Questionar e Enxergar Além das Certezas
Por: José Geraldo de Sousa Junior (*) – Jornal Brasil Popular/DF


Nesse sábado, dia 6/9, a convite da Hermenêutica, Sociedade de Debates da UnB, participei da atividade de abertura de semestre letivo, da apresentação desse importante Coletivo de Extensão da Faculdade de Direito da UnB. Meu tema, exatamente o que dá título a este artigo.
A minha mobilização para participar do evento é de dupla ordem. Primeiro, por ter sido, em boa medida, um mediador para acolher e apoiar a iniciativa de estudantes da Faculdade de Direito da UnB, para constituir na universidade, uma modalidade de formação quase centenária no sistema universitário.
De fato, me disponibilizei para atuar como docente coordenador de um projeto de extensão, que se configurava como uma prática de ensino jurídico com metodologia ativa, cujo desenho se inspirou nos enunciados da disciplina Pesquisa Jurídica que ministro no primeiro semestre do Curso.
E, por esses fundamentos, a partir desse desenho, a proposta acabou sendo inscrita para o Prêmio Esdras de Ensino do Direito, promovido pela FGV (Fundação Getúlio Vargas), tendo alcançado o Prêmio Destaque na 4ª Edição dessa importante premiação (2022).
O registro do certame, e todos os elementos da caracterização da atividade podem ser conferidos no Banco de Materiais Um acervo de projetos do Núcleo de Metodologia de Ensino da FGV DIREITO SP – https://ejurparticipativo.direitosp.fgv.br/portfolio/hermeneutica-sociedade-de-debates-universidade-de-brasilia, com a designação “Hermenêutica – Sociedade de Debates da Universidade de Brasília. Metodologia Ativa na Aprendizagem do Direito, Autor(a/s): José Geraldo de Sousa Júnior e Julia Caroline Taquary dos Reis, a estudante, monitora da disciplina Pesquisa Jurídica, que acaba de se bacharelar na UnB, tendo sido a oradora da turma.
Claro que não só por esse fundamento, mas Julia Taquary desempenhou com alto desempenho todos os fundamentos da boa formação que o Curso de Direito da UnB proporciona. Também tive ensejo para orientar o seu trabalho monográfico de conclusão de curso e documentar a excelência dessa formação (a propósito https://estadodedireito.com.br/a-seguridade-social-como-expressao-da-fraternidade-um-direito-construido-pela-luta-social/).
Júlia foi a primeira presidente da Hermenêutica, Sociedade de Debates da UnB. Assinalei isso na minha palestra, como também recuperei seus fundamentos de origem recuperando a origem histórico e o conceito que sustenta essa modalidade de desempenho, tal como o anotamos no memorial de candidatura ao Prêmio Esdras: “A Hermenêutica universaliza o conceito de Direito ao colocar em prática os valores que regem a sociedade. Trata-se de uma atividade que atingiu universitários de todo o Brasil e de Portugal que trabalha as habilidades e competências do estudante, principalmente de direito deslocando da formação por conteúdo para a formação por experiência. Tal experiência se dá nos moldes do debate universitário modelo british parliamentary aliado à pesquisa ativa de temas sociais e conta com avaliações constantes do desenvolvimento dos membros pautada em critérios internacionais de excelência de raciocínio realizadas por docentes e monitores experientes. Dessa forma estabelece a conexão entre saberes e conhecimento ao: lapidar a capacidade do estudante de raciocinar criticamente sobre um tema de grande impacto nas estruturas sociais e legais; treinar a oratória como habilidade de expressão de sua vontade e defesa de seu caso; e aumentar a escuta atenta à palavra do terceiro com resiliência e ética”.
Aplicando esses fundamentos ao projeto inscrito na UnB, do que se cuidou foi de ajustá-lo ao ethos constitutivo da própria ideia que sustentou a proposta de sua criação (Darcy Ribeiro, Universidade Para Quê?): “De um lado proporcionar ao estudante a reflexão teórica e epistemológica sobre os fundamentos da Direito e os torna juristas com uma formação para além do simulacro da sala de aula, atingindo o objetivo de Darcy Ribeiro de uma universidade popular cuja educação une ensino, pesquisa e extensão. De outro, insere os acadêmicos brasileiros no contexto mundial de debate universitário possibilitando a entrada do Brasil em campeonatos consolidados de debate os quais acarretam grande prestígios para as instituições de ensino”.
Assim que, no contexto está a disciplina de Pesquisa Jurídica da Faculdade de Direito da UnB a qual se se desenvolve com a união de princípios do Direito Achado na Rua, o que se buscou, nessa proposição, é balizar as condições de um debate, que referido ao Direito, não perdesse de vista que o Direito, só o é, se legítima organização social da liberdade, ou seja, a busca pela emancipação do homem por meio de um processo e modelo de liberdade conscientizada.
Nessa origem, pois, a Hermenêutica, está na proposta premiada, “surge compartilhando a meta da universidade e da disciplina de construir um sujeito de direito capaz de exercer sua liberdade individual enquanto caminha em conjunto com os demais em direção à emancipação humana com o poder do diálogo. Assim, a atividade não limita a participação de apenas estudantes de Direito da FD-UnB, sendo aberta para outros cursos, outras instituições e inclusive outros níveis de educação, podendo atingir as metas de universidade popular e liberdade conscientizada de forma mais eficiente e acolhedora semeando conhecimento jurídico-social para as mais variadas gamas de cidadãos. A Hermenêutica inova como atividade no ensino jurídico pois é um método no qual os próprios alunos se engajam para consolidá-lo, ou seja, não é necessário impor ou pressionar os membros, eles mesmos reconhecem a diferença que a atividade acarreta seu desenvolvimento pessoal e acadêmico. Observa-se que embora a atividade utilize o debate como meio para atingir seus objetivos e colhe os frutos de seus membros nesse âmbito competitivo, um ourives não se resume a seu martelo. A Hermenêutica trabalha o verdadeiro conceito de liberdade de expressão e sua joia jaz na formação de cidadãos capazes de compreender seus direitos e deveres que construirão um país cujo Direito seja liberdade”.
Minha leitura do projeto, no evento de apresentação, seguiu assim, tal como sugere a chamada do evento, questionar e enxergar além das certezas. Não é coincidência essa maneira de interpelar a autonomia crítica de um pensamento que interpela o real para além de suas aparências descritíveis. No meu curso de Pesquisa Jurídica, cujo pressuposto epistemológico é o desentranhar dos discursos teóricos e técnicos do jurídico o que se pré-conceito, pré-juízo, pré-compreensão, neles, consciente ou inconscientemente, está inserido, há a premissa da incerteza, em alcance metodológico (a dúvida cartesiana, a refutabilidade a Popper), necessária aos deslocamentos cognitivos. Daí a nossa atenção ao enunciado de Arthur Schopenhauer, segundo quem “Atarefa não é contemplar o que nunca foi contemplado, mas pensar como ainda não se pensou sobre o que todo mundo tem diante dos olhos”.
Na máxima do grande filósofo, que retirei de Roberto Lyra Filho (Pesquisa em QUE Direito?) e este, por sua vez, de Mdeleine Grawitz (Méthodes des Sciences Sociales, Paris, Dalloz, 1981, p. 347), o que está em causa é a importância da reflexão original e a capacidade de reinterpretar o mundo comum, em vez de buscar apenas o ineditismo superficial ou a mera novidade. A essência dessa citação é a valorização do pensamento crítico e da perspectiva única sobre a realidade, mesmo que os objetos de análise sejam familiares a todos.
Mas não só nas ciências sociais, mas também na mecânica quântica, se seguirmos o físico Werner Heisenberg (O Princípio da Incerteza de Heisenberg, formulado em 1927), que assinala o fim do determinismo clássico – na física newtoniana, acreditava-se que se conhecêssemos a posição e a velocidade de todas as partículas, poderíamos prever o futuro do universo. O princípio de incerteza mostra que isso é impossível, porque o comportamento das partículas é descrito por probabilidades, não por certezas absolutas.
Mas a referência a Schopenhauer, numa apresentação de um projeto de debates acadêmicos, é o de tentar extrair do performático metodológico da iniciativa, o sentido ético da prática de argumentação de universitários (mas de qualquer debate, em qualquer circunstância de argumentação. O que está em causa, a verdade ou a disposição de vencer um debate mesmo sem ter razão.
Aliás, essa a questão colocada por Arthur Schopenhauer, filósofo alemão do século XIX, escreveu um tratado breve e provocativo intitulado Eristische Dialektik, publicado postumamente, que ganhou notoriedade sob o título Como Vencer um Debate sem Ter Razão. O texto não é um manual de busca da verdade, mas uma descrição irônica e crítica das estratégias erísticas – isto é, voltadas não para a verdade, mas para a vitória no embate verbal.
Segundo ele, a maior parte das disputas intelectuais não é movida pelo amor à verdade, mas pela vaidade, pelo orgulho e pela ânsia de vencer. Assim, o interlocutor muitas vezes recorre a artifícios que distorcem os argumentos e desviam a atenção, o que leva à necessidade de identificar e compreender esses métodos, tanto para usá-los quanto para se defender deles.
O livro lista e explica 38 estratagemas ou figuras de retórica erística, que funcionam como “armas” do debate. Eles podem ser classificados em técnicas de ataque, de defesa e de manipulação do público.
Para a nova geração da Hermenêutica, lembrei que Schopenhauer não apresenta esses métodos como legítimos para alcançar a verdade, mas como ferramentas a serem conhecidas. Sua intenção filosófica é mostrar a diferença entre lógica (voltada para a coerência e a verdade) e dialética erística (voltada para vencer).
Considero que o seu texto (que conheci há muitos anos por uma querido amigo e filósofo do Direito e da Hermenêutica Jurídica, João Maurício Adeodato) é, no fundo, um exercício de ceticismo e ironia. Schopenhauer, a meu ver, denuncia a vaidade humana e a superficialidade das disputas intelectuais, mas também entrega, de forma sistemática, um repertório de técnicas que revelam o quanto os debates podem ser mais jogo de poder do que busca honesta da razão.
Acaba sendo, num tempo de aviltamento da argumentação, de recrudescência da mentira, na política e nas predições, do púlpito, da tribuna ou de sistemas editoriais, um alerta que, em muitos casos, o público de um debate não está em condições de julgar a verdade, mas sim a performance retórica. Assim, vencer pode significar apenas seduzir ou manipular os ouvintes.
(*) José Geraldo de Sousa Junior é professor titular na Faculdade de Direito e ex-reitor da Universidade de Brasília (UnB)
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