terça-feira, 2 de dezembro de 2025

 

Desafios e Perspectivas das Comissões legislativas de Direitos Humanos no Brasil

Por: José Geraldo de Sousa Junior (*) – Jornal Brasil Popular/DF

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Recebi convite do Deputado Reimont (PT-RJ), Presidente da Comissão de Direitos Humanos, Minorias e Igualdade Racial da Câmara Federal para participar de Seminário da Comissão de Direitos Humanos, Minorias e Igualdade Racial para debater “os desafios e as perspectivas das comissões legislativas de Direitos Humanos no Brasil, com a participação dos(as) presidentes das Comissões de Direitos Humanos das Assembleias Legislativas Estaduais e das Câmaras Municipais das capitais brasileiras”.

O evento, instalado hoje, 1º de dezembro, decorreu da aprovação do Requerimento de nº 64/2025 no âmbito dessa Comissão, de autoria do próprio Deputado Reimont

O evento teve como objetivo promover o diálogo interfederativo entre os(as) presidentes das Comissões de Direitos Humanos das Assembleias Legislativas Estaduais e das Câmaras Municipais das capitais brasileiras, a fim de compartilhar experiências, identificar desafios comuns e articular estratégias conjuntas para o fortalecimento da pauta de direitos humanos e igualdade racial nos parlamentos do país.

Na Justificação o Deputado pôs em relevo a consideração de que as “comissões legislativas de direitos humanos são espaços estratégicos para o fortalecimento da democracia, da cidadania e da justiça social; sua atuação nos níveis federal, estadual e municipal é essencial para o monitoramento de violações, o estímulo a políticas públicas e o diálogo com a sociedade civil; no entanto, a atuação dessas comissões enfrenta desafios que vão desde a limitação de recursos até a baixa articulação entre os entes federativos”.

Assim que, nos termos do requerimento, a “realização deste seminário permitirá reunir representantes dessas comissões de todas as regiões do país, especialmente das câmaras municipais das capitais, para discutir práticas, construir redes de cooperação e fortalecer institucionalmente o papel dos legislativos na defesa dos direitos humanos”

Para completa apreensão do que foi debatido, particularmente na segunda parte da reunião, remeto ao registro de mídia (TV Câmara) – até porque posso recuperar meu próprio depoimento e participação no debate: https://www.camara.leg.br/evento-legislativo/80556.

Esse depoimento, logo se verá, diferentemente de outras incidências, algumas bastante tensas, lembrando aqui, na mesma Câmara, dessa feita em reunião de Comissão Parlamentar de Inquérito, quando o foco foi o esforço afinal contido, encerrada sem que se alcançasse o intento antidemocrático, de criminalizar a ação do MST – Movimento dos Trabalhadores Sem Terra teve, nesse ambiente mais amigável e sensível à politização realizadora da cidadania, dos direitos e especialmente dos direitos humanos, a possibilidade de percorrer o dramático processo de democratização e de humanização que configura o percurso civilizatório da emancipação, entre os marcos da primeira constituição (1824), censitária e neocolonizadora (denominada por historiadores de “constituição da mandioca”) e a constituição atual (1988), denominada de “cidadã”, por ser o espaço relacional de reconhecimento de direitos, no enlace entre o instituinte, promovido pelos movimentos sociais emancipatórios e pelos sujeitos coletivos que nele se instalam, num arranjo constituinte, configurado por processos alargados para o diálogo entre o social organizado que reivindica e o institucional que se democratiza, horizontando-se por impulso do reconhecimento contínuo de novos direitos e novas formas de sociabilidade.

Remeto ao texto final proclamado pelo Presidente Reimont, no encerramento da audiência pública, externando “o sentimento de que aqui se cumpriu um dos papéis mais nobres do Estado democrático de direito: ouvir para construir. Cada intervenção feita nesta manhã reforça a centralidade dos Direitos Humanos e das políticas públicas como instrumentos indispensáveis à dignidade. Foram palavras que não apenas denunciaram ausências, mas também apontaram caminhos, projetos, ações e esperanças”.

Numa boa síntese preparada pela assessoria da Comissão, importante para os anais, recupero o eixo enunciativo das intervenções:

A Sra. Sandra Martins nos alertou para a urgência de repensar os CAPS, que adoecem a todos ao redor quando falham. Trouxe à luz o recorte racial que permanece invisibilizado nas estruturas de atendimento e reintegração.

O Vereador Guguinha Moov, Presidente da CDH de João Pessoa, trouxe ao debate a grave omissão do poder público no caso do cidadão conhecido como Vaqueirinho, vítima da falta de assistência em saúde mental. Ressaltou a necessidade urgente de atuação das Comissões de Direitos Humanos na garantia e fiscalização das políticas públicas, especialmente na área de saúde mental; que a CDH de João Pessoa tem como missão atender a população mais vulnerável, assegurando uma saúde pública humanizada, com o objetivo de enfrentar a superlotação nos hospitais. Ao final, registrou que levará consigo a experiência e a relevância deste encontro nacional, como inspiração para fortalecer a atuação local.

A Deputada Aldilene Souza celebrou conquistas legislativas — como o Decreto nº 11.430/2023 e a Lei estadual nº 2.981/2023 —, mostrando que é possível transformar dor em política pública e legislação em dignidade.

A vereadora Daniela Gilka lembrou que as Comissões de Direitos Humanos merecem visibilidade, estrutura e apoio, defendendo a transversalidade e o cofinanciamento de políticas para os mais vulneráveis.

O Sr. Ernesto Braga reforçou a importância de espaços como o Centro Marielle Franco e o Centro Rio-África, que traduzem o compromisso concreto com a população negra.

O professor José Geraldo resgatou o elo vital entre mobilização social e construção institucional de direitos, reafirmando que os frutos da luta aparecem, mesmo com o tempo, quando o diálogo é verdadeiro.

A Deputada Bela Gonçalves foi contundente ao mostrar que os DH são o alicerce da justiça social, e que o abandono das políticas públicas para a população de rua e os impactos da mineração precisam estar no centro do debate.

Por fim, o Deputado Renato Roseno apontou para o crescimento de violações como a homofobia e o racismo, chamando à responsabilidade o monitoramento das sentenças internacionais e o compromisso com a vida de pessoas com HIV/AIDS”.

Como finalizou o deputado Reimont, tanto as falas (os depoimentos) quanto a escuta, são uma expressão do reconhecimento que configura a audiência, na institucionalidade da Comissão, como um espaço e um “espelho onde se refletiram coragens, denúncias, lutas e esperanças”.

(*) José Geraldo de Sousa Junior é professor titular na Faculdade de Direito e ex-reitor da Universidade de Brasília (UnB)

segunda-feira, 24 de novembro de 2025

 

O perdão enquanto categoria da Justiça de Transição

Por: José Geraldo de Sousa Junior (*) – Jornal Brasil Popular/DF

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O Superior Tribunal Militar realizou nesta segunda-feira (24), evento de lançamento do Programa Diálogos Globais, iniciativa do Comitê de Governança e Relações Internacionais do STM, coordenado por Bárbara Livio, Juíza Auxiliar da Presidência do STM.

O programa, que se estrutura em diferentes eixos voltados ao fortalecimento da governança, ao diálogo internacional e à reflexão estratégica, nasce com o propósito de aproximar Justiça, Defesa e Direitos Humanos em perspectiva global.

O lançamento foi marcado por um seminário especial sobre formas inovadoras de combate à violência e a importância da defesa na proteção dos direitos humanos, com três convidados, eu entre eles e ainda o Coronel, Dra Selma Lúcia de Moura Gonzales, da Escola Superior de Defesa e do Dr. José Filho, Juiz Auxiliar do Conselho Nacional de Justiça

O debate acabou se constituindo uma oportunidade única de diálogo qualificado, reflexão estratégica e abertura de um novo ciclo institucional no STM. De minha parte procurei balizar minha manifestação em dois pontos principais.

O primeiro ponto, retomando um tema que já foi tratado por mim, aqui no Jornal Brasil Popular, em minha coluna O Direito Achado na Rua – https://brasilpopular.com/a-defesa-da-soberania-e-as-emergencias-do-nosso-tempo/. Focalizar, aludindo ao tema do evento, a clivagem contemporânea do direito internacional dos direitos humanos, ao acicate dos desafios de contextualização do tema da soberania. Ainda que Soberania, no Direito Internacional clássico, continue a se conceituar como o poder jurídico supremo do Estado de autodeterminar-se e governar-se livremente, no interior e no exterior, em igualdade com os demais Estados, sem submissão a qualquer autoridade superior, no Direito Internacional contemporâneo o conceito clássico foi relativizado. Com efeito, a noção de soberania, originalmente pensada no Direito Internacional como independência dos Estados, ganhou novos usos substantivos no plano interno dos países, especialmente a partir da segunda metade do século XX, quando começou a se associar à autodeterminação dos povos, à cidadania ativa e à efetividade dos direitos fundamentais e dos direitos humanos.

Adianto que muito me instigou tratar dessa questão no debate, recuperando, por sua alta importância não só conjuntural mas paradigmática, os principais elementos relacionados à soberania, no discurso do Presidente Lula na abertura da 80ª Assembleia da ONU.

Sob o enfoque da Soberania como questão inegociável – “nossa democracia e nossa soberania são inegociáveis”, a afirmação do Presidente está ligada à ideia de que o país será “nação independente” e “povo livre de qualquer tipo de tutela”, principalmente quando se armam para afrontá-lo sanções unilaterais e intervenções externas: “sanções arbitrárias e unilaterais”, que se tornam assim instrumentos que ferem a soberania dos Estados.

Assim que, no plano externo e no plano interno, a chave de compreensão da Soberania, deve ser a do “Multilateralismo vs. desordem internacional”, condição para que a Soberania possa ser plenamente defendida num mundo plural em que as regras internacionais e o direito sejam respeitados. Para o Presidente Lula há “desordem internacional, quando marcada por concessões à política do poder, atentados à soberania, sanções arbitrárias e intervenções unilaterais”.

Na minha análise do pronunciamento do Presidente Lula, deduz-se uma necessária ligação entre soberania, democracia e justiça social, de modo que a soberania não seja apenas autonomia política do Estado, mas a capacidade de garantir direitos básicos (saúde, educação, moradia etc.), reduzir desigualdades, proteger democracia, gênero, infância, migrantes — tudo isso como parte integrante de uma soberania digna. A fome, a desigualdade social e a pobreza são ameaças concretas à democracia e, portanto, à plenitude da soberania nacional.

No caso do Brasil, essa ampliação é particularmente expressiva porque o país articula o conceito clássico de soberania (autonomia nacional) com políticas públicas que buscam garantir a soberania popular e material, isto é, a capacidade concreta de o povo decidir seu destino.

Basta ver os principais usos e políticas associadas à soberania no plano interno brasileiro, anotando-se a forma de soberania popular constitucional e política (art. 1º, parágrafo único, da CF/88). Ela se expressa quando se criam e se fortalecem conselhos e conferências nacionais (como os de saúde, educação, direitos humanos, meio ambiente, cidades, povos indígenas etc), expressão da soberania participativa, uma marca das gestões democráticas pós-1988.

Tal como afirmei no artigo mencionado, a síntese interpretativa do discurso do presidente Lula, que procurei por em relevo, é que ele desloca a soberania da sua dimensão clássica (territorial e estatal) para uma dimensão social e popular. Soberania como poder de um povo decidir sobre seu destino com liberdade, justiça e dignidade, dentro e fora de seu território. O resultado é uma “soberania democrática”, que rejeita tutelas externas; protege direitos internos; busca parcerias internacionais baseadas na igualdade e não na subordinação. Minha homenagem ao querido embaixador Alessandro Candeas que organizou na Cisjordânia, a repatriação dos brasileiros confinados em Gaza no início dos bombardeios (https://www.publico.pt/2025/08/30/publico-brasil/entrevista/embaixador-conta-livro-experiencia-resgatar-brasileiros-faixa-gaza-2145501).

Uma Soberania que não seja sufocada com a paz dos cemitérios” (Conforme o Dom Carlos, Infante de Espanha de Friedrich Schiller escrito em 1787, dramatizando o conflito entre Dom Carlos, filho do rei Filipe II da Espanha, e o Marquês de Posa, em torno da liberdade, da tirania e da paz imposta pelo poder real: “Sire, esta é a paz dos cemitérios.”). Por isso a firme reprimenda do Presidente Lula: “Ali (em Gaza) também estão sepultados o Direito Internacional Humanitário e o mito da superioridade ética do Ocidente”.

Uma Soberania, em suma, que nos mova na consciência filosófica, sociológica, política, teológica, jurídica, mas radicalmente ética de que – disse o Presidente Lula, “A única guerra de que todos podem sair vencedores é a que travamos contra a fome e a pobreza.”

O segundo ponto, a partir de uma perspectiva interpelante para um ato (gesto) político que salta do âmbito ético para o pedagógico institucional. Refiro-me à manifestação da ministra Elizabeth, presidente do STM, durante o ato ecumênico, de caráter pastoral-teológico durante homenagens a Vladimir Herzorg, ao ensejo de 50 anos de seu assassinato político.

A manifestação da ministra que provocou liberar uma meditação radical e densa sobre uma questão central no que se chama Justiça de Transição, mas que provoca interlocução filosófica, política, jurídica e inclusive teológica.

Considero muito pertinentes essas aproximações para o debate sobre um tema antigo, já que o perdão é uma mediação civilizatória para arrematar o civilizacional, não só como contrição mas como dimensão comunitária do fraterno. Assim ele aparece no pastoral, o pai nosso, dos cristãos, seja na sua origem fundante do comunitário, relativamente ao perdão das dívidas (princípio do jubileu) ou o atual perdoai as nossas ofensas (já com o teológico capturado pelo mercado, como mostram Franz Hinkelammert e Hugo Assmann (A Idolatria do Mercado). Mas também em Freud (Totem e Tabu e o Mal Estar da Civilização).

Claro que não quero aqui aludir em sentido jurídico estrito. No âmbito penal, ao perdão, a anistia, a graça e o indulto, cujo efeito é remissivo. Mas ao modo como na chamada Justiça de Transição, o perdão entrou na categoria, um pouco talvez como está em Hannah Arendt, referido ao gesto secularizado, erigido a ser um ato político laico que possibilita o recomeço histórico. A Arendt de (A Condição Humana, 1958), onde introduz o perdão como categoria da ação política, o único modo de romper a irreversibilidade das ações humanas, pois o agir, uma vez feito, não pode ser desfeito e assim, podendo devolver ao espaço público a possibilidade de recomeço, condição essencial da política. Assim é que ela cita o Evangelho (“perdoai setenta vezes sete”) não como ato religioso, mas como a descoberta de uma nova política da liberdade.

Penso que a ministra se inspirou na disposição que, a partir da Justiça de Transição, passou-se a atribuir ao perdão, enquanto categoria da própria Justiça de Transição, a representação de um processo (definição da ONU) que combina verdade (reconhecimento das violações), justiça (responsabilização), reparação (material e simbólica), reformas institucionais (reconstrução democrática) e garantia de não repetição (educar para o nunca mais).

O perdão entra nesse quadro como um elemento simbólico de reparação moral e reconciliação democrática. Não é substituto da justiça — é seu complemento ético. Como afirmou Paulo Abrão, o presidente da Comissão de Anistia, ex-Secretário Executivo da CIDH ao justificar o pedido de perdão nos atos públicos de anistia: “Não pedimos perdão para esquecer, mas para lembrar. O perdão é o reconhecimento de que o Estado falhou, e de que só reconhecendo sua falha poderá ser democrático.”.

Sob a presidência de Paulo Abrão, quando a Comissão adotou uma visão humanista, restaurativa e dialógica da anistia, em contraste com a concepção meramente administrativa ou indenizatória que prevalecia antes (foi nesse contexto que em parceria com a Comissão que editamos o volume 7, da Série O Direito Achado na Rua: Introdução Crítica à Justiça de Transição na América Latina (https://www.gov.br/mj/pt-br/central-de-conteudo_legado1/anistia/anexos/direito-achado-na-rua-vol-7_pdf.pdf). Veja também o documentário https://www.youtube.com/watch?v=GB75KS9I8pA&list=PL4ggm_qRYF0NFdhiV2mCk0DCLJwHxWajt, que abre com o pedido de perdão aos familiares de Glauber Rocha, anistiado político.

Com inspiração nas experiências da África do Sul, Chile e Argentina, a Comissão passou a tratar os atos de anistia como ritos públicos de reconhecimento e reparação moral, em que o Estado reconhecia a responsabilidade histórica pelas violações cometidas durante a ditadura (1964–1985).

Paulo Abrão e sua equipe introduziram, nos atos públicos de concessão de anistia, um momento simbólico em que, ao proferir a decisão, o representante da Comissão declarava: “O Estado brasileiro pede perdão a [nome do anistiado ou de sua família] pelos atos de exceção e perseguição de que foi vítima.” Essa fórmula não constava da lei. Foi uma construção ética e política, com base no princípio da responsabilidade do Estado e na dimensão moral da reparação, que buscava ir além da indenização financeira.

Todavia, podemos encontrar na base da adoção desse rito, a sua fundamentação teórica e jurídica para efeito de legitimidade institucional. Que compreende, a Justiça de Transição (ONU, 2004), prevendo que a reparação deve incluir medidas simbólicas e reconhecimento público da responsabilidade estatal. A Declaração das Nações Unidas sobre o Direito à Verdade (2010), ao afirmar que o reconhecimento e o pedido de perdão são parte essencial da restauração da dignidade das vítimas. O Art. 5º, inciso XXXV, CF/88 estabelecendo direito à tutela jurídica efetiva inclui a reparação moral e o Art. 8º do ADCT (CF 88), que estabelece o dever estatal de reconhecer e reparar os atingidos por atos de exceção.

Portanto, o “perdão” no rito da anistia não é perdão das vítimas para os perpetradores, mas sim o pedido de perdão do Estado às vítimas — uma inversão simbólica do poder, em que o Estado reconhece sua culpa histórica.

Qual o significado político e pedagógico desse gesto? Primeiro, cumprir uma função restaurativa, vale dizer, reintegrar simbolicamente a vítima à comunidade política; e logo, reconhecer sua luta como legítima e contribuir para reconstruir sua dignidade e memória.

Segundo, uma função pedagógica, poder construir uma memória pública de responsabilidade, o que implica ensinar o Estado e a sociedade a não repetir as práticas autoritárias; e logo reinscreve a anistia dentro de um projeto de cidadania democrática e não de esquecimento. A introdução do perdão, portanto, foi uma forma de subjetivar o Estado, transformando-o de agente violador em agente de reconhecimento.

Era um ato político de reconciliação sem impunidade, uma forma de “verdade em ato”, como expressou o próprio Paulo Abrão em diversos pronunciamentos e textos acadêmicos sobre a experiência brasileira de justiça de transição: articular esse fundamento teórico diretamente com o ato público da Comissão de Anistia, indicando como o texto do pedido de perdão foi construído a partir dessa filosofia do reconhecimento e do recomeço (há registros documentais e discursos em que isso é explicitado).

Registro, a propósito, que no âmbito do PPGDH – Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos e Cidadania (CEAM/UnB), a dissertação de mestrado de Sueli Aparecida Bellato, Justiça de transição: perdão ou desculpa em nome do estado brasileiro? 2014. 155 f., il. Dissertação (Mestrado em Direitos Humanos e Cidadania)—Universidade de Brasília, Brasília, 2014.

O que a Dissertação de Sueli, que tive ensejo de orientar, quer demonstrar é que “o Perdão é a ponte do início de uma travessia e não é um ponto final. O Brasil realiza a reparação moral com o pedido de desculpas e uma das maiores políticas de reparação econômica. A prática da auto anistia, a falta de responsabilização e a negação de toda verdade devem ser superadas com vista a reconciliação e a paz duradoura. Afirmar a necessidade de responsabilização não é querer vingar-se, não é revanche, é Justiça. É simplesmente ler a página antes de virá-la. Isoladamente nenhum instrumento da Justiça de Transição garante a Reconciliação e a Não Repetição. Desculpas não é Perdão!”.

(*) José Geraldo de Sousa Junior é professor titular na Faculdade de Direito e ex-reitor da Universidade de Brasília (UnB)

 

O perdão enquanto categoria da Justiça de Transição

Por: José Geraldo de Sousa Junior (*) – Jornal Brasil Popular/DF

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O Superior Tribunal Militar realizou nesta segunda-feira (24), evento de lançamento do Programa Diálogos Globais, iniciativa do Comitê de Governança e Relações Internacionais do STM, coordenado por Bárbara Livio, Juíza Auxiliar da Presidência do STM.

O programa, que se estrutura em diferentes eixos voltados ao fortalecimento da governança, ao diálogo internacional e à reflexão estratégica, nasce com o propósito de aproximar Justiça, Defesa e Direitos Humanos em perspectiva global.

O lançamento foi marcado por um seminário especial sobre formas inovadoras de combate à violência e a importância da defesa na proteção dos direitos humanos, com três convidados, eu entre eles e ainda o Coronel, Dra Selma Lúcia de Moura Gonzales, da Escola Superior de Defesa e do Dr. José Filho, Juiz Auxiliar do Conselho Nacional de Justiça

O debate acabou se constituindo uma oportunidade única de diálogo qualificado, reflexão estratégica e abertura de um novo ciclo institucional no STM. De minha parte procurei balizar minha manifestação em dois pontos principais.

O primeiro ponto, retomando um tema que já foi tratado por mim, aqui no Jornal Brasil Popular, em minha coluna O Direito Achado na Rua – https://brasilpopular.com/a-defesa-da-soberania-e-as-emergencias-do-nosso-tempo/. Focalizar, aludindo ao tema do evento, a clivagem contemporânea do direito internacional dos direitos humanos, ao acicate dos desafios de contextualização do tema da soberania. Ainda que Soberania, no Direito Internacional clássico, continue a se conceituar como o poder jurídico supremo do Estado de autodeterminar-se e governar-se livremente, no interior e no exterior, em igualdade com os demais Estados, sem submissão a qualquer autoridade superior, no Direito Internacional contemporâneo o conceito clássico foi relativizado. Com efeito, a noção de soberania, originalmente pensada no Direito Internacional como independência dos Estados, ganhou novos usos substantivos no plano interno dos países, especialmente a partir da segunda metade do século XX, quando começou a se associar à autodeterminação dos povos, à cidadania ativa e à efetividade dos direitos fundamentais e dos direitos humanos.

Adianto que muito me instigou tratar dessa questão no debate, recuperando, por sua alta importância não só conjuntural mas paradigmática, os principais elementos relacionados à soberania, no discurso do Presidente Lula na abertura da 80ª Assembleia da ONU.

Sob o enfoque da Soberania como questão inegociável – “nossa democracia e nossa soberania são inegociáveis”, a afirmação do Presidente está ligada à ideia de que o país será “nação independente” e “povo livre de qualquer tipo de tutela”, principalmente quando se armam para afrontá-lo sanções unilaterais e intervenções externas: “sanções arbitrárias e unilaterais”, que se tornam assim instrumentos que ferem a soberania dos Estados.

Assim que, no plano externo e no plano interno, a chave de compreensão da Soberania, deve ser a do “Multilateralismo vs. desordem internacional”, condição para que a Soberania possa ser plenamente defendida num mundo plural em que as regras internacionais e o direito sejam respeitados. Para o Presidente Lula há “desordem internacional, quando marcada por concessões à política do poder, atentados à soberania, sanções arbitrárias e intervenções unilaterais”.

Na minha análise do pronunciamento do Presidente Lula, deduz-se uma necessária ligação entre soberania, democracia e justiça social, de modo que a soberania não seja apenas autonomia política do Estado, mas a capacidade de garantir direitos básicos (saúde, educação, moradia etc.), reduzir desigualdades, proteger democracia, gênero, infância, migrantes — tudo isso como parte integrante de uma soberania digna. A fome, a desigualdade social e a pobreza são ameaças concretas à democracia e, portanto, à plenitude da soberania nacional.

No caso do Brasil, essa ampliação é particularmente expressiva porque o país articula o conceito clássico de soberania (autonomia nacional) com políticas públicas que buscam garantir a soberania popular e material, isto é, a capacidade concreta de o povo decidir seu destino.

Basta ver os principais usos e políticas associadas à soberania no plano interno brasileiro, anotando-se a forma de soberania popular constitucional e política (art. 1º, parágrafo único, da CF/88). Ela se expressa quando se criam e se fortalecem conselhos e conferências nacionais (como os de saúde, educação, direitos humanos, meio ambiente, cidades, povos indígenas etc), expressão da soberania participativa, uma marca das gestões democráticas pós-1988.

Tal como afirmei no artigo mencionado, a síntese interpretativa do discurso do presidente Lula, que procurei por em relevo, é que ele desloca a soberania da sua dimensão clássica (territorial e estatal) para uma dimensão social e popular. Soberania como poder de um povo decidir sobre seu destino com liberdade, justiça e dignidade, dentro e fora de seu território. O resultado é uma “soberania democrática”, que rejeita tutelas externas; protege direitos internos; busca parcerias internacionais baseadas na igualdade e não na subordinação. Minha homenagem ao querido embaixador Alessandro Candeas que organizou na Cisjordânia, a repatriação dos brasileiros confinados em Gaza no início dos bombardeios (https://www.publico.pt/2025/08/30/publico-brasil/entrevista/embaixador-conta-livro-experiencia-resgatar-brasileiros-faixa-gaza-2145501).

Uma Soberania que não seja sufocada com a paz dos cemitérios” (Conforme o Dom Carlos, Infante de Espanha de Friedrich Schiller escrito em 1787, dramatizando o conflito entre Dom Carlos, filho do rei Filipe II da Espanha, e o Marquês de Posa, em torno da liberdade, da tirania e da paz imposta pelo poder real: “Sire, esta é a paz dos cemitérios.”). Por isso a firme reprimenda do Presidente Lula: “Ali (em Gaza) também estão sepultados o Direito Internacional Humanitário e o mito da superioridade ética do Ocidente”.

Uma Soberania, em suma, que nos mova na consciência filosófica, sociológica, política, teológica, jurídica, mas radicalmente ética de que – disse o Presidente Lula, “A única guerra de que todos podem sair vencedores é a que travamos contra a fome e a pobreza.”

O segundo ponto, a partir de uma perspectiva interpelante para um ato (gesto) político que salta do âmbito ético para o pedagógico institucional. Refiro-me à manifestação da ministra Elizabeth, presidente do STM, durante o ato ecumênico, de caráter pastoral-teológico durante homenagens a Vladimir Herzorg, ao ensejo de 50 anos de seu assassinato político.

A manifestação da ministra que provocou liberar uma meditação radical e densa sobre uma questão central no que se chama Justiça de Transição, mas que provoca interlocução filosófica, política, jurídica e inclusive teológica.

Considero muito pertinentes essas aproximações para o debate sobre um tema antigo, já que o perdão é uma mediação civilizatória para arrematar o civilizacional, não só como contrição mas como dimensão comunitária do fraterno. Assim ele aparece no pastoral, o pai nosso, dos cristãos, seja na sua origem fundante do comunitário, relativamente ao perdão das dívidas (princípio do jubileu) ou o atual perdoai as nossas ofensas (já com o teológico capturado pelo mercado, como mostram Franz Hinkelammert e Hugo Assmann (A Idolatria do Mercado). Mas também em Freud (Totem e Tabu e o Mal Estar da Civilização).

Claro que não quero aqui aludir em sentido jurídico estrito. No âmbito penal, ao perdão, a anistia, a graça e o indulto, cujo efeito é remissivo. Mas ao modo como na chamada Justiça de Transição, o perdão entrou na categoria, um pouco talvez como está em Hannah Arendt, referido ao gesto secularizado, erigido a ser um ato político laico que possibilita o recomeço histórico. A Arendt de (A Condição Humana, 1958), onde introduz o perdão como categoria da ação política, o único modo de romper a irreversibilidade das ações humanas, pois o agir, uma vez feito, não pode ser desfeito e assim, podendo devolver ao espaço público a possibilidade de recomeço, condição essencial da política. Assim é que ela cita o Evangelho (“perdoai setenta vezes sete”) não como ato religioso, mas como a descoberta de uma nova política da liberdade.

Penso que a ministra se inspirou na disposição que, a partir da Justiça de Transição, passou-se a atribuir ao perdão, enquanto categoria da própria Justiça de Transição, a representação de um processo (definição da ONU) que combina verdade (reconhecimento das violações), justiça (responsabilização), reparação (material e simbólica), reformas institucionais (reconstrução democrática) e garantia de não repetição (educar para o nunca mais).

O perdão entra nesse quadro como um elemento simbólico de reparação moral e reconciliação democrática. Não é substituto da justiça — é seu complemento ético. Como afirmou Paulo Abrão, o presidente da Comissão de Anistia, ex-Secretário Executivo da CIDH ao justificar o pedido de perdão nos atos públicos de anistia: “Não pedimos perdão para esquecer, mas para lembrar. O perdão é o reconhecimento de que o Estado falhou, e de que só reconhecendo sua falha poderá ser democrático.”.

Sob a presidência de Paulo Abrão, quando a Comissão adotou uma visão humanista, restaurativa e dialógica da anistia, em contraste com a concepção meramente administrativa ou indenizatória que prevalecia antes (foi nesse contexto que em parceria com a Comissão que editamos o volume 7, da Série O Direito Achado na Rua: Introdução Crítica à Justiça de Transição na América Latina (https://www.gov.br/mj/pt-br/central-de-conteudo_legado1/anistia/anexos/direito-achado-na-rua-vol-7_pdf.pdf). Veja também o documentário https://www.youtube.com/watch?v=GB75KS9I8pA&list=PL4ggm_qRYF0NFdhiV2mCk0DCLJwHxWajt, que abre com o pedido de perdão aos familiares de Glauber Rocha, anistiado político.

Com inspiração nas experiências da África do Sul, Chile e Argentina, a Comissão passou a tratar os atos de anistia como ritos públicos de reconhecimento e reparação moral, em que o Estado reconhecia a responsabilidade histórica pelas violações cometidas durante a ditadura (1964–1985).

Paulo Abrão e sua equipe introduziram, nos atos públicos de concessão de anistia, um momento simbólico em que, ao proferir a decisão, o representante da Comissão declarava: “O Estado brasileiro pede perdão a [nome do anistiado ou de sua família] pelos atos de exceção e perseguição de que foi vítima.” Essa fórmula não constava da lei. Foi uma construção ética e política, com base no princípio da responsabilidade do Estado e na dimensão moral da reparação, que buscava ir além da indenização financeira.

Todavia, podemos encontrar na base da adoção desse rito, a sua fundamentação teórica e jurídica para efeito de legitimidade institucional. Que compreende, a Justiça de Transição (ONU, 2004), prevendo que a reparação deve incluir medidas simbólicas e reconhecimento público da responsabilidade estatal. A Declaração das Nações Unidas sobre o Direito à Verdade (2010), ao afirmar que o reconhecimento e o pedido de perdão são parte essencial da restauração da dignidade das vítimas. O Art. 5º, inciso XXXV, CF/88 estabelecendo direito à tutela jurídica efetiva inclui a reparação moral e o Art. 8º do ADCT (CF 88), que estabelece o dever estatal de reconhecer e reparar os atingidos por atos de exceção.

Portanto, o “perdão” no rito da anistia não é perdão das vítimas para os perpetradores, mas sim o pedido de perdão do Estado às vítimas — uma inversão simbólica do poder, em que o Estado reconhece sua culpa histórica.

Qual o significado político e pedagógico desse gesto? Primeiro, cumprir uma função restaurativa, vale dizer, reintegrar simbolicamente a vítima à comunidade política; e logo, reconhecer sua luta como legítima e contribuir para reconstruir sua dignidade e memória.

Segundo, uma função pedagógica, poder construir uma memória pública de responsabilidade, o que implica ensinar o Estado e a sociedade a não repetir as práticas autoritárias; e logo reinscreve a anistia dentro de um projeto de cidadania democrática e não de esquecimento. A introdução do perdão, portanto, foi uma forma de subjetivar o Estado, transformando-o de agente violador em agente de reconhecimento.

Era um ato político de reconciliação sem impunidade, uma forma de “verdade em ato”, como expressou o próprio Paulo Abrão em diversos pronunciamentos e textos acadêmicos sobre a experiência brasileira de justiça de transição: articular esse fundamento teórico diretamente com o ato público da Comissão de Anistia, indicando como o texto do pedido de perdão foi construído a partir dessa filosofia do reconhecimento e do recomeço (há registros documentais e discursos em que isso é explicitado).

Registro, a propósito, que no âmbito do PPGDH – Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos e Cidadania (CEAM/UnB), a dissertação de mestrado de Sueli Aparecida Bellato, Justiça de transição: perdão ou desculpa em nome do estado brasileiro? 2014. 155 f., il. Dissertação (Mestrado em Direitos Humanos e Cidadania)—Universidade de Brasília, Brasília, 2014.

O que a Dissertação de Sueli, que tive ensejo de orientar, quer demonstrar é que “o Perdão é a ponte do início de uma travessia e não é um ponto final. O Brasil realiza a reparação moral com o pedido de desculpas e uma das maiores políticas de reparação econômica. A prática da auto anistia, a falta de responsabilização e a negação de toda verdade devem ser superadas com vista a reconciliação e a paz duradoura. Afirmar a necessidade de responsabilização não é querer vingar-se, não é revanche, é Justiça. É simplesmente ler a página antes de virá-la. Isoladamente nenhum instrumento da Justiça de Transição garante a Reconciliação e a Não Repetição. Desculpas não é Perdão!”.

(*) José Geraldo de Sousa Junior é professor titular na Faculdade de Direito e ex-reitor da Universidade de Brasília (UnB)