quarta-feira, 31 de julho de 2024

 

Os ventos que sopram na Serra do Inácio – Piauí: quando os invisíveis têm direitos?

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Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito

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Karla Araújo de Andrade Leite. Os Ventos que Sopram na Serra do Inácio – Piauí: quando os invisíveis têm direitos?. Dissertação de Mestrado. Teresina/Universidade Estadual do Piauí – UESPI/PPGSC, Campus Poeta Torquato Neto, 2024, 142 p.

 

Com alegria e com uma ponta de orgulho recebi e logo mergulhei numa proveitosa leitura deste trabalho acadêmico da Defensora Pública Karla Araújo de Andrade Leite Os Ventos que Sopram na Serra do Inácio – Piauí: quando os invisíveis têm direitos?.

A alegria vem de confirmar, o que já era um indicativo de seu exercício funcional na Defensoria Pública, a perspectiva de que o múnus público de seu ofício já trazia interpelações não só políticas mas epistemológicas para conduzir e fundamentar suas intervenções, atentas às condições sociais e também teóricas, razões para justificar o meu orgulho.

O resumo da Dissertação valida esse duplo sentimento, ao mesmo tempo que expõe o tema e os objetivos do trabalho:

Este trabalho desenvolveu pesquisa empírica, de orientação participante e interdisciplinar, insculpido no marco teórico do pensamento crítico dos direitos humanos e das teorias descoloniais, e objetivou a sistematização de uma atuação contracolonialista a ser articulada pelas Defensorias Públicas. Partiu de estudo de casos, após atendimento à população da Serra do Inácio – Piauí, que foi profundamente afetada pela instalação de parques eólicos a partir de 2016. O estudo demonstrou que o incentivo do Estado à instalação das usinas de energia eólica desconsiderou os seus impactos nefastos, entre eles o silenciamento da população local. A pesquisa qualitativa apontou que famílias inteiras viviam sem documentos pessoais, sem acesso a políticas públicas ou qualquer amparo social. Revelou que os moradores, que já viviam em situação de vulnerabilidade, foram inviabilizados pelas práticas colonialistas de incentivo ao capital. A existência dos textos normativos com garantias de direitos era insuficiente para a superação da desigualdade social acentuada pelas decisões políticas adotadas na região. A proposta da presente pesquisa pauta a invisibilidade dos povos considerados subalternos pela própria estrutura do Estado e da organização institucional que sustenta em suas condutas a colonialidade do poder, legitimando dinâmicas econômicas do eixo Sudeste-Sul, onde se fortaleceram e se consolidaram os grandes centros industriais do País, em detrimento das demais macrorregiões, que foram relegadas à periferia do sistema. O método da pesquisa-intervenção, que usa como arcabouço uma pesquisa qualitativa participativa, foi capaz de definir seu plano de atuação entre a produção de conhecimento e a transformação da realidade. Este enfoque metodológico participativo permitiu que o momento de intervenção também servisse à produção teórica, incluindo a própria instituição (Defensoria Pública) na análise. A abordagem se restringiu aos atendimentos realizados aos moradores dos municípios situados do lado piauiense da Serra do Inácio, Curral Novo do Piauí e Betânia do Piauí, entre os anos de 2019 a 2022. Também foram utilizadas informações e imagens publicadas em veículos de comunicação e por documentários. O desenvolvimento da dissertação perseguiu o objetivo de sistematizar uma atuação contracolonialista que pudesse verdadeiramente atender ao que determina a Constituição Federal de 1988, que desenhou em seu art. 134 uma instituição com a missão de promover os direitos humanos. Esta instituição, umbilicalmente relacionada ao regime democrático, é a Defensoria Pública. O estudo também foi guiado pelas compreensões do Professor José Geraldo de Sousa Júnior e as reflexões da coleção O Direito achado na rua, por ele coordenada, que traz estudos críticos que pensam o Direito como emancipação e o compreende como criação do social, defendendo o pluralismo jurídico e a condição de insurgência. Após sistematização das práticas adotadas no acompanhamento dos casos da Serra do Inácio, o trabalhou analisou 03 eixos de atuação que marcaram uma postura manifestamente contracolonialista da defensoria Pública, com propósitos emancipatórios do público atendido.

 

O estudo de Karla, nesses termos, se insere numa abordagem que adensa a perspectiva que associa a ação de assessoramento jurídico-popular no marco do pensamento decolonial. Procurei sinalizar essa relação em  https://estadodedireito.com.br/a-assessoria-juridica-popular-no-marco-do-pensamento-decolonial-direitos-e-saberes-construidos-nas-resistencias-populares/, ao fazer recensão do importante trabalho A Assessoria Jurídica Popular no Marco do Pensamento Decolonial. Direitos e Saberes Construídos nas Resistências Populares de Maria do Rosário de Oliveira Carneiro. Belo Horizonte: Editora Dialética, 2020.

Do mesmo modo, embora sem caber exatamente no recorte de experiências cartografáveis, pode ser identificada pelas designações mais gerais que demarcam a disposição de mobilizar o jurídico para assessorar os sujeitos que protagonizam a emancipação social. Também anotei essa perspectiva em outra recensão – https://estadodedireito.com.br/mapa-territorial-tematico-e-instrumental-da-assessoria-juridica-e-advocacia-popular-no-brasil/ – ao me debruçar sobre o estudo paradigmático, que bem poderia ser atualizado – Mapa Territorial, Temático e Instrumental da Assessoria Jurídica e Advocacia Popular no Brasil / José Antônio P. Gediel, Leandro Gorsdorf, Antonio Escrivão Filho, Hugo Belarmino, Marcos J. F. Oliveira Lima, Eduardo F. de Araújo, Yuri Campagnaro, Andréa Guimarães, João T. N. de Medeiros Filho, Tchenna Maso, Kamila B. A. Pessoa, Igor Benício, Virnélia Lopes, André Barreto – Curitiba/PR – Brasília/DF – João Pessoa/PB 2011. 90 p. ISBN: 978-85-62707-38-4.

Karla parte do território epistemológico de sua prática jurídica que é a Defensoria Pública. Desde esse território, são próximas, mas com especificidades, as possibilidades das práticas jurídicas emancipatórias. Tendo em vista um dos pressupostos de Karla – O Direito Achado na Rua – essas possibilidades pavimentam uma conexão naquele plano que já mencionei, o das condições sociais e das possibilidades teóricas.

Assim que, em trabalho de catalogação, realizado pela Defensoria Pública do Distrito Federal – a partir de seu programa editorial – tratei de demonstrar essa realção, por meio de categorias que serevm à Karla para seu fundamento teórico, conforme https://estadodedireito.com.br/o-direito-achado-na-rua-e-as-possibilidades-de-praticas-juridicas-emancipadoras/,  fazendo a análise de duas edições da Revista da Defensoria Pública do Distrito Federal.  V. 1 n. 3 (2019): Ordenamentos jurídicos, monismos e pluralismos: O Direito Achado na Rua e as possibilidades de práticas jurídicas emancipadoras. José Geraldo de Sousa Junior, Nair Heloisa Bicalho de Sousa , Alberto Carvalho Amaral ,Talita Tatiana Dias Rampim (Editores).  Endereço do link para a edição completa da Revista: http://revista.defensoria.df.gov.br/revista/index.php/revista/issue/view/8/RDPDF%20vol%201%20n%203%202019.

De toda sorte, estamos em face de um estudo, que até por sua determinação metodológica, se presta a qualificar o que tenho chamado, com outros colegas, no duplo plano, teórico e prático, de experiências que devemos compartilhar sobre acesso à justiça.

Para tanto, sugiro considerar como uma espécie de guia – https://estadodedireito.com.br/experiencias-compartilhadas-de-acesso-a-justica-reflexoes-teoricas-e-praticas,  com referências a REBOUÇAS, Gabriela Maia; SOUSA JUNIOR, José Geraldo de; CARVALHO NETO, Ernani Rodrigues de (Organizadores). Experiências Compartilhadas de Acesso à Justiça: Reflexões teóricas e práticas. Santa Cruz do Sul: Essere nel Mondo, 2016, 281 p. Texto Eletrônico. Modelo de Acesso World Wide Web (gratuito). www.esserenelmondo.com.br e REBOUÇAS, Babriela Maia; SOUSA JUNIOR, José Geraldo de; ESTEVES, Juliana Teixeira (Organizadores). Políticas Públicas de Acesso à Justiça: Transições e Desafios. Santa Cruz do Sul: Essere nel Mondo, 2017, 177 p. E-Book (gratuito). www.esserenelmondo.com.br.

Recentemente revisitei esse guia em condições de uma interlocução que se fez estratégica, ao ensejo de um debate de alcance inclusive internacional. A propósito, um texto de divulgação no qual resumo elementos dessa interlocução: https://brasilpopular.com/a-atuacao-das-defensorias-publicas-e-das-ouvidorias-externas-no-fortalecimento-da-democracia-participativa/.

Ali afirmo que a Defensoria Pública é, fora de dúvida, uma conquista da democracia e da sociedade brasileira. E os defensores e defensoras, são verdadeiros agentes da transformação, em sua missão de defender os direitos dos vulnerabilizados, assim mesmo designados, ao invés de vulneráveis, já que não se trata de um destino mas de uma condição, quando confrontam pois, as desigualdades sociais e promovem a inclusão social. Ao lado da justiça social, garantem a voz daqueles que mais precisam seja ouvida e seus direitos sejam respeitados.

O trabalho de Karla Araújo de Andrade Leite responde com substância a essa conquista. É expressão dela constitutiva. Isso transparece do seu resumo, já transcrito e do sumário que o organiza:

Sumário

  1. Considerações Iniciais
  2. Os Ventos que Sopram no Piauí

2.1       Serra do Inácio: o lugar e o não-lugar

2.2       Vozes ao Vento: a invisibilidade dos locais

2.3       Energia Eólica: alienação dos ventos piauienses

  1. Colonialidade do Poder: Vulnerabilidades e Invisibilidade Social na Serra do Inácio

3.1       As vulnerabilidades da Serra do Inácio

3.2       A invisibilidade social na Serra do Inácio

  1. Missão Contracolonialista da Defensoria Pública: Quando os Invisíveis têm Direitos?

4.1       Defensoria Pública: Entre o invisível e o visível

4.2       Missão Contracolonialista da Defensoria Pública: perspectiva necessária para promoção dos direitos humanos

  1. Considerações Finais

Referências

 

Estou muito de acordo com essa perspectiva, que encontro em posicionamentos de muitos defensores e defensoras, entre eles e elas, Karla Araújo. Aliás, assim também me posicionei quando da edição do livro Defensoria Pública e a Tutela Estratégica dos Coletivamente Vulnerabilizados. (Orgs): Lucas Diz Simões, Flávia Marcelle Torres Ferreira de Morais, Diego Escobar Francisquini. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2019.

Com Alberto Carvalho Amaral, Defensor Público em Brasília e como minha colega professora na Universidade de Brasília Talita Tatiana Dias Rampim, contribuímos para a obra com o artigo “Exigências críticas para a assessoria jurídica popular: contribuições de O Direito Achado na Rua”, p. 803-826.   Na nossa abordagem, colocadas as questões pressupostas, focalizamos dois aspectos destacados para atender o plano da obra, que pede enfoque teórico e também prático: 1- A Defensoria Pública como necessário ator qualificado para o alargamento e a democratização do acesso à justiça; 2 – O projeto “Defensoras e Defensores Populares do Distrito Federal”: ação difusora e conscientizadora sobre direitos humanos, cidadania e ordenamento jurídico

No primeiro aspecto, para nós, o acesso à justiça constitui-se direito fundamental garantido pela Constituição da República Federativa do Brasil, promulgada aos 5 de outubro de 1988 – CF/88 e não significa, necessariamente, acesso ao Judiciário. Partimos de uma visão axiológica da expressão “justiça”, que representa uma determinada ordem de valores e direitos fundamentais para o ser humano. Esse tema tem sido pesquisado por juristas e sociólogos, como Mauro Cappelletti e Bryant Garth , que consideram que o acesso à justiça pode ser encarado como o mais básico dos direitos humanos inseridos no contexto de um sistema jurídico moderno e igualitário, comprometido com a garantia (e não apenas com a proclamação) do direito de todos (https://estadodedireito.com.br/defensoria-publica-e-a-tutela-estrategica-dos-coletivamente-vulnerabilizados/).

Quando analisamos o desenho institucional conferido à Defensoria, verificamos a presença de fortes elementos democratizantes, que aproximam a instituição e sua prática a esse subcampo político-jurídico. Presença esta que notamos desde a constitucionalização de sua função essencial à justiça, passando pela natureza dos direitos e sujeitos que tutela e serve, até alcançar a sua arquitetura institucional.

A Defensoria Pública é uma instituição que figura como um dos principais atores para o alargamento e a democratização do acesso à justiça no Brasil. Comumente associada ao exercício de uma de suas funções constitucionais, a saber, a prestação de assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos (CF/88, artigo 5º, inciso LXXIV) – ou, atualmente, na tutela de grupos socialmente vulneráveis –, suas funções institucionais não se reduzem à dimensão da assistência judicial, mas, antes, a projetam como ator qualificado para a democratização da justiça no Brasil.

Isso advém, também, do processo de institucionalização do órgão, que inova ao ser introduzido em texto constitucional – atuação de constituinte originário que, posteriormente, será agregada por diversos outros países latino-americanos  – como “verdadeiro modelo organizacional” a ser “assumido efetivamente pelo Estado”, prestigiando uma concepção ampla de acesso à justiça, que situa seus esforços na diminuição das desigualdades sociais, concretizadas em contundentes e rotineiras violações interpenetrantes de estruturas monetárias, raciais, sexuais, locais, identitárias, culturais, enfim, de um complexo de variantes discriminatórios que, na realidade fática, complexificam as dificuldades de efetivar acesso à proteção de direitos essenciais para o exercício básico da cidadania .

Nesse espaço sistêmico da Justiça, apenas a Defensoria Pública pensada nos termos da Constituição de 1988, é a instituição que mais avançou nessa direção, teórica, política e funcionalmente (https://brasilpopular.com/participacao-popular-consultiva-no-conselho-de-defensoria-publica/).

Em entrevista que concedi ao Boletim Forum DPU da Escola Superior da Defensoria Pública, visando a incutir esse fundamento na formação dos quadros da instituição, como projeto e como programa, acentuei esse carisma (Defensoria Pública e Acesso à Justiça – Forum DPU V.3 N.11 ISSN: 2526-9828 Ano: 2017 – https://www.dpu.def.br/enadpu/forumdpu/edicao-11)

À pergunta sobre o potencial da DPU como instituição voltada para a garantia do acesso à justiça e quais os principais desafios a serem enfrentados pela DPU para a concretização deste potencial? Respondi não ser por acaso que, nas mobilizações para a institucionalização de defensorias, o social organizado tenha sido um fator determinante para a sua criação. Pense-se, por exemplo, o caso da Defensoria de Sâo Paulo para cuja institucionalização muito contribuiu a mobilização da sociedade civil. Por isso mesmo, em sua estrutura, é muito pertinente a atividade de sua Ouvidoria Externa, eleita, que traduz de alguma maneira o sentido de participação que nesse sistema o princípio democrático alcançou. Veja-se a esse respeito, a belíssima tese de doutoramento de Élida Lauris dos Santos, defendida em Coimbra(tive o privilégio de aprendizado ao participar da banca): “Acesso para quem precisa, justiça para quem luta, direito para quem conhece: dinâmicas de colonialidade e narra(alterna-)tivas do acesso à justiça no Brasil e em Portugal. Coimbra: [s.n.], 2013 ”.

Logo, na sequência, a questão sobre o potencial do processo de coletivização judicial para a garantia do acesso à justiça e quais riscos este processo pode apresentar? Minha resposta: já não se trata de potencial, mas de constatação de seu valor para a ampliação de acessos à Justiça se considerarmos as formas coletivas de abreviar esse acesso e de coletivizar as pretensões. Pense-se nas estratégias ampliadas de subjetivação ativa das ações de inconstitucionalidade, na formação de juízos de convencimento a partir da dinâmica de audiências públicas, de admissibilidade de terceiros não diretamente parte em causas (amicuscuriae), nas gestões para construção de ajustes de conduta e outras modalidades de pactuação para constituir obrigações e responsabilidades mediadas pela estrutura administrativo-judicial. O risco é o da judicialização da política e do ativismo decisionista, não confundidos com a competência alargada de aplicação construtiva de soluções judiciais, situações que têm revelado uma indevida substituição de razões do mediador (juízes, cortes judiciais, órgãos do sistema de justiça e do ministério público) em lugar das disposições legítimas de entendimentos razoáveis construídos pela participação ativa de coletividades e sujeitos coletivos (mecanismos de consulta prévia e informada, expertises sociais etc). Ou ainda a orientação para rejeitar a incriminação por desacato, delito previsto no artigo 331 do Código Penal, afronta o artigo 13 da Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de San Jose da Costa Rica), ao impedir que o cidadão manifeste-se criticamente diante de ações e atitudes dos funcionários públicos, no exercício de sua função, recomendado que Defensores Públicos sustentem a absolvição do indivíduo, no bojo das ações judiciais, utilizando como instrumento o controle de convencionalidade. Em estudo sobre essa incidência (CONTROLE DIFUSO DE CONVENCIONALIDADE: CASOS DE ATUAÇÃO DA DEFENSORIA PÚBLICA DA UNIÃO, de Maria do Carmo Goulart Martins Setenta, Defensora Pública Federal em Salvador/BA, R. Defensoria Públ. União Brasília, DF n.14 p. 1-310 Jul/Dez . 2020), constata-se a aplicação do mecanismo do controle de convencionalidade como instrumento para a tutela dos direitos humanos, seja perante o Sistema Interamericano ou perante os Tribunais pátrios, porquanto se caracteriza em nova doutrina que prestigia os direitos humanos e promove uma interlocução entre o Direito Interno e o Direito Internacional.

Considero que a institucionalização das ouvidorias externas no corpo das defensorias é uma resposta contundente na direção da democratização do acesso à justiça e do debate que não pode ficar restrito corporativamente aos juristas. Por isso deve ser saudada a Lei Federal de 2009 que determina este formato de Ouvidoria Externa de Defensoria, mas só 17 das 27 defensorias cumprem a lei, que são: Acre, Rondônia, Pará, Maranhão, Piauí, Ceará, Pernambuco, Paraíba, Bahia, Mato Grosso, Distrito Federal, Goiás, Rio de Janeiro, São Paulo, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul.

Por isso é notável a iniciativa da Defensoria Pública do Estado do Rio Grande do Sul, por promoção de sua Ouvidora Externa Marina Ramos Dermann – (o Ouvidor atual Rodrigo de Medeiros, originado dos quadros da advocacia popular de movimentos sociais, foi nomeado depois de escrutínio do Conselho do órgão, avalisadopornota de apoio de 155 professores/as e acadêmicos/as de todo o país, carta de apoio de movimentos e entidades com 183 movimentos/entidades sendo mais de 120 do RS https://mst.org.br/wp-content/uploads/2023/03/Carta-Aberta-Apoio-a-Rodrigo-de-Medeiros-Para-Ouvidoria-da-DPE_RS-3.pdf, traduzindo a melhor forma de corresponder a um dever funcional tão democraticamente legitimado) – de constituição de um Conselho Consultivo da Ouvidoria-Geral da Defensoria Pública do Estado do Rio Grande do Sul, como já realizado por outras Defensorias Públicas no País (SP, PR, BA e AC) e Defensoria Pública da União.

É verdade que a concretização dessa expectativa não é fácil e os obstáculos, às vezes, são mais internos do que externos. Acabo de receber do Ouvidor Externo da Defensoria Pública do Rio Grande do Sul Rodrigo Medeiros, material que expõe o grau desse obstáculo. Ele o exibe em bem fundamentado parecer (file:///C:/Users/HP/Downloads/Manifestacao_sobre_o_Parecer_n%20_133-2023_assinado%20(1).pdf) e manifesta a importância de posicionamento ampliado em nota que tornou pública e que reproduzo: “Recapitulando e infirmando sobre o processo de criação do Conselho Consultivo da Ouvidoria.  1. Foi juntado no processo o parecer, ainda da gestão anterior contrário à criação do Conselho, que deveria ser feito por lei estadual; 2. Veio para a Ouvidoria se manifestar e hoje demos entrada na manifestação. A @+55 51 9244-6276 também deu contribuições bem importantes ao texto; 3. Agora deve voltar ao relator e esperamos que se coloque em pauta para deliberação; 4. Defendemos a criação do Conselho por Resolução e utilizamos as manifestações já juntadas no processo, que a sociedade vem dando a esta criação.  Artigo do Prof. José Geraldo de Sousa Jr. , notas técnicas da Unisinos,  do Forum Justiça e CRESS-RS, nota do CRP, moção da VI Conferência Estadual de DH, etc”.

O texto de Karla Leite, escorreito e instigante, manifesta a mesma vivacidade que ela exibe no coloquial e no performático, em ambientes de debate, tal como pude testemunhar e me perceber mobilizado para os temas subjacentes à discussão da Dissertação, notadamente na correlação entre política e direitos humanos, em programas que ela modera juntamente com sua colega Gabriela Tunes: https://www.youtube.com/watch?v=FMaljeEODfk&t=249s, TV Trevo Brasil: DIREITOS HUMANOS E POLÍTICA – A ascensão da extrema direita no mundo; e de modo muito próprio, https://www.youtube.com/watch?v=zV379zY2HDk; Direito Achado na Rua – TV Trevo: Direitos Humanos e Política.

A Autora reivindica uma metodologia participativa e a realiza, mas de um modo sentipensante (Fals Borda), assim que logra estabelecer necessariamente a atitude diz ela, de “estranhar aquela realidade de opressão, identificada na Serra, valendo-se do fundamento teórico que lhe permite uma reflexividade que permitisse a promoção efetiva de direitos humanos…: A leitura dos direitos não poderia mais ser baseada unicamente em referências eurocêntricas, pois restariam desconectadas da verdade”. ´´E o que ela configura como virada ontológica, de modo a permitir (tal como sugere em sua concepção e prática O Direito Achado na Rua), a inclusão das vozes vulnerabilizadas na reivindicação de justiça.

Recolho, à fls. 127/128 uma síntese que define o trabalho:

Quando os invisíveis têm direitos? A resposta será levantada todas as vezes que a Defensoria Pública se deparar com um grupo social marginalizado pelas forças colonialistas. É preciso estar atento aos fatos, aos valores simbólicos do grupo social, e não negociar direitos alheios sob nenhuma hipótese. É preciso permitir que cada sujeito esteja ativo em seu próprio destino, decidindo conscientemente e livremente sobre se e quando poderá ceder a negociações, em termos dialogados, e não impostos. É preciso ter a natureza confiada pela Constituição Federal de 1988, uma instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe, como expressão e instrumento do regime democrático, fundamentalmente, a orientação jurídica, a promoção dos direitos humanos e a defesa, em todos os graus, judicial e extrajudicial dos direitos individuais e coletivos, de forma integral e gratuita, aos necessitados. É preciso, desta maneira, assumir a postura contracolonialista desejada pelo constituinte.

Com efeitodo que se trata, em suma, é tornar possível a aproximação do direito à realidade social, proporcionando o apoio à efetivação dos direitos dos grupos subalternizados, seja através de mecanismos institucionais, judiciais ou por mecanismos extrajudiciais, políticos e de conscientização. A aposta ultrapassa aspectos formais, do repertório jurídico tradicional e tenta compreender a realidade diante de sua complexidade, buscando, assim, ofertar respostas também complexas e abrangentes.

 

|Foto Valter Campanato
José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil,  Professor Titular, da Universidade de Brasília,  Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua.55

 

Na UnB uma Cerimônia de Grande Simbolismo: Outorga de Título de Geólogo na modalidade post mortem a HONESTINO MONTEIRO GUIMARÃES

Por: José Geraldo de Sousa Junior (*) – Jornal Brasil Popular/DF

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Neste 26 de julho, a Reitora da Universidade de Brasília, Professora Márcia Abrahão Moura, reuniu a comunidade universitária e representações da cidadania em Brasília para a Cerimônia de Outorga de Título de Geólogo na modalidade post mortem a HONESTINO MONTEIRO GUIMARÃES.

A Cerimônia seguiu-se à deliberação do Conselho Universitário (Consuni) da UnB, realizada em 07 de junho, quando sob aplausos prolongados, de pé e por aclamação, o Conselho máximo da universidade anulou a decisão que desligou Honestino Guimarães da UnB e  determinou lhe fosseoutorgado o diploma post mortem de geólogo.

Conforme a notícia publicada no Portal da universidade – https://noticias.unb.br/institucional/7379-unb-concede-diploma-de-geologo-a-honestino-guimaraes – a decisão fez justiça a um dos nomes mais importantes do Brasil na luta contra a ditadura militar e na defesa da democracia, dos direitos estudantis e da autonomia universitária. Honestino fora expulso da Universidade de Brasília em 1968, antes de concluir a graduação, e depois de detido, foi considerado desaparecido ou morto, desde 1973, quando estava sob a custódia e responsabilidade dos auto-constituídos dirigentes do regime ditatorial instalado com o Golpe Civil-Militar de 1964.

A decisão representa o primeiro registro de diplomação post mortem da UnB. “A Universidade de Brasília sofreu muito com a ditadura militar, quando quase foi fechada. E, depois, em um momento muito difícil, nós perdemos estudantes, perdemos professores e perdemos Honestino Guimarães, estudante de Geologia. Temos esse compromisso histórico com a verdade. Isso representa não só a reparação ao Honestino, mas a tudo que ele representa. Eu, como geóloga formada pela Universidade de Brasília, tenho esse compromisso com meus colegas e com Honestino, que, tenho certeza, seria um excelente geólogo”, destacou a reitora Márcia Abrahão na ocasião.

Essas observações vêm a propósito de iniciativa de membros e interlocutores da Comissão Anísio Teixeira de Memória e Verdade da Universidade de Brasília, que subscreveram e submeteramà Reitora, para a necessária deliberação, “demanda de concessão de diploma de graduação (post mortem) a Honestino Guimarães”.O memorial, subscrito pelos membros da CATMVUnB Daniel Barbosa Andrade de Faria, Fernando de Oliveira Paulino e Paulo Eduardo Castello Parucker, e por Maria Elizabeth Barbosa de Almeida (Betty Almeida), colaboradora da Comissão e mobilizadora da proposta, elatambém uma biógrafa de Honestino Guimarães (Paixão de Honestino. Brasília: Editora UnB, 2017). Um movimento que veio ao encontro de iniciativa do Instituto de Geociências (IG) – unidade na qual Honestino estudava e que aprovou em seu conselho a concessão do diploma –, tendo em seu diretor Welitom Borges, a ação de preparação do processo acadêmico para permitir a avaliação dos registros de integralização curricular apta a validar a concessão do diploma a Honestino.

Assim o reconheceu o decano de Ensino de Graduação da UnB, professor Diêgo Madureira, durante a leitura do parecer que recomendou a aprovação da proposta, ao fundamento de que “O simbolismo desse ato transcende esses aspectos mais diretamente relacionados ao próprio Honestino para compor uma inequívoca mensagem da instituição a toda a sociedade, deixando explícito o compromisso da UnB com a justiça, a democracia e a história, a despeito daqueles que insistem em contestar os fatos de inúmeras formas testemunhados de um período sombrio no nosso país, um negacionismo que precisa ser combatido com todas as forças, sobretudo em respeito a cada vítima, direta ou indireta, da ditadura, a cada mãe que sofre a perda prematura de um filho ou a eterna angústia de seu desaparecimento, a cada pessoa torturada por insistir em fazer valer seu direito de ser livre para discordar, a cada instituição também ferida pelo autoritarismo e a cada ser humano que condena a barbárie”.

Esses fundamentos também tem correspondência nas conclusões estabelecidas pela Comissão da Verdade da Universidade de Brasília (Comissão Anísio Teixeira de Memória e Verdade da Universidade de Brasília). A exemplo do que já começa a ocorrer em outros âmbitos institucionais, essa comissão  na UnB contribuiu e certamente continuará a contribuir para investigar a repressão que se derramou sobre seus professores e estudantes. Na medida em que as próprias instituições recuperem sua história, colaborarão para a concretização da justiça transicional que admite sim reconciliação, mas implica necessariamente processar os perpetradores dos crimes, revelar a verdade sobre fatos, conceder reparações às vítimas e reformar as instituições responsáveis pelos abusos.

Assim que a CATMV/UnB, cumpreo valioso papel de documentar as dimensões históricas da UnB e para recolocá-la no eixo da memória e da verdade, porque como se pode ver de seu relatório, uma peça de grande valor.  No melhor sentido conceitual de justiça de transição tanto mais que é nítida a percepção, à luz do Relatório, de que o autoritarismo erigiu como alvo, não apenas as pessoas e seus projetos de vida, mas o próprio projeto universitário inscrito na proposta de criação da UnB, vale dizer, o projeto histórico-social-universitário. Cf.Relatório da Comissão Anísio Teixeira de Memória e Verdade da Universidade de Brasília, p.297 (Brasília: FAC-UnB, 2016). Disponível no endereço eletrônico https://www.comissaoverdade.unb.br/images/docs/Relatorio_Comissao_da_Verdade.pdf. (Acesso em 28/1/2024).

Especialmente em relação a Honestino Guimarães, é fundamental conhecer o relatório/voto, do professor da UnB e conselheiro da Comissão de Anistia Cristiano Paixão, no Requerimento de Anistia: 2013.01.72431 Anistiando: Honestino Monteiro Guimarães. Requerente: Juliana Botelho Guimarães (sua filha). Um voto substantivo, conceitual, histórico, sistemático. Alude ao trabalho desenvolvido pela Comissão Anísio Teixeira de Memória e Verdade da UnB e recupera judiciosamente todas as circunstâncias que culminam na violência infligida ao estudante da UnB, revelando a interrupção letal de um belo projeto de vida. Conclui, fixando: a) Declaração de anistiado político post mortem a Honestino Monteiro Guimarães, oferecendo-se, em nome do Estado brasileiro, o pedido oficial de desculpas a sua família pelas graves violações a direitos humanos praticadas pelo Estado; b) Retificação no atestado de óbito deHonestino Guimarães, para que conste, como causa da morte, a seguinte expressão: “morto (desaparecido político) em virtude de atos de violência praticados pelo Estado brasileiro por motivação exclusivamente política”; c) Remessa de cópia dos autos ao Ministério Público Federal, diante da notícia da prática de crime permanente, para que aquele órgão delibere sobre a possibilidade de instauração de inquérito criminal.

No voto, o relator abre um tópico –  Honestino e a Universidade de Brasília.  Na sua redação salienta que a história de Honestino Guimarães revela a existência, no início da década de1960, de um sistema público de ensino que foi concebido de modo includente. Como observado noperfil biográfico, sua família chegou a Brasília no ano da fundação da cidade. Honestino cumpriusua formação secundária no Centro Integrado de Ensino Médio (Ciem), e dali partiu para a UnB, depois de aprovado na primeira colocação geral no vestibular. Mesmo com toda a atividade política, eleobteve bom rendimento acadêmico no curso de geologia e, quando foi expulso, estava prestes a se formar”.

Em artigo que publiquei na Coluna O Direito Achado na Rua – https://brasilpopular.com/unb-diploma-honestino-ato-de-reparacao-por-dano-a-projeto-de-vida-2/ – recuperei o entendimento estabelecido pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, com a inteligência que lhe emprestou o juiz Antonio Augusto Cançado Trindade (sentença de 19 de novembro de 1999, Caso Villagrán Morales y Otros – Caso de losNinõs de laCalle), com a tese da inviolabilidade do “projeto de vida”, vale dizer, da disponibilidade das condições integráveis ao universo conceitual do direito de reparação quando violado, porquanto “o projeto de vida é vinculado à liberdade, como direito de cada pessoa escolher e realizar seu próprio destino (…) O projeto de vida envolve plenamente o ideal da Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem) de 1948 de exaltar o espírito como finalidade suprema e categoria máxima da existência humana”.

Em consequência, a criação jurisprudencial da Corte Interamericana, em sintonia com os pressupostos da justiça de transição,da exigência de reparação a danos ou violações ao projeto de vida, não apenas como indenização, mas como restauração da dignidade subtraída, ofendida, reduzida pela violência instituída em situações de exceção e de afronta a legitimidade democrática em países submetidos a sistemas autoritários, que tem se constituído uma categoria cogente dos direitos humanos internacionais.

Em Honestino Guimarães o conteúdo do projeto de vida se integra à defesa intransigente de seu compromisso com um projeto de sociedade democrático e emancipatório. Algo muito nítido num documento que ele elaborou, como denúncia e manifesto, aliás, transcrito no processo de anistia (Requerimento de Anistia: 2013.01.72431. Anistiando: Honestino Monteiro Guimarães. Requerente: Juliana Botelho Guimarães Lopes. Relator: Conselheiro Cristiano Paixão), recolhido por sua mãe Maria Rosa Leite Monteiro no livro Honestino. O bom da amizade é a não cobrança. Brasília: Da Anta Casa Editora, 1998, p. 176-180, denominadomandado de segurança popular, do qual retiro o final: “Daí porque não me ‘entregar’. Não reconheço nem posso reconhecer como “justiça” o grau de distorção a que se chegou nesse terreno. A justiça a que recorro é a consciência democrática de nosso povo e dos povos de todo o mundo”.

A outorga do diploma, nesta cerimônia, autentica também uma trajetória e certifica a memória de um compromisso e a força de um projeto. Honestino, por isso, vive; Honestino, presente!

(*) José Geraldo de Sousa Junior é professor titular na Faculdade de Direito e ex-reitor da Universidade de Brasília (UnB)

quarta-feira, 24 de julho de 2024

José Comblin – 100 Anos de Vida

Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito

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José Comblin – 100 Anos de Vida. Alzirinha Souza, Edelcio Ottaviani ( Organizadores). Aparecida (SP): Editora Santuário, 1ª edição, 2024, 128 p.

                         

A obra “José Comblin – 100 anos de vida” reúne artigos que apresentam a vida, o trabalho, o pensamento e o legado do teólogo José Comblin (1923-2011), um dos mais importantes teólogos do Brasil e da América Latina, do pós-Vaticano II. Os artigos reunidos na obra foram apresentados na III Jornada José Comblin, realizada em 2023, para comemorar o Centenário de nascimento do célebre teólogo.

Meu primeiro contato com o pensamento profético e emancipador de José Comblin, assim o livro o nomina, foi por meio da leitura de seu livro de 1978, grafada a autoria como Joseph Comblin, A Ideologia da Segurança Nacional- o Poder Militar na América Latina, na edição da Civilização Brasileira.Um livro indispensável e que li com atenção em razão do tema e da linha de libertação própria de um intérprete de Gálatas, uma epístola cara a Comblin,  tida como o manifesto da liberdade cristã e universalidade da Igreja. Leitura condizente com os tempos duros em que a obra foi escrita.

Eu ainda não conhecia Comblin o teólogo, o que só vim a fazer muito tempo depois, por meio de uma leitura muito profunda que dele faz Alzirinha Souza co-organizadora do livro 100 Anos de Vida, que já me anunciara a sua preparação e edição. Alzirinha, essa destacada teóloga católica que há dois anos, semanalmente, orienta nossas leituras – minhas e de um pequeno grupo doméstico – teológico-missionárias do Novo Testamento (já lemos com a sua orientação o Evangelho de Lucas, os Atos e estamos agora na leitura das Epístolas (Paulo), incluindo a Carta aos Gálatas. Pena que ainda não há a ordenação de mulheres. Alzirinha é leiga. Celebrasse e suas homilias me induziriam mais convicção, em sentido teológico-pastoral, do que a que me formou até aqui, no acumulado de meus 77 anos.

Valho-me frequentemente de aspectos até incidentais do substancioso manancial hermenêutico de Alzirinha. Então, quando nos escoramos em Comblin, seu amigo e seu tema de tese em teologia, em Louvain, sinto minha âncora bem fundeada. Até ouso ser assertivo (cf. https://estadodedireito.com.br/papa-francisco-carta-enciclica-fratelli-tutti/; ou, principalmente, cf https://estadodedireito.com.br/agenda-latino-americana-mundial-2024/), tal como registrei a propósito de outro trabalho em que ela teve forte participação autoral – https://estadodedireito.com.br/influenciadores-digitais-catolicos-efeitos-e-perspectivas/. Cito-me:

“desde uma perspectiva de  descolonização do mundo e da vida, disse isso em meu artigo, uma missão não só libertadora, no sentido de escapar dos reducionismos que a opressão e a espoliação produzem numa realidade de exclusão, mas a missão verdadeiramente emancipadora, aquela que não só liberta mas humaniza, pelo impulso daqueles elementos críticos, próprios dos espíritos livres, que se encharcam de humanismo e de esperança, e que aparecem com muita força na conversa que entretive com a teóloga Alzirinha Rocha de Souza, além de muitas outras lições, ela que é leiga, professora na PUC-MG (Doutora em Teologia pela Universidade de Louvain), num programa de Justiça e Paz, da Comissão Justiça e Paz da Arquidiocese de Brasília (https://www.youtube.com/watch?v=imN1sM2p3W4), sobre o tema “Ação, Missão e Liberdade. Aproximações entre Comblin e o Papa Francisco”. Comblin não está evidenciado nos documentos da Agenda, mas a partir de Comblin, e sua teologia da missão (teologia da enxada ajustada ao contexto brasileiro e latino-americano), Alzirinha surpreende a função comunitária do trabalho do leigo e a importância do desenvolvimento de uma ação missionária em comunidade, impulsionada sim pelo Espírito, mas que traz a liberdade e a renovação da esperança: “o que movimenta a ação humana é a esperança de que essa ação transforme o mundo”. Isso que aparece como compreensão pastoral em Comblin (ação, comunidade, palavra, liberdade e espírito), ajuda a compreender uma ligação entre São Francisco (“evangelizar, se necessário, até com palavras” – não tenho a fonte, há até aquelas que negam tenha Francisco dito isso, mas ouvi a máxima do padre José Ernanne Pinheiro, conselheiro espiritual da CJP Brasília, amigo e estudioso de Comblin) e o Papa Francisco, combinando contemplação sim, como está em suas principais Encíclicas e Exortações, mas contemplação na ação, realizando-as em proposições sobre o que se pode construir a partir do agora, mas em conjunto, em comunidade, como povo de Deus, numa renovada louva-ação do cântico do irmão Sol. Em estudo de altíssima profundidade – “A Experiência como Chave de Concretização e Continuidade da Igreja de Francisco” (Perspect. Teol., Belo Horizonte, v. 49, n. 2, p. 375-397, Mai/Ago. 2017), diz Alzirinha: “Destaco aqui uma característica do fazer de Francisco, a que julgo mais marcante e me parece essencialmente ligada a Aparecida, da qual, em minha opinião, decorrem todas as outras possíveis, que é a exigência da missionariedade e da proximidade para o anúncio do Evangelho. Ser missionário, como seus gestos demonstram, é estar ao nível do outro, olhar nos olhos, falar em condições de igualdade de uma Boa Nova, que talvez possa ser efetivamente boa para seu ouvinte. Essa é, de fato, a ‘nova evangelização’ esperada, que se representa por uma Igreja em saída que possa realmente ‘primeirear’ (cf. Papa Francisco: “tomar iniciativa”) nas ‘periferias existenciais e sociais’, anunciando esperança, caridade e misericórdia de Deus. Se, na inspiração de João XXIII, o Concílio (Vaticano II) seria um novo pentecostes, como nos lembra Galli, aos olhos daqueles que esperaram 50 anos para uma grande virada na Igreja, ele finalmente acontece neste papado…Os gestos de Francisco advêm de sua experiência e somente é capaz de dar testemunho aquele que faz primeiramente a experiência de Deus. Por isso realiza a forma mais alta da teologia prática ao fazer coincidir sua experiência de Deus, sua experiência pastoral, às exigências de homens e mulheres que demandam e esperam da Igreja uma resposta concreta às suas vidas”.

O livro designa o personagem celebrado como José Comblin. É mais uma nominação que bem pode acrescer àquelas que são referidas no processo que na redemocratização (1985), buscou corrigir uma postura brutal da Ditadura quando, anota o processo instaurado no Ministério da Justiça buscou-se expulsá-lo e impedir seu retorno ao Brasil: Joseph Comblin ou Joseph Jules Comblin ou Joseph Combin ou Joseph Comblain.

À instância de Azirinha pedi a meu caríssimo amigo Jeam Uema, atual Secretário de Justiça, no Ministério da Justiça, a busca nos arquivos e o registro dessa saga. As anotações me comoveram, desde a abertura do processo (Processo de Expulsão nº 30.587/68, instaurado a partir de ofício da Deputada Federal Cristina Tavares, que para Sartre era a sua memória de Brasil (Simone de Beauvoir, A Cerimônia do Adeus. Madame Beauvoir lembra a moça ruiva, jovem jornalista que cativou Sartre e ciceroneou o casal em sua passagem pelo Brasil no ano de 1960). Aos seguintes encaminhamentos nos autos, de meu dileto amigo Humberto Pedrosa Espínola (parecer de 30/4/85, esclarecendo que a despeito do ofício da Deputada Cristina, atendendo “pedido da Comissão de Justiça e Paz da CNBB/Nordeste de revisão da permanência do Padre Joseph Comblin, perseguido pelo governo anterior”, cuidava-se mais propriamente de “revogação da determinação que proíbe o desembarque do alienígena no território nacional Padre Joseph Jules Comblin”.

Outra nota afetiva, a de encaminhamento para apreciação do Ministro Fernando Lyra pelo meu estimado amigo Cristovam Buarque, com quem trabalhei na Reitoria da UnB e no Ministério da educação, então Chefe de Gabinete do Ministro; e do notável Diretor Marcello Cerqueira, um dos mais destacados advogados brasileiros que se notabilizou na causa da advocacia da liberdade em defesa de presos políticos; ambos capeando a manifestação final de meu amigo-irmão Luiz Carlos Sigmaringa Seixas, meu colega na Comissão de Direitos Humanos da OAB-DF e na Comissão Justiça e Paz do DF, além de associados no Escritório de Advocacia de seu pai, o grande bâtonnier Antonio Carlos Sigmariga Seixas (sobre A. C. Sigmaringa Seixas, cf. meu Honradez e Dignidade, in Correio Braziliense, Brasil, 16/1/2016, pág. 5). O enunciado por Luiz Carlos Sigmaringa Seixas, Diretor-Geral do Departamento de Estrangeiros (3/5/1985), veio configurar o depacho final do Minsitro Fernando Lyra (10/5/1985): “arquivamento do processo e revogação da determinação que proíbe o desembarque…no território nacional”. Eis que Comblin voltou e está misturado ao solo brasileiro, seus restos revolvidos pela enxada que se fez sua teologia, a partir do chão que ele tanto amava.

Na apresentação do livro, num texto de intencionalidade manifesta – José Comblin: Uma Presença Necessária para o Tempo Presente – seus organizadores Alzirinha Souza e Edelcio Ottaviani, explicam o seu propósito: “Esta obra nasce de duas constatações importantes:  a primeira faz referência a duas formas de tratar a história. Podemos abordá-la de forma a esquecer, anular a sua própria construção ou fazer memória de pessoas e eventos. A segunda constatação, decorrente da primeira, faz referência à percepção de que alguns desses eventos ou pessoas se tornaram verdadeiros acontecimentos que redirecionam o rumo da história.  É a partir dessas duas constatações que o Grupo de Pesquisa José Comblin (PUCS-SP) e a Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP) realizaram a III Jornada José Comblin (1923-2011), em junho de 2023, para comemorar o Centenário de nascimento do célebre autor. O evento procurou, em seu sentido mais estrito, fazer memória de sua vida e obra, através de conferências, comunicações e debates, que tiveram por finalidade mostrar a importância de seu pensamento para o tempo presente, resultando nesta obra.    Nela, o leitor encontrará elementos do pensamento de Comblin, relidos através de um cronograma-teológico, que permite visualizar os elementos-chave de desenvolvimento de sua teologia ao longo de sua trajetória geográfica e intelectual, desde a Bélgica à sua amada América Latina, à qual dedicou a maior parte de sua vida pessoal, pastoral e intelectual”.

Além do Prefácio –  Pe. José Comblin: testemunho palpável do amor de Deus entre nós, da inteligência acadêmica a serviço dos pobres – a cargo de Domingos Zamagna, jornalista e professor em São Paulo, seu ex-aluno, a obra traz as seguintes contribuições: José Comblin (1923 – 2011): teólogo, missionário e educador  atento aos sinais dos tempos, de Edelcio Ottaviani, co-organizador, num texto que é o fio-condutor da tessitura do livro; José Comblin, uma testemunha epocal do Concílio Vaticano II. Vida no Chile de 1962 a 1965, de Anderson Frezzato; José Comblin: Missão e Testemunho na América Latina, de Adauto Guedes Neto; Uma ‘Ideia Arrojada’: José Comblin e a Fundação do Seminário Rural na Paraíba, de Elenilson Delmiro dos Santos; A Pneumatologia de José Comblin: Sua Contribuição para a Teologia (Brasil, 1980-2011), de Alzirinha Souza, co-organizadora; José Comblin, Teólogo Biblista: do Chão da Vida à Elaboração Teológica,  de Rita Maria Gomes; Como ler os livros de José Comblin? (Uma contribuição à III Jornada José Comblin, na PUC de São Paulo, entre 05 e 08 de junho de 2023), de Eduardo Hoornaert; além de um posfácio – Projetando Comblin em seu legado, desde o chão da amada “Pátria Grande”, assinado por Alder Júlio Ferreira Calado.

O material autoral foi acomodado pelos organizadores em tópicos estruturantes assim constituídos: BRASIL 1957-1965 Chegadas e partidasBRASIL 1972-1980 Conflitos e profecia;  BRASIL 1980-2011 Caminhos Teológicos à luz do Espírito; 2010 aos dias atuais HERANÇA TEOLÓGICA. Eles se prestam a periodizar, mas também a tematizar um percurso, e nesse trânsito, divisar os sinais temporais – de antes e de agora para designar os nossos tempos e os chamados que nos convocam, Conforme diz Edelcio Ottaviani, ao cartografar as contribuições, trata-se de “destacar os aspectos teológicos, missionários e educativos de Comblin atentos à leitura dos ST nos primeiros anos de seu ministério presbiteral e como missionário na América Latina”, mas também de situar esses aspectos “presentes ao longo de toda a sua vida”, desde “suas primeiras reflexões teológicas, publicadas em periódicos e que apresentam sua conexão com temas atuais discutidos posteriormente no Concílio Vaticano II, “nos moldes da Teologia das Realidades Terrestres” de Gustave Thils”, sem ter tergiversar em face “das incongruências notadas por ele nas preocupações do clero europeu com o seguimento de Jesus, trocando a Parte pelo Todo, deixando-se mais levar pelas relações de poder do que pelas exigências do Evangelho”.

Assim que, “como missionário, soube logo compreender as transformações pelas quais passava a sociedade brasileira, particularmente no Sudeste do Brasil”, uma experiência que imanta a “atuação acadêmica de Comblin em espaços formais e informais, pautada no discernimento do Espírito, que animou as falas e as práticas de Jesus, dando especial atenção ao discipulado feminino e estabelecendo bases concretas para o discipulado de iguais”.

Uma leitura em suma que nos leva a discernir no âmbito teológico, e não só, também no mundo, movidos ao impulso de fé ativa para escavar o chão da libertação e abrir sendas e caminhos ao repique de enxadas missionárias.