sábado, 22 de novembro de 2025

 

Tributação e Gênero. Políticas públicas de extrafiscalidade e a luta pela igualdade

Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito

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Lana Borges. Tributação e Gênero. Políticas públicas de extrafiscalidade e a luta pela.igualdade. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2023, 197 p.

Entre os bons encontros que o espaço acadêmico proporciona, registro neste segundo semestre de 2025, na UnB – Universidade de Brasília, no âmbito da disciplina (O Direito Achado na Rua), dos Programas de Pós-Graduação em Direito (PPGD) e do Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos e Cidadania (PPGDH-CEAM), o que pude compartilhar com Lana Borges.

Logo, entre as trocas intelectuais para calçar a agenda temática da disciplina, o seu oferecimento desse seu belo trabalho – Tributação e Gênero – que ela designa na dedicatória gentil “uma forma de Direito Achado na Rua, para dar visão às mulheres”.

O livro, conforme diz a Professora Misabel Derzi, no Prefácio, é “Obra essencialmente vanguardista e visionária, pois ela não se resume a tratar e descrever o problema por meio de diversas autoras renomadas da filosofia, da história, da sociologia e da ciência política que criticam a separação tradicional entre público e privado e divisão sexual do trabalho, mas também a propor desenhos e diretrizes para enfrenta-lo através do viés jurídico, por meio da interlocução de diversos atores, tanto do setor público quanto do setor privado. Nessa linha, tendo em vista a omissão do Poder Legislativo, composto majoritariamente por homens, em relação à tributação excessiva das mulheres, é também papel do Poder Judiciário atuar de maneira proativa nessa problemática, diante do princípio constitucional da inafastabilidade da jurisdição e do crescente fenômeno da judicialização das relações sociais”.

Com efeito, na descrição do livro temos que a obra, está ssim na 4ª capa “objetiva delinear a conexão entre disparidade de gênero, políticas públicas de extrafiscalidade e a luta das mulheres por igualdade. Crescem os trabalhos acadêmicos sobre as discriminações de gênero, sendo a maior parte deles apoiados em indicadores sociais e em dados oficiais e estatísticos. Também esta obra, interdisciplinar, ainda que centrada no direito, pretende detalhar aspectos da referida pesquisa acadêmica. No Brasil, as distinções socioeconômicas entre homens e mulheres são gritantes. Há um ponto de intersecção entre várias disciplinas (jurídicas e não jurídicas) a instrumentalizar este estudo. Dessa forma, são apresentados elementos jurídicos, sociais, culturais, históricos e econômicos que constroem os papéis de gênero e a depreciação das mulheres. O texto foi construído tendo por referências trabalhos de mulheres. São 87% (oitenta e sete por cento) de obras escritas por mulheres ou em coautoria com mulheres. Obras de autoria exclusiva de mulheres são mais de 75% (setenta e cinco por cento). Assim, está entre os objetivos do texto destacar e divulgar pesquisas acadêmicas de outras mulheres”.

Originado de trabalho acadêmico, mestrado, o estudo se faz “sobre as discriminações de gênero, sendo a maior parte deles apoiados em indicadores sociais e em dados oficiais e estatísticos”, também no Brasil, onde as distinções socioeconômicas entre homens e mulheres são gritantes. Para a Autora,

“Há um ponto de intersecção entre várias disciplinas (jurídicas e não jurídicas) a instrumentalizar este estudo. Dessa forma são apresentados elementos sociais, culturais, históricos e econômicos que constroem os papéis de gênero e a depreciação das mulheres. A pesquisa se propõe interdisciplinar, ainda que centrada no direito. Quanto à abordagem, a metodologia é qualitativa, porque busca compreender a construção de políticas públicas tributárias para relativização das disparidades de gênero, a partir da análise crítica da Constituição, da índole extrafiscal da tributação e da leitura de obras jurídicas e não jurídicas existentes. O texto apoiase, ainda, em quantitativos e percentuais e, por isso, a construção de argumentos é resultado também de uma metodologia quantitativa. Da perspectiva da tributação como instrumento eficiente à concretização da igualdade material, pretende-se demonstrar que o repertório constitucional oferece fundamento para que a extrafiscalidade seja mecanismo de combate a tais disparidades. Objetiva-se, igualmente, inventariar alternativas de enfrentamento, propostas pela sociedade civil e pelo próprio Poder Judiciário. A partir dos dados oficiais, da revisão bibliográfica e documental e da análise de julgado específico do Supremo Tribunal Federal, conclui-se que a estrutura tributária brasileira, pelo seu caráter regressivo, reforça as desigualdades de gênero no País. Todavia, partindo da ideologia da igualdade, é possível encontrar ferramentas de solução dentro do sistema tributário. Como hipótese, afirma-se que políticas públicas que tenham por objetivo a redução das desigualdades socioeconômicas entre homens e mulheres devem ser consolidadas por todos os agentes públicos, em todas as esferas de poder. Nesse aspecto, o texto dialoga com o tema das políticas públicas. Em um Estado Democrático de Direito que objetiva construir uma sociedade livre, justa e solidária, reduzir as desigualdades sociais e promover o bem de todos, suprimir as desigualdades de gênero, inclusive as disparidades socioeconômicas, é dever imposto a todos os agentes do Estado e a toda a sociedade civil”.

De modo sistematizado, conforme o Sumário que contem além do Prefácio já mencionado, também uma Apresentação a cargo do estimado colega professor Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy, o livro está assim organizado:

INTRODUÇÃO

CAPÍTULO 1

DISTANCIAMENTOS, DESIGUALDADES E O MERCADO DE

TRABALHO DA MULHER

1.1 A construção social dos papéis de gênero

1.2 Divisão sexual do trabalho e o trabalho invisível historicamente vinculado à mulher

1.3 O mercado de trabalho da mulher no Brasil

1.4 Repercussões econômicas das diferenças de gênero – um inventário das desigualdades palpáveis

CAPÍTULO 2

A LUTA PELA IGUALDADE

2.1 O tema da igualdade de gêneros

2.2 A igualdade e a ideologia da Constituição de 1988

2.3 Igualdade de gênero e a Constituição de 1988

2.4 A origem dos vínculos entre tributação e gênero: o movimento sufragista, a luta pela igualdade e a negativa do pagamento de tributos pelas mulheres

CAPÍTULO 3

TRIBUTAÇÃO, GÊNERO E POLÍTICAS PÚBLICAS DE EXTRAFISCALIDADE

3.1 A tributação e a sistemática da regressividade – acentuação das assimetrias de gênero

3.2 A elaboração de políticas públicas tributárias – alcances e perspectivas

3.3 Igualdade de gênero, discriminação positiva e tributação

3.3.1 A extrafiscalidade e o papel indutor da tributação na promoção da igualdade

3.3.2 Medidas tributárias na implementação da igualdade de gênero – discriminação positiva e possibilidades

CAPÍTULO 4

A TRIBUTAÇÃO COMO FERRAMENTA DE SUPERAÇÃO DAS DESIGUALDADES DE GÊNERO

4.1 A Reforma Tributária e desigualdade de gênero – contextualização, propostas e a plausibilidade da concessão de benefícios fiscais a empresas que contratem mulheres

4.2 Intervenção do Poder Judiciário na conformação ou na concretização de políticas públicas

4.3 O Supremo Tribunal Federal e as repercussões do reconhecimento das distinções de gênero no mercado de trabalho. Políticas públicas materializadas

4.4 O julgamento do RE nº 576.967/PR e a efetiva proteção do mercado de trabalho da mulher: uma decisão pragmática e necessária

4.5 O julgamento da ADI nº 5.422/DF e a vinculação categórica entre o direito tributário e a igualdade de gênero

CONCLUSÃO

REFERÊNCIAS

JURISPRUDÊNCIA CITADA

Fiquei também muito tocado pelas referências nos agradecimentos à colega Liziane Paixão, integrante da banca examinadora da Dissertação, “exclusivamente feminina para exame de um texto que tem 87% de mulheres em suas referências bibliográficas”. Minha satisfação em conferir a participação de Liziane na construção do percurso de Lana, se dá pelo reconhecimento de sua notável capacidade de condução do ofício acadêmico, eu próprio tendo me valido dessa competência quando, participei de edição por ela co-organizada (RUBIO, David Sánchez; OLIVEIRA, Liziane Paixão Silva; COELHO, Carla Jeane Helfemsteller (organização). Teorias Críticas e Direitos Humanos: contra o sofrimento e a injustiça social. Curitiba: Editora CRV, 2016. Com Nair Heloisa Bicalho de Sousa, levamos ao livro o ensaio Direitos Humanos e Educação: questões históricas e conceituais, p. 157-170.

Vou à Apresentação de Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy:

 A Editora Fórum (Belo Horizonte) publicou recentemente Tributação e gênero, de Lana Borges. A autora é procuradora da Fazenda Nacional, vem exercendo vários cargos na administração pública federal, já assessorou ministros e revela-se como uma profissional competentíssima. O livro é o resultado de intensa pesquisa, com foco em tema novo, importantíssimo. Tive a feliz oportunidade de acompanhar a pesquisa e de apresentar esse belíssimo livro. É da apresentação que retomo algumas das observações vindouras.

Tributação de gênero: políticas públicas de extrafiscalidade e a luta pela igualdade, esse é o título completo do livro, é ao mesmo tempo um ato de fé, um antídoto e um aviso de incêndio. A autora tem como ponto de partida o fato (indiscutível) de que “as distinções socioeconômicas entre homens e mulheres são gritantes”. Lana sustenta o argumento dos papeis de gênero no contexto da depreciação das mulheres, aproximando temas de sociologia, de cultura, de história e de economia. Fecha todos esses campos com um retrato normativo de uma situação que exige mudança e enfrentamento.

A parte inicial do trabalho explora o tema da construção social dos papeis de gênero. Nesse contexto, trata da divisão sexual do trabalho, com ênfase na opressão e na marginalização do trabalho feminino. A autora lembra-nos Carole Pateman, cientista política que em O contrato sexual inverteu a lógica centrada no postulado do contrato social independente de suas nuances de gênero.

A construção da narrativa na parte histórica retoma a luta das suffragettes. Na Inglaterra, a recusa do pagamento de tributos, por parte das mulheres, decorria do fato de que, impedidas de votar, estariam desprovidas de cidadania. Lana descreve esse momento, projetando, como argumento central, a premissa de que o ônus da tributação deveria ser acompanhado de direitos outorgados pela condição de cidadania.

O ponto central do livro concentra-se nas relações entre tributação, gênero e políticas públicas de extrafiscalidade. Nessa parte do livro percebe-se o pleno domínio que Lana tem no campo temático, o que revela sua trajetória profissional.

Lana domina os institutos em seu aspecto conceitual, e nesse pormenor expõe com clareza o tema da regressividade, retomado hoje no ambiente de discussão que acompanha a reforma tributária, ainda em andamento. A autora conhece o processo tributário em suas várias nuances, inclusive sob o olhar do julgador, o que revela sua experiência pretérita como assessora de Ministro no Supremo Tribunal Federal. E conhece também o direito tributário em sua dimensão de instrumento de política pública, porque tem amplo conhecimento com a construção de normas fiscais, atuando nos órgãos centrais.

Ao conhecimento prático Lana agregou estudos profundos sobre o tema da regressividade, explorando dimensões estatísticas, apresentando números que colheu junto ao IBGE. Com dados precisos sustenta o argumento de que políticas públicas em favor da diminuição das assimetrias de gênero podem ser alavancadas com instrumentos tributários.

A autora argumenta que “os tributos devem ser veículos de estímulo à inserção de um maior número de mulheres no mercado de trabalho e de uma progressão também das mulheres dentro das instituições e empresas”. Isto é, não prega distribuição de favores ou facilitação ou redução de incidências. Quer usar o tributo como tema de inserção no mercado de trabalho, o que revela uma ética econômica que dá alicerce a um esforço argumentativo genuíno. Afinal, “existe um ambiente profissional próprio para as mulheres, repleto de diferenças, sejam salariais, sejam de acesso ao mercado de trabalho, sejam de volume de horas de trabalho”. O que fazer?

Lana explora o tema no direito comparado e na literatura especializada. Retoma a jurisprudência. Especialmente se refere à ADI 5.422, que tratou da incidência do imposto de renda sobre os valores recebidos a título de pensão alimentícia. Explicou também o tema do RE 576.967, paradigmático no contexto da efetiva proteção do mercado de trabalho da mulher. Cuidou da ADI 5.422, que é central na vinculação categoria entre o direito tributário e a igualdade de gênero. Explorou os vários esforços normativos que há no tema, indicando os projetos de lei que avançam.

 Anoto que a perspectiva de Lana Borges já vinha se delineando, com o viés sensível de sua política à questão da justiça de gênero, que pude encontrar em trabalhos anteriores. Assim, em A Reforma Tributária do Consumo sob uma Perspectiva de Gênero (Revista de Direito Tributário da APET, n. 50 (2024), páginas115-139, ela trata da

relação entre a reforma tributária do consumo e as questões de gênero, destacando que, além dos dispositivos específicos mencionados no art. 9º da Emenda Constitucional 132, de 20 de dezembro de 2023, as alterações do sistema tributário nacional ocorrerão também sob outras perspectivas vinculadas às mulheres. As transformações promovidas pelo art. 9º, seja no preceito contido no § 1º, VI, que prevê a instituição do regime diferenciado de tributação aos produtos de cuidados básicos à saúde menstrual, seja aquela resultante da combinação dos §§ 10 e 11, que preveem a avaliação periódica dos regimes diferenciados de tributação com base na igualdade de gênero, não são as únicas que vinculam gênero e tributação. Há outros artigos e dispositivos da reforma que igualmente têm implicações diretas ou indiretas sobre essas questões. Ao enfatizar essa conexão, o artigo pretende ampliar o debate sobre como a estrutura tributária pode influenciar a equidade de gênero, seja pela maneira como tributa diferentes grupos populacionais, seja pela forma como impacta a distribuição de recursos e oportunidades entre homens e mulheres. A análise da temática, que é densa e demandaria muito mais que um artigo, leva em consideração tanto os efeitos práticos de cada dispositivo, quanto a repercussão mais ampla que uma reforma tributária pode ter na promoção da igualdade de gênero, abordando, por exemplo, como o sistema tributário brasileiro afeta desigualmente homens e mulheres em virtude de suas posições socioeconômicas, padrões de consumo e papéis tradicionais na família e na sociedade

Um modo de abordar temas em geral rígidos, altamente parametrizados por uma cultura de exação, raramente afetada pela perspectiva da equidade, tal como pude aferir em meu exercício conjuntural de membro do antigo Conselho de Contribuintes do Ministério Fazenda, ao tempo, final dos 1970 começo dos 1980, em que exerci por três mandatos a função de Conselheiro, chegando a ser vice-presidente do 2º Conselho de Contribuintes, competente para a matéria de IPI (Imposto sobre Produtos Industrializados) e toda outra matéria tributária desde a relativa a proteção a economia popular, ICM dos Territórios, fora apenas a Imposto de Renda (1º Conselho) e Imposto de Importação (3º Conselho).

Certamente dessa disposição se deve a mobilização de Lana Borges para se vincular ao Núcleo de Direito Tributário, Linha Tributação e Gênero, criado em 2020, na Fundação Getúlio Vargas, São Paulo, como grupo de estudos com o escopo de pesquisar, debater e aprofundar os estudos concernente às teorias de gênero, como a teoria interseccional e feminismos negros; filosofia do Direito tributário, Direito tributário crítico e Direito tributário e desigualdade de gênero (https://direitosp.fgv.br/projetos-de-pesquisa/tributacao-genero).

É nesse ambiente que OKUMA, Alessandra. O Impacto do Gênero nas Discriminações Tributárias e o Imposto sobre a Renda. Revista Direito Tributário Atual v. 56. ano 42. p. 35-57. São Paulo: IBDT, 1º quadrimestre 2024, vai localizar a atenção para “a condição de desigualdade entre homens e mulheres decorrente de estereótipos femininos e masculinos, formando um imaginário segundo o qual “as mulheres são frágeis, submissas, voltadas para o cuidado da família enquanto os homens são os provedores, racionais, fortes e dominadores”.

Para a Autora citada, “essa visão patriarcal, além de falsa, causa graves desigualdades de gênero e a inferiorização da mulher no ambiente de trabalho, na sociedade, na política e na economia. E também causa distorções tributárias que afetam especialmente as mulheres”.

E é assim que, “nos últimos anos nossos olhos se voltaram para o impacto do gênero na tributação. Instigadas(os) pelas grandes professoras que coordenam o Tributação e Gênero, do Núcleo de Direito Tributário da Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getulio Vargas – Tathiane Piscitelli, Nubia Castilhos, Lana Borges e Simone Castro – surgiram pesquisadoras dedicadas à produção científica sobre esse tema, que antes era inexplorado no Brasil”.  Ela atribui a essas pesquisadoras o pioneirismo de análise “de modo multidisciplinar e com profundidade o impacto da carga tributária sobre o consumo e a renda das mulheres e a trazer propostas de melhorias do sistema”.

Lendo o trabalho de Lana me dou conta de sua mobilizada preocupação poderia encontrar sustentação teórico-filosófica em Amartya Sen, especialmente em Desenvolvimento como Liberdade (1999) e A Ideia de Justiça (2009), no que o prêmio Nobel critica a visão restrita da igualdade como igualdade formal ou de oportunidades jurídicas. Para ele, a justiça requer analisar as condições efetivas de liberdade e de bem-estar das pessoas — isto é, suas capacidades reais de escolher e realizar modos de vida valiosos.

Na perspectiva de Lana, uma estrutura tributária regressiva (que onera proporcionalmente mais os mais pobres, entre os quais se concentram as mulheres) limita as capacidades reais das mulheres de participar plenamente da vida econômica e social. Assim, perpetua desigualdades de gênero não apenas de renda, mas também de liberdade substantiva.

Por isso que, para ela, uma política tributária sensível ao gênero — por exemplo, com isenções, deduções ou transferências direcionadas às mulheres, tributação progressiva sobre a renda e o patrimônio, ou tributos seletivos sobre bens de luxo — seria um instrumento de ampliação das capacidades centrais femininas, permitindo que as mulheres tenham autonomia econômica e política.

Para Lana, a Constituição brasileira de 1988, ao estabelecer como fundamentos da República a dignidade da pessoa humana, a igualdade substancial e a promoção do bem de todos, está em sintonia com a filosofia das capacidades. Assim que, nesse sentido, a igualdade não é apenas formal, mas um projeto político de transformação social, cuja realização demanda ação coordenada do Estado — inclusive por meio de uma reforma tributária com perspectiva de gênero.

O que Lana sustenta, como hipótese fundante de seu trabalho, é que todas as esferas de poder devem adotar políticas que reduzam desigualdades socioeconômicas entre homens e mulheres encontra respaldo direto na abordagem de Sen e Nussbaum, porque neles, o dever do Estado democrático é ampliar as liberdades substantivas de todos (Sen); e porque sem igualdade de capacidades básicas, não há justiça de gênero nem dignidade humana plena (Nussbaum).

Penso, com efeito, que a análise de Lana Borges sobre a estrutura tributária brasileira sob a perspectiva das desigualdades de gênero, guarda proximidade e pode ser sustentada pela teoria da justiça desenvolvida por Amartya Sen e Martha Nussbaum, especialmente no marco do enfoque das capacidades. Embora esses autores, que exerceram forte cooperação, não seja referidos na bibliografia de Lana, E em relação a essa colaboração que até resultou num livro publicado  por eles, “The Quality of Life” (1993), ambos concordam que métricas tradicionais como renda e riqueza são insuficientes para medir o bem-estar, defendendo uma avaliação focada no que as pessoas são capazes de ser e fazer (suas “capacidades” ou capabilities).

Mas há diferenças nas suas abordagens. A principal diferença reside no fato de que enquanto Sen e Nussbaum compartilham a estrutura fundamental da abordagem das capacidades, Nussbaum a aprofunda nos estudos de gênero ao defender uma lista normativa e universal de capacidades, proporcionando uma base mais concreta para reivindicações de justiça e direitos das mulheres.

Para Sen, a justiça deve ser compreendida não apenas como igualdade formal perante a lei, mas como ampliação das liberdades reais das pessoas para escolher e realizar modos de vida que valorizam. Nessa direção, políticas tributárias regressivas, que oneram de modo desproporcional as mulheres e as classes menos favorecidas, restringem o campo efetivo de escolhas e de participação social, configurando-se como mecanismos estruturais de injustiça.

Nussbaum, ao desenvolver o conceito de capacidades centrais, enfatiza que uma sociedade justa deve assegurar a todas as pessoas um patamar mínimo de condições materiais, políticas e simbólicas que lhes permita viver com dignidade. Assim, políticas públicas tributárias orientadas pela equidade de gênero, ao promoverem a redistribuição de recursos e a ampliação das capacidades femininas, concretizam o projeto constitucional de um Estado Democrático de Direito comprometido com a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, na qual a igualdade substantiva entre homens e mulheres seja efetivamente realizada.

 

quinta-feira, 13 de novembro de 2025

 

Diversidade e Equidade: Olhares da Advocacia Pública

Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito

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Diversidade e Equidade: Olhares da Advocacia Pública. Aline Leal Nunes, Fernanda Mainier Hack. Kleidson Nascimento e Márcia dos Anjos (Organização). Salvador: Editora Mente Aberta, 2025, 312 p.

Interessante na edição da obra é que figura na organização o único homem com status autoral. Todas as demais autorias (incluindo a organização) são femininas, mulheres procuradoras e uma servidora de carreira em Procuradoria: Aline Teixeira Leal Nunes, Ana Carla Pires Meira Cardoso, Apoenna Alencar de Amaral Castro, Cintia Morgado, Claudia Zacarias Almeida Medici, Fabíola Marquetti Sanches  Rahim, Fernanda Mainier Hack, Ivania Lúcia Silva Costa, Lais Maria Costa Andrade, Laura de Araújo da Silva, Lenita Leite Pinho, Márcia dos Anjos, Margarete Gonçalves Pedroso, Mariana Andrade Vieira, Maristela Barbosa Santos, Martha Jackson Franco de Sá monteiro, Sara da Cunha Campos Rabelo e Suzana Magalhães Campos.

Elas traduzem desde seu ofício, mas com fundamentos que seus compromissos com a diversidade, a equidade que constituem o núcleo da função essencial de promoção da justiça, imprimem à atuação que realizam em procuradorias de estado.

Para Lenita Pinheiro, Presidente do Fonped (Forum Permanente de Equidade e Diversidade), ligado ao Conpeg (Colégio Nacional de Procuradores-Gerais dos Estados e do Distrito Federal) e para Aline Leal  Nunes, vice-presidente, “a iniciativa de organizar a coletânea teve como norte a compreensão de que a atuação institucional verdadeiramente transformadora passa pelo reconhecimento das desigualdades estruturais e pela proposição de caminhos concretos para enfrenta-las e para fomentar e fortalecer políticas públicas comprometidas com os direitos humanos”.

A obra conta com 16 artigos tratando, com essa disposição, de temas sobre Governança e Equidade Institucional; Gênero, Raça e Carreiras; Contratações e Responsabilidade Social; Direitos Socioambientais e Justiça Territorial e Comunicação, Cultura e Engajamento; e seu impacto social na advocacia pública em recíproca circuição, vale dizer, o impacto da advocacia pública, no social.

Assim é que Márcia dos Anjos, uma das autoras e organizadoras, que participa das atividades acadêmicas da pós-graduação em direito e em direitos humanos, no âmbito da disciplina O Direito Achado na Rua, confere a sua própria atuação, funcional e autoral, afirmando-se, tal como está em seus artigos na obra, mas especialmente na dedicatória manuscrita que me atribuiu ao me oferecer o livro, como o manifestar-se “de almas inquietas pelo uso do seu múnus público em busca da redução de desigualdades, no exercício de uma prática jurídica emancipatória”.

No Prólogo do livro, aliás, as organizadoras (e o organizador), justificam a publicação nesses fundamentos: “A advocacia pública, em sua essência, desempenha um papel fundamental na construção de uma sociedade justa e democrática. Ela é a guardiã dos direitos fundamentais, a defensora da legalidade e da justiça nas esferas governamentais. E, mais do que isso, a advocacia pública tem um papel estratégico na promoção da equidade e da diversidade, dentro da administração pública, sendo o pilar da implementação de políticas que busquem diminuir desigualdades e construir um futuro mais inclusivo para todas as pessoas”.

Na Apresentação da obra Inês Maria dos Santos Coimbra, Procuradora-Geral do Estado de São Paulo e Presidente do Conpeg, demarca o seu alcance:

Como procuradora-geral do Estado de São Paulo e presidente do Conpeg, vejo a urgência de uma advocacia pública que não apenas seja efi ciente e técnica, mas que abrace a legitimidade e a inclusão em sua essência. Não podemos nos dar ao luxo de ignorar os debates cruciais da nossa sociedade, e a equidade é, sem dúvida, um deles.

A diversidade não é pauta secundária; é o alicerce para construirmos instituições mais humanas, democráticas e verdadeiramente representativas. É por isso que o Fórum Permanente de Equidade e Diversidade (Fonped) – uma iniciativa do Conpeg – é tão significativo. Ele reflete nosso compro misso com a promoção de justiça dentro da própria advocacia pública.

Criado em 2022, o Fonped surgiu como resposta direta à necessidade de combater as desigualdades que, muitas vezes, persistem silenciosamente em nossas procuradorias estaduais. Refiro-me às questões de gênero, raça, orientação sexual, deficiência e outros marcadores sociais. A presença do Fonped no Conpeg demonstra nossa crescente consciência de que a advoca cia pública estadual precisa estar em sintonia com as transformações sociais e com a demanda por instituições mais inclusivas e representativas.

Esse é um passo fundamental, alinhado a uma pauta que ganha cada vez mais força no debate público. Reconhecemos que a diversidade e a equi dade são, de fato, pilares para o fortalecimento institucional. Ao analisar a composição de nossas PGEs, a distribuição das posições de poder e os obstáculos enfrentados por grupos historicamente sub-representados, o Fonped estabelece-se como um espaço contínuo para ouvir, diagnosticar e propor mudanças.

Para mim, o Fonped vai além de um grupo de trabalho, representando uma postura institucional clara: não podemos mais aceitar a exclusão como algo natural. A presença de mulheres, pessoas negras, LGBTQIAPN+, pes soas com deficiência e outras identidades diversas em nossas procuradorias não deve ser vista como uma exceção ou uma conquista individual. É exigência ética e republicana, que demanda políticas estruturadas, dados confiáveis, recursos adequados e, acima de tudo, vontade coletiva de transformação.

Os esforços do Fonped – como o diagnóstico nacional da força de trabalho nas PGEs, a articulação de representantes estaduais, a promoção de debates internos e a construção de estratégias inclusivas – dialogam dire tamente com os temas que este livro explora. Esta coletânea de artigos traz 9 10 | Apresentação – Inês Maria dos Santos Coimbra reflexões inestimáveis sobre os desafios e as potencialidades da advocacia pública sob a ótica da diversidade.

Em cada texto, percebemos a reafirmação de que o direito não é neutro e que as instituições só se transformam quando enfrentam ativamente as desigualdades que as permeiam. A obra busca ampliar o debate sobre equi dade na advocacia pública, ampliando a visibilidade e conferindo substância a experiências, conhecimentos e propostas que nos guiam para um futuro mais plural.

A equidade, para mim, não é um ideal abstrato; é prática diária, escolha institucional e compromisso com um Estado mais justo. Que este livro seja mais do que uma coletânea. Que seja instrumento para que a advocacia pú blica brasileira caminhe com firmeza rumo a uma cultura institucional que, em sua totalidade, reconheça e valorize a diversidade de seus membros e de sua missão.

De minha parte assinalo que a coletânea proporciona uma leitura emancipatória da advocacia pública porque desloca o ofício e a aplicação do direito da posição burocrática de defesa da máquina estatal, isolada num legalismo estiolante que bloqueia o olhar vigilante sobre as exigências do justo, incapaz de apreender o direito achado na rua (CANOTILHO, J. J. Gomes. Teoria da Constituição e do Direito Constitucional, nota 122). Ao contrário, com inspiração em teorias de sociedade e de justiça abre perspectivas para reconstruir-se como agente de efetivação de direitos humanos, promoção da justiça social e democratização do Estado.

Penso que essa forma de ativar o agir institucional guarda pertinência com os enunciados de O Direito Achado na Rua, sua concepção e prática, que tem procurado atribuir à prática jurídica e da própria advocacia pública uma agência interesse público emancipatório, ou seja, uma advocacia voltada à realização concreta dos direitos humanos e sociais, à transparência administrativa e à inclusão dos sujeitos historicamente invisibilizados nas decisões do Estado.

Essa concepção rompe com a visão meramente técnica ou corporativa e insere a advocacia pública no campo das lutas sociais pela dignidade, como parte da construção de um “direito insurgente” — aquele que nasce de baixo, das ruas, dos movimentos e das demandas coletivas.

Nos marcos dessa corrente teórica, o direito é compreendido como: “expressão das práticas sociais de liberdade” (Lyra Filho, O que é Direito, 1982), tanto que, no que toca à advocacia pública, esta é convocada a ser mediadora dessas práticas de liberdade, reconhecendo os sujeitos coletivos de direito e orientando sua atuação não apenas pela legalidade formal, mas pela legitimidade democrática e pelo compromisso ético com os direitos fundamentais.

Concretizar a função social do Estado e não apenas defendê-lo formalmente; é fazer o controle interno da juridicidade com base nos direitos humanos; é agir como promotora da diversidade e da equidade dentro da administração e em suas políticas públicas; é abrir espaços institucionais de escuta e participação popular; é resgatar o sentido republicano da coisa pública, impedindo a captura privada do Estado.

Pode-se dizer, nesse passo, que a advocacia pública emancipatória é o exercício ético e político da defesa do interesse público fundado nos direitos humanos, na justiça social e na participação democrática, sendo expressão da juridicidade cidadã que transforma o Estado em instrumento da liberdade.

Sobre essa perspectiva emancipatória que convoca a advocacia pública e principalmente a defensoria pública, ver https://estadodedireito.com.br/direitos-humanos-na-sociedade-acesso-a-justica-genero-e-protecao-de-direitos/https://estadodedireito.com.br/o-direito-achado-na-rua-e-as-possibilidades-de-praticas-juridicas-emancipadoras/;

https://estadodedireito.com.br/defensoria-publica-e-a-tutela-estrategica-dos-coletivamente-vulnerabilizados/.

Para onde tange essa perspectiva? Para escapar ao estiolamento formalista a que alude Canotilho. A mera enunciação de direitos, não se mostra suficiente para assegurar o respeito aos ditames essenciais para o regime democrático. Além da notória inflação legislativa, que em momentos críticos tende a reprimir com mais severidade, lesionar, ainda mais, os já lesionados e fragilizados, e a blindar, com mais força, os já extremamente poderosos e bem-sucedidos em suas empreitadas, temos o próprio agir judicial, que não reconhece potências nos destinatários das normas, que esbarra em questões técnicas de pouca importância e que atua em uma agir que fica distanciado dos reais conflitos que perpassam a sociedade e que marcam o distanciamento entre os muitos que não possuem quase nada e os poucos que tem quase tudo.

As audiências e os processos judiciais, físicos ou digitais, são marcados por hierarquias, submissão, poderes. Acredita-se no primado da lei e há uma crença (quase) inabalável no simbolismo da normatização. Uma verdadeira fé cívica na norma, que mastiga qualquer possibilidade de análise crítica em seus efeitos e em seus postulados, de tal sorte que direito material e processual se confundem quanto à relevância, em detrimento do bem da vida discutido e dos efeitos sociais implicados pela decisão. E, nisso, o direito e a rua se perdem para formalismos contrafactuais. Consagra-se uma estrutura sistêmica que obsta, ou dificulta sobremaneira, o atendimento sinestésico de magistrados, promotores, defensores e advogados com os reais interesses, preocupações e necessidades da vítima. A anestesia judicial, atenta expressão cunhada por David Sánchez Rubio (Encantos e desencantos dos direitos humanos: de emancipações, libertações e dominações. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2014, p. 128), afasta o elemento que poderia dotar de maior potencialidade o sistema judicial, que consiste em uma atuação mais próxima e atenta para a proteção dos direitos humanos, com sensibilidade, preocupação real, enfim, afetividade na atuação com populações diariamente vitimizadas por condições sociais desiguais (AMARAL, Alberto Carvalho. A violência doméstica a partir do olhar das vítimas: reflexões sobre a Lei Maria da Penha em juízo. Belo Horizonte: D’Plácido, 2017; AMARAL, Alberto Carvalho. Mulheres, violência de gênero e as dificuldades no acesso às proteções judiciais da Lei Maria da Penha. In: 13º Congresso Mundos de Mulheres e Seminário Internacional Fazendo Gênero, “Transformações, Conexões, Deslocamentos”. Florianópolis: UFSC, 2018).

A humanização do direito e do sistema judicial demanda, também, discutir o direito que se ensina e que é aprendido. Aponta-se, com bastante destaque, que o positivismo hermético, matriz adotada pelas nossas faculdades de direito e que é reforçada pela prática diária calcada em precedentes, enunciados, estudos para concursos, vai firmar uma docência e uma prática na qual “não há direito para os juristas. O que existem são leis. Logo, nossas faculdades não são de direito, são escolas técnicas de leis. Isso significa que está na hora de criarmos os cursos jurídicos no Brasil” (AGUIAR, Roberto A. R. de. O Imaginário dos Juristas. In CARVALHO, Amilton Bueno de (Diretor). Revista de Direito Alternativo, São Paulo, n. 2, 1993, p. 26), fazendo-se ressoar outros saberes e outras matizes de pensamento que não se vinculem e não exteriorizem um direito que se acha válido por si e que afaste a realidade na consideração de sua própria legitimidade.

Compulsando o trabalho o que se confirma é o desiderato assinalado por suas Organizadoras (e organizador), contando-se que cada texto é uma contribuição valiosa para a reflexão sobre a implementação de políticas públicas inclusivas e a construção de um serviço público mais acessível, plural e atento às diversas realidades e necessidades da sociedade. Aqui, o compromisso com a justiça não se limita à interpretação das leis, mas se estende à aplicação delas de maneira equânime, com respeito às diferenças e com um olhar atento para as questões de gênero, raça, orientação sexual e outras identidades muitas vezes marginalizadas.

terça-feira, 11 de novembro de 2025

 

20 Anos das Promotoras Legais Populares – PLPs, do Distrito Federal e Entorno

Por: José Geraldo de Sousa Junior (*) – Jornal Brasil Popular/DF

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Foto de Eneida Bello Dultra

As Promotoras Legais Populares do Distrito Federal e Entorno (PLPs/DF) promoveram nesse 8 de novembro, no NPJ – Núcleo de Prática Jurídica da Faculdade de Direito da UnB e Polo de Extensão da Universidade de Brasília, em Ceilândia, onde o projeto está instalado e desenvolve suas principais atividades, uma bonita, afetiva e memorialista celebração de seus 20 anos.

Matéria especial no site do CFEMEA – Centro Feminista de Estudos e Assessoria, conta um pouco mais sobre a história e a importância desse projeto. https://www.cfemea.org.br/index.php?view=article&id=11069:20-anos-das-promotoras-legais-populares-do-df-e-entorno&catid=562.

Mas uma visita à página do Projeto PLP na internet –https://plpunb.blogspot.com/p/atuacao.html – revela de modo bem completo a fortuna crítica do projeto Promotoras Legais Populares do Distrito Federal e Entorno.

Ali vamos encontrar que ele é inspirado na experiência produzida há mais de 25 anos no Brasil pela União de Mulheres de São Paulo e pela Themis Assessoria Jurídica e Estudos de Gênero, do Rio Grande do Sul.

No Distrito Federal, as PLPs surgiram em 2005 e se estruturaram como projeto de extensão vinculado à Faculdade de Direito da Universidade de Brasília. Atualmente, para além do projeto de extensão, as PLPs/DF também se identificam como um coletivo auto-organizado de mulheres que lutam pelo fim das opressões de gênero, raça e classe.

Uma das principais formas de atuação das PLPs consiste na oferta de um curso anual de formação de Promotoras Legais Populares, que conta com o apoio da Universidade de Brasília (UnB), do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (MPDFT) e da Fundação Osvaldo Cruz (Fiocruz).

O curso é voltado para mulheres de perfis econômico, social e cultural diferenciados e promove a formação das mulheres em noções de direito, gênero e cidadania a partir do método da educação popular. Assim, o curso se propõe a ser um espaço no qual as mulheres possam debater sobre suas realidades e construir sentidos sobre o direito e a sociedade a partir da categoria de gênero.

Também em https://www.cfemea.org.br/index.php?view=article&id=11069:20-anos-das-promotoras-legais-populares-do-df-e-entorno&catid=562, vamos poder conhecer que originado na década de 1990, o projeto é realizado em diversos estados e em vários formatos com apoio de Universidades, organizações feministas e instituições não governamentais, como promotor de processos emancipatórios por meio da prática da educação popular feminista. A primeira turma formada foi no Rio Grande do Sul, por iniciativa da Themis em 1993, organização feminista de Porto Alegre, em seguida em 1994, foi a vez de São Paulo, com a União de Mulheres de São Paulo. O projeto promove a formação de mulheres líderes comunitárias que orientam outras mulheres sobre direitos, acesso à justiça, combate à violência de gênero e discriminação.

Estive na celebração pelos meus vínculos estreitos com o projeto da UnB, do qual, aliás, fui o primeiro coordenador, em 2005, por convocação de alunas do curso de direito da da UnB, que queriam uma prática extensionista capaz de interpelar o dogmatismo positivista que frustrava suas mais utópicas expectativas de uma atuação jurídica de apoio à cidadania e aos direitos humanos, muito ausente quando não com viés redutor, limitando teórica e politicamente a sua formação.

Contei um pouco dessa fase em https://estadodedireito.com.br/a-promocao-da-cidadania-nas-ruas-defensoras-populares-dpe-go-2019-e-a-praxis-da-educacao-critica-e-popular-em-direitos-humanos-das-mulheres-para-alem-dos-muros-institucionais/ , ao resenhar o trabalho acadêmico de Isabella Silva Fitas. A promoção da cidadania nas ruas “Defensoras Populares (DPE-GO/2019)” e a práxis da educação crítica e popular em direitos humanos das mulheres para além dos muros institucionais. Dissertação apresentada ao Programa de PósGraduação Stricto Sensu em Direitos Humanos e Cidadania, da Universidade de Brasília. Brasília: UnB, 2024, 108 fls e anexos.

Trouxe registros desse percurso inicial, com referência a estudo de Carolina Pereira Tokarski, Alguma Coisa Acontece na Faculdade de Direito, publicado no volume Direitos Humanos e Gênero: Promotoras Legais Populares editado pelo Projeto, com apoio da UnB, com registros de orientadores, monitoras/oficineiras e alunas da 5a Turma PLP/UnB.

Para Carolina Torkarski, uma das alunas líderes da mobilização que levou à institucionalização do projeto na UnB, a partir da constatação do modo empobrecedor que o curso jurídico trazia para a formação acadêmica, era decepcionante constatar a perda do brilho do olhar, da criatividade, da habilidade de urdir soluções novas, carentes de pressupostos deferentes e teorias transformadoras.

Ela e o grupo de estudantes que se mobilizaram para repensar a sua formação, carente de estudos de gênero, juntamente com a expectativa de pensar o jurídico com a mediação do sensível e da solidariedade, implicou uma adesão aos pressupostos da corrente teórico-política constituída ao embalo da crítica epistemológica animando também o campo do Direito na UnB na forma do projeto/movimento O Direito Achado na Rua. Elas também reivindicaram uma outra forma de inserção das estudantes-mulheres no contexto pedagógico emancipatório, direito como legítima organização social da liberdade que é o fundamento de O Direito Achado na Rua, e se lançaram a um experimento de extensão universitária, compartilhando com a comunidade do entorno da UnB, onde escolheram seu campo de trabalho, estímulo para leituras sobre as experiências de educação popular com mulheres, no modelo dos cursos de Promotoras Legais Populares que já existiam em outras partes do país, conduzidos por ONGs, a exemplo do Themis, à época dirigido por Denise Dora, uma das principais formuladoras dessa proposta no Brasil. As alunas leram avidamente o artigo de Virgínia Feix Em Frente da Lei tem um Guarda, do Themis, publicado no livro Educando para os Direitos Humanos. Pautas Pedagógicas para a Cidadania na Universidade, que organizei com colegas do Núcleo de Estudos para a Paz e Direitos Humanos da UnB, no qual Vírginia, àquela altura Coordenadora Executiva do Themis, avalia a estratégia das lutas femininas, inclusive de Promotoras Legais Populares para utilizar o Direito como instrumento de transformação da realidade de exclusão das mulheres e enfrentamento de todas as formas de discriminação derivadas de uma das diferenças fundantes de nossa sociedade: a diferença de gênero.

Depois, em sua dissertação de Mestrado, Com quem dialogam os bacharéis em direito da Universidade de Brasília?: a experiência da extensão jurídica popular no aprendizado da democracia, defendida em 2009 na Faculdade de Direito da UnB, sob minha orientação, Carolina Torkarski interpela essa realidade e traz para o centro de sua análise crítica vários projetos de extensão da Faculdade de Direito da UnB e, notadamente, o Projeto Promotoras Legais Populares. A dissertação, ela mesma, é um registro da experiência pioneira da UnB pode ser conferida no Repositório de Teses e Dissertações da UnB, a partir da sua indexação.

Na página do Projeto já indicada, há uma seleção importante de livros, artigos, monografias, dissertações e teses que se voltaram para a identificação e a análise crítica do significado desse modelo emancipador de formação de mulheres em gênero e em direitos humanos. Basta ver alguns de seus desdobramentos notáveis: a institucionalização em Águas Lindas – GO, do projeto Vez e Voz, para enfrentamento de tráfico de pessoas, com o grande protagonismo da Promotora Legal Rosa Maria, recentemente falecida e por seu ativismo homenageada na celebração. Sobre o Vez e Voz, ver https://estadodedireito.com.br/sonhos-que-viram-pesadelos-o-trafico-de-pessoas-e-a-zona-do-nao-ser/, livro originado da monografia de Sabrina Beatriz Ribeiro, Sonhos que Viram Pesadelos: o tráfico de pessoas e a zona do não-ser. Salvador: Editora Segundo Selo, Coleção Monografias (Direito), 2025. Sabrina, ex-PLP desenvolve atualmente dissertação de mestrado sobre essa experiência. Ver também o debate no Forum Social Mundial Temático Justiça e Democracia: https://www.youtube.com/watch?v=3z_4_I_iLao. Sobre Rosa Maria, confira-se o vídeo https://www.youtube.com/watch?v=KaT3sUwW-RE&t=3193s.

Outro importante desdobramento foi a criação em Brasília do Forum de Promotoras Legais Populares, que opera como um espaço político de agregação das promotoras legais populares formadas no projeto em apoio a sua atuação social. O Forum tem logrado assegurar cadeiras no Conselho de Defesa de Direitos da Mulher do Distrito Federal

Acho importante oferecer ao leitor um catálogo desse rico material de análise que forma a fortuna crítica do Projeto.

Livros:

SOUSA JUNIOR, José Geraldo; FONSECA, Lívia Gimenes Dias; BAQUEIRO, Paula de Andrade (Org.). Promotoras Legais Populares movimentando mulheres pelo Brasil: análises de experiências. Brasília: Universidade de Brasília, 2019, v. 1, 336p.

APOSTOLOVA, Bistra Stefanova; FONSECA, Lívia Gimenes Dias; SOUSA JUNIOR, José Geraldo (Org.). Introdução crítica ao direito das mulheres. Brasília: CEAD, Fundação Universidade de Brasília, 2014, v. 1, 210p .

Artigos:

COSTA, Bruna Santos; LIMA, Fernanda Truite Pereira; MENDES, Juliana Manhães; SENRA, Laura Carneiro de Mello; SANTOS, Luna Borges Pereira; RABELO, Mariana Cintra; COSTA, Renata Cristina de F. G. Direito, emancipação e cidadania: a experiência do projeto Promotoras Legais Populares no embate à violência contra a mulher e na transformação de realidades. Revista Participação. N. 15. Revista do Decanato de Extensão da Universidade de Brasília. UnB. Brasília, 2009.

COSTA, Alexandre Bernardino; FONSECA, Lívia Gimenes Dias da; SOUSA, Nair Heloísa Bicalho de; BICALHO, Mariana de Faria. O Direito Achado na Rua: 25 anos de experiência de extensão. Revista Participação. Revista do Decanato de Extensão da Universidade de Brasília. n. 18, UnB. Brasília, 2010.

FONSECA, Lívia G.D.; COSTA, Renata; SANTOS, Bruna; BORGES, Luna. Direitos humanos, gênero e cidadania:a experiência emancipatória das promotoras legais populares no Distrito Federal, Brasil. Revista Punto Género, editada por el Núcleo de Investigación en Género y Sociedad Julieta Kirkwood de la Facultad de Ciencias Sociales – Universidad de Chile, 2011.

DUQUE, Ana Paula Del Vieira; WEYL, Luana Medeiros; SOUSA, Lucas Ferreira Cacau de; JORGENSEN, Nuni Vieira. Promotoras Legais Populares: Repensando Direito e Educação para o empoderamento das mulheres. Revista Direito e Sensibilidade, vol. 1, n. 1, 2011.

DUQUE, Ana Paula Del Vieira; LIMA, Anna Beatriz Parlato de; CUSTÓDIO, Cíntia Mara Dias; WEYL, Luana Medeiros; SOUSA, Lucas Ferreira Cacau de; JACOBSEN, Luiza Rocha; JORGENSEN, Nuni Vieira. Direito e Gênero: o Projeto Promotoras Legais Populares e sua orientação à emancipação feminina. Revista Direito E Práxis, vol. 2, n. 1, 2011.

WEYL, Luana M. Combater a Feminização da Pobreza com Empoderamento Feminino – A Experiência do Projeto de Extensão Universitária: “Promotoras Legais Populares” da Universidade de Brasília. Anis. XI Congreso Iberoamericano de Extension Universitaria. Santa Fé, Argentina, 2011.

GIMENES DIAS DA FONSECA, Lívia; DE FARIA GONÇALVES COSTA, Renata Cristina; NEPOMUCENO NARDI, Diego. Extensão Popular Feminista por uma Universidade Democrática e Emancipatória/Feminist Popular Extension towards a Democratic and Emancipatory University. Revista Direito e Práxis, v. 6, p. 143-171, 2015.

Monografias:

SANTOS, Thalita Najara da Silva. Yalodês: mulheres negras na encruzilhada do direito achado na rua: a centralidade racial nas Promotoras Legais Populares do Distrito Federal. 2018. 97 f. Trabalho de Conclusão de Curso (Bacharelado em Direito)—Universidade de Brasília, Brasília, 2018.

MENDONÇA, Cristiane Terra. Debate de Gênero e de Direitos: O Projeto De Extensão Promotoras Legais Populares/DF como instrumento de transformação social. Monografia (Bacharelado em Direito), Universidade de Brasília, Brasília, 2016.

COSTA, Juliana Barbosa da. Mulheres Latino-Americanas em Luta por Direitos: Aproximações entre o Projeto Promotoras Legais Populares do Distrito Federal e o Pensamento Feminista Latino-Americano. Monografia (Bacharelado em Direito), Universidade de Brasília, Brasília, 2015.

CORREIA, Ana Elisa Banhatto. Primeira edição do Curso a Distância “Introdução crítica ao Direito das Mulheres”: uma experiência de educação popular jurídica e feminista. Monografia (Bacharelado em Direito), Universidade de Brasília, Brasília, 2015.

TOKARSKI, Carolina. A extensão nos cursos de direito à luz do humanismo dialético: a experiência do Projeto Promotoras Legais Populares. Monografia (Bacharelado em Direito),

Universidade de Brasília, Brasília: 2007.

Dissertações de mestrado:

FONSECA, Lívia Gimenes Dias da. A luta pela liberdade em casa e na rua: a construção do direito das mulheres a partir do projeto Promotoras Legais Populares do Distrito Federal. 2012. 171 f. Dissertação (Mestrado em Direito)—Universidade de Brasília, Brasília, 2012.

TOKARSKI, Carolina Pereira. Com quem dialogam os bacharéis em direito da Universidade de Brasília?: a experiência da extensão jurídica popular no aprendizado da democracia. 2009. 140 f. Dissertação (Mestrado em Direito)-Universidade de Brasília, Brasília, 2009.

O projeto PLPs da UnB, enraizado e consolidado institucionalmente, atualmente coordenado pela Professora Lívia Gimenes Dias da Fonseca (depois de mim e antes dela, pelas professoras Bistra Stefanova Apostolova e Talita Tatiana Dias Rampin),T é uma ação paradigmática, reconhecida e premiada. Em 2017 foi Menção Honrosa – A – Educação Formal, do 5º Prêmio Nacional de Educação em Direitos Humanos (Prêmio Ibero-Americano de Educação em Direitos Humanos); em 2019 I Prêmio Marielle Franco de Direitos Humanos, na categoria Organização da Sociedade Civil (Câmara Legislativa do Distrito Federal); e nesse 18 de novembro de 2024, recebe Menção Honrosa no IIIº PRÊMIO ANUAL DE DIREITOS HUMANOS ANÍSIO TEIXEIRA, da Universidade de Brasília, pela projeto PEAC Direitos Humanos e Gênero: capacitação em noções de direito e cidadania (Promotoras Legais Populares (PLP) -Faculdade de Direito (FD).

(*) José Geraldo de Sousa Junior é professor titular na Faculdade de Direito e ex-reitor da Universidade de Brasília (UnB)