segunda-feira, 7 de abril de 2025

 

Abril Indígena

Por: Ana Paula Daltoé Inglês Barbalho [1] e José Geraldo de Sousa Junior [2] – Jornal Brasil Popular/DF

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Abril é considerado o mês dos Povos Indígenas. O Dia dos Povos Indígenas é celebrado em 19 de abril e é uma data de homenagem e reconhecimento à diversidade cultural dos povos originários do Brasil. 

O objetivo da data é valorizar a diversidade cultural, combater preconceitos e promover políticas públicas relacionadas aos ovos originários. A data tem origem no Primeiro Congresso Indigenista Interamericano, realizado em 1940 no México.

A data de 19 de abril foi escolhida porque foi o dia em que, em 1940, os povos indígenas participaram do Primeiro Congresso Indigenista Interamericano. A celebração do Dia dos Povos Indígenas busca conscientizar sobre a origem da nação brasileira e busca contribuir para a disseminação e preservação da cultura e da história dos povos indígenas. [3]

Os povos indígenas são parte importante da formação da cultura brasileira, influenciando a alimentação, a língua, os costumes e a contribuição genética do povo brasileiro. [3]

Divulgação do Diálogos de Justiça e Paz de abril de 2025

O Abril Indígena inspirou o Diálogos de Justiça e Paz deste mês, que será no Centro Cultural de Brasília, na 601 norte, dia 07 de abril, segunda-feira, às 19h. O tema é a importância dos saberes originários contra a emergência climática. O tema desse Diálogos se inspira nas comemorações do Dia dos Povos Indígenas e traz um debate fundamental com o tema: “O futuro não está à venda: Os saberes originários contra a emergência climática”. São convidados Kleber Xukuru, Presidente da Associação da Comunidade Indígena Xukuru – ACIX e Gerente de Proteção e Defesa Civil de Pesqueira (PE), e Marcivania Sateré-Mawé, Coordenadora da Coordenação de Povos Indígenas de Manaus e Entornos – COPIME. O Diálogos tem mediação de Luiz Felipe Lacerda, Secretário-Executivo do Observatório Nacional de Justiça Socioambiental Luciano Mendes de Almeida – OLMA. Será um evento em modalidade híbrida, com atividade presencial no Centro Cultural de Brasília – SGAN 601 Norte e com transmissão ao vivo pelo YouTube nos canais @OLMAObservatorio e @CJPBrasília. O evento possui entrada gratuita e espera a todos com um lanche da tarde, servido 30 minutos antes do início das atividades.

A mudança da valorização dos povos indígenas é resultado da contínua articulação e luta dos indígenas brasileiros. Também pode ser concebida como reflexo da transformação progressiva da percepção da sociedade brasileira e promove reflexões sobre a importância dos povos indígenas, amplia a pressão sobre os governantes para que os direitos indígenas sejam respeitados e busca combater a discriminação imposta à população indígena.

A Constituição Federal de 1988 foi o principal marco da mudança de postura do Estado brasileiro no tratamento dado aos povos originários. Houve uma importante mudança de perspectiva jurídica, que passou a reconhecer e garantir direitos e impulsionou a demarcação de terras indígenas. O território é o foco da existência, da cosmovisão indígena. Reconhecer o direito ao território, protege a cultura, o modo de vida e garante a subsistência dos povos indígenas. [4]

A luta dos povos indígenas ocorre desde os primeiros momentos da colonização europeia. O reconhecimento recente de direitos garantidos pela Constituição certamente contribuiu para mudar as formas de ameaça e as características da luta indígena.

Anteriormente, a data do Dia dos Povos Indígenas era conhecida como “Dia do índio”. A nomenclatura foi modificada para refletir com mais seriedade e amplitude a importância dos Povos originários, que são múltiplos, diversos e riquíssimos culturalmente. A Lei 14.402/2022, promulgada em 8 de julho de 2022, instituiu o Dia dos Povos Indígenas e revogou o Decreto-Lei nº 5.540, de 2 de junho de 1943, que reconhecia o “Dia do índio”. [3, 5]

A lei foi proposta pela então deputada Joenia Wapichana (Rede-RR), atualmente presidente da Fundação Nacional do Índio – FUNAI, por meio do Projeto de Lei 5466/19, aprovado pela Câmara dos Deputados em 2021 e pelo Senado em maio de 2022.

O então presidente Jair Bolsonaro vetou integralmente a proposta. Posteriormente, em sessão conjunta do Congresso Nacional, os parlamentares derrubaram o veto e a lei entrou em vigor em junho de 2022.

A proposta de renomear a data é ressaltar, de forma simbólica, o valor dos povos indígenas para a sociedade brasileira. “O propósito é reconhecer o direito desses povos de, mantendo e fortalecendo suas identidades, línguas e religiões, assumir tanto o controle de suas próprias instituições e formas de vida quanto de seu desenvolvimento econômico”, afirmou a então deputada Joenia quando o texto foi aprovado na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara. [5]

Joênia Wapichana foi a primeira mulher indígena a exercer a advocacia no Brasil, a primeira mulher indígena a eleger-se deputada federal, no pleito de 2018. É também a primeira mulher indígena a comandar a presidência da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai). Joenia ficou conhecida por sua atuação na demarcação da reserva indígena Raposa Serra do Sol e como a primeira presidente da Comissão de Direitos dos Povos indígenas da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), criada em 2013. [6]

Com a eleição do presidente Lula, a visibilidade e o reconhecimento dos povos indígenas foram ampliados. As lutas de resistência durante o governo anterior foram substituídas por espaço formal no governo, criação de um ministério dedicado aos povos indígenas e ampliação das demarcações das terras indígenas.

Na sexta-feira, 04/04/2025, Lula condecorou o Cacique Raoni Metuktire com a mais alta condecoração da diplomacia brasileira, a Grã-Cruz da Ordem Nacional do Mérito, por sua atuação e trajetória política em prol da defesa do meio ambiente e dos direitos indígenas. A solenidade ocorreu na Aldeia Piaraçu, localizada na Terra Indígena Capoto-Jarina, em São José do Xingu, Mato Grosso, e contou com a presença da ministra dos Povos Indígenas, Sonia Guajajara. A celebração, ocorrida na bacia do Xingu, fez parte do processo de diálogo com lideranças sobre a demarcação da Terra Indígena Kapôt Nhinore.

A luta do Cacique Raoni remonta aos anos 1960, sendo amplamente reconhecida internacionalmente. O Cacique Raoni é um símbolo da luta indígena e da articulação global para defender os direitos indígenas e a proteção do meio ambiente.  [7]

O Ministério dos Povos Indígenas é um ministério do Poder Executivo federal estruturado no terceiro mandato do presidente Lula (2023- atual) em resposta às reivindicações históricas do movimento indígena, sendo o primeiro ministério criado dedicado aos povos originários.

A ministra é a ativista Sônia Guajajara, indígena brasileira filiada ao Partido Socialismo e Liberdade. As competências do Ministério dos Povos Indígenas incluem garantir aos indígenas acesso à educação e saúde, incentivar e dar meios para a demarcação das terras indígenas e combater o genocídio das populações indígenas.[8]

Entre seus objetivos, a revogação das medidas estabelecidas no Governo Bolsonaro relativas à demarcação e o uso dos territórios indígenas. [9]

O Brasil possui agora 445 Terras Indígenas tradicionalmente ocupadas homologadas, que abrangem um território de 107.449.595 hectares. Somam-se a esse número, 15 Terras Indígenas demarcadas pelo Serviço de Proteção aos Índios (SPI).

Ainda existem outras 261 áreas tradicionalmente ocupadas que seguem aguardando o andamento de seus processos demarcatórios: são 151 em estudo e outras seis áreas com Portarias de Restrição de Uso para proteção de povos indígenas isolados, 36 identificadas pela Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) e 68 terras já declaradas pelo Ministério da Justiça à espera do decreto homologatório. A esse números, somam-se ainda 48 Reservas Indígenas regularizadas e 10 áreas dominiais e, por fim, 20 áreas reservadas em processo de regularização. [9, 10, 11]
As terras indígenas reconhecidas durante o terceiro mandato de Lula foram as seguintes:

⦁ Aldeia Velha (BA);
⦁ Acapuri de Cima (AM);
⦁ Arara do Rio Amônia (AC);
⦁ Avá-Canoeiro (GO);
⦁ Cacique Fontoura (MT);
⦁ Kariri-Xocó (AL);
⦁ Rio dos Índios (RS);
⦁ Rio Gregório (AC);
⦁ Tremembé da Barra do Mundaú (CE);
⦁ Uneiuxi (AM);
⦁ Potiguara de Monte-Mor, do povo potiguara, na Paraíba;
⦁ Morro dos Cavalos, dos povos Guarani Ñandeva e Guarani Mbya;
⦁ Toldo Imbu, do povo Kaingang, estas últimas ambas em Santa Catarina. [9, 10, 11]

A média de tempo que as três últimas TI homologadas levaram para concluírem seu processo homologatório foi de 31 anos, o que demonstra que há ainda um longo caminho a ser trilhado no direito ao reconhecimento efetivo dos territórios indígenas. [9, 10, 11]

As terras indígenas são reconhecidas pela preservação da vegetação nativa. O relatório do MapBiomas sobre terras indígenas, publicado em 2023, informou que as terras indígenas ocupavam 13,9% do território brasileiro, naquele momento, e perfaziam 115,3 milhões de hectares de vegetação nativa, correspondendo a 20,4% da vegetação nativa no Brasil em 2021.

Segundo dados do relatório, a perda de vegetação nativa no Brasil nos últimos 30 anos (1991-2021) foi de 65 milhões de hectares. Apenas 0,6 milhão de hectares desmatados recai sobre as terras indígenas, o que equivale a menos de 1% de toda a perda de vegetação nativa nos últimos 30 anos. Quando comparados às áreas privadas, a perda de vegetação nativa chega a 44,8 milhões de hectares, aproximadamente 69,3% do total desmatado, se concentra em áreas privadas [12;13]. Nesse sentido, as terras indígenas atuam como efetiva resistência às mudanças climáticas, mantendo a floresta em pé e garantindo a existência dos povos indígenas.

O Abril Indígena também é o marco do Acampamento Terra Livre, acampamento de mobilização dos povos indígenas brasileiros, que ocorre desde 2004 em Brasília, usualmente na Esplanada dos Ministérios, trazendo visibilidade às lutas indígenas. Em 2025, o 21º Acampamento Terra Livre ocorrerá entre os dias 7 e 11 de abril, na Funarte, próximo à Torre de TV em Brasília [14].

O Acampamento Terra Livre é organizado pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil – Apib e suas sete organizações regionais de base: Apoinme, ArpinSudeste, ArpinSul, Aty Guasu, Conselho Terena, Coaib e Comissão Guarani Yvyrupa. Segundo a Apib, são esperados entre 6 e 8 mil indígenas de mais de 200 povos para a mobilização.

A Apib divulgou a programação em seu website, https://apiboficial.org/atl-2025/, e a mobilização de 2025 está estruturada em cinco eixos:

⦁ Apib Somos Todos Nós,
⦁ Resistência e Conquista
⦁ Desconstitucionalização de Direitos
⦁ Fortalecendo a Democracia
⦁ Em Defesa do Futuro – A Resposta Somos Nós

O tema principal do ATL 2025 – “APIB Somos Todos Nós: Em Defesa da Constituição e da Vida” – destaca o empenho dos povos indígenas na garantia dos seus direitos previstos na Constituição Federal, além de celebrar a união e a resistência da Apib, que completa 20 anos de luta e conquistas.

A plenária principal do ATL tratará de temas fundamentais como conflitos em territórios indígenas, criação da Comissão Nacional da Verdade Indígena, a Câmara de Conciliação do Supremo Tribunal Federal (STF), a transição energética justa e a resistência LGBTQIA+ indígena.

Nos dias 8 e 10 de abril, os povos indígenas marcharão pelas ruas da capital federal nos atos “Apib Somos Todos Nós: Nosso Futuro Não Está à Venda” e “A Resposta Somos Nós”. Além disso, serão lançados um documentário sobre os 20 anos da Apib e a Comissão Internacional Indígena para a COP30. Confira a programação no site do ATL 2025.

Serviço:

Diálogos de Justiça e Paz – edição de abril de 2025 – “O futuro não está à venda: Os saberes originários contra a emergência climática”

Onde? Centro Cultural de Brasília, na 601 norte
Quando? 07 de abril, segunda-feira
Que horas? Às 19h
Convidados:

  • Kleber Xukuru, Presidente da Associação da Comunidade Indígena Xukuru (ACIX) e Gerente de Proteção e Defesa Civil de Pesqueira (PE), e
  • Marcivania Sateré-Mawé, Coordenadora da Coordenação de Povos Indígenas de Manaus e Entornos (COPIME)
    Mediação de Luiz Felipe Lacerda, Secretário-Executivo do OLMA.
    Transmissão ao vivo pelo YouTube nos canais @OLMAObservatorio e @CJPBrasília.

Acampamento Terra Livre 2025 – “APIB Somos Todos Nós: Em Defesa da Constituição e da Vida”

Onde? Espaço Funarte, Brasília
Quando? 07 a 11 de abril de 2025
Programação disponível em https://apiboficial.org/atl-2025/

[1] Ouvidora Pública do Serviço Florestal Brasileiro, advogada e bióloga pela Universidade de Brasília, Presidente da Comissão Justiça e Paz de Brasília.
[2] Jurista, Professor Emérito da Universidade de Brasília (UnB), fundador e coordenador do grupo de pesquisa “O Direito Achado na Rua”. Foi reitor da UnB (2008/2012), membro da Comissão Justiça e Paz de Brasília

Referências bibliográficas

[3] https://www.gov.br/funai/pt-br/assuntos/noticias/2023/dia-dos-povos-indigenas-funai-celebra-novo-nome-da-data-e-promove-acao-de-fortalecimento-da-politica-indigena#:~:text=A%20mudan%C3%A7a%2C%20aprovada%20pelo%20Congresso%20em%202022%2C,pois%20o%20termo%20%E2%80%9C%C3%ADndio%E2%80%9D%20tem%20conota%C3%A7%C3%A3o%20pejorativa.
[4] Fundação Escola Superior da Defensoria Pública do Rio de Janeiro – FEDESP; Fórum Justiça; Rede Nacional de Advogadas e Advogados Populares – RENAP; Ouvidoria da Defensoria Pública do Estado do Rio Grande do Sul (org.). A Questão do Direito Indígena no Brasil Face ao Mundo. 1. ed. Brasília: IPDMS, 19 mar. 2024. Disponível em: https://forumjustica.com.br/biblioteca/a-questao-do-direito-indigena-no-brasil-face-ao-mundo/. Acesso em: 6 abr. 2025. ISBN 978-65-991210-2-9.
[5] https://www.camara.leg.br/noticias/896465-nova-lei-denomina-o-19-de-abril-como-dia-dos-povos-indigenas-em-substituicao-a-dia-do-indio/
[6] https://pt.wikipedia.org/wiki/Jo%C3%AAnia_Wapichana
[7] https://www.gov.br/povosindigenas/pt-br/assuntos/noticias/2025/04/lula-condecora-cacique-raoni-com-a-mais-alta-honraria-do-estado-brasileiro
[8] https://pt.wikipedia.org/wiki/S%C3%B4nia_Guajajara
[9] Ministério dos Povos Indígenas https://pt.wikipedia.org/wiki/Minist%C3%A9rio_dos_Povos_Ind%C3%ADgenas#:~:text=O%20Minist%C3%A9rio%20dos%20Povos%20Ind%C3%ADgenas,combater%20o%20genoc%C3%ADdio%20deste%20povo.
[10] https://www.socioambiental.org/noticias-socioambientais/governo-federal-homologa-tres-terras-indigenas-saiba-quais-são
[11] https://g1.globo.com/politica/noticia/2023/04/28/lula-demarca-terras-indigenas-em-seis-estados-veja-detalhes-das-areas.ghtml
[12] https://brasil.mapbiomas.org/2023/05/03/documento-sobre-terras-indigenas-no-brasil-e-atualizado/
[13] https://www.gov.br/povosindigenas/pt-br/assuntos/noticias/2024/08/terras-indigenas-sao-as-areas-mais-preservadas-do-brasil
[14] https://apiboficial.org/atl-2025/

sexta-feira, 4 de abril de 2025

 

Acesso à Justiça e Participação Social: A Evolução das Políticas Públicas de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas no Brasil

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Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito

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Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito

 

Sabrina Beatriz Ribeiro Pereira da Silva. ACESSO À JUSTIÇA E PARTICIPAÇÃO SOCIAL: A Evolução das Políticas Públicas de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas no Brasil. Dissertação apresentada à Faculdade de Direito da Universidade de Brasília, no Programa de Pós-Graduação em Direito, Brasília, 2025, 77 fls.

 

Trata-se de Dissertação de Mestrado, apresentada, defendida e aprovada, na Faculdade de Direito da UnB. A Banca Examinadora foi constituída sob a presidência da professora Talita Tatiana Dias Rampin – FD/UnB Orientadora, pela professora Nathaly Mancilla-Órdenes, examinadora externa e por mim, membro interno do PPGD/Faculdade de Direito da UnB.

Do que cuida a Dissertação diz o seu resumo:

Este trabalho articula a luta contra o tráfico de pessoas com a ampliação do acesso à justiça, propondo-se a contribuir para um debate urgente: como transformar instrumentos legais e políticas públicas em ferramentas concretas de emancipação social, garantindo que a justiça não seja apenas reparadora, mas também transformadora. A dissertação está organizada em três capítulos. O primeiro capítulo explora o conceito em expansão do acesso à justiça, enfatizando sua dimensão preventiva por meio de políticas públicas e conectando-o aos princípios norteadores da Política Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas. O segundo capítulo traça um panorama histórico das políticas de combate ao tráfico de pessoas no Brasil, destacando avanços e desafios a partir de oito marcos legais e institucionais, que parte da adesão ao Protocolo de Palermo (2004) e vai até a publicação do IV Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas (2024-2028). Por fim, o terceiro capítulo analisa a relação entre a ampliação do conceito de acesso à justiça e a participação da sociedade civil na construção do IV PNETP. Destaca-se o papel das reuniões virtuais, que facilitaram significativamente o engajamento de organizações, especialistas e movimentos sociais de todas as regiões do país, promovendo maior inclusão no processo. Além disso, são apresentadas as propostas consolidadas pela ação de extensão continuada “Projeto Vez e Voz”, encaminhadas para aprimorar algumas ações prioritárias do IV Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas.

 

Constato que nesse trabalho Sabrina dá continuidade agora num patamar mais avançado e com a ampliação da contribuição de indicar instrumentos legais e políticas públicas para indicar vias alargadas de acesso à justiça como mediação concretizadora de emancipação social, a um tema que a convocou durante toda a sua graduação em Direito, na Universidade de Brasília, até a diplomação precedida de seu trabalho de conclusão de curso, também sob a orientação da professora Talita Rampin, DOS “SONHOS QUE VIRAM PESADELOS” PARA A ZONA DO NÃO-SER: O Tráfico de Pessoas e a Cidadania Inexistente, agora com mais adensamento.

Acompanhei o desenvolvimento da formação acadêmica de Sabrina, nessa etapa, e até elaborei uma recensão de sua monografia, aqui neste espaço da Coluna Lido para Você – https://estadodedireito.com.br/dos-sonhos-que-viram-pesadelos-para-a-zona-do-nao-ser-o-trafico-de-pessoas-e-a-cidadania-inexistente/. Folgo em considerar, um vez que a Coluna tem o objetivo de reunir indicações para pesquisadores e sugestões a editores, que a monografia da Sabrina, com meu prefácio, está no prelo para publicação em breve pela Editora Segundo Selo, na Coleção Monografias – área Direito.

Na leitura que fiz pude aquilatar que embora haja necessária singularidade na construção de sentido intelectual que se manifesta na monografia, Sabrina não negligenciou todo o arranjo coletivo que proporcionou muito dos seus achados, valendo-se de um acumulado que assegura um notável esforço para qualificar sua abordagem do tema. Claro que ela realiza uma contribuição autoral própria, mas traduz essa autoria com o apoio de um processo também de co-autoria. Chamei a atenção para isso na recensão, e também no prefácio, mencionando o trabalho “Projeto Vez e Voz: a Educação Popular na Prevenção e no Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas nas Escolas do Distrito Federal”, publicado em SOUSA JUNIOR, José Geraldo de; FONSECA, Lívia Gimenes Dias da; BAQUEIRO, Paula de Andrade (Orgs). Promotoras Legais Populares Movimentando Mulheres pelo Brasil: Análises de Experiências. Brasília: Universidade de Brasília, 2019, p. 187-206 – referido em https://drive.google.com/drive/u/1/folders/1PjSpxTzFgSNThU1zyfLKet7vz20eTP7m.

Também fiz uma recensão dessa obra, impressionado com o recorte nela exposto de que “Nasce uma Ideia: a Prevenção como Esperança”. Nessa linha de referências, localizei mais uma vez Sabrina em nova co-autora, no texto “Projeto Vez e Voz: a Extensão Universitária Popular Trabalhando a Prevenção ao Tráfico de Pessoas na Pandemia da Covid-19”, em SOUSA JUNIOR, José Geraldo de; RAMPIN, Talita Tatiana Dias; AMARAL, Alberto Carvalho (Orgs). Direitos Humanos & Covid-19. Respostas Sociais à Pandemia. Vol. 2. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2022, p. 239-272, mais completamente mencionado em  http://estadodedireito.com.br/direitos-humanos-covid-19-vol-2-respostas-sociais-a-pandemia/, posto que centrado na afirmação de que “Quando uma pessoa é explorada numa situação de tráfico, ela é tratada como se coisa fosse, o que gera grandes danos físicos e psicológicos, por vezes irreversíveis, é por isso que a prevenção é o melhor caminho”.

Muito eloquente, nesse trabalho de Sabrina foi ela ter recorrido a Frantz Fanon, com a sua metáfora da Zona do não-ser, referida à condição de cidadania inexistente das vítimas do tráfico de pessoas. Conforme Fanon, “Há uma zona de não-ser, uma região extraordinariamente estéril e árida, uma rampa essencialmente despojada, onde um autêntico ressurgimento pode acontecer”.

Uma chave de leitura que vai ser levada de modo forte para a sua conclusão nesse primeiro trabalho mais sistematizado:

 

Vê-se, portanto, que condições de desemprego, pobreza, insegurança alimentar e instabilidade residencial é realidade na vida dos seres racializados que se localizam na zona do não-ser. E é importante não se olvidar que essas situações permanecem porque o Estado e toda sua estrutura branca e padronizada fazem essa escolha política. O Brasil não é um país pobre, é um país desigual e sustentado por uma estrutura racista e lgbtfóbica. No que tange à especificidade do tráfico de pessoas, os impactos de fazer parte da zona do não-ser podem ser visualizados em diferentes aspectos e amplitudes. Vejamos a seguir dois exemplos distintos que ilustram a sub-cidadania de vítimas do tráfico de pessoas e do descaso do Estado brasileiro para acolher e integrar, constitutiva de um trabalho escravo contemporâneo   favorecido pela zona do não-ser: “o tráfico humano com a finalidade de exploração do trabalho escravo é a modalidade que é mais retratada no Brasil. Nesse momento vale destacar que a invisibilidade do tráfico de pessoas, tanto pela desinformação com pela subnotificação por incapacidade técnica de algumas autoridades, é uma condição que dificulta a observância do verdadeiro panorama dessa prática criminosa.

 

Acrescento ao esforço de adensamento que Sabrina dedica a esse tema, também numa perspectiva política de divulgação científica e de ação de conscientização como atividade extensionista  a sua participação no programa TV61 O Direito Achado na Rua: Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas. Projeto Vez e Voz. Entrevista Rosa Maria e Sabrina Beatriz, acessível no Blog Diálogos Lyrianos –www.odireitoachadonarua.blogsport.com – na elucidativa entrevista concedida ao jornalista João Negrão: https://www.youtube.com/watch?v=KaT3sUwW-RE&list=PLuEz7Ct3A0Uj9NU2BYmgSIM0rWv7IRAjK&index=22 .

Sabrina está convicta, até porque muito bem orientada, do lastro que esse percurso lhe proporciona para poder agora ampliar o enfoque de aplicação para o alcance emancipatório social que ela quer indicar desde seu estudo. Ela é bem consciente disso quando afirma: “Esta dissertação representa um aprofundamento dos estudos que esta pesquisadora iniciou durante a graduação. Diante das complexidades conceituais que envolvem o crime de tráfico de pessoas, das dificuldades científicas relacionadas à obtenção e análise de dados sobre o fenômeno e da experiência prática da pesquisadora  no campo da prevenção às finalidades desse crime, o presente trabalho não se restringe a abordar o tráfico de pessoas como um conceito isolado. Em vez disso, concentra-se em analisar a evolução das políticas públicas de enfrentamento ao tráfico de pessoas no Brasil, estabelecendo uma relação com a expansão do debate sobre o acesso à justiça, com ênfase especial no eixo da prevenção”.

Nos capítulos em que organiza o estudo, sintetizados no resumo, a Autora articula os elementos teóricos e as categorias com as quais move seus juízos analíticos para responder à premissa em que assenta o seu estudo e que expõe a sua contribuição: a de que “a expansão do acesso à justiça perpassa a ótica da justiça preventiva, transcende a dimensão punitiva e passa a englobar ações que antecipam e mitigam riscos. A análise proposta aqui não se limita a criticar as fragilidades do modelo de políticas públicas vigente, mas busca explorar como a ampliação da definição de acesso à justiça interagi com o enfrentamento ao tráfico humano, a partir de uma revisão da evolução dos planos nacionais sobre o assunto”.

De minha parte, constato no trabalho de Sabrina Beatriz aquele conjunto de enunciados que se constituíram a preocupação minha e da professora Nair Heloisa Bicalho de Sousa ao apresentar a publicação, fruto de um projeto pedagógico de educação para os direitos humanos “Desafios e perspectivas para o enfrentamento ao tráfico de pessoas no Brasil. (Org.) Nair Heloisa Bicalho de Sousa, Adriana Andrade Miranda, Fabiana Gorenstein. Brasília: Ministério da Justiça, Secretaria Nacional de Justiça, Coordenação de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas, 2011”, especificamente em responder a questão posta na Apresentação: “O NEP e o projeto Pautas Pedagógicas para a Universidade. Por que escolhemos trabalhar com tráfico?”.

Talvez uma boa razão seja a que indicamos na justificação do livro. Porque “educar para a cidadania, segundo o PNEDH (2006) implica promover o respeito à igualdade, diversidade e liberdades fundamentais, com estímulo à participação social e contribuir para a formação de uma consciência cidadã junto aos membros da sociedade brasileira. O eixo central dessa política é a constituição de sujeitos de direitos comprometidos com a ética, a política e a memória nacional, capazes de criar um espírito de resistência às práticas opressoras, como é o caso do tráfico de crianças, adolescentes e mulheres. A transformação destes em mercadoria para fins de exploração sexual é a negação da proposta de educação em direitos humanos, a qual pretende capacitar os grupos vulneráveis, de modo a empoderá-los para o exercício da cidadania”.

Quando se examina, seja na perspectiva das políticas públicas, quer no âmbito nacional ou no internacional, ou no diálogo entre sociedade civil e institucionalidade (estado, organizações internacionais), os passos, procedimentos e enunciados que tem sido estabelecidos nesse campo (enfrentamento ao tráfico de pessoas), torna-se possível divisar como e porque foram estabelecidos princípios, diretrizes e ações de prevenção e repressão não só para o tráfico propriamente dito como a atenção voltada para as vítimas e logo, identificar os eixos estratégicos centrados nesses pressupostos, para exatamente, articular a prevenção, a atenção às vítimas e a repressão ao tráfico com responsabilização dos autores de modo a definir ações concretas que orientem a consequente intervenção pública (Apresentação in Desafios e perspectivas para o enfrentamento ao tráfico de pessoas no Brasil).

A contribuição que Sabrina Beatriz traz com a sua Dissertação carrega essa possibilidade de incidência no fortalecimento desses eixos estratégicos, sobretudo, como está na sua conclusão, ao indicar “o acesso à justiça como um elemento central no enfrentamento ao tráfico de pessoas, especialmente quando considerado sob a perspectiva da justiça preventiva. Mais do que garantir mecanismos de responsabilização post factum, a justiça preventiva demanda ações antecipatórias que ataquem as causas profundas do tráfico, como a pobreza, a falta de oportunidades e a discriminação. Essa abordagem exige a integração de políticas públicas intersetoriais – envolvendo educação, assistência social, saúde e mercado de trabalho –, capazes de reduzir a vulnerabilidade de populações em risco”.

 

 

 

quinta-feira, 27 de março de 2025

 

Julgar crimes contra o Estado de Direito credencia o STF como garante da democracia

Por: José Geraldo de Sousa Junior (*) – Jornal Brasil Popular/DF

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Neste 26/3, a Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu, por unanimidade, aceitar a denúncia contra o ex-presidente Jair Bolsonaro e sete de seus associados, tornando-os réus em um processo penal.

Na denúncia apresentada pela Procuradoria-Geral da República (PGR) ao Supremo Tribunal Federal (STF), o ex-presidente Jair Bolsonaro e os demais integrantes do chamado “núcleo crucial” foram acusados dos seguintes crimes:​ Organização criminosa armada: formação de grupo estruturado com o objetivo de cometer crimes utilizando armas; tentativa de abolição violenta do Estado Democrático de Direito por meio de violência ou grave ameaça, impedindo ou restringindo o exercício dos poderes constitucionais; Golpe de Estado: tentativa de depor, por meio de violência ou grave ameaça, o governo legitimamente constituído;​ dano qualificado: destruição, inutilização ou deterioração de bens públicos, especialmente quando há emprego de violência ou ameaça; e deterioração de patrimônio tombado: danos causados a bens protegidos por seu valor histórico, artístico ou cultural.​

 Esses crimes estão relacionados às ações que visavam impedir a posse do presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva após as eleições de 2022. Se condenados, os réus podem enfrentar penas de até 43 anos de prisão. ​

Além do ex-presidente Bolsonaro, a decisão aceitou a denúncia contra Walter Braga Netto: general do Exército, ex-ministro da Casa Civil e candidato a vice-presidente na chapa de Bolsonaro nas eleições de 2022; Augusto Heleno: general do Exército e ex-ministro do Gabinete de Segurança Institucional (GSI); Alexandre Ramagem: ex-diretor da Agência Brasileira de Inteligência (Abin); Anderson Torres: ex-ministro da Justiça e ex-secretário de Segurança Pública do Distrito Federal; Almir Garnier: ex-comandante da Marinha; Paulo Sérgio Nogueira: general do Exército e ex-ministro da Defesa; e Mauro Cid: tenente-coronel e ex-ajudante de ordens do ex-presidente Jair Bolsonaro.​

Além do “núcleo crucial” da organização criminosa, a Procuradoria-Geral da República (PGR) identificou outros quatro núcleos na denúncia apresentada contra o ex-presidente Jair Bolsonaro e seus associados, arrolando uma nominata de quadros de alta hierarquia civil e militar, compreendendo imputações de “coordenação do emprego das forças policiais para sustentar a permanência ilegítima do ex-presidente no poder: Este grupo, composto por seis integrantes, tinha a função de coordenar o uso de forças policiais ou militares em operações planejadas pelo núcleo político”;  “disseminação de desinformação: Composto por oito integrantes, este núcleo era responsável por operações estratégicas de desinformação, propagando notícias falsas sobre o processo eleitoral e realizando ataques virtuais a instituições e autoridades”; “ações táticas para convencer e pressionar o Alto Comando do Exército a ultimar o golpe: Este grupo de sete militares tinha como objetivo executar ações táticas para convencer e pressionar o Alto Comando do Exército a consumar o golpe”; e “monitoramento e neutralização de autoridades públicas: Composto por cinco militares, este núcleo era responsável por monitorar e neutralizar autoridades públicas”.

Essa divisão em “núcleos” foi realizada pela PGR para otimizar o andamento processual e facilitar a análise dos casos pela Justiça, e em procedimentos específicos passarão nos próximos dias pelo mesmo juízo de aceitação das denúncias respectivas, também na 1ª Turma do STF, ao exame dos mesmo ministros julgadores.

Agora que a denúncia foi aceita, por unanimidade, os acusados passam a ser réus no processo criminal, cujo prosseguimento percorre as seguintes etapas: Citação dos Réus – Os acusados serão formalmente notificados para apresentar suas defesas por escrito dentro do prazo legal; Instrução Processual – Nesta fase, serão produzidas provas, realizadas oitivas de testemunhas de acusação e defesa, além do interrogatório dos réus; julgamento pelo STF, após a fase de instrução do processo, podendo os réus, se condenados, apresentar os recursos cabíveis dentro do próprio tribunal. A Execução da Pena (se houver condenação) será definida decisão final do STF, podendo incluir prisão e outras penalidades.

No STF, a ação penal contra o ex-presidente Jair Bolsonaro e os demais réus será presidida pelo relator do caso, que é o ministro Alexandre de Moraes. Ao ministro relator compete o papel fundamental de conduzir o processo e de tomar diversas decisões ao longo da instrução criminal, incluindo: supervisionar a fase de instrução processual, incumbindo-lhe autorizar a coleta de provas, ouvir testemunhas e determinar diligências necessárias; presidir os interrogatórios conduzindo os depoimentos dos réus e das testemunhas, garantindo que todas as partes sejam ouvidas; analisar pedidos das partes, o que inclui requerimentos da defesa e do Ministério Público, como solicitações para inclusão de provas ou impugnação de documentos; determinar medidas cautelares,  podendo impor restrições aos réus, como proibição de contato entre eles, bloqueio de bens ou até prisão preventiva, se necessário; e encaminhar o caso para julgamento colegiado,  após a fase de instrução, com seu relatório e voto.

Realizado o julgamento, nele os ministros decidem se os réus são inocentes ou culpados. Se os magistrados optarem pela condenação, os réus recebem penas de forma individual, conforme o envolvimento de cada um nos crimes. Em caso de inocência, o processo é arquivado.

Ao aceitar a denúncia o STF não exerce apenas uma atribuição técnico-jurídica mas se credencia para exercer constitucionalmente a função de garante da Democracia e de guardião da Constituição. Do ponto de vista técnico a extensão e intensidade do relatório e votos, do relator e dos ministros da Turma, causam impacto e estupor. A dinâmica da contrafação, do lesa-pátria expõe a trama de uma conspiração golpista, aliás, não contradita pelas defesas que se concentraram no esforço vão e contraditório entre si, de descaracterizar os enquadramentos evidentes, à luz das provas, dos depoimentos e dos fatos encontrados sob a guarda dos agentes dos delitos.

Do ponto de vista político e no limite ético, uma exposição didática e reveladora de uma agressão às instituições, à democracia, ao estado de direito, à sociedade e à constituição do país. Aqui mesmo, neste espaço em registros da Coluna O Direito Achado na Rua (https://brasilpopular.com/autoanistia-uma-violencia-inconstitucional-e-inconvencionaldo-delinquente-a-fim-gerar-sua-impunidade/; também em  https://brasilpopular.com/60-anos-do-golpe-de-1964-memoria-verdade-mas-tambem-justica-razoes-para-o-nunca-mais/tenho externado a expectativa de que tudo que se vivencia no país desde o 8 de janeiro de 2023 deve ser avaliado sob o enfoque da Justiça Transicional, até para que se realize o seu fundamento de não repetição, uma vez que a delinquência de hoje é resultante direta da delinquência de ontem porque não se responsabilizou os contraventores reincidentes.  E isso significa dever-se estar atentos, inclusive os tribunais, às reiteradas manifestações da Comissão e da Corte Interamericana de Direitos Humanos sobre estabelecer que a falta de responsabilização e  as disposições de anistia ampla, absoluta e incondicional consagram a impunidade em casos de graves violações dos direitos humanos, pois impossibilitam uma investigação efetiva das violações, a persecução penal e sanção dos responsáveis. A Comissão afirmou que esses crimes têm uma série de características diferenciadas do resto dos crimes, em virtude dos fins e objetivos que perseguem, dentre eles, o conceito da humanidade como vítima, e sua função de garantia de não repetição de atentados contra a democracia e de atrocidades inesquecíveis. Especificamente sobre o monitoramento que exercita em relação ao Brasil, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), em seu último relatório (2021), ofereceu recomendações sobre ações que tendem a fragilizar e até extinguir esse sistema, como o enfraquecimento dos espaços de participação democrática, indicando, entre as recomendações, a necessidade de “investigar, processar e, se determinada a responsabilidade penal, sancionar os autores de graves violações aos direitos humanos, abstendo-se de recorrer a figuras como a anistia, o indulto, a prescrição ou outras excludentes inaplicáveis a crimes contra a humanidade”, prevenindo o nunca mais.

Falando para o programa Latitud Brasil, em entrevista para TeleSur, em programa ancorado pelo jornalista Beto Almeida, pudemos convergir que o julgamento deste dia 26 de março e abertura do processo criminal podem se constituir numa lição de cidadania, numa sessão especial e pedagógica para o aprendizado da democracia e de realização de justiça (de transição). Uma chance para que possamos exercitar um aprendizado de reeducação política, uma aula prática de discernimento sobre a hipocrisia e o fascismo dos discursos que parecendo avançados e progressistas não disfarçam, salvo pela prova da prática, posicionamentos, cumplicidades, diversionismos, camuflagens de engajamentos ideológicos sobre processos sociais, conceitos econômicos e políticos, práticas confessionais e falácias argumentativas.

Maurice Merleau-Ponty advertia para o disfarce linguístico que oculta as intencionalidades e as alianças. Ele dizia que discursivamente, “todos defendem os mesmos valores, a liberdade, a justiça, a igualdade; então o que separa; o que separa são as associações que estabelecemos, se com os senhores ou se com os escravos”.  Na sua consideração, valores como liberdade, justiça, igualdade, são conquistas realizadas pelo social no mundo, enfatizando a interação entre o indivíduo e o contexto social. Para ele temos responsabilidade coletiva e individual em relação aos valores universais e como diferentes interpretações desses valores podem levar a associações distintas, refletindo sobre a complexidade das escolhas humanas e suas implicações políticas.

Foi, no mínimo curioso constatar a irresignação dos réus, principalmente do ex-presidente – aquele justamente que o ministro-relator considerou como se ouviu em seu relatório​, como “o líder de uma organização criminosa que planejou e executou ações visando impedir a posse do presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva e abolir o Estado Democrático de Direito no Brasil; que não apenas tinha conhecimento das ações golpistas, mas também participou ativamente de seu planejamento e execução”;  indicando, “entre as evidências apresentadas, destacar-se uma minuta de decreto presidencial que previa a decretação de Estado de Defesa no Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e a prisão do ministro Alexandre de Moraes”; e que, “de acordo com a investigação”, o ex-presidente “teria pessoalmente ajustado essa minuta e pressionado os comandantes das Forças Armadas a aderirem ao plano”. Completando que ​“além disso, o relatório indica que Bolsonaro estava ciente de planos para assassinar o presidente eleito Lula, o vice-presidente Geraldo Alckmin e o próprio ministro Alexandre de Moraes. Essas informações foram corroboradas por depoimentos e evidências coletadas durante a investigação” – uma insistente postura de desqualificação do sistema de justiça, do Ministério Público, do procedimento judicial, configurando como o ex-presidente Jair Bolsonaro tem consistentemente caracterizado as investigações e processos judiciais conduzidos pelo Supremo Tribunal Federal (STF) e pelo Ministério Público como formas de perseguição política. Em resposta às acusações de envolvimento em uma tentativa de golpe de Estado, ele insiste em negar qualquer irregularidade e continuando a desqualificar as instituições, a afirmar ser vítima de uma “caça às bruxas política” destinada a impedir seu retorno ao poder antes das eleições presidenciais de 2026, porque as acusações têm como objetivo encerrar sua carreira política e suprimir a oposição de direita. ​

No extremo, tem comparando processos no STF a práticas “nazi-fascistas” (a conferir 1. UOL – Título: “Bolsonaro chama processo no STF de ‘prática nazi-fascista'” Link: https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2023/10/23/bolsonaro-stf-nazifascista.htm; 2. G1 (Globo) – Título: “Bolsonaro critica STF e fala em ‘nazi-fascismo’ em post sobre processos”. Link: https://g1.globo.com/politica/noticia/2023/10/23/bolsonaro-critica-stf-e-fala-em-nazi-fascismo-em-post-sobre-processos.ghtml;  3. Folha de S.Paulo – Título: “Bolsonaro ataca STF e chama processos de ‘prática nazi-fascista'”. Link: https://www1.folha.uol.com.br/poder/2023/10/bolsonaro-ataca-stf-e-chama-processos-de-pratica-nazi-fascista.shtml .

Compreende-se a desfaçatez de atribuir a outros a atitude ou a prática que traduz o seu modo de agir político. Mas esse não é o rabo visível que revela o gato escondido. Esse é também um modo merleau-pontyano de desvelar e de analisar e compreender os sub-textos, os subentendidos, aqueles elementos presentes nas narrativas – dos editoriais e comentários apresentados nos grandes meios de comunicação (ah, o excesso generalizável da tipificação para a intervenção ingênua de batom nos símbolos e bens patrimoniais ou a promenade dominical de velhinhas com bíblias nas mãos), do púlpito, convertido em palanque, para o farisaísmo moralista e intolerante em redução pastoral e teológica; da tribuna, na locução de uma representação que se resguarde na carapuça da imunidade parlamentar para acobertar a cumplicidade financiada do exercício de mandatos; na cátedra, capturada pelo negacionismo ou coptada pelo sistema de produção de conhecimento pelo fomento que esvazia a função social da educação; da judicatura, enfim, quando convocada para revestir de licitude o ignóbil e o “obscuro caminho” lembrava o padre Henrique Cláudio de Lima Vaz, ao se referir “a horda sem lei” (cf. Ética e Justiça: Filosofia do Agir Humano in PINHEIRO, pe José Ernanne, SOUSA JUNIOR, José Geraldo de, DINIS, Melillo, SAMPAIO, Plínio de Arruda (orgs). Ética, Justiça e Direito. Reflexões sobre a Reforma do Judiciário. Petrópolis: CNBB/Editora Vozes. 1ª edição, 1996); ou a própria deslealdade com o social mobilizado enganosamente por expectativas vicárias disfarçadas de defesa do bem comum – para ir além da compreensão superficial das palavras e dos eventos descritos.

Julgar Crimes contra o Estado de Direito credencia o STF como garante da Democracia, mas é também uma oportunidade incontornável para aferir a nossa capacidade pedagógica de exercitar uma experiência exemplar de educação para a Democracia e para a Cidadania.

(*) José Geraldo de Sousa Junior é professor titular na Faculdade de Direito e ex-reitor da Universidade de Brasília (UnB)