quarta-feira, 2 de julho de 2025

 

A Seguridade Social como Expressão da Fraternidade: Um Direito Construído pela Luta Social

Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito

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Júlia Caroline Taquary dos Reis. A Seguridade Social como Expressão da Fraternidade: Um Direito Construído pela Luta Social. Trabalho de Conclusão de Curso (Monografia) apresentado à Faculdade de Direito da Universidade de Brasília, 2025, 162 fls.

 

                  

 

Não deve causar espanto o fato de que uma defesa de monografia de graduação, mesmo numa Faculdade de Direito – da UnB – que ostenta a mais elevada nota de um programa de pós graduação (nota 7), juntamente com três outras faculdades públicas do Brasil, tenha permitido reunir uma banca de tal magnitude: um procurador federal, consultor jurídico de um ministério (MDS), um professor, ministro do STJ e um professor ministro aposentado e ex-Presidente do STF. Isso talvez naturalize a brincadeira que se ouviu no recinto, de que numa etapa mais avançada a estudante poderia vir a ter na banca, mantido o tema, o próprio Papa (Leão XIV, agora, mas que se espera mantenha a mesma diretriz de Francisco, conforme a exortação Fratelli tutti).

Mas o fato é que a estudante graduanda tem percurso. Na FD UnB percorreu todas as etapas de ensino, extensão e pesquisa, exerceu monitoria, participou de intercâmbio internacional e foi duas vezes galardoada com prêmios na área de ensino, notadamente com escopo em metodologias ativas.

Assim, recebeu pelo menos prêmios (com o Orientador) na 3ª Edição do Prêmio Esdras de Ensino de Direito (FGV) Categoria Destaque: Pesquisa em (qual) direito – José Geraldo de Sousa Júnior, Eduardo Xavier Lemos, Renata Carolina Corrêa Vieira, Maria Antônia Melo Beraldo, Julia Caroline Taquary dos Reis, Rafael Luis Muller Santos, Juliana Vieira Machado, Lucca Dal Soccio. Brasília, DF (chrome-extension://efaidnbmnnnibpcajpcglclefindmkaj/https://direitosp.fgv.br/sites/default/files/link-arquivo/2021-10/encarte_0.pdf); e na 4ª Edição do Prêmio Esdras de Ensino do Direito (FGV), Categoria Destaque:  Hermenêutica- Sociedade de Debates da Universidade de Brasília: Metodologia Ativa na Aprendizagem do Direito José Geraldo de Sousa Junior e Julia Caroline Taquary dos Reis (chrome-extension://efaidnbmnnnibpcajpcglclefindmkaj/https://direitosp.fgv.br/sites/default/files/link-arquivo/2022-11/encarte-2022.pdf).  Chegar como chega à conclusão do curso não é ocasional.

Sua monografia já se apresenta com a densidade própria de estudos avançados, como o reconheceu a banca formada pelos professores João Paulo de Farias Santos, Reynaldo Soares da Fonseca e Carlos Ayres de Britto, pródigos em elogios.

E não sem rigor nas arguições. O professor João Paulo, desde uma perspectiva marxista, abriu divergência não só com a candidata mas com os outros dois arguidores. É que para ele, o núcleo da monografia inscrito na categoria fraternidade (admitida e também operacionalizada por ambos que igualmente acolhiam o chamado princípio esquecido enunciado sobretudo por Antônio Maria Baggio (org. O princípio esquecido: a fraternidade na reflexão atual das ciências políticas. São Paulo: Cidade Nova, 2008), carrega “um conceito ainda religioso (Jesus Cristo, Cruz como sacrifício pelo outro) e alienante (todos somos iguais – contratantes e proprietários – transformando interesses de classe em direitos universais). Para ele, até constitucionalmente, é mais apropriado o conceito de solidariedade, até como solidariedade de classe (porque gera consciência de classe).

Prosseguindo, numa arguição muito circunstanciada na esgrima de conceitos, o professor não deixou de reconhecer o mérito do trabalho no que toca a divisar a preocupação de não perder a perspectiva da assistência social, em modo amplo, até para poder conferir o potencial de articulação de um sistema coletivo de amparo que não se extreme à direita em variantes de afetos políticos organizadores; e à esquerda, para erigir o desamparo, como categoria política que traduza a experiência da vulnerabilidade humana, nas dimensões de interdependência, cuidado, aí sim, solidariedade e transformação social.

O professor Reynaldo da Fonseca, em reconhecer a qualidade descritiva e explicativa da candidata, convocou ao pluralismo das abordagens entendendo que a fraternidade pode ser tida como espécie do gênero solidariedade. Ele escrutinou todo o texto, capítulo por capítulo e enunciado por enunciado, com sugestões de aperfeiçoamento, mas no contexto de um parecer avalizador, desde que considerou “a monografia de Júlia Caroline Taquary um trabalho de excelente qualidade, tanto pela consistência teórica quanto pelo engajamento ético-político que o fundamenta, – realizando – a autora uma leitura crítica da seguridade social, conectando história, teoria crítica do Direito e o princípio da fraternidade. A Autora utiliza com profundidade o paradigma do ‘Direito  Achado na Rua’, propondo uma visão transformadora do papel do Estado na garantia dos direitos sociais”.

Isso que ressalta da leitura do examinador, pode ser aferido pelo leitor a partir do resumo da monografia:

 

O presente estudo tem como finalidade examinar como surge a seguridade social e de que forma ela se insere no atual Estado Democrático de Direito. O trabalho inicia analisando a formação histórica da seguridade social destacando a participação popular a fim de trazer à tona que as leis previdenciárias e assistenciais não surgiram ao acaso e sim a partir da luta social.

Segundamente estuda-se como essas lutas sociais são capazes de criar o Direito, como a seguridade social surge do povo e não da benevolência do Estado porque o verdadeiro Direito vem da busca pela emancipação humana, pela busca da liberdade que se inicia na rua e não em um plenário. Em terceiro lugar busca-se o princípio que embasou as lutas pela seguridade social, aprofunda-se o que fundamentou a vontade popular para requerer a seguridade social que se trata de um sistema que não traz lucro individual, mas sim protege aqueles que não conseguem se sustentar sozinhos, analisa-se assim a fraternidade. Em seguida, interliga-se essa trama de formação da seguridade social com a atual constituição brasileira para entender o que significa a seguridade social como é hoje, como ela simboliza um passo em prol do constitucionalismo fraterno. Por fim, apresenta-se o perigo do desmonte da seguridade social, demonstrando como ela afeta a vida social prática e quais são as tentativas de enfraquecer esse sistema cuja construção foi marcada pela batalha em prol da dignidade humana.

Em suma, o trabalho parte da crítica à abordagem meramente normativa e assistencialista da seguridade social, propondo uma visão emancipatória, comprometida com a inclusão e dignidade humana, e para tanto utiliza-se de revisão bibliográfica e análise histórico-jurídica, com base na teoria crítica do Direito Achado na Rua e em autores que discutem a fraternidade, como Antônio Maria Baggio. O trabalho afirma que a seguridade é expressão concreta da fraternidade política, e denuncia os riscos do desmonte neoliberal, defendendo sua preservação como essencial para a realização dos direitos humanos e da cidadania plena.

E também do Sumário do trabalho, em sua estrutura pedagogicamente analítica:

1 INTRODUÇÃO

2 A HISTÓRIA DA SEGURIDADE SOCIAL

2.1 No mundo

2.1.1 Guildas e Corporações de oficio

2.1.2 Lei dos Pobres

2.1.3 Modelo Bismarkiano

2.1.4 Social Security Act

2.1.5 Modelo Beveridgeano

2.1.6 Declaração dos Direitos Humanos

2.1.7 Convenção nº102 da Organização Internacional do Trabalho

2.1.8 Conclusão

2.2 No Brasil

2.2.1 Santas Casas de Misericórida

2.2.2 Plano de Beneficência dos Órfãos e Viúvas dos Oficiais da Marinha

2.2.3 Montepios

2.2.4 Caixas de socorro mútuo

2.2.5 Constituição de 1824

2.2.6 Lei nº 3.724/1919

2.2.7 Lei Eloy Chaves

2.2.8 Constituição de 1934

2.2.9 Institutos de Aposentadoria e Pensões (IAPs)

2.2.10 Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio, Serviço de Alimentação da

Previdência Social (SAPS) e Consolidação das Leis do Trabalho

2.2.11 Lei Orgânica da Previdência Social (LOPS)

2.2.12 Instituto Nacional de Previdência Social (INPS)

2.2.13 Sistema Nacional de Previdência e Assistência Social (SINPAS)

2.2.14 Constituição de 1988

2.2.15 Instituto Nacional do Seguro Social (INSS)

2.2.16 Sistema Único de Saúde (SUS)

2.2.17 Sistema Único de Assistência Social (SUAS)

2.2.18 Reformas

2.2.19 Conclusão

3 SEGURIDADE SOCIAL: UM DIREITO ACHADO NA RUA

3.1 O Direito Achado na Rua

3.2 Direito como Liberdade

3.2.1 A Seguridade Social na Perspectiva do Direito Como Liberdade

3.3 A Rua

3.3.1 A Seguridade Social construída na Rua

3.4 Sujeito Coletivo de Direitos

3.4.1 A Seguridade Social como Direito dos Sujeitos Coletivos

3.5 Transformação do direito

3.5.1 A Seguridade Social como Transformação do Direito

3.6 Acesso à justiça

3.6.1 A Seguridade Social como Acesso à Justiça

3.7 A Seguridade Social sob a Perspectiva Crítica do Direito Achado na Rua

4 A FRATERNIDADE DA SEGURIDADE SOCIAL

4.1 Construção Histórica da fraternidade

4.2 Funções da fraternidade

4.2.1 Função de equilíbrio

4.2.2 Função de reconhecimento

4.2.3 Função interpretativa

4.3 Fraternidade e Solidariedade

4.4 Seguridade Social e Fraternidade

5 A CONSTITUIÇÃO CIDADÃ

5.1 O projeto ético-político da Constituição

5.2 A Constituição Fraterna

5.3 Constitucionalismo Fraternal

5.4 A Seguridade Social e o Constitucionalismo Fraternal

6 O PERIGO DO DESMONTE DA SEGURIDADE SOCIAL

6.1 Violação dos princípios constitucionais

6.2 Amplia as desigualdades sociais e econômicas no país

6.3 Compromete a proteção de grupos vulneráveis

6.4 Enfraquece o pacto social e os direitos de cidadania

6.5 Afeta a economia nacional e os pequenos municípios.

6.6 Promove a financeirização do Estado em detrimento das políticas sociais

6.7 Institucionaliza reformas regressivas e antissociais

6.8 Contribui para a deslegitimação do Estado social e para o avanço da privatização dos direitos

6.9 O desafio do sujeito coletivo

CONCLUSÕES

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

De mina parte fico feliz em encontrar na monografia, não só como síntese de um percurso, mas como compromisso de engajamento filosófico-funcional, que demarcou uma convivência educadora sedimentada no trânsito da formação da Autora, notadamente quando ela associa ao seu tema – a Seguridade Social –  a sua escolha teórica de ancoragem –  O Direito Achado na Rua.

Para a Autora, enquanto teoria crítica do direito, O Direito Achado na Rua  insere-se nesse contexto ao reivindicar que o direito não se resume ao que está positivado na lei, mas é também aquilo que é construído pela resistência e organização coletiva. O Direito (Direito como Liberdade) “é um meio de emancipação, como um espaço de disputa e construção. A seguridade social é uma estrutura que possibilita a emancipação dos cidadãos, pois lhes confere maior liberdade para agir sobre sua própria vida, sem a constante ameaça da miséria, da exploração extrema ou do abandono estatal”. A Seguridade, portanto, é um Direito Achado na Rua, posto que “o Direito é um fenômeno social dinâmico, construído e reconstruído pelas lutas sociais. A seguridade social reflete a capacidade dos movimentos populares de moldar as estruturas normativas, ampliando direitos e desafiando a ordem estabelecida (Transformação do Direito)”.

Nesse passo, “a seguridade social é um exemplo concreto de como os direitos nascem da organização e da resistência coletiva, e não da mera vontade dos legisladores ou governantes: uma luta de uma coletividade mobilizada em greves em prol da proteção dos vulneráveis”.

Como “fenômeno social dinâmico, – o Direito – é construído e reconstruído pelas lutas sociais. A seguridade social reflete a capacidade dos movimentos populares de moldar as estruturas normativas, ampliando direitos e desafiando a ordem estabelecida”. ´´E o plano no qual vai se manifestar “o Sujeito Coletivo de Direito – https://pt.wikipedia.org/wiki/Sujeito_coletivo_de_direito#:~:text=O%20Sujeito%20Coletivo%20de%20Direito,a%C3%A7%C3%A3o%20coletiva%20dos%20movimentos%20sociais. – que constrói o Direito é historicamente por meio da atuação de coletividades organizadas que reivindicam transformações na ordem jurídica e política para abrir a Justiça”, que realiza “como um processo amplo de garantia de direitos. A seguridade social é um meio concreto de garantir que todos tenham acesso aos direitos fundamentais e possam reivindicar uma existência digna”, na “Rua, que não é apenas um espaço físico, mas sim onde se manifestam as contradições sociais e onde se constroem novos direitos a partir da luta e da mobilização coletiva”. Donde a “seguridade social foi uma conquista arrancada por meio de mobilizações populares, greves, ocupações e pressões políticas”.

O Direito Achado na Rua (https://pt.wikipedia.org/wiki/Direito_Achado_na_Rua#:~:text=O%20Direito%20Achado%20na%20Rua,leg%C3%ADtima%20organiza%C3%A7%C3%A3o%20social%20da%20liberdade%22) é a teoria crítica do Direito que consegue destacar que a Seguridade Social é um direito historicamente conquistado pelos sujeitos coletivos que resistiram à exploração e à exclusão. Não é uma concessão, mas uma conquista. Não é um custo, mas um direito. O direito pertence ao povo, e cabe ao povo lutar para que ele seja efetivado.

É aí que a Autora vai inserir o princípio esquecido (Baggio), na acepção que lhe atribui Carlos Ayres de Britto, enquanto Constitucionalismo Fraternal, não só um “método de interpretação que assegura que as normas sejam aplicadas de forma a alcançar os objetivos constitucionais mais amplos”, mas como fundamento constitucional material, segundo o qual a “seguridade social é o maior exemplo desse constitucionalismo uma vez que se apresenta como um instrumento de concretização da fraternidade, pois assegura que nenhum cidadão seja deixado à margem da sociedade por razões econômicas, de saúde ou de exclusão estrutural”.

A pesquisa apresentada parte de uma leitura político-jurídica que recusa compreender a seguridade social apenas como mecanismo técnico de gestão estatal. Ao contrário, enxerga-a como expressão concreta de um projeto de sociedade fundado na fraternidade constitucional, tal como delineado pela Constituição de 1988. O texto adota como fundamento teórico e ético a concepção de “O Direito Achado na Rua”, entendendo o direito não como mera norma estatal, mas como construção histórica, coletiva e emancipadora, que nasce da práxis social dos sujeitos oprimidos.

A seguridade social, nesse marco, é elevada à condição de território de afirmação do direito como liberdade concreta, produto das lutas sociais e da ação política de sujeitos historicamente excluídos — trabalhadores, mulheres, negros, indígenas, pessoas com deficiência e idosos. Ela é uma conquista que deriva “de baixo para cima”, e sua formalização na Constituição é o reconhecimento de sua legitimidade nascida nas ruas e nas resistências.

Foi nesta perspectiva que Boaventura de Sousa Santos fundamentou em bem posicionado artigo – Justiça Social e Justiça Histórica (Observatório de Constituição e da Democracia. Brasília/Faculdade de Direito da UnB, ano III, nº 32, agosto de 2009, p. 24), a legitimidade constitucional da política de cotas adotada pela UnB, submetida ao crivo de arguição de cumprimento de preceito fundamental levada ao Supremo Tribunal Federal. Em seu artigo, que circulou amplamente junto aos ministros no julgamento aliás presidido pelo ministro Carlos Ayres de Britto, o professor Boaventura mencionou a relevância “de situar o juízo de constitucionalidade no horizonte da fraternidade”, como “uma importante inovação do discurso do STF”.

Para o professor Boaventura “falar em fraternidade no Brasil significa, essencialmente, enfrentar o peso desse legado, – desigualdades sociais estruturais associadas à cor da pele e à identidade étnica originada do colonialismo – o que representa um grande desafio para um país em que muitos tomam a idéia de democracia racial como dado, não como projecto”. Trata-se ele diz de um desafio a enfrentar pelas instituições e pelos movimentos sociais, “sem que se busque diluir a gravidade do problema em categorias fluidas como a dos ‘pobres’ – levando o país a caminhar – não apenas para a consolidação de uma nova ordem constitucional, no plano jurídico, como também para a construção de uma ordem verdadeiramente pós-colonial, no plano sócio-político”.

O estudo de Júlia acabou sendo uma oportunidade para localizar na UnB, em programa de visita, no PPGDH – Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos e Cidadania (CEAM), infelizmente já em conclusão, sem tempo para abrir novos campos de pesquisa, a professora Olga de Oliveira (OLIVEIRA, Olga Maria Boschi Aguiar de; QUEIROZ, Maria Isabel Amora de.Direitos Humanos, Gênero e Trabalho / Andressa Mirella Saldanha de França… [et al.]; Organizadoras: Olga Maria Boschi Aguiar de Oliveira e Maria Isabel Amora de Queiroz. 1ª ed. – Florianópolis: Habitus, 2024, também autora, nesse livro do Capítulo 1 “Os Direitos Humanos das Mulheres e Meninas, o Lado Sombrio da Violência: Restaurando a Essência da Fraternidade”, p. 9-23.

De Olga de Oliveira vale pesquisar uma bem sedimentada bibliografia – OLIVEIRA, Olga Maria Boschi Aguiar de. ; CASTAGNA, Fabiano Pires. O valor princípio fraternidade e a crise no ensino jurídico: repensando a formação dos atores do Direito.  In: Educação, Direito e Fraternidade- Temas teóricos conceituais.  Josiane R. Petry Veronese; Rafaela Silva Brito; Reynaldo Soares da Fonseca (Orgs.). Caruaru: ASCES, 2021, vol.II; OLIVEIRA, Olga Maria Boschi Aguiar de. Mulheres e Trabalho: desigualdades e discriminações em razão de gênero- o resgate do princípio fraternidade como expressão da dignidade humana.  Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2016.

Aliás, Olga e o Ministro Reynaldo Soares da Fonseca há mais de 10 anos estão envolvidos com a categoria jurídica da Fraternidade. Tivéssemos sabido disso antes, Júlia e eu, teríamos buscado as pesquisas sobretudo de Olga – já que o professor Reynaldo da Fonseca é citado e participou da banca -, em que utiliza a terminologia valor princípio Fraternidade.  Do mesmo modo, poderíamos ter localizado as referências – uma indicação para estudos futuros – do Grupo da UFSC – Universidade Federal de Santa Catarina, o primeiro Núcleo de Pesquisa em Direito e Fraternidade criado em 2009 em nível nacional. A disciplina Direito e Fraternidade é oferecida desde então nos Programas de Doutorado e Mestrado no PPGD, da UFSC.

Mas, sobretudo, e o estudo de Júlia acaba sendo um expressão rica de possibilidades ampliadas para a abertura de perspectivas para a pesquisa em Direito, acolher indicações como o faz a professora Olga, para outros modos de pensar e de manifestar o jurídico, no sentido epistemológico, pedagógico e metodológico, basta ver como em seu próprio Grupo de Pesquisa, Olga toma o valor princípio fraternidade em face da crise no ensino jurídico para repensar a formação dos atores do Direito. Tal como procurei incutir nas reflexões epistemológicas para a pesquisa jurídica, aprender é antes de tudo pesquisar e ser autor ou autora (Pedro Demo), para ser capaz de olhar de modo problemático sobre o que se tem diante dos olhos sem dispor de mediações para realmente enxergar (Schopenhauer: “Importante não é ver o que ninguém nunca viu, mas sim pensar o que ninguém nunca pensou sobre algo que todo mundo vê”.

Ao criticar as reformas neoliberais — especialmente a EC 103/2019 — o trabalho de Júlia Taquary denuncia a ruptura ética provocada pela subordinação da vida ao orçamento, da dignidade à austeridade. Essa crítica se ancora na ideia de que a Constituição não é neutra, mas um “gesto ético” que só se realiza na sua função de instrumento de justiça social, conforme também aponta Carlos Ayres Britto, citado no texto.

Dentro da perspectiva de O Direito Achado na Rua, a seguridade social deixa de ser pensada como uma política pública entre outras e passa a ser vista como expressão do próprio pacto civilizatório fundante do Estado Democrático de Direito. Ao afirmá-la como “encarnação concreta da fraternidade política”, a pesquisa reafirma os valores do direito insurgente, aquele que se manifesta como justo e necessário, ainda que contrarie o direito formal (contra legem, como costumo lembrar).

Em coerência com o paradigma do pluralismo jurídico e a crítica à centralidade do direito estatal, o trabalho ecoa também o ensinamento de Roberto Lyra Filho, ao afirmar que a história do direito verdadeiro é escrita pelos que se recusam à injustiça, mesmo quando erram e recomeçam. Aqui, a práxis transformadora dos movimentos sociais é vista como fonte legítima de juridicidade, reconhecendo que o poder constituinte popular permanece ativo — uma concepção típica do Direito Achado na Rua.

Alinhada declaradamente com os princípios de O Direito Achado na Rua, a Autora, na Monografia assume posicionamento de recusa à neutralidade do direito e da política pública; enquanto afirma o protagonismo dos sujeitos coletivos na produção normativa; defende uma concepção de justiça fundada na dignidade, solidariedade e emancipação; e, de modo incidente, reconhece a Constituição como instrumento ético-político, em permanente disputa hermenêutica. Condições, ao fim e ao cabo, que lhe permite propor a defesa da seguridade como ato de resistência democrática, contra retrocessos neoliberais que visam mercantilizar direitos. Uma leitura que permite estabelecer a seguridade social como expressão jurídica da cidadania insurgente, que transforma o sofrimento em norma, a exclusão em pertencimento, e que realiza o direito como prática libertadora — em sintonia com a epistemologia contra-hegemônica proposta pelo campo jurídico-crítico latino-americano, no que ele se materializa como constitucionalismo fraterno achado na rua(https://estadodedireito.com.br/eco-constitucionalismo-achado-na-rua-como-chave-para-um-direito-emancipatorio-licoes-quilombolas-de-procopia-kalunga/https://estadodedireito.com.br/constitucionalismo-achado-na-rua-uma-contribuicao-a-teoria-critica-do-direito-e-dos-direitos-humanos-constitucionais/; e https://pt.wikipedia.org/wiki/Constitucionalismo_achado_na_rua#:~:text=O%20Constitucionalismo%20achado%20na%20rua,Grupos%20de%20Pesquisa%20do%20CNPq)

 


quarta-feira, 25 de junho de 2025

 

El uso del derecho como herramienta de transformación en América Latina

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Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito

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El uso del derecho como herramienta de transformación en América Latina/Gabriel Pereira y Catalina Smulovitz. Editores. – Bogotá: Editorial Dejusticia, 2025, 628 páginas.

        

 

Além das Notas sobre os (as) colaboradores (as), o sumário traz a Apresentação, a cargo  de Hartmut Rank e Miguel Barboza López e uma Introdução preparada pelos editores Gabriel Pereira e Catalina Smulovitz. O livro contêm quatro partes nas quais os artigos estão distribuídos.

Primera parte Movilización legal:

Movilización legal. Una herramienta adicional de acción política y social, de Catalina Smulovitz.

Contramovilización legal y backlash desde la sociedad civil y el Estado em América Latina: litigio conservador en Argentina y Colombia, de Alba Ruibal.

Movilizar el derecho sin accionar la justicia: la experiencia del movimento sin tierra en Brasil, de Antonio Escrivão Filho

La aplicación selectiva de los derechos sobre la tierra bajo el liberalismo mexicano, de María Paula Saffon e Juan González Bertomeu.

Segunda Parte: Activismo y decisión judicial

El poder judicial como actor político central en América Latina, de  Ezequiel González-Ocantos, de  Pablo Valdivieso-Kastner.

El mensaje importa: relaciones de influencia en los precedentes judiciales. Una reflexión acerca de los precedentes sobre perspectiva de género en el Poder Judicial Federal mexicano, de Karina Ansolabehere,  Sandra Serrano e Jesús Espinal.

Los jueces de la Corte Suprema argentina y la difícil tarea de permanecer en el cargo, de Andrea Castagnola.

Jueces como equilibristas: explicación del activismo judicial en América Latina, de Gabriel Pereira.

Tercera parte: Impacto de las decisiones judiciales

¿Sentencias que impactan? Análisis de la eficacia de las decisiones judiciales em América Latina, de Diana Esther Guzmán-Rodríguez e Mariana Camacho-Muñoz.

Los derechos de la población trans e intersex en la Corte Constitucional de Colombia: movilización e impacto judicial entre 1991-2022, de  Sandra Botero e Juliana Jaramillo.

Judicialización del derecho a la vivenda en la Ciudad de Buenos Aires. Um análisis de su impacto, de Catalina Marino.

La Corte Suprema argentina y su intervención en casos estructurales. Efectos irradiadores del caso de la cuenca Matanza-Riachuelo, de Esteban Nader.

Cuarta parte: Innovaciones jurídicas

Crisis, ritual judicial y autoridad. Análisis situado de los modos de construcción de legitimidade de la Corte Suprema argentina, de Leticia Barrera.

Los desafíos de la transformación social mediante el derecho en América Latina en la “era de la erosión democrática”, de Javier Couso S.

¿Cómo entender la victimización del territorio en el conflicto armado? De Alexandra Huneeus e Pablo Rueda Sáiz.

Una teoría del litigio estructural desde Latinoamérica,  Mariela Puga.

Caleidoscopio de los usos del derecho y de la judicialización de la política em América Latina, de Rodrigo Uprimny.

Do que trata o livro, melhor diz o seu resumo, extraído da Introdução:

Este livro oferece uma discussão interdisciplinar sobre um dos fenômenos mais marcantes das democracias latino-americanas dos últimos anos: o uso do direito, e especialmente do litígio, como ferramenta de transformação social e política. Muito já se escreveu sobre esse fenômeno, também conhecido como judicialização da política, no meio acadêmico anglo-saxão; no entanto, na região latino-americana, são escassos os trabalhos multidisciplinares e comparativos sobre o tema. Este volume busca suprir essa lacuna, incorporando não apenas essas perspectivas à análise do fenômeno, mas também o olhar de pesquisadores jovens e de outros mais experientes, bem como de autores provenientes de diferentes países da região.

Por outro lado, este volume pretende ser um ponto de encontro entre duas abordagens da judicialização da política. A análise desse fenômeno tem sido tratada de forma fragmentada na região: de um lado, por acadêmicos do direito que procuram delinear seus contornos conceituais e processuais; de outro, por sociólogos e cientistas políticos que explicam como o fenômeno jurídico interage com o tecido social, político e cultural no qual se insere.

Para esse fim, esta obra inclui um conjunto de estudos voltados a analisar e dimensionar os avanços, retrocessos e inovações dogmáticas e institucionais que têm se verificado no direito latino-americano, bem como sua relação com a expansão e o uso do direito como ferramenta de ação. O trabalho desta obra coletiva foi guiado por perguntas como: Quais fatores determinam que alguns grupos sociais utilizem, ou não, a estratégia do litígio para levar adiante suas reivindicações coletivas em situações específicas? Quais dinâmicas do contexto político doméstico e regional determinam a extensão do ativismo de juízes em determinados casos? Ou ainda: Quais têm sido as consequências específicas e particulares de alguns desses processos?

 

Da Apresentação feita por Hartmut Rank, Diretor do Programa de Direito para a América Latina e por Miguel Barboza López, Coordenador de Projetos e Pesquisador Senior do Programa Estado de Direito para América Latina, da Fundação Konrad Adenauer que proporcionou o apoio para a edição, tem-se que move a compreensão desses apoiadores é entender que o direito tem, sem dúvida, “a capacidade de, ao ser utilizado, gerar mudanças sociais e políticas profundas. É isso o que tem ocorrido na América Latina, onde diversos setores têm levado suas demandas aos tribunais para transformar realidades. O livro que apresentamos a seguir, intitulado O uso do direito como ferramenta de transformação social e política, aborda justamente esse uso do direito voltado para a transformação política e social, apostando em um olhar diferente: multidisciplinar e comparativo”. Assim que a obra, reunindo reflexões de autoras e de autores seniores da América Latina, muitos deles com atividades acadêmicas na América do Norte e na Europa, entre eles o único brasileiro, nosso colega da UnB, Antonio Sergio Escrivão Filho, traz como eixo comum o “tema do chamado ‘ativismo judicial’ ou ‘judicialização da política’, de modo que suas “perspectivas críticas abordam desde a conceituação da mobilização legal, sua evolução, as dificuldades e seus impactos, até o papel dos juízes e juízas nas democracias e a politização do poder judiciário”. É o que mostra as palavras-chave, judicialização da política, direito e políticas públicas, mobilização legal e política judicial, impacto judicial, inovações jurídicas.

A partir do resumo e no descritivo que expõe a obra, os editores afirmam em conclusão, que além do fato de que o livro condensa as discussões mais relevantes sobre o crescente uso do direito como ferramenta de transformação social e política observada na região, talvez seu aspecto mais inovador seja a pretensão de realizar essa tarefa a partir de uma perspectiva multidisciplinar e comparativa, abordando tanto a faceta propriamente jurídica do fenômeno quanto sua interação com os atores sociais e políticos que o promovem ou o dificultam.

Destacado entre os autores e autoras, o nosso Antonio Escrivão Filho foi assim apresentado, conservando aqui o original em espanhol: Antonio Sergio Escrivão Filho Abogado y máster en Derecho de la Universidade Estadual Paulista (UNESP), y doctor en Derecho de la Universidade de Brasília (UnB). Profesor de grado y posgrado de la Facultad de Derecho de la Universidade de Brasilia (UnB); es coordenador del Núcleo de Estudios por la Paz y los Derechos Humanos del Centro de Estudios Avanzados Multidisciplinares (CEAM/ UnB), y miembro del Consejo Director de la Tierra de Derechos, organización de derechos humanos y servicios legales. Entre 2006 y 2014 trabajó en la abogacía junto al Movimiento de los Sin Tierra, pueblos indígenas y quilombolas en Brasil. Fue coordinador ejecutivo y de pesquisa de la Tierra de Derechos. Ha sido investigador visitante en la University of California (UCLA School of Law). Desde 2013 es investigador de El Derecho Hallado en la Calle (UnB), trabajando con temas referidos a la relación entre los movimientos sociales, los derechos humanos y el poder judicial en diferentes cursos y publicaciones.

Penso que o cerne da análise de Escrivão está na consideração da mobilização camponesa e uso do direito no MST. Para ele, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) tem gerado intenso debate acadêmico em diversas áreas, dada sua relevância política, social e jurídica no Brasil. A criação de uma CPI contra o movimento em 2023 demonstra sua atualidade e o impacto de suas ações. Pesquisas apontam que cerca de 85% dos assentamentos rurais no país resultaram de ocupações lideradas pelo MST. Apesar disso, a estratégia criminalizadora permanece como forma de tentativa de contenção, tanto em sua face bruta pela violência direta e militarizada, quanto em sua face dissimulada que procura se vestir de institucionalidade aparelhada, sendo a comissão parlamentar de inquérito a mais insistente. A propósito, https://brasilpopular.com/nova-estrategia-do-latifundio-agronegocio-uma-cpi-para-confrontar-o-mst/; e também https://brasilpopular.com/cpi-do-mst-contexto-e-diagnostico-da-situacao-agraria-brasileira/.

Todavia, desde os anos 1980, analisa Escrivão, o MST construiu uma estratégia paradoxal: usa o direito como argumento político e moral, mas sem necessariamente recorrer ao Judiciário. A ocupação de terras é seu principal instrumento de mobilização, denúncia e negociação, funcionando como mecanismo para pressionar o Estado a aplicar a função social da propriedade — prevista na Constituição de 1988, mas já ensaiada desde o Estatuto da Terra de 1964.

Historicamente, as lutas camponesas no Brasil remontam às décadas de 1950 e 60, com sindicatos e ligas apoiadas pelo Partido Comunista e depois pela Igreja progressista. Após o golpe militar de 1964, o campo foi profundamente reprimido, mas o Estatuto da Terra instituiu a expropriação por interesse social, desde que houvesse descumprimento da função social da propriedade.

Com a redemocratização e o novo sindicalismo nos anos 1980, o MST surge articulando a força social com apoio legal e pastoral, criando uma forma inédita de mobilização legal sem judicialização. A lei passou a ser usada como ferramenta de ação direta e expansão política, e não apenas como limite institucional. A ocupação tornou-se uma forma de convocar o Estado para agir, e não de enfrentá-lo, subvertendo o papel tradicional do direito.

O MST construiu um repertório de mobilização que articula ocupações, acampamentos, eventos públicos e ações simbólicas, fundadas em argumentos jurídicos. Essa atuação ampliou sua capacidade de articulação com a sociedade e fortaleceu seu poder de negociação com o Estado. O direito, assim, se converte em fonte de legitimidade e mobilização, substituindo elementos tradicionais ou sagrados por uma racionalidade jurídica-social.

De fato, a proposta central do texto é mostrar que, no caso brasileiro, o direito foi apropriado como instrumento de radicalização e não de contenção, desafiando a tendência global de submissão dos movimentos sociais à legalidade institucional. O MST demonstra que é possível mobilizar o direito sem depender da ação judicial, mantendo a criatividade, a pressão política e a construção coletiva de direitos, em especial o direito à terra.

Nas considerações finais Escrivão destaca que a sua análise põe em relevo a estratégia paradoxal do movimento camponês brasileiro, especialmente do MST, que utiliza o direito como instrumento de mobilização social e fiscalização da função social da propriedade por meio de ocupações de terra. A partir dos anos 1980, o direito passa a ter centralidade no discurso público e na organização das famílias sem terra, funcionando tanto como símbolo de legitimidade quanto como oportunidade política para viabilizar a reforma agrária.

Com o fim da ditadura militar, o movimento intensifica suas ações, provocando a atuação do Estado. Em resposta, os proprietários rurais recorrem à violência e à judicialização, tentando desmobilizar os acampamentos e bloquear as políticas agrárias, num processo de contramobilização legal.

A confiança crescente dos proprietários no Judiciário faz com que eles levem a reforma agrária para os tribunais, politizando a função judicial. Nesse contexto, o movimento enfrenta o uso da Justiça como instrumento de repressão, mesmo quando é ele quem convoca o Estado a aplicar a lei. Esse cenário revela uma disputa intensa em torno do papel do Judiciário na política agrária, marcando limites e contradições no uso do direito como ferramenta de transformação social.

Na tese de doutoramento de Escrivão Filho, a que se pode ter acesso pelo Repositório de Teses da UnB – Mobilização social do direito e expansão política da justiça: análise do encontro entre movimento camponês e função judicial. 2017. 315 f., il. Tese (Doutorado em Direito)—Universidade de Brasília, Brasília, 2017 – o Autor oferece o resultado de uma pesquisa que tem por objeto o fenômeno de encontro entre o movimento social e a função judicial no Brasil, analisando a experiência do movimento camponês a partir da década de 1980, com foco empírico (primário e secundário) e bibliográfico nos conflitos fundiários e no MST, observando a sua capacidade de reivindicação e mobilização constitutiva (criação) e instituinte (efetivação) de direitos.

Neste cenário, segundo o resumo do trabalho, observa-se um fenômeno de expansão política da sociedade brasileira, e com ela uma dialética de expansão política do direito, no bojo da ativação social dos direitos fundamentais. De modo complementar, neste período observa-se ainda a densificação das funções de controle judicial sobre a sociedade e os entes estatais, o que, por via de consequência, proporciona uma potencial transferência da deliberação de assuntos de elevada intensidade política para a arena judicial – como a relação ‘Estado-sociedade’ inscrita nos direitos fundamentais- culminando, enfim, no fenômeno identificado pela noção de expansão política da justiça. Identifica-se, assim, que a análise da mobilização social do direito realizada pelo movimento camponês, e o respectivo padrão de enfrentamento judicial com proprietários, tanto pode ser melhor analisada sob o enfoque da expansão política da justiça, como fornece elementos para a própria compreensão do fenômeno da expansão judicial no Brasil, a partir do regime de enunciado democrático.

Esse é o mesmo cenário, embora alargado em alcance histórico e político, no qual Escrivão, aqui denominando contexto, instala sua análise sobre o Supremo Tribunal Federal em face dos direitos humanos. Trata-se, diz ele (pp. 5-6) de reconhecer a política como o campo constitutivo (de criação) e instituinte (de efetivação) de direitos, a partir do que antigos e novos movimentos sociais, urbanos e rurais, comunitários e eclesiais, locais e nacionais, de Gênero e étnico-raciais emtram em cena, primeiro deslocando o lócus da ação política dos espaços institucionais para achá-la na rua, espaço público por excelência, depois, ocupando também os espaços institucionais para então disputar a participação no próprio processo constituinte de 1987-88. Assim que, se não parece possível afirmar a existência de um regime democrático sem direitos fundamentalmente referidos à cidadania – ou seja, às garantias de dignidade, bem estar social e participação ativa na vida política da sociedade – não soaria lógico conceber um regime de direitos sem identificar que, por detrás da sua conquista, traduzida em reconhecimento jurídico-institucional, estão os sujeitos que irromperam a história, superando violências, exploração e opressões cotidianas para, a cada novo momento, a cada nova emergência em luta social, afirmar novos direitos.

Pensando, pois, os direitos e principalmente os direitos humanos, como a resultante política das lutas concretas pela dignidade, nesse contexto, para o Autor,  de pouco ou nada adianta o reconhecimento jurídico-normativo de novos direitos, se ele não for acompanhado por uma equivalente e muitas vezes drástica transformação dos órgãos estatais, institucionalmente desenhados e politicamente delegados para o exercício das funções de proteção, defesa e efetivação de direitos (p. 6).

O fato é que, embora, sob consideração teórica, se reconheça como legítimas as formas de ação coletiva de natureza contestadora, solidária e propositiva dos movimentos sociais, a dialeticidade de suas múltiplas práticas sociais, não necessariamente é vista, no plano da política, como compromisso com a coletividade para a construção de esfera pública democrática em cujo âmbito se definem projetos emancipatórios, sensíveis à diversidade cultural e à justiça social. Ao contrário, a expressão conflitiva dessa dialeticidade tem levado, muito em geral, a uma reação despolitizada, da qual não são imunes o Ministério Público e o Judiciário, abrindo-se à tentação de responder de forma pouco solidária e até criminalizadora a essas práticas.

No seu texto, no livro ora Lido para Você, Escrivão generosamente agradece a mim pelos comentários ao texto original e pelos diálogos sobre a relação entre o direito e os movimentos sociais no Brasil. Assim como agradece também a Scott Cummings  – ver a participação do autor norte-americano em nossas trocas interpretativas, por exemplo, em O Direito achado na rua: Introdução crítica ao Direito como liberdade (https://livros.unb.br/index.php/portal/catalog/book/116) – pelas impactantes conversas sobre a mobilização do direito, e mais ainda a Renata Corrêa Vieira pela leitura atenta e pelas sugestões que foram essenciais para que esta análise fosse possível.

Com efeito, os agradecimentos remetem a uma colaboração que nos associa nesse compromisso comum de contribuirmos para ressignificar o processo de mobilização do sistema de justiça para calçar o chão da luta emancipatória do MST e de seu projeto de sociedade. Com Renata Carolina Corrêa Vieira, mostramos em artigo no Le Monde Diplomatique, publicado em 18/07/2019 – A função social da propriedade: pedra angular da Constituição Cidadã (https://diplomatique.org.br/a-funcao-social-da-propriedade-pedra-angular-da-constituicao-cidada/), a malícia de propostas legislativas que, apesar de sua inviabilidade, tentam reduzir o alcance da realização do princípio da função social da propriedade, com movimentos deliberativos no Parlamento para favorecer a privatização do que já se colocava fora do comércio. Volta-se, com renovados artifícios, em medidas legislativas, a invocar a tese da propriedade privada como um direito absoluto, num contexto de realidade distópica, em que mentes autoritárias afirmam a “sacralidade” para retirar do seio da sociedade direitos conquistados historicamente por lutas sociais.

Ainda nesse artigo, compulsamos algumas agendas que conformam o tema geral do direito à terra e à reforma agrária, notadamente desde a conjuntura que antecede o golpe parlamentar-judicial-midiático, que levou ao afastamento da presidenta Dilma Rousseff e, com ela, a disposição para levar à derrogação projeto popular-democrático que abriu ensejo à construção dessas agendas e, logo, à instalação de uma governança a serviço do modelo capitalista de concentração da terra e do território. Vê-se nitidamente que o tema de relativização da função social da propriedade compõe essa agenda. Aliás, o requerimento para instalar a CPI em 2024 toma esse sentido “sacralizado” da ultrapassada noção de propriedade privada absoluta.

Por isso que, com Escrivão, estamos todos de acordo em que, enquanto se funcionaliza uma ação, com algum grau de concertação na linha de respostas criminalizadoras, o mesmo não se vê quando se trata de verificar a legalidade e a constitucionalidade dos pleitos possessórios que requeiram a concessão de medidas protetivas em imóveis que descumprem a função social, ou ainda, quando se trata de assistir despejos de famílias sem-terra, para fiscalizar a ação policial, prevenir abusos, fazer cumprir a legislação de proteção a crianças, adolescentes e idosos ou, finalmente, para impedir que qualquer desocupação seja realizada sem a designação de lugar adequado para a remoção dos atingidos.

Apesar de um momento de inflexão que permitiu ao Judiciário entender que há uma espaço de politização descriminalizadora, que permitiu até ao STJ distinguir a invasão (esbulho possessório) da ocupação, modo social de realizar a promessa constitucional da reforma agrária e a outras instâncias de que a função social faz a moradia prevalecer sobre a propriedade, constata-se e recrudesce a existência persistente ainda em nosso Pais de uma disputa que envolve, de um lado, a secular manutenção da concentração da terra frente à necessária democratização do acesso à essa terra e ao território; e de outro, a formulação de projetos políticos antagônicos para o campo brasileiro, desafiando a elaboração de agendas para a adoção de estratégias econômicas, sociais, políticas e jurídicas que conforma esse tema.