quarta-feira, 24 de dezembro de 2025

 

Território Livre – Marcos da Memória da UnB – Residência Artística Erica Ferrari

Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito

Território Livre – Marcos da Memória da UnB – Residência Artística Erica Ferrari. / Organização, Alex Calheiros, Estefânia Dália, Erica Ferrari e Gregório Soares. – Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2022. 68 p.

https://www.editora.unb.br/downloads/Cat%C3%A1logo_Territ%C3%B3rio_Livre_DIGITAL2024.pdf

 

 

No dia 12 dezembro, em cerimônia na Reitoria da UnB foram entregues os prêmios de direitos humanos (Anísio Teixeira) e de educação em direitos humanos (Myreia Suárez), em cerimônia presidida pela Reitora Rozana Naves (https://noticias.unb.br/8249-premios-de-direitos-humanos-da-unb-conheca-as-iniciativas-vencedoras-em-2025).

O Prêmio Anísio Teixeira – IV Edição (2025) premiou três iniciativas, uma em cada categoria: Igualdade, diversidade e não discriminação: Caleidoscópio – Profª Viviane de Melo Resende (IL/UnB); Saúde, meio ambiente e bem-estar: População em situação de rua em Brasília: avaliação da presença de transtornos mentais e demandas por saúde – Profª Andrea Donatti Gallassi (FCTS/UnB) e Democracia e participação: Projeto Formação Comunitária em Direitos Humanos (projeto desenvolvido em parceria com o Conselho Nacional de Direitos Humanos, o Ministério dos Direitos Humanos e o Setor de Direitos Humanos do MST – Prof. José Geraldo de Sousa Junior,  Profª Tatiana Rampin (FD/UnB) e Prof. Antonio Sérgio Escrivão Filho. Em nome do projeto recebeu a distinção Ayala Ferreira, coordenadora nacional da área de formação em direitos humanos do MST.

Já o Prêmio Mireya Suárez – IV Edição (2025) contemplou e agraciou cinco categorias: Educação básica: LeiA – Leitura e Ação Lúdico-Pedagógica – Prof. Erlando Reeses (FE/UnB); Educação superior: Ubuntu: Frente Negra na Ciência Política da UnB – (IPOL/UnB); Educação em contextos não escolares: Território Livre: Marcos da Memória – Estefania Dália; Educação para profissionais dos sistemas de justiça e/ou segurança: Guia do Transtorno do Espectro Autista – Matheus Rudo; e Educação e mídia: Memória e Ditadura Militar no DF – Prof. Matheus Gamba Torres

Pelo Prêmio Myreia Suárez DH 2025 – Território Livre: Marcos da Memória, falou o historiador Paulo Parucker. Ele começou por agradecer a oportunidade, com o registro também da passagem de 10 anos desde que esteve na mesma cerimônia para apresentar a público a síntese do Relatório final da CATMV-UnB, então premiada.

Sobre a CATMV/UnB – Comissão Anísio Teixeira de memória e Verdade da UnB, e do belíssimo e consistente Relatório que produziu, remeto a meus comentários em https://estadodedireito.com.br/relatorio-da-comissao-anisio-teixeira-de-memoria-e-verdade-da-universidade-de-brasilia/.

Na sua manifestação Prarucker recuperou da UnB – o projeto inicial (Anísio/Darcy): artes integradas ao conhecimento acadêmico, não como apêndice ou anexo mas como parte do todo: sensibilização, mobilização, transformação.

No tema, relembrou o Golpe de 1964 – para assinalar o projeto interrompido (referência a Roberto Salmeron). 1964, 1965, … 1968: invasões, prisões, demissões, perseguições, mas também brava resistência: “Território Livre” da UnB (expressão tomada das lutas anti-coloniais na Ásia, na África, nas Américas).

Aqui também remeto à recensão que fiz sobre o livro de Salmeron –  https://estadodedireito.com.br/a-universidade-interrompida-brasilia-1964-1965/ – principalmente à reedição comemorativa de 2012, ano do jubileu (50 anos) da UnB, na qual insiro um prefácio.

Depois Parucker fez remissão à Justiça de Transição, assinalando seus 4 pilares:  a) estabelecimento da verdade e memorialização; b) reparação (vítimas, familiares, sociedade); c) responsabilização judicial dos perpetradores de graves violações DH;  d) transformação das instituições para não-repetição. DH e Direito à Memória e à Verdade.

Com efeito, esses pilares estão designados com qualificada fundamentação e referências autorais fortes em Sousa Junior, José Geraldo de. O direito achado na rua: introdução crítica à justiça de transição na América Latina / José Geraldo de Sousa Junior, José Carlos Moreira da Silva Filho, Cristiano Paixão, Lívia Gimenes Dias da Fonseca, Talita Tatiana Dias Rampin. 1. ed. – Brasília, DF: UnB, 2015. – (O direito achado na rua, v. 7), obra paradigmática que pode ser consultada aqui: https://www.gov.br/mj/pt-br/central-de-conteudo_legado1/anistia/anexos/direito-achado-na-rua-vol-7_pdf.pdf.

Para Parucker, lembrar é resistir: memorializar as graves violações DH (torturas, sequestros, prisões, assassinatos, ocultação de cadáveres, espionagem, e também as lutas de resistência).

E foi nesse diapasão que aludiu à Convocatória Residência Artística Território Livre: (2012-2015: CATMV-UnB e relatório); (2019 Edital DEX; seleção: nov/2019, Érica Ferrari; previsão: abril/2020); (Pandemia março/2020); (Residência remota/virtual, 2º semestre de 2020: lives, debates, entrega do projeto: marcos de memória); (2022, publicação do Catálogo 2022); (Editais SDH/UnB – Prêmios: 2024, CATMV-UnB; 2025, Resid.Art.Território Livre).

E, finalmente, ao projeto premiado: marco de memória a ser instalado no campus, replicado em pontos diversos, não como elemento único e monumental na paisagem mas em pontos diversos e menores, lugares de memória que incentivem o encontro e a troca de experiências, visando passado e futuro. Lugares de abrigo do corpo (corpo que, na repressão, foi espaço de privação e dor, e na democracia  é território livre e palco de encontro), acentuando o quanto a proposta incide nas várias formas do fascismo que seguem vivas, também a luta pela liberdade e pela democracia segue viva e pulsante: lutas intergeracionais, para poder seguir, disse ele, “sorrindo”, porque “A vida presta”.

A manifestação de Paulo Parucker, em si e pelo tema distinguido pela premiação, me instigou buscar o material a ele referente inteiramente exibido na publicação objeto deste Lido para Você, que aproveito para fazer acessível por meio do link que leva a seu inteiro teor.

Em todo caso, extraio do texto, em registro do próprio Paulo Parucker, um excelente esboço do que representa a publicação:

Com a edição do presente catálogo, fica assinalado mais um passo, pequenino que seja, na caminhada coletiva em prol da Memória e contra o Esquecimento. Graves violações de direitos humanos foram cometidas, por agentes públicos ou não, durante a ditadura, atingindo violentamente a comunidade universitária e, de modo peculiar, algumas pessoas, grupos e entidades.

Variadas formas de luta, resistência e oposição à ditadura foram colocadas em movimento. “Se lembrar é um dever”, o relatório da Comissão Anísio Teixeira de Memória e Verdade da UnB (CATMV-UnB) pode até sinalizar uma etapa do dever cumprido. Mas, o registro, apenas, é pouco: lembrar não basta.

É preciso diversificar os meios de levar adiante essa história, evitando que ela se restrinja a notas repousadas numa estante remota. Trata-se de trazê-la viva para, sob as luzes e sombras do presente, enfrentar as inquietações e desafios que não cessam de nos confrontar no tempo.

Desde que se encerraram, formalmente, os trabalhos da Comissão da Verdade da UnB, em abril de 2015, com a divulgação do seu relatório final, algumas e alguns dos membros seguiram articulando pequenas ações de publicidade dos esforços da CATMV, inclusive um projeto de memorialização no campus.

O início desse trabalho de memória foi cogitado para se dar, circunscritamente, no estacionamento da Associação dos Docentes da UnB (ADUnB), próximo de onde, cinco décadas antes, situou-se o “Barracão da FEUB”, espaço institucional e histórico de mobilização estudantil. Especulou-se dar forma a um parlatório de cimento, ou algo nessa linha, que pudesse se constituir numa marca (de memória), tornando presentes memórias tão caras.

A ação, pensada desde fins de 2018 e reelaborada em seus limites e propósitos, recomposta e redimensionada, acabou por ser alinhavada no âmbito da Diretoria de Difusão Cultural do Decanato de Extensão da UnB, em registro colaborativo com pessoas da CATMV-UnB, da ADUnB, da alta direção universitária e de outras interfaces.

A Convocatória Residência Artística Território Livre, cujo nome evoca estratégias da luta anti-imperialista do Vietnam, dos anos 1960, e suas ressonâncias no movimento estudantil – e igualmente na repressão ditatorial contra ele desencadeada -, dialoga com essa construção coletiva.

Esse chamamento veio a público no dia 31 de maio de 2019, no bojo de um debate, organizado por militantes da memória e das lutas estudantis.

O ato-debate aconteceu, propositalmente, na entrada centro-norte do Instituto Central de Ciências da UnB – o charmoso “Minhocão” – num espaço caro às lutas dentro da universidade, o chamado “Ceubinho” – brilhante solução arquitetônica de estada e de passagem no campus Darcy Ribeiro, ela mesmo um peculiar lugar-testemunho.

Passados 42 anos, rememorava-se o início da histórica greve de 1977, na UnB, marco temporal relevante a ligar os acontecimentos da Universidade e de Brasília à agitada conjuntura nacional de então, e ao processo de hesitante distensão política do regime, após mais de uma década de repressão violenta: vivia-se o retorno de manifestações estudantis e populares pela volta das liberdades democráticas.

Vale acrescentar, às várias camadas dessa história, os tempos bicudos do presente, de ataques ao pensamento, à educação, à universidade; tempos de militarização do serviço público, de saudação oficial a torturador, tempos de negacionismo obscurantista.

E, contra isso, seguir lutando. Lançado o edital, tratou-se do processo de seleção de proponente para, no transcurso de uma breve residência artística, achegar-se a essas memórias, discuti-las, reelaborá-las e apresentar seu projeto de memorialização. A experiência, com as contingências ligadas à Covid-19, foi vivida em chave remota, via internet, redes sociais, webinários, lives, gravações. Em pauta, um projeto factível de monumento ou obra artística no campus, a partir de orçamento módico, tendo no horizonte margem para projeto mais amplo, no sentido de sinalizar, espacialmente, algumas marcas de memória.

Penso que, em relação ao resultado concreto da seleção, a Convocatória Território Livre foi bastante bem sucedida, nomeadamente na escolha de Erica Ferrari e, depois, no segundo semestre de 2020, na conclusão da residência artística com debate e apresentação dos produtos, nos termos do instrumento de chamada.

Celebro, assim, a estimulante troca de informações, apreciações, experiências e visões de mundo, possibilitada pelo ambiente virtual durante os dias de pandemia. Saúdo, com muito gosto, os interessantes projetos artísticos, afinal apresentados, e torço para que, oportunamente, ganhem materialidade e atuação no labor memorial. Sobre o sucesso, o catálogo fala por si mesmo.

Em vez de agradecimentos nominais, e ante a circunstancial restrição sanitária a efusivos abraços, deixo uma afetuosa saudação a tanta gente com quem temos compartilhado essa caminhada, que segue. Um pé depois do outro. Entre memórias e utopias.

A estrutura do catálogo se sustenta pelo sumário conforme os temas que a organizam:

Território Livre – Um marco de diálogo e criação

Breve memória de um processo de memória

O exercício constante da memória

Comissão de seleção e curadoria

Registros de uma Residência: memória, resistência e virtualidade

A artista selecionada

Território Livre

Projeto Laboratório-Memória

 

E ponho em relevo como chave de leitura da obra, a apresentação que prepararam os professores Alex Calheiros (Departamento de Filosofia da UnB) e Gregório Soares (Departamento de Artes Visuais da UnB):

A Lei nº 3.998, de 15 de dezembro de 1961, que autoriza a criação da Fundação Universidade de Brasília e o seu Plano Orientador, tinha como princípio a garantia do livre exercício de cátedra, da diversidade de pensamento, de liberdades científica, artística, cultural e política. Assim, no texto de sua criação, a Universidade de Brasília afirmava sua absoluta autonomia didática e científica. Mas, não tardou muito tempo, o país, e com ele suas instituições, em especial as educacionais e culturais, foram duramente perseguidas. São inúmeros os relatos e documentos que comprovam os momentos de terror, pelos quais a UnB passou. Sucessivas ocupações, interferências em suas atividades científicas, demissões e perseguições, fatos que deixaram marcas profundas. Como forma de afirmar a sua essência, entre 1964 e 1985, quando a Universidade viu sua autonomia ser mais gravemente ameaçada, surge entre os discentes a expressão: “UnB: Território Livre”. A sentença, que se espalhou pelas paredes da UnB, resgatada pela memória de uma fotografia emblemática numas das tantas conversas com a Comissão Anísio Teixeira de Memória e Verdade, parceira de primeira hora desta iniciativa, tornou-se o ponto de partida para convocar a comunidade a pensar um passado que, de tempos em tempos, volta a assombrar a liberdade de reflexão e criação, própria da instituição.

Como forma de reafirmar a Universidade de Brasília como espaço de liberdade, a Diretoria de Difusão Cultural do Decanato de Extensão da UnB e a Associação de Docentes da UnB, resgataram, portanto, a expressão “TERRITÓRIO LIVRE”, mote norteador da residência artística que teve como objetivos o resgate da memória e a criação de espaços de debate e reflexão de um momento histórico vivido pela universidade que, no nosso entender, deve ser sempre renovado. Não permitindo, assim, que atitudes como aquelas, de silenciamento, praticadas por seus algozes, não se perpetuem de nenhum modo, no presente.

O material reunido aqui é o resultado do conjunto de ações promovidas pela residência e serve de registro sobre os debates ocorridos, ao longo dos processos reflexivo e criativo. Por meio dos encontros propositivos, em torno da memória da resistência universitária e afirmação de sua autonomia no presente, é que foram dadas as condições para que se apresentassem os marcos produzidos por Erica Ferrari, artista residente selecionada, e que podem ser consultados neste catálogo.

Por fim, cabe ressaltar que, com a Residência “Território Livre”, feita de encontros e diálogos pertinentes, no momento que nos coube, fizemos aquilo que deveria ser feito.

 

Como se percebe e se depreende do que sinalizam os formuladores aqui destacados relativamente ao projeto e até de um mergulho direto no catálogo livremente acessível, Território Livre nasce a partir de uma residência artística realizada no âmbito da Universidade de Brasília (UnB), articulada pela Diretoria de Difusão Cultural do Decanato de Extensão da UnB, com apoio da Comissão Anísio Teixeira de Memória e Verdade. O projeto parte de uma expressão simbólica — “UnB: Território Livre” — que surgiu entre estudantes como afirmação da autonomia da universidade frente às perseguições sofridas no período da ditadura civil-militar no Brasil (1964-1985). Essa frase foi recuperada pela memória institucional e transformada no motor de reflexão e produção artística da residência.

O livro, que funciona como um catálogo/reflexão instigado pelo resgate da memória da UnB como espaço de resistência intelectual, política e cultural, especialmente nos anos em que sua autonomia foi gravemente ameaçada por intervenções autoritárias.

Enquanto promoveu debates e reflexões sobre a importância de recordar esse passado para afirmar a liberdade de pensamento e criação na universidade contemporânea, culmina em documentar os processos de criação artística e as intervenções realizadas pela artista residente Erica Ferrari, convidando a comunidade acadêmica e o público a dialogar com esses registros.

Na perspectiva dos textos reflexivos que abordam a memória da resistência universitária e os desafios da autonomia acadêmica frente a regimes autoritários, dos registros da residência artística, incluindo imagens, colagens e documentos visuais produzidos por Erica Ferrari ao longo do processo criativo e dos relatos e sínteses de encontros e debates ocorridos durante a residência — muitos deles realizados em formato remoto devido às condições sociais da pandemia de COVID-19, o catálogo acaba por marcar a memória e institucional no modo como as experiências da UnB durante o regime militar produziram essas marcas — materiais e simbólicas — que continuam a influenciar a vida universitária e cultural.

Trata-se, ao fim e ao cabo de um processo criativo e memória histórica, aguçado pela prática artística como mediação para refletir sobre passado e presente,

Levando a que Território Livre não seja apenas um catálogo de obras, mas um documento histórico e artístico que convida à reflexão crítica e à reafirmação da universidade como um espaço livre de pensamento. A publicação busca evitar que episódios de silenciamento e intervenção institucional sejam esquecidos, propondo que a memória da resistência seja constantemente revisitadas e reimaginadas, base para uma pedagogia da não repetição, do nunca mais, tão necessárias aos tempos correntes em que monstros e fantasmas parecem sair do obscuro em que hibernavam.

 

sábado, 20 de dezembro de 2025

 

Assessoria Jurídica Popular: Relatos de uma trajetória formativa

Por: José Geraldo de Sousa Junior (*) – Jornal Brasil Popular/DF

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Retiro o título deste artigo – Relatos de uma trajetória formativa – do documento-registro que os estudantes vinculados ao projeto de extensão “Assessoria Jurídica Popular Universitária Roberto Lyra Filho” elaboraram para sua última atividade de balanço ao final deste semestre letivo (2025) na Faculdade de Direito da UnB.

Impossibilitado de estar presente em razão de viagem acadêmica, não fui esquecido pelos estudantes extensionistas. Basta ver o vocativo do texto, assinado por Júlia Natour, ainda no bacharelado mas já em atuação funcional de relevo no Ministério da Justiça, na Secretaria Nacional de Acesso à Justiça.

Diz Júlia: “Querido professor, Como o senhor não poderá nos acompanhar no nosso último encontro da formação, lhe ofereço um gostinho do que foi esse processo tão bonito e potente. Imagino, talvez, que o senhor leia essa coletânea de relatos escritos pelos próprios formandos em pleno voo. Acho que o cenário combinará com as palavras aqui atenciosamente escritas pelos mais novos ajupianos. Reconheço, professor, que quando li, dei uma choradinha. Essa trabalheira toda que temos parece que dá frutos mesmo… Cada um com seu jeitinho, uns mais inspirados que outros, uns mais líricos, outros mais objetivos, mas todos denotam a sensibilidade desses jovens. E o que queremos se não juristas sensíveis, não é mesmo? Como toda oportunidade que tenho, agradeço do fundo do coração e da mente por ter construído (sempre coletivamente) e mantido (com bastante resiliência) esse espaço que muda a gente dum jeito inimaginável e indescritível. E tenho certeza, que mesmo na sua grande pequeneza, a AJUP Roberto Lyra Filho muda o nosso Brasil”.

Curiosamente, quase na mesma ocasião, eu participava de uma sessão de debate, promovida pelo NAJUC (UFC), com o apoio da AJUP Roberto Lyra Filho, da UnB, e em parceria com o Centro Acadêmico Clóvis Beviláqua, para o minicurso “O Direito Achado na Rua: Interlocuções e Práxis”.

O evento, com a participação do professor Newton de Menezes Albuquerque, professor-orientador do NAJUC, teve a mediação de Victor Müller e Elma de Oliveira Araujo (da AJUPRLF). A justificativa para a sua realização e para a minha participação, tomou em conta que “O Direito Achado na Rua propõe uma ruptura necessária com o elitismo e o formalismo que historicamente afastaram o povo da justiça. Ele nos ensina que o direito não é apenas um instrumento estatal de regulação, mas uma prática social de libertação que nasce nos espaços públicos e nas comunidades. Para as Assessorias Jurídicas Universitárias Populares (AJUPs), essa compreensão é o alicerce de tudo o que fazemos: é ela que nos permite superar o modelo assistencialista e paternalista tradicional. Ao adotar essa perspectiva, entendemos que a função da assessoria jurídica não é atuar “para” os movimentos sociais, mas construir “com” eles estratégias de emancipação. Inspirados na pedagogia de Paulo Freire e no pluralismo jurídico, reconhecemos que a luta dos trabalhadores rurais, das ocupações urbanas e dos coletivos feministas e negros cria legitimidade e novos direitos. As AJUPs são, portanto, a expressão prática desse conceito, transformando a universidade em um espaço de diálogo onde o saber técnico jurídico se une aos saberes populares”.

Em relação a AJUP Roberto Lyra Filho, tanto o texto-registro da Formação quanto as incidências descritivo-analíticas de sua origem relevância pedagógico-prática, há valiosas referências para consulta.

Desde logo um ensaio – “Sobre a AJUP Roberto Lyra Filho” –  postado pelo professor Diego Dihel um dos seus fundadores (março de 2013), no sítio https://assessoriajuridicapopular.blogspot.com/2013/03/sobre-ajup-roberto-lyra-filho.html.

Diz ele: “Felizmente, foi possível congregar um grupo de estudantes da Faculdade de Direito da UnB e de outros cursos jurídicos de Brasília, e, com o apoio do professor José Geraldo de Sousa Júnior, coordenador da AJUP, foi possível a sua formalização no Decanato de Extensão da UnB como Projeto de Extensão de Ação Contínua (PEAC). Com isso foi possível obter apoios na forma de bolsas e fomentos, impulsionados ainda pelo apoio do Núcleo de Prática Jurídica (NPJ), no qual o projeto possui atualmente um espaço para sua organização. A assessoria jurídica popular era até então relativamente desconhecida na FD-UnB, cuja trajetória é forte na construção de projetos de extensão que atuam na educação popular em direitos humanos, sempre sob a perspectiva do Direito Achado na Rua, mas sem maior experiência no campo da advocacia popular (a maior experiência nesse sentido havia ocorrido no caso da Vila Telebrasília, no início dos anos 1990). A AJUP veio portanto para se somar às iniciativas de extensão popular, com o diferencial de buscar articular 3 eixos de atuação: (i) advocacia popular; (ii) educação popular; e (iii) fortalecimento político dos movimentos populares”.

Remeto nesse aspecto descritivo-analítico a duas monografias de bacharelas egressas do projeto, documentos fundamentais para compreender a fortuna crítica desse belo projeto. Aliás, sobre eles desenvolvi recensões em que busco situar o autoral com o contexto de atuação do modelo de assessoria jurídica. Em https://estadodedireito.com.br/praticas-juridicas-extensao-e-acesso-a-justica/ , comento a monografia Práticas Jurídicas, Extensão e Acesso à Justiça, de Rayssa Cavalcante Matos. Monografia apresentada como requisito parcial para a obtenção do grau de bacharel em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Brasília, 2023. Rayssa acaba de ser nomeada vic-epresidente da Comissão de Advocacia Popular da Ordem dos Advogados do Distrito Federal.

O outro estudo é o de Adda Luisa, em sua monografia de conclusão de curso na Faculdade de Direito da UnB (cf. http://estadodedireito.com.br/o-papel-da-extensao-popular-na-democratizacao-da-justica-a-experiencia-da-assessoria-juridica-universitaria-popular-roberto-lyra-filho/ ). Tendo como base teórica, principalmente O Direito Achado na Rua e o Direito Insurgente, Adda sustenta como hipótese de pesquisa “que AJUP-RLF, assim como muitos projetos de extensão, vivenciou, ao decorrer da sua história, gerações, muito marcadas pelos membros que estavam à frente do projeto na época”, todos mobilizados por uma concepção emancipatória de jurídico, notadamente na UnB (http://estadodedireito.com.br/a-pratica-juridica-na-unb-reconhecer-para-emancipar/; também (http://estadodedireito.com.br/o-direito-achado-na-rua-e-as-possibilidades-de-praticas-juridicas-emancipadoras/) e a sua proposta  “é desenvolver essa tese ao decorrer da escrita do artigo, assim como, apresentar a atuação do projeto com os movimentos sociais no DF”.

Mais recentemente me deparei com o artigo Entre a Rua e a Universidade: o Direito Achado na Rua como Fundamento das Assessorias Jurídicas Populares, acessível em https://www.pjed.com.br/entre-a-rua-e-a-universidade-o-direito-achado-na-rua-como-fundamento-das-assessorias-juridicas-populares/.

O artigo, de autoria de Catarina Pierdoná Wasilewski  e Amanda Vaz Tonhá, graduandas em Direito pela Universidade de Brasília (UnB) e membras da Assessoria Jurídica Universitária Popular Roberto Lyra Filho (AJUP-UnB) – As Assessorias Jurídicas Populares: expressão prática do Direito Achado na Rua – indica como as “Assessorias Jurídicas Populares (AJUPs) surgiram no ambiente universitário, principalmente em cursos de Direito de universidades públicas, como desdobramento da prática extensionista e da militância estudantil. Elas têm como objetivo fundamental promover a articulação entre o saber jurídico e os saberes populares, superando o modelo assistencialista e paternalista que tradicionalmente marcou a relação entre operadores do direito e comunidades. Em vez de atuar como representantes passivos, os assessores se colocam como parceiros, construindo com os movimentos sociais estratégias de resistência e emancipação”.

As autoras mostram como essa perspectiva “dialoga diretamente com a pedagogia crítica de Paulo Freire (2011), que enfatiza a necessidade de uma educação dialógica e transformadora. Assim como na educação popular, a assessoria jurídica popular parte da realidade concreta dos sujeitos, buscando problematizar as causas estruturais da opressão e estimular a consciência crítica. Nessa medida, o direito é compreendido como prática social libertadora, e não apenas como ordenamento imposto de cima para baixo”.

As autoras dão à dimensão pedagógica das AJUPs no interior da universidade, afirmando que O Direito Achado na Rua constitui a base teórica indispensável para as Assessorias Jurídicas Populares. Ambas partem da mesma premissa: o reconhecimento de que os movimentos sociais são sujeitos produtores de direito e que a função do jurista crítico é colaborar, em pé de igualdade, na construção desses processos emancipatórios. Pois é nas ruas — onde a lei muitas vezes silencia, mas a vida clama — que o direito renasce. O Direito Achado na Rua é, portanto, mais que uma proposta acadêmica: é um gesto de insurgência, um grito coletivo que recorda à sociedade que o verdadeiro direito se faz de chão, de luta e de povo”.

Destaque para o documento e base do encontro são os Relatos de uma Trajetória Formativa. Os relatos dos extensionistas da AJUP refletem a importância da formação e do engajamento social na construção de uma nova perspectiva jurídica. ​

Além de Julia, há outros relato: Júlio relata a experiência de acolhimento e a busca por um direito mais humano e próximo da realidade social; André discute o papel da educação pública na democracia e a importância da extensão universitária;​ Manuela reflete sobre a construção do Direito e a necessidade de sensibilidade nas práticas jurídicas; Rômulo apresenta uma narrativa cyberpunk que critica a desigualdade social e a exclusão no acesso à justiça; ​Larissa compartilha suas impressões sobre a visita ao acampamento do MST, enfatizando o protagonismo feminino e a luta por direitos;​ Samuel aborda a participação feminina na política e os desafios enfrentados por mulheres em espaços de poder.​

Para mim, não foi surpresa identificar nas apresentações orais e no compartilhamento de conhecimento e nos participantes, expressões fortes de talentos já manifestados, sobretudo autorais, e não só na modelagem acadêmica.

Além de referências anotadas ao longo deste artigo, assinale-se a alta competência na edição do documento funcional Dossiê acesso à justiça socioambiental e direitos territoriais / elaboração técnica Daniel Ferreira dos Reis, Julia Zucchi Natour, Vitor Hugo Moraes – Brasília: Ministério da Justiça e Segurança Pública. Secretaria Nacional de Acesso à Justiça, 2025 (file:///C:/Users/HP/Documents/JG2025/copy_of_DOSSIESEMINRIOACESSOJUSTIASOCIOAMBIENTALEDIREITOSTERRITORIAIS_compressed3.pdf). Me chamou a atenção a narrativa cyberpunk de Rômulo, no melhor estilo literário, nada a dever a Wiliam Gibson, autor de Neuromancer (4 ed. – São Paulo: Aleph, 2008)

Sem dúvida nenhuma, a atividade tal como traduzida nos Relatos demonstrou ser um método eficaz para a integração e reflexão crítica sobre as comunidades. A abordagem pedagógica e inovadora trouxe resultados positivos na integração do grupo. E, no conjunto, certamente terá proporcionado, para a satisfação dos professores orientadores (penso com distinção no professor Antonio Sérgio Escrivão Filho, coordenador acadêmico do projeto. Para mais ver: https://estadodedireito.com.br/programa-terra-de-direitos-de-formacao-em-assessoria-juridica-popular-para-advogadas-e-advogados-de-movimentos-sociais/https://estadodedireito.com.br/direito-caminho-ou-obstaculo-para-a-transformacao-social/https://estadodedireito.com.br/mapa-territorial-tematico-e-instrumental-da-assessoria-juridica-e-advocacia-popular-no-brasil/), uma reflexão crítica sobre o espaço geográfico e a dinâmica social das comunidades apoiadas, além de aquisições político-epistemológicas para todos e todas, especialmente estudantes e docentes.

(*) José Geraldo de Sousa Junior é professor titular na Faculdade de Direito e ex-reitor da Universidade de Brasília (UnB)

quinta-feira, 18 de dezembro de 2025

 

O Despertar de Tudo. Uma nova história da humanidade

Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito

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O Despertar de Tudo. Uma nova história da humanidade, de David Graeber e David Wengrow. São Paulo: Companhia das Letras, 2022.

 

               

 

Deparei-me com este livro quando organizava meu módulo temático do projeto de pesquisa, ensino e extensão “SUMAK KAWSAY – BEM-VIVER: Culturas Insubordinadas e Invisibilizadas da América Latina em suas Vozes pela Cultura de Paz” (Curso coordenado pelas professoras Regina Fittipaldi e Marta Lobo, numa promoção da UnB/CEAM, Unipaz e União Planetária).

Ainda que meu tema de exposição no curso fosse Decolonialidade: Em busca da Cura, também fui incumbido de ministrar, junto com o professor Marco Aurélio Bilibio, Diretor do Instituto Brasileiro de Ecopsicologia, uma aula de abertura com um outro tema: “Ecopedagogia na Transdisciplinaridade: Um Desafio Possível“.

Para abordar o tema da abertura do Curso, recupero aqui o que desenvolvi em minha conferência inaugural do XXIIIº Congresso Internacional de Humanidades, realizado em Brasília na Universidade de Brasília, em 2021, abordando a chamada do Congresso que foi:  PODER, CONFLITO E CONSTRUÇÃO CULTURAL NOS ESPAÇOS LATINO-AMERICANOS.

Iniciei a minha conferência com uma saudação aos participantes, com uma indagação: apesar das diferenças de percurso para nos constituirmos um espaço comum latinoamericano social e político, qual a história comum que forja a comunidade de culturas e a comunidade de afetos que somos ou que podemos ser e na medida em que nos possamos constituir também como povos que se podem conceber como um destino compartilhado?

Temos sim, os povos que se expressam majoritariamente em línguas muito próximas, notadamente a espanhola e a portuguesa, mas também num imenso painel de línguas originárias, e se somos cada um povo só o somos povos com vínculos comuns porque temos uma história comum que nos forja enquanto comunidade de culturas e comunidade de afetos, e que nos amalgama a partir de algum momento em nossas próprias histórias.

Mas, se temos uma história desde aí comum, o que temos de comum em nossa origem e em nossos destinos?

Ao meu perceber, o que há de comum entre nós, desde um momento objetivo de encontro e de qualquer possibilidade de um destino também comum, é o impacto dramático do colonialismo que se impôs sobre nossas identidades e as projeções decorrentes dessa experiência em nossa atualidade pós-colonial afetada econômica e politicamente pelas injunções do ultra-neoliberalismo e pelos desafios de toda ordem como exigências de libertação e de emancipação num processo de ação decolonial.

Sob a perspectiva da condição ultra-neoliberal, sigo pensando que para as classes dominantes, para as multinacionais e para o seu estado, para as oligarquias que ela fomenta, pouco importa que milhões de pessoas morram de fome e de doenças provocadas pela fome. O que importa, num quadro como este, é acrescentar mais uns quantos privilegiados a este núcleo de elite, que constitui o que entre nós, nos seus estudos sobre o Povo Brasileiro, Darcy Ribeiro denominou de engenho de moer gentes, na sua voragem de contínua concentração dos rendimentos, cada vez mais acentuada e desigual.

A exclusão social crescente é a outra face deste tipo de processo econômico, maliciosamente chamado de desenvolvimento, mas que é um processo perverso ou maligno. Porque a exclusão social é a sua consequência mais dramática, que gera os segmentos descartáveis segundo uma lógica de indiferença, que o MST entre nós qualifica de Brasil rejeitado. Falando de exploradores e explorados, há que levar em conta que se os explorados estavam dentro do sistema (sem explorados não pode haver exploradores), os excluídos estão, por definição, fora do sistema, são inexistentes, descartáveis conforme os tem denominado o Papa Francisco, ao avaliar as dimensões catastróficas desse processo globalizado.

Todos sabemos, porém, que as mudanças necessárias não acontecem só porque nós acreditamos que é possível um mundo melhor. Essas mudanças hão-de verificar-se como resultado das leis de movimento das sociedades humanas, se movidas pela consciência de que há culturalmente um direito à utopia mesmo que na forma de direito a sonhar.

A aproximação mediada pela economia política e pela filosofia, e mais propriamente por teorias da justiça ou instigações teológicas, segue uma linha civilizatória que mais se afasta das opções que mercantilizam a vida, enquanto se orienta para projeções que garantam o direito à vida plena, de homens e mulheres de carne e osso sim, porque ideologicamente o nosso percurso colonial separou seres humanos, para distinguir os que se inserem no contrato social  os que ficam fora dele, os selvagens, os bestializados, os escravizados, os diminuídos, os segregados, os sobrantes “civilizatórios” todos alienados do humano.

Abri essa linha de problematização para ponderar o lugar entre nós latino-americanos do experimento colonial e indicar que desde esse lugar o modo decolonial, e mais incisivamente contracolonial como propõem Nego Bispo e Ailton Krenak,  uma condição enunciada nos objetivos do Curso,a partir do que penso, possamos representar um projeto de libertação, de emancipação e de humanização possíveis.

A questão central que essa abertura diz respeito aos conflitos que se inscrevem na matriz colonial de poder. Fundamentada na teoria da Colonialidade – do Ser, do Saber e do Poder de Anibal Quijano e em autores e autoras do pensamento decolonial, que fornecem os argumentos da constatação da incidência da ideia de raça, patriarcais e de classe (acentuadas pelo capitalismo que se sustenta na modelagem do colonial) marcando aproximações sociais mediadas pela economia política e pela filosofia, e mais propriamente por teorias da justiça, em opções que mercantilizam a vida, desumanizam a natureza, num percurso que separa seres humanos, para distinguir os que se inserem no contrato social  os que ficam fora dele, os selvagens, os bestializados, os escravizados, os diminuídos, os segregados, os sobrantes “civilizatórios” todos alienados do humano.

Abri essa linha de problematização exatamente com um autor português, até para ponderar o lugar de Portugal no experimento colonial e indicar que desde esse lugar o modo decolonial é também uma condição para que a libertação e a emancipação sejam possíveis.

Para Paulo Freire, tão marcante em nossa cultura comum, A DESUMANIZAÇÃO NÃO É DESTINO. “A luta pela humanização, pelo trabalho livre, pela desalienação, pela afirmação dos homens como pessoas, como ‘seres para si’, esta luta pela humanização somente é possível porque a desumanização, mesmo que um fato concreto na história, não é, porém, destino dado, mas resultado de uma ‘ordem’ injusta que gera a violência dos opressores e esta, o ser menos. (…) O ser menos leva os oprimidos, cedo ou tarde, a lutar contra quem os fez menos. E esta luta somente tem sentido quando os oprimidos, ao buscarem recuperar sua humanidade, que é uma forma de criá-la, não se sintam opressores, nem se tornem, de fato, opressores dos opressores, mas restauradores da humanidade em ambos. E aí está a grande tarefa humanista e histórica dos oprimidos – libertar-se a si mesmos e aos opressores. (…) Só o poder que nasça da debilidade dos oprimidos será suficientemente forte para libertar a ambos.”

Reside essa questão no encontro entre indígenas (originário) e alienígenas (o colonizador), no evento colonial, tal como Octávio Paz registra em “Labirinto da Solidão”. Um esforço para compreender, a representação das diferentes formas de compreensão do mundo e da existência. Para Paz, muitas vezes, os colonizadores europeus passam por povos indígenas como seres inferiores e selvagens, incapazes de compreender a complexidade da civilização ocidental. Por outro lado, para os indígenas, os colonizadores eram estranhos, estranhos e invasores de suas terras, que traziam consigo uma cultura e uma forma de vida estranha e muitas vezes destrutiva. Essa divergência de percepções e visões de mundo é central para compreender o conflito e a incompreensão entre os diferentes grupos e culturas presentes no contexto colonial.

O título “Labirinto da Solidão” reflete essa complexidade e profundidade do tema abordado por Paz. O labirinto simboliza a confusão, a incerteza e a complexidade das relações entre diferentes povos e culturas, enquanto a solidão refere-se à sensação de isolamento e estranhamento que muitas vezes acompanha esse encontro. Paz usa o labirinto como metáfora para explorar o intrincado e labiríntico mundo das relações entre indígenas e colonizadores, mostrando como as experiências de ambos os grupos se entrelaçam e se complicam nesse contexto.

Ailton Krenak e Nego Bispo, intelectuais de suas respectivas tradições – indígena e quilombola – explicam esse intrincamento. Para Krenak, Terra e Humanidades, assim mesmo no plural, caminham juntas. Precisamos compreender que somos uma ínfima parcela que compõe a natureza e que, mais do que nunca, está a impossibilitar a vida”. Fiz esse registro em http://estadodedireito.com.br/o-sistema-e-o-antissistema-tres-ensaios-tres-mundos-no-mesmo-mundo/. lembrando que, para Krenak o vital “é que possamos nos abrir para outros mundos onde a diversidade e a pluralidade também estejam presentes, sem serem caçadas, sem serem humilhadas, sem serem caladas. E que possamos também experimentar viver em um mundo no qual ninguém precise ficar invisível, ninguém precise ser Garabombo, o invisível (referência ao personagem do livro Garabombo, o Invisível, de Manuel Scorza) no qual possamos ser quem somos, cada um com a sua singularidade, humanos nas suas competências, nas suas deficiências, nas suas dificuldades. E que sejamos capazes também de reciprocidade, que é um lema que deveria estar entre aqueles que propõem que nos juntemos para pensar mundos”.

Para Krenak, trata-se de regenerar uma Terra canibalizada por uma humanidade que dela se apartou, numa ilusão utilitária, da qual precisa ser libertada para que seus lugares deixem de ser o repositório de resíduos da atividade industrial e extrativista (http://estadodedireito.com.br/a-vida-nao-e-util/). Trata-se, em suma, de passar do estágio de florestania que já se desdobrara da redução política da localização na cidadania, e das múltiplas possibilidades de reivindicar direitos que não se estiolem no esforço de se confinarem em igualdades, para o estágio amplificado das alianças afetivas (que envolve a mim e uma constelação de pessoas e seres na qual eu despareço: não preciso mais ser uma entidade política, posso ser só uma pessoa dentro de um fluxo capaz de produzir afetos e sentidos).

É disso que fala SANTOS, Antônio Bispo dos. Colonização, Quilombos: modos e significações. Brasília: INCTI/INCRA, 2015. Nessa obra — e também em intervenções públicas e cursos realizados em universidades (inclusive na Universidade de Brasília) — Bispo critica o uso acadêmico do termo decolonial, que, segundo ele, tende a permanecer no campo conceitual eurocentrado e institucional. Para ele, a luta dos povos quilombolas, indígenas e campesinos vai além de “descolonizar” o pensamento: trata-se de contrapor-se ativamente à lógica colonial, de criar e sustentar mundos outros com base em epistemologias e práticas autônomas, não subordinadas à gramática do Ocidente. “A decolonialidade ainda fala a língua do colonizador. O contracolonial é a gente afirmando nossa própria língua, nosso próprio jeito de ser e de viver, sem pedir licença.”.  “O decolonial é uma reação. O contracolonial é uma ação: não queremos apenas responder à colonização, queremos viver do nosso modo, a partir dos nossos saberes.”

Foi a partir desses posicionamentos que recorri ao livro tema deste Lido para Você, aliás, uma indicação que já me fizera Marcelo Behar, professor da FGV, atualmente Enviado Especial para a Bioeconomia da COP30, representando o setor de bioeconomia na conferência. E a indicação de Marcelo era forte no sentido de uma inversão de perspectiva. Curiosamente, um modo de pensar a questão da colonialidade que inverte os termos em que ela pode ser proposta, o modo que examina como o iluminismo europeu foi influenciado por relatos de “crítica indígena”.

Segundo Graeber/Wengrow (O Despertar de Tudo. Uma nova história da humanidade, de David Graeber e David Wengrow. São Paulo: Companhia das Letras, 2022), a narrativa convencional de que o Iluminismo surge unicamente na Europa — como uma invenção interna de filósofos europeus — ignora que, desde o século XVII em diante, houve interlocuções entre europeus exploradores/missionários/colonizadores e líderes, estadistas ou filósofos de povos indígenas da América que criticavam explicitamente a sociedade europeia.

Por exemplo, eles destacam o estadista Kandiaronk (da nação Wendat/Hurons), que debateu com o aristocrata francês Louis‑Armand de Lom d’Arce, Baron de la Hontan e, através desse diálogo, lançou críticas estruturais à desigualdade, à autoridade arbitrária e ao contraste entre vida indígena e vida europeia.

A ideia é que tais diálogos indígenas-europeus não foram marginais: os autores sustentam que partes da literatura do Iluminismo europeu foram influenciadas por relatos de “crítica indígena” ou por textos europeus que citaram ou traduziam essas críticas. Por isso, “liberdade”, “autonomia” e “igualdade” como ideais políticos e sociais não são meramente invenções abstratas europeias, mas emergiram em parte a partir de contatos e experiências reais — ou pelo menos alimentados por — perspectivas ameríndias.

Além disso, Graeber/Wengrow argumentam que muitos povos indígenas já tinham formas de organização social nas quais liberdade (como a liberdade de se mover, de desobedecer, de desistir) — e não necessariamente “igualdade” no sentido estrito europeu — eram centrais. Eles sugerem que os termos europeus de “igualdade” só aparecem de modo consciente quando confrontados com sistemas nos quais autoridade arbitrária ou status hereditário não eram a regra.

Eles sublinham que, portanto, o problema da história humana — “qual a origem da autoridade?”, “por que há desigualdade?” — foi formulado (ou pelo menos ganhou nova urgência) no contexto dessa interação entre mundos: a Europa que começou a ver seus próprios regimes sociais questionados pelas sociedades indígenas e os colonizadores que se tornaram interlocutores ou críticos ou réus dessa crítica.

Por que isso importa, se perguntam os autores? Para eles essa localização da origem do pensamento sobre liberdade/autonomia/igualdade fora do centro europeu desloca o centro de gravidade da história das ideias políticas, elas não são apenas “ocidentais”, mas resultado de um encontro/transversalidade entre culturas.

Isso também permite entender que as sociedades indígenas não eram vistas — pelos autores — como “pré-históricas” ou “menos avançadas” simplesmente, mas como interlocutoras com reflexividade e agência política, capazes de propor modelos alternativos ou de criticar os europeus.

Os autores não afirmam que todos os povos indígenas tinham nos moldes europeus idéias perfeitamente formuladas de “igualdade” ou “direito” tal como no Iluminismo; pelo contrário, mostram que há diferenças conceituais — por exemplo, a ênfase em autonomia ou mobilidade, em vez de hierarquia fixa ou status hereditário.  A ideia central é que a crítica indígena ajudou a tornar visível (na Europa) que autoridade, status e desigualdade não eram inevitáveis — o que permite a emergência de ideias de liberdade e igualdade como projetáveis.

No seu argumento, Graeber e Wengrow caracterizam a “origem do Iluminismo” (ou ao menos alguns de seus princípios centrais) como um efeito da confrontação entre sociedades indígenas americanas (que já tinham diferentes tratamentos de autoridade, mobilidade, autonomia) e os europeus visitantes/colonizadores, sendo que, através desse embate, conceitos como liberdade, autonomia e igualdade política passaram a emergir de forma mais consciente na Europa e no pensamento moderno ocidental. Esse diálogo não foi acidental, mas constitutivo — assim, para eles, a história das ideias modernas não se reduz à Europa, mas é resultado de uma trama transatlântica de intercâmbio, crítica e tradução.

O fato é que para esses autores, essas questões eram conhecidas, lidas e debatidas em salões e círculos ilustrados franceses europeus.

Desde o século XVII já há registros de sua incidência. Michel de Montaigne, em seus “Ensaios” (Essais), faz referências diretas e impactantes aos ameríndios que visitam a Europa, essas experiências tiveram um papel crucial na formação de suas ideias sobre a natureza humana, a cultura e a “barbárie”.

A principal e mais famosa referência ocorre no ensaio “Dos Canibais” (Des Cannibales) , no Livro I, Capítulo 31. Montaigne teve a oportunidade de encontrar e conversar com alguns tupinambás (indígenas do Brasil) que foram levados para França, provavelmente em Rouen, em 1562. Esses encontros não foram meros espetáculos, mas oportunidades para Montaigne questionar suas próprias instalações e as de sua sociedade.

O contato com os “novos mundos” e seus habitantes levou Montaigne a questionar a presunção europeia de superioridade e a universalidade de seus valores. Ele sugeriu que o que os europeus chamavam de “progresso” e “civilização” talvez estivesse afastado-os de uma forma mais autêntica e virtuosa de viver.

Ele critica a brutalidade da colonização e o etnocentrismo europeu, que justificava a dominação e a destruição de outras culturas em nome da civilização e da fé. Portanto, as referências aos ameríndios e os impactos que Montaigne recebeu de seu contato com eles são centrais para a sua filosofia. Eles o ajudaram a desenvolver uma crítica profunda à sua própria sociedade, a abraçar o relativismo cultural e a questionar a arrogância europeia, pavimentando o caminho para o pensamento moderno sobre a alteridade e a autocrítica cultural.

É nesse sentido que Graeber e Wengrow, vinculam os célebres concursos da Academia de Dijon em 1753 e 1755, simbolizando o momento em que a Europa começa a refletir sobre a desigualdade não como dado natural, mas como problema político e moral — um espelho crítico trazido do Novo Mundo.

Eles veem esse episódio como um marco no nascimento do pensamento político moderno, mas insistem que ele não pode ser compreendido sem o contexto das trocas e debates transatlânticos entre europeus e ameríndios.

A Academia de Dijon, era uma sociedade de estudos e debates fundada em 1725. Em 1749 ela propôs como tema do concurso se “O restabelecimento das ciências e das artes contribuiu para purificar os costumes?”

Rousseau respondeu com o texto submetido em 1750, e o Discurso foi premiado pela Academia. A tese central do Discurso (1750) de Rousseau, ao contrário da crença dominante de sua época, se firmou no sentido de que o progresso das ciências e das artes não aprimora a moral humana, mas a corrompe.

Ele argumenta que a sofisticação cultural e científica fomenta a vaidade, o luxo e a desigualdade; distancia o homem da virtude natural e da autenticidade; encobre a corrupção moral com aparências de civilização e polidez; não conduz à felicidade humana.

Três anos depois (1753), a mesma Academia de Dijon lança um novo tema, “Qual é a origem da desigualdade entre os homens, e é ela autorizada pela lei natural?”. Rousseau, encorajado pela repercussão do primeiro Discurso, apresenta outro ensaio — o Discurso sobre a Origem e os Fundamentos da Desigualdade entre os Homens (1755). Esse segundo texto aprofunda as ideias do primeiro, com a preocupação de buscar compreender as causas sociais e políticas que levaram à desigualdade.

Em ambos os discursos, sintetiza Boaventura de Sousa Santos em sua Oração de Sapiência proferida na abertura solene das aulas da Universidade de Coimbra, no ano letivo de 1985/86 (Um Discurso sobre as Ciências. São Paulo: Editora Cortez, 2ª edição, 2004), tem-se sempre a “pergunta pelo papel de todo conhecimento acumulado no enriquecimento ou no empobrecimento prático das nossas vidas, ou seja, pelo contributo positivo ou negativo que traz para a nossa felicidade” (ou será o bem-viver?!).

A reflexão sobre a questão da contracolonialidade e do bem viver, me instigou reler a obra seminal de Pierre Clastres, “A Sociedade Contra o Estado” (La Société contre l’État), na qual desenvolve uma tese radical e inovadora sobre a relação entre sociedade e poder, especialmente no contexto das sociedades ameríndias que ele estudou. Livro que é uma das referências bibliográficas de meus cursos na UnB, especialmente nas disciplinas Pesquisa Jurídica (graduação e me Direito) e O Direito Achado na Rua (Pós-Graduação em Direito, na Faculdade de Direito e pós-graduação em Direitos Humanos e Cidadania, no Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos e Cidadania, no CEAM – Centro de Estudos Avançados Multidisciplinares).

O pressuposto central de sua contraposição entre sociedade e Estado reside na ideia de que as sociedades antigas (sem Estado), absurdamente denominadas por uma antropologia colonizadora de sociedades primitivas, não são “sociedades incompletas” ou “atrasadas” que ainda não alcançaram a forma estatal, mas sim sociedades que se recusam e impedem o surgimento do poder separado e coercitivo do Estado.

Clastres argumenta que essas sociedades (que ele estudou principalmente entre os Guayaki, Tupi-Guarani e outras tribos sul-americanas) não são “sem Estado” por deficiência ou ignorância, mas por um mecanismo político ativo de recusa. São sociedades que se organizam para impedir a emergência do poder coercitivo e separado. Os mitos, a oralitura sobre seus usos e práticas, demonstram que são sociedades que já resolveram o problema do poder, ao se estruturarem de modo a neutralizar seu surgimento.

Clastres argumenta que as sociedades primitivas (que ele estudou principalmente entre os Guayaki, Tupi-Guarani e outras tribos sul-americanas) não são “sem Estado” por deficiência ou ignorância, mas por um mecanismo político ativo de recusa . São sociedades que se organizam para impedir a emergência do poder coercitivo e separado .

Ele vira de cabeça para baixo a visão evolucionista que via essas sociedades como avanços anteriores ao Estado. Para Clastres, elas são sociedades que já resolveram o problema do poder, ao se estruturarem de modo a neutralizar seu surgimento. As narrativas recolhidas em campo por Clastres, traduzem a ocorrência de mecanismos sociais de prevenção do Estado (transferência do poder comunitário para uma situação de centralização).

Para Clastres, a passagem de uma sociedade sem Estado para uma sociedade com Estado não é um processo linear de “evolução”, mas uma ruptura trágica. É o momento em que a sociedade perde sua capacidade de conter o poder, e este se autonomiza, se separando da sociedade para dominá-la. Ele sugere que o Estado não surge de uma necessidade social ou de um contrato, mas de uma “fatalidade” ou “alienação” da sociedade que, por algum motivo, falha em manter seus mecanismos de controle sobre o poder.

O fundamento da contraposição de Clastres é que as sociedades antigas são politicamente sofisticadas em sua recusa ativa do poder coercitivo e separado, organizando-se de forma a manter o poder disperso e submetido à sociedade, enquanto o Estado representa a autonomização desse poder e sua consequente dominação sobre a sociedade. Ele nos força a ver as sociedades sem Estado não como um “antes” do Estado, mas como um “contra” o Estado.

Penso que essas questões são a raiz da filosofia e a prática do Bem Viver, síntese das enunciações propostas neste Curso. Elas se evidenciam no potencial transformador para a sociedade e para a educação. Ao valorizar saberes ancestrais, questionar estruturas coloniais e propor alternativas de convivência, aponta para a urgência de mudanças profundas nas esferas políticas, econômicas, educacionais e sociais, visando superar desigualdades e degradação ambiental.

O Bem Viver rompe com visões deterministas, resgatando experiências históricas de reciprocidade com a natureza, solidariedade e diversidade cultural, tratando a natureza como sujeito de direitos. Mostrou-se que a agroecologia, enraizada na ancestralidade, contrasta com o agronegócio, que compromete biodiversidade e convivialidade.

Sua implementação requer esforços coletivos e integrados — interétnicos, intergeracionais, interculturais e transdisciplinares —, reconhecendo a plurinacionalidade e promovendo práticas sustentáveis, inclusivas e emancipatórias. A educação é central nesse processo, devendo estimular consciência crítica, cooperativa e criativa, em oposição à “educação bancária” denunciada por Paulo Freire.