-retorno-do-discurso-da-doutrina-de-seguranca-nacional/; muito especialmente, com a cuidadosa edição de Larissa Ramina, https://estadodedireito.com.br/lawfare-guerra-juridica-e-retrocesso-democratico/. E com mais intensidade em https://estadodedireito.com.br/lawfare-e-america-latina-a-guerra-juridica-no-contexto-da-guerra-hibrida/, aqui me referindo a Lawfare e América Latina: a guerra jurídica no contexto da guerra híbrida. Homenagem a Carol Proner. Larissa Ramina (org).  – VOLUMES I, II e III. Coleção Mulheres no Direito Internacional. Curitiba: Editora Íthala, 2022.  Vol. I 284 p; Vol. II 388 p; Vol. III 346 p.

Já então pude lançar meu depoimento sobre a trajetória, acadêmica e profissional, de Carol Proner que Gisele nos coordena nesta obra, sobretudo depois de 2016, quando no Brasil, derrapamos numa voragem destituinte de direitos, Carol tem sido presença político-jurídica nos espaços nos quais se abriu convocação mobilizadora para resistir ao impulso parlamentar-judicial-midiático para interromper o projeto democrático-popular e liberar dos subterrâneos da política as forças conservadoras e oligárquicas hibernantes, abraçadas a Maritornes sonhando com Dulcinéia.

Em debates, em fóruns institucionais, numa ação editorial pulsante, ela interpela, discerne, formula, propõe direções, fora daquela tensão antiga entre o que se chamou num tempo de intelectual livre em contraposição a intelectual orgânico, mas àquela disposição que mais caracteriza um intelectual de retaguarda: “a teoria é sempre uma condensação da própria prática e não pode ser outra coisa. É a prática a refletir sobre si própria, a teoria não pode ser outra coisa. Por isso, não há lugar a teorias de vanguarda porque ninguém vai na frente e ninguém vai atrás, vamos todos juntos. E como é que vamos juntos? Vamos juntos em diferentes posições, obviamente, mas partilhando um destino. Não podemos aceitar que a hora da verdade se mantenha com a teoria e a hora da mentira com a prática, não nos podemos separar dessa forma, eu penso que é muito desonesto” (Boaventura de Sousa Santos: https://journals.openedition.org/rccs/7647).

Aplicada à questão do sistema de justiça, um dos vetores que acossa o trânsito dramático desconstituinte, a mobilização intelectual de Carol Proner, tem contribuído e muito, para a melhor compreensão das tensões em curso, e seus impactos no programa democrático.

Elaborado para acumular fundamentos para a defesa dos valores democráticos que repudiam atentados ao estado de direito e à Constituição, fortalecendo um acervo já bem adensado, a obra sai exatamente entre o 2 de setembro quando está prevista a abertura do julgamento com a primeira audiência e o 12 de setembro quando se estima se consume o julgamento dos réus na ação no Supremo tribunal Federal que julga seus atos antidemocráticos denunciados pelo Ministério Público Federal. Tal como sintetizei em artigo de minha coluna de opinião O Direito Achado na Rua (https://brasilpopular.com/julgar-crimes-contra-o-estado-de-direito-credencia-o-stf-como-garante-da-democracia/): “Julgar Crimes contra o Estado de Direito credencia o STF como garante da Democracia, mas é também uma oportunidade incontornável para aferir a nossa capacidade pedagógica de exercitar uma experiência exemplar de educação para a Democracia e para a Cidadania”. É sobre essa capacidade e com essa esperança que a obra foi elaborada e é publicada. Mas com a espera ativa de que fala Cassiano Ricardo, em seu poema Rua:

A Rua

Bem sei que, muitas vezes,

o único remédio

é adiar tudo. É adiar a sede, a fome, a viagem,

a dívida, o divertimento,

o pedido de emprego, ou a própria alegria.

A esperança é também uma forma

de contínuo adiamento.

Sei que é preciso prestigiar a esperança,

numa sala de espera.

Mas sei também que espera significa luta e não,

[apenas,

esperança sentada.

Não abdicação diante da vida.

A esperança

nunca é a forma burguesa, sentada e tranquila da

[espera.

Nunca é a figura de mulher

do quadro antigo.

Sentada, dando milho aos pombos.

 

Publicado no livro Um dia depois do outro, 1944/1946 (1947). In: RICARDO, Cassiano. Poesias completas. Pref. Tristão de Athayde. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1957. p.26