O Direito Achado na Rua: nossa conquista é do tamanho da nossa luta
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quinta-feira, 30 de outubro de 2014
Discurso do Papa Francisco aos participantes do Encontro Mundial de Movimentos Populares
Bom dia de novo. Eu estou contente por estar no meio de vocês. Aliás, vou lhes fazer uma confidência: é a primeira vez que eu desço aqui [na Aula Velha do Sínodo], nunca tinha vindo.
Como lhes dizia, tenho muita alegria e lhes dou calorosas boas-vindas. Obrigado por terem aceitado este convite para debater tantos graves problemas sociais que afligem o mundo hoje, vocês, que sofrem em carne própria a desigualdade e a exclusão. Obrigado ao cardeal Turkson pela sua acolhida. Obrigado, Eminência, pelo seu trabalho e pelas suas palavras.
Este encontro de Movimentos Populares é um sinal, é um grande sinal: vocês vieram colocar na presença de Deus, da Igreja, dos povos, uma realidade muitas vezes silenciada. Os pobres não só padecem a injustiça, mas também lutam contra ela!
Não se contentam com promessas ilusórias, desculpas ou pretextos. Também não estão esperando de braços cruzados a ajuda de ONGs, planos assistenciais ou soluções que nunca chegam ou, se chegam, chegam de maneira que vão em uma direção ou de anestesiar ou de domesticar. Isso é meio perigoso. Vocês sentem que os pobres já não esperam e querem ser protagonistas, se organizam, estudam, trabalham, reivindicam e, sobretudo, praticam essa solidariedade tão especial que existe entre os que sofrem, entre os pobres, e que a nossa civilização parece ter esquecido ou, ao menos, tem muita vontade de esquecer.
Solidariedade é uma palavra que nem sempre cai bem. Eu diria que, algumas vezes, a transformamos em um palavrão, não se pode dizer; mas é uma palavra muito mais do que alguns atos de generosidade esporádicos. É pensar e agir em termos de comunidade, de prioridade de vida de todos sobre a apropriação dos bens por parte de alguns. Também é lutar contra as causas estruturais da pobreza, a desigualdade, a falta de trabalho, de terra e de moradia, a negação dos direitos sociais e trabalhistas. É enfrentar os destrutivos efeitos do Império do dinheiro: os deslocamentos forçados, as migrações dolorosas, o tráfico de pessoas, a droga, a guerra, a violência e todas essas realidades que muitos de vocês sofrem e que todos somos chamados a transformar. A solidariedade, entendida em seu sentido mais profundo, é um modo de fazer história, e é isso que os movimentos populares fazem.
Este encontro nosso não responde a uma ideologia. Vocês não trabalham com ideias, trabalham com realidades como as que eu mencionei e muitas outras que me contaram... têm os pés no barro, e as mãos, na carne. Têm cheiro de bairro, de povo, de luta! Queremos que se ouça a sua voz, que, em geral, se escuta pouco. Talvez porque incomoda, talvez porque o seu grito incomoda, talvez porque se tem medo da mudança que vocês reivindicam, mas, sem a sua presença, sem ir realmente às periferias, as boas propostas e projetos que frequentemente ouvimos nas conferências internacionais ficam no reino da ideia, é meu projeto.
Não é possível abordar o escândalo da pobreza promovendo estratégias de contenção que unicamente tranquilizem e convertam os pobres em seres domesticados e inofensivos. Como é triste ver quando, por trás de supostas obras altruístas, se reduz o outro à passividade, se nega ele ou, pior, se escondem negócios e ambições pessoais: Jesus lhes chamaria de hipócritas. Como é lindo, ao contrário, quando vemos em movimento os Povos, sobretudo os seus membros mais pobres e os jovens. Então, sim, se sente o vento da promessa que aviva a esperança de um mundo melhor. Que esse vento se transforme em vendaval de esperança. Esse é o meu desejo.
Este encontro nosso responde a um anseio muito concreto, algo que qualquer pai, qualquer mãe quer para os seus filhos; um anseio que deveria estar ao alcance de todos, mas que hoje vemos com tristeza cada vez mais longe da maioria: terra, teto e trabalho. É estranho, mas, se eu falo disso para alguns, significa que o papa é comunista.
Não se entende que o amor pelos pobres está no centro do Evangelho. Terra, teto e trabalho – isso pelo qual vocês lutam – são direitos sagrados. Reivindicar isso não é nada raro, é a doutrina social da Igreja. Vou me deter um pouco sobre cada um deles, porque vocês os escolheram como tema para este encontro.
Terra. No início da criação, Deus criou o homem, guardião da sua obra, encarregando-o de cultivá-la e protegê-la. Vejo que aqui há dezenas de camponeses e camponesas, e quero felicitá-los por cuidar da terra, por cultivá-la e por fazer isso em comunidade. Preocupa-me a erradicação de tantos irmãos camponeses que sobrem o desenraizamento, e não por guerras ou desastres naturais. A apropriação de terras, o desmatamento, a apropriação da água, os agrotóxicos inadequados são alguns dos males que arrancam o homem da sua terra natal. Essa dolorosa separação, que não é só física, mas também existencial e espiritual, porque há uma relação com a terra que está pondo a comunidade rural e seu modo de vida peculiar em notória decadência e até em risco de extinção.
A outra dimensão do processo já global é a fome. Quando a especulação financeira condiciona o preço dos alimentos, tratando-os como qualquer mercadoria, milhões de pessoas sofrem e morrem de fome. Por outro lado, descartam-se toneladas de alimentos. Isso é um verdadeiro escândalo. A fome é criminosa, a alimentação é um direito inalienável. Eu sei que alguns de vocês reivindicam uma reforma agrária para solucionar alguns desses problemas, e deixem-me dizer-lhes que, em certos países, e aqui cito o Compêndio da Doutrina Social da Igreja, "a reforma agrária é, além de uma necessidade política, uma obrigação moral" (CDSI, 300).
Não sou só eu que digo isso. Está no Compêndio da Doutrina Social da Igreja. Por favor, continuem com a luta pela dignidade da família rural, pela água, pela vida e para que todos possam se beneficiar dos frutos da terra.
Em segundo lugar, teto. Eu disse e repito: uma casa para cada família. Nunca se deve esquecer de que Jesus nasceu em um estábulo porque na hospedagem não havia lugar, que a sua família teve que abandonar o seu lar e fugir para o Egito, perseguida por Herodes. Hoje há tantas famílias sem moradia, ou porque nunca a tiveram, ou porque a perderam por diferentes motivos. Família e moradia andam de mãos dadas. Mas, além disso, um teto, para que seja um lar, tem uma dimensão comunitária: e é o bairro... e é precisamente no bairro onde se começa a construir essa grande família da humanidade, a partir do mais imediato, a partir da convivência com os vizinhos.
Hoje, vivemos em imensas cidades que se mostram modernas, orgulhosas e até vaidosas. Cidades que oferecem inúmeros prazeres e bem-estar para uma minoria feliz... mas se nega o teto a milhares de vizinhos e irmãos nossos, inclusive crianças, e eles são chamados, elegantemente, de "pessoas em situação de rua". É curioso como no mundo das injustiças abundam os eufemismos. Não se dizem as palavras com a contundência, e busca-se a realidade no eufemismo. Uma pessoa, uma pessoa segregada, uma pessoa apartada, uma pessoa que está sofrendo a miséria, a fome, é uma pessoa em situação de rua: palavra elegante, não? Vocês, busquem sempre, talvez me equivoque em algum, mas, em geral, por trás de um eufemismo há um crime.
Vivemos em cidades que constroem torres, centros comerciais, fazem negócios imobiliários... mas abandonam uma parte de si nas margens, nas periferias. Como dói escutar que os assentamentos pobres são marginalizados ou, pior, quer-se erradicá-los! São cruéis as imagens dos despejos forçados, dos tratores derrubando casinhas, imagens tão parecidas às da guerra. E isso se vê hoje.
Vocês sabem que, nos bairros populares, onde muitos de vocês vivem, subsistem valores já esquecidos nos centros enriquecidos. Os assentamentos estão abençoados com uma rica cultura popular: ali, o espaço público não é um mero lugar de trânsito, mas uma extensão do próprio lar, um lugar para gerar vínculos com os vizinhos. Como são belas as cidades que superam a desconfiança doentia e integram os diferentes e que fazem dessa integração um novo fator de desenvolvimento. Como são lindas as cidades que, ainda no seu desenho arquitetônico, estão cheias de espaços que conectam, relacionam, favorecem o reconhecimento do outro.
Por isso, nem erradicação, nem marginalização: é preciso seguir na linha da integração urbana. Essa palavra deve substituir completamente a palavra erradicação, desde já, mas também esses projetos que pretendem envernizar os bairros populares, ajeitar as periferias e maquiar as feridas sociais, em vez de curá-las, promovendo uma integração autêntica e respeitosa. É uma espécie de direito arquitetura de maquiagem, não? E vai por esse lado. Sigamos trabalhando para que todas as famílias tenham uma moradia e para que todos os bairros tenham uma infraestrutura adequada (esgoto, luz, gás, asfalto e continuo: escolas, hospitais ou salas de primeiros socorros, clube de esportes e todas as coisas que criam vínculos e que unem, acesso à saúde – já disse – e à educação e à segurança.
Terceiro, trabalho. Não existe pior pobreza material – urge-me enfatizar isto –, não existe pior pobreza material do que a que não permite ganhar o pão e priva da dignidade do trabalho. O desemprego juvenil, a informalidade e a falta de direitos trabalhistas não são inevitáveis, são o resultado de uma prévia opção social, de um sistema econômico que coloca os lucros acima do homem, se o lucro é econômico, sobre a humanidade ou sobre o homem, são efeitos de uma cultura do descarte que considera o ser humano em si mesmo como um bem de consumo, que pode ser usado e depois jogado fora.
Hoje, ao fenômeno da exploração e da opressão, soma-se uma nova dimensão, um matiz gráfico e duro da injustiça social; os que não podem ser integrados, os excluídos são resíduos, "sobrantes". Essa é a cultura do descarte, e sobre isso gostaria de ampliar algo que não tenho por escrito, mas que lembrei agora. Isso acontece quando, no centro de um sistema econômico, está o deus dinheiro e não o homem, a pessoa humana. Sim, no centro de todo sistema social ou econômico, tem que estar a pessoa, imagem de Deus, criada para que fosse o denominador do universo. Quando a pessoa é deslocada e vem o deus dinheiro, acontecesse essa inversão de valores.
E, para explicitar, lembro um ensinamento de cerca do ano 1200. Um rabino judeu explicava aos seus fiéis a história da torre de Babel e, então, contava como, para construir essa torre de Babel, era preciso fazer muito esforço, era preciso fazer os tijolos; para fazer os tijolos, era preciso fazer o barro e trazer a palha, e amassar o barro com a palha; depois, cortá-lo em quadrados; depois, secá-lo; depois, cozinhá-lo; e, quando já estavam cozidos e frios, subi-los, para ir construindo a torre.
Se um tijolo caía – o tijolo era muito caro –, com todo esse trabalho, se um tijolo caía, era quase uma tragédia nacional. Aquele que o deixara cair era castigado ou suspenso, ou não sei o que lhe faziam. E se um operário caía não acontecia nada. Isso é quando a pessoa está a serviço do deus dinheiro, e isso era contado por um rabino judeu no ano 1200, explicando essas coisas horríveis.
E, a respeito do descarte, também temos que estar um pouco atentos ao que acontece na nossa sociedade. Estou repetindo coisas que disse e que estão na Evangelii gaudium. Hoje em dia, descartam-se as crianças porque a taxa de natalidade em muitos países da terra diminuiu, ou se descartam as crianças porque não se ter alimentação, ou porque são mortas antes de nascerem, descarte de crianças.
Descartam-se os idosos, porque, bom, não servem, não produzem. Nem crianças nem idosos produzem. Então, sistemas mais ou menos sofisticados vão os abandonando lentamente. E agora como é necessário, nesta crise, recuperar um certo equilíbrio. Estamos assistindo a um terceiro descarte muito doloroso, o descarte dos jovens. Milhões de jovens. Eu não quero dizer o dado, porque não o sei exatamente, e a que eu li parece um pouco exagerado, mas milhões de jovens descartados do trabalho, desempregados.
Nos países da Europa – e estas são estatísticas muito claras –, aqui na Itália, passou um pouquinho dos 40% de jovens desempregados. Sabem o que significa 40% de jovens? Toda uma geração, anular toda uma geração para manter o equilíbrio. Em outro país da Europa, está passando os 50% e, nesse mesmo país dos 50%, no sul são 60%. São dados claros, ou seja, do descarte. Descarte de crianças, descarte de idosos, que não produzem, e temos que sacrificar uma geração de jovens, descarte de jovens, para poder manter e reequilibrar um sistema em cujo centro está o deus dinheiro, e não a pessoa humana.
Apesar disso, a essa cultura de descarte, a essa cultura dos sobrantes, muitos de vocês, trabalhadores excluídos, sobrantes para esse sistema, foram inventando o seu próprio trabalho com tudo aquilo que parecia não poder dar mais de si mesmo... mas vocês, com a sua artesanalidade que Deus lhes deu, com a sua busca, com a sua solidariedade, com o seu trabalho comunitário, com a sua economia popular, conseguiram e estão conseguindo... E, deixem-me dizer isto, isso, além de trabalho, é poesia. Obrigado.
Desde já, todo trabalhador, esteja ou não no sistema formal do trabalho assalariado, tem direito a uma remuneração digna, à segurança social e a uma cobertura de aposentadoria. Aqui há papeleiros, recicladores, vendedores ambulantes, costureiros, artesãos, pescadores, camponeses, construtores, mineiros, operários de empresas recuperadas, todos os tipos de cooperativados e trabalhadores de ofícios populares que estão excluídos dos direitos trabalhistas, aos quais é negada a possibilidade de se sindicalizar, que não têm uma renda adequada e estável. Hoje, quero unir a minha voz à sua e acompanhá-los na sua luta.
Neste encontro, também falaram da Paz e da Ecologia. É lógico: não pode haver terra, não pode haver teto, não pode haver trabalho se não temos paz e se destruímos o planeta. São temas tão importantes que os Povos e suas organizações de base não podem deixar de debater. Não podem deixar só nas mãos dos dirigentes políticos. Todos os povos da terra, todos os homens e mulheres de boa vontade têm que levantar a voz em defesa desses dois dons preciosos: a paz e a natureza. A irmã mãe Terra, como chamava São Francisco de Assis.
Há pouco tempo, eu disse, e repito, que estamos vivendo a terceira guerra mundial, mas em cotas. Há sistemas econômicos que, para sobreviver, devem fazer a guerra. Então, fabricam e vendem armas e, com isso, os balanços das economia que sacrificam o homem aos pés do ídolo do dinheiro, obviamente, ficam saneados. E não se pensa nas crianças famintas nos campos de refugiados, não se pensa nos deslocamentos forçados, não se pensa nas moradias destruídas, não se pensa, desde já, em tantas vidas ceifadas. Quanto sofrimento, quanta destruição, quanta dor. Hoje, queridos irmãos e irmãs, se levanta em todas as partes da terra, em todos os povos, em cada coração e nos movimentos populares, o grito da paz: nunca mais a guerra!
Um sistema econômico centrado no deus dinheiro também precisa saquear a natureza, saquear a natureza, para sustentar o ritmo frenético de consumo que lhe é inerente. As mudanças climáticas, a perda da biodiversidade, o desmatamento já estão mostrando seus efeitos devastadores nos grandes cataclismos que vemos, e os que mais sofrem são vocês, os humildes, os que vivem perto das costas em moradias precárias, ou que são tão vulneráveis economicamente que, diante de um desastre natural, perdem tudo.
Irmãos e irmãs, a criação não é uma propriedade da qual podemos dispor ao nosso gosto; muito menos é uma propriedade só de alguns, de poucos: a criação é um dom, é um presente, um dom maravilhoso que Deus nos deu para que cuidemos dele e o utilizemos em benefício de todos, sempre com respeito e gratidão. Talvez vocês saibam que eu estou preparando uma encíclica sobre Ecologia: tenham a certeza de que as suas preocupações estarão presentes nela. Agradeço-lhes, aproveito para lhes agradecer, pela carta que os integrantes da Via Campesina, da Federação dos Papeleiros e tantos outros irmãos me fizeram chegar sobre o assunto.
Falamos da terra, de trabalho, de teto... falamos de trabalhar pela paz e cuidar da natureza... Mas por que, em vez disso, nos acostumamos a ver como se destrói o trabalho digno, se despejam tantas famílias, se expulsam os camponeses, se faz a guerra e se abusa da natureza? Porque, nesse sistema, tirou-se o homem, a pessoa humana, do centro, e substituiu-se por outra coisa. Porque se presta um culto idólatra ao dinheiro. Porque se globalizou a indiferença! Se globalizou a indiferença. O que me importa o que acontece com os outros, desde que eu defenda o que é meu? Porque o mundo se esqueceu de Deus, que é Pai; tornou-se um órfão, porque deixou Deus de lado.
Alguns de vocês expressaram: esse sistema não se aguenta mais. Temos que mudá-lo, temos que voltar a levar a dignidade humana para o centro, e que, sobre esse pilar, se construam as estruturas sociais alternativas de que precisamos. É preciso fazer isso com coragem, mas também com inteligência. Com tenacidade, mas sem fanatismo. Com paixão, mas sem violência. E entre todos, enfrentando os conflitos sem ficar presos neles, buscando sempre resolver as tensões para alcançar um plano superior de unidade, de paz e de justiça.
Os cristãos têm algo muito lindo, um guia de ação, um programa, poderíamos dizer, revolucionário. Recomendo-lhes vivamente que o leiam, que leiam as Bem-aventuranças que estão no capítulo 5 de São Mateus e 6 de São Lucas (cfr. Mt 5, 3; e Lc 6, 20) e que leiam a passagem de Mateus 25. Eu disse isso aos jovens no Rio de Janeiro. Com essas duas coisas, vocês têm o programa de ação.
Sei que entre vocês há pessoas de distintas religiões, ofícios, ideias, culturas, países, continentes. Hoje, estão praticando aqui a cultura do encontro, tão diferente da xenofobia, da discriminação e da intolerância que vemos tantas vezes. Entre os excluídos, dá-se esse encontro de culturas em que o conjunto não anula a particularidade, o conjunto não anula a particularidade. Por isso eu gosto da imagem do poliedro, uma figura geométrica com muitas caras distintas. O poliedro reflete a confluência de todas as particularidades que, nele, conservam a originalidade. Nada se dissolve, nada se destrói, nada se domina, tudo se integra, tudo se integra. Hoje, vocês também estão buscando essa síntese entre o local e o global. Sei que trabalham dia após dia no próximo, no concreto, no seu território, seu bairro, seu lugar de trabalho: convido-os também a continuarem buscando essa perspectiva mais ampla, que nossos sonhos voem alto e abranjam tudo.
Assim, parece-me importante essa proposta que alguns me compartilharam de que esses movimentos, essas experiências de solidariedade que crescem a partir de baixo, a partir do subsolo do planeta, confluam, estejam mais coordenadas, vão se encontrando, como vocês fizeram nestes dias. Atenção, nunca é bom espartilhar o movimento em estruturas rígidas. Por isso, eu disse encontra-se. Também não é bom tentar absorvê-lo, dirigi-lo ou dominá-lo; movimentos livres têm a sua dinâmica própria, mas, sim, devemos tentar caminhar juntos. Estamos neste salão, que é o salão do Sínodo velho. Agora há um novo. E sínodo significa precisamente "caminhar juntos": que esse seja um símbolo do processo que vocês começaram e estão levando adiante.
Os movimentos populares expressam a necessidade urgente de revitalizar as nossas democracias, tantas vezes sequestradas por inúmeros fatores. É impossível imaginar um futuro para a sociedade sem a participação protagônica das grandes maiorias, e esse protagonismo excede os procedimentos lógicos da democracia formal. A perspectiva de um mundo da paz e da justiça duradouras nos exige superar o assistencialismo paternalista, nos exige criar novas formas de participação que inclua os movimentos populares e anime as estruturas de governo locais, nacionais e internacionais com essa torrente de energia moral que surge da incorporação dos excluídos na construção do destino comum. E isso com ânimo construtivo, sem ressentimento, com amor.
Eu os acompanho de coração nesse caminho. Digamos juntos com o coração: nenhuma família sem moradia, nenhum agricultor sem terra, nenhum trabalhador sem direitos, nenhuma pessoa sem a dignidade que o trabalho dá.
Queridos irmãos e irmãs: sigam com a sua luta, fazem bem a todos nós. É como uma bênção de humanidade. Deixo-lhes de recordação, de presente e com a minha bênção, alguns rosários que foram fabricados por artesãos, papeleiros e trabalhadores da economia popular da América Latina.
E nesse acompanhamento eu rezo por vocês, rezo com vocês e quero pedir ao nosso Pai Deus que os acompanhe e os abençoe, que os encha com o seu amor e os acompanhe no caminho, dando-lhes abundantemente essa força que nos mantém de pé: essa força é a esperança, a esperança que não desilude. Obrigado.
terça-feira, 28 de outubro de 2014
Sobre aprendizados solidários. (Cartas do Mondego)
Portugal tem jeito de “casa”. Desde que desembarquei em
Lisboa não me foi negado um sorriso ou uma ajuda. As conversas em sotaques
distintos e algumas palavras até então desconhecidas só aumentaram o prazer de
estar aqui aprendendo às vezes sobre mim mesma. E o acolhimento que recebi de
meu amigo Rui Calado e os (re)encontros com companheiros e companheiras sem
dúvida contribuíram para este sentimento de conforto e para que eu pudesse mais
rapidamente compreender as vozes, as músicas e os debates que ocorrem na região
do Mondego.
Vim para cá para me dedicar aos estudos decoloniais ou das
epistemologias do sul. Um dos primeiros textos que li ao chegar aqui do Eduardo
Restrepo e do Axel Rojas (2010) trata que o colonialismo tem impactos não só
sobre o colonizado(a), mas também sobre o colonizador. Fiquei pensando sobre como
esta condição de colônia também se altera de acordo com as peças do jogo e como
se situa Portugal na sua relação com a União Europeia. Num dos primeiros dias
que estive aqui fui a um lançamento de um livro que trata da proposta de adoção
por Portugal de uma moeda própria, o Escudo, e os dilemas atuais da economia
portuguesa por estar atrelada ao Euro.
No debate foi colocado como a obsessão pela austeridade tem
apenas levado ao empobrecimento da população. Economia não é a minha área, mas
algumas coisas fazem parte de um cálculo simples: como aquecer uma economia se
você tira a possibilidade de consumo das pessoas ao estarem sem emprego e sem
uma política social de resguardo?
O desemprego que hoje está na taxa de 14% em Portugal e
atinge em especial a juventude é tema inclusive de peça de teatro. Em “O meu
país é o que o mar não quer” é retratada a vida de portugueses(as) que decidem
migrar para Inglaterra que é o atual principal destino de quem está à procura
de emprego e uma vida economicamente melhor.
A adoção de uma moeda própria apresenta vantagens e
desvantagens para esta crise que são melhor explicadas pelos autores do livro e
que pode ser acessado aqui: http://www.esquerda.net/artigo/leia-introducao-do-livro-solucao-novo-escudo-de-francisco-louca-e-joao-ferreira-do-amaral
A saída para estes dilemas está nas mãos dos(as)
portugueses(as), porém não sem nossa preocupação solidária. E a possibilidade
de participar destas discussões me fez pensar em duas coisas principais: 1) A
mídia portuguesa oferece mais espaço aos problemas de outros países do mundo do
que a nossa. Aqui pude acompanhar as eleições brasileiras de perto pela mídia
local. Também se fala sobre as eleições de outros países, inclusive dos países
africanos, como Moçambique, que são no Brasil realidades totalmente ignoradas.
Eu sabia muito pouco sobre o que se passava em Portugal lendo apenas a nossa
mídia tradicional; 2) Sobre como estas questões de alternativas a crises estão
na pauta hoje também no Brasil e como sempre se trata de uma perspectiva de
mundo.
As recentes eleições brasileiras colocaram em disputa e de
forma polarizada estas duas visões da austeridade versus a continuidade de
programas que garantem um mínimo de justiça social. Foi por pouco que não perdemos
para o retrocesso à pauta neoliberal. Sabemos que uma política de
flexibilização de direitos sociais no Brasil adquire proporções ainda mais
graves, pois seria “cortar no osso” os direitos, já que as garantias sociais
conquistadas ainda são mínimas. Assim, a angústia permanece por saber que a
pauta da esquerda há ainda muito que avançar: reforma política; reforma
agrária; reforma urbana; demarcação de territórios indígenas; direito ao
aborto, entre tantas outras pautas que possibilitem mudanças estruturantes no
Brasil, avançando no combate a desigualdade social, étnico/racial e de gênero.
Com um período econômico mais recessivo e com o Congresso
Nacional conservador que foi eleito, será difícil alcançar este sonhado avanço.
Por isso, mais do que nunca será necessária a presença dos movimentos sociais na rua. Neste momento, a solidariedade que já encontrei aqui em território
português me faz me sentir mais otimista por saber que nunca estamos
sozinhas(os).
Foto: Estudantes Brasileiros(as) em apoio no 2o turno a Dilma
Coimbra, 28 de outubro de 2014.
Lívia Gimenes Dias da Fonseca
sábado, 18 de outubro de 2014
5ª Carta sobre ensino superior, de Pequim, China: a herança de Confúcio para o ensino superior
Layla Jorge Teixeira Cesar*
Foto: Estudantes à entrada do templo
de Confúcio em Pequim
Nesta foto, tirada no último
sábado, se vê um dos numerosos grupos de estudantes reunidos em visita ao Templo
de Confúcio. Todos se curvam à entrada, como é habitual em Pequim, em sinal de
respeito à história que estão prestes a compartilhar.
O Templo de Confúcio foi
construído em 1302 e serviu às dinastias Yuan, Ming e Qing, até a Revolução de
1911-1912. Durante este período, operou em paralelo à Academia Imperial de
Pequim, como duas faces de um mesmo sistema. A Academia, concebida para
desempenhar uma função prática, tornou-se centro administrativo para gestão da
educação e reuniu a principal elite de estudantes do império. O Templo, por sua
vez, foi consagrado à função simbólica de materializar o ideal filosófico de
Confúcio: já no pátio central, 198 colunas de pedra gravam os nomes de 51.624
acadêmicos de destaque para o império.
O confucionismo remonta ao
nascimento do próprio filósofo, em 551 a.C., e carrega a educação como seu
elemento central. Cada uma das gerações que se apropriaram da filosofia, ao
longo dos últimos séculos, imprimiu nela suas próprias influências, resultando o
confucionismo hodierno num complexo sistema ético.
Enquanto algumas correntes o
descrevem como uma doutrina hierárquica, dogmática e autoritária, outras
enfatizam sua dimensão pedagógica, de estímulo à construção coletiva do saber
crítico, onde se reconhece em todo indivíduo o potencial para atingir a
perfeição através do conhecimento –- e, enfim, tornar-se “cristalino como o
jade”.
Estes aspectos aparentemente
contraditórios do confucionismo convivem na prática e se substituem em
importância de acordo com o momento sócio-histórico que atravessam seus
praticantes.
Atualmente, o processo de
globalização e internacionalização da educação proporciona, a nível local, a
replicação de tensões que observamos em outras partes do mundo – inclusive no
Brasil. A adesão à reprodução da vida material dentro da lógica da “sociedade do
conhecimento”, reinstalou o investimento em educação como prioridade na agenda
do governo chinês com uma orientação clara para a formação de “capital humano” e
serviço à expansão econômica.
No nível superior, o processo de
massificação do acesso organizado entre 1999 e 2005 ampliou as taxas de
matrícula em mais de 40%. Em contrapartida, a obsessão em desenvolver
universidades de “padrão global” – evidenciada pela criação do Shanghai
ranking –, produz uma grave hierarquização
inter-institucional, com maior volume de recursos destinado aos
projetos 211 e 985 para universidades de elite, e intra-institucional,
com foco em áreas estratégicas associadas à produção de tecnologia.
Este processo de abertura à lógica
do capital estrangeiro foi facilitado pelo fato de que as noções de hierarquia e
competitividade já ecoavam no seio da cultura local. Dito de outro modo, a
lógica neoliberal se apropria do pensamento confucionista e outros traços
culturais centrais e exacerba as dimensões que a favorecem.
Esta não é a primeira vez que a
China se vê confrontada por influências externas, e já em outros momentos se
observou sua reação. Durante a crise da dinastia Ming, registrou-se o primeiro
retorno ao confucionismo como substrato cultural de referência para organização
social chinesa, no movimento conhecido como “Neo-Confucionismo”. Já no final do
século XIX e após a Revolução de 1911-1912, se utilizou recurso semelhante na
implementação do chamado “Novo Confucionismo” como estratégia de formação de um
consenso social forte o suficiente para garantir a coesão da sociedade local.
Hoje, assistimos com esperança ao
renascimento do Novo Confucionismo como oportunidade de criação de um paradigma
alternativo e coletivista. Não se trata um retorno literal às raízes da
filosofia confucionista. Trata-se do emprego de fundações já existentes para
instituição de um novo consenso social que se coloque como alternativa crítica à
influência do capital estrangeiro, substituindo a competição pela comunhão como
motor da excelência.
Nota: Para mais informações sobre o
Novo Confucionismo contemporâneo, ver os trabalhos de Tu Wei-ming, professor de
filosofía da Universidade de Harvard, e Robert Cummings Neville, professor de
filosofía e teologia da Universidade de Boston.
*Layla Jorge Teixeira Cesar, mestre em Sociologia pela UnB, foi assessora do Reitor José Geraldo de Sousa Junior, no período de seu mandato na UnB (2008-2012). Participa atualmente do programa MARIHE - Mestrado em Pesquisa e Inovação em Ensino Superior, uma ação do consórcio entre universidades na Àustria, Finlândia, Espanha, China e Alemanha. Faz parte da rede Diálogos Lyrianos – O Direito Achado na Rua.
quinta-feira, 16 de outubro de 2014
CARTAS DE VALÊNCIA: VIM, VI, VIVI
Gladstone Leonel da
Silva Júnior[1]
Valência é uma cidade que merece
ser admirada. Ela traz de tudo, um pouco. A beleza arquitetônica mescla o
antigo ao moderno sem perder a harmonia.
Cada vez tenho uma impressão
maior do vigor da influência árabe na Espanha. Pudera isso refletir também na
reprodução cultural e educacional do povo, reconhecendo a força civilizatória
do mundo árabe.
Mais elementos da cidade impressionam.
Vou falar do jardim de Túria. Nele existem frutas, arte, flores, gente. Podem
me questionar:
– Mas seria isso somente um
jardim?
Não tal como concebemos. De
acordo com minha imperfeita impressão métrica são uns 300 metros de largura e
uns 07 quilômetros de extensão cortando, ao meio, toda a cidade de Valência e
desembocando em museus modernistas como o Ciudad de las Artes y la Ciencia e o
Hemisferic. Algo incrível! Imagine Belo Horizonte ou São Paulo cortado ao meio
por uma natureza viva, cultura, pessoas, animais e bicicletas.
Além desses atrativos, do final
desse jardim, em uma rápida caminhada, se chega ao mar mediterrâneo. No verão
europeu ele torna-se elemento essencial para o entretenimento e bem estar. Na
praia vários seios desnudos logo chamam a atenção de um mineiro desavisado. O
repentino espanto, por não observar essa prática nas praias brasileiras,
transforma-se em um saudável reconhecimento da diferença cultural para além da
construção moral. Nada que esse mineiro recém-chegado não se acostumasse.
A Universidade de Valencia também
tem o seu destaque. Não tanto pela estética, mas por sua construção social. A
impressão que passa é o permanente contato da mesma com os debates da
sociedade, para além da cidade. Não por acaso, encontro professores e
estudantes engajados com os problemas Espanhóis, análises da crise, envolvidos
em demandas autonômicas e independentistas, refletindo e assessorando o
constitucionalismo latino-americano dentre outras tantas questões. Nesse
ambiente envolvente com uma boa estrutura, os estudos vão ganhando
consistência.
Poderia falar muito mais, do quão gostoso são
os frutos do mar (principalmente o polvo cozido temperado com pimenta e
azeite), da arte de se fazer a paella valenciana, da surpresa em ouvir as
pessoas daqui falando valenciano e não castelhano, de sentir a rivalidade entre
Levante F.C. X Valencia C. F. um pouco como sinto entre Cruzeiro X Atlético-MG,
de cantar e “bailar” músicas do Enrique Iglesias como se estivesse ouvindo um
samba de Clara Nunes ou Beth Carvalho.
Uma singular experiência de vida
que me agrada, sobretudo, tendo a clareza que o encantamento tem prazo de
validade. O conforto em saber que logo me juntarei aos meus é único. Seja para
compartilhar tudo isso, para continuar fomentando um direito contra-hegemônico,
para construir outros projetos de vida e de sociedade, para fazer um samba do
peleja, para jogar capoeira, para ver o Cruzeirão campeão, para estar com o meu
povo tendo a convicção de que são as minhas raízes que me direcionam a retornar
ao Brasil. Sendo assim, em breve o farei!
Valência, Espanha, Outubro de
2014.
[1]
Doutorando
em Direito, Estado e Constituição pela Universidade de Brasília (UnB). Realiza
estágio doutoral (doutorado-sanduíche) na Universidade de Valencia, Espanha.
Advogado da RENAP. Ele integra o coletivo Diálogos Lyrianos.
terça-feira, 14 de outubro de 2014
Operação Lava a Jato: Entre a Justiça e o golpismo
No caso da operação Lava Jato, a sequência de eventos demonstra, até agora, uma Justiça pouco hábil para dar conta do desafio da luta contra a corrupção.
Em texto no qual reflete sobre os desafios democráticos da justiça no limiar do século XXI, Boaventura de Sousa Santos já antevia que os Tribunais teriam de enfrentar vários dilemas na medida em que começassem a atuar em casos de corrupção.
Por um lado, argumentava Santos, este novo tipo de atuação ajudaria a ampliar a legitimidade dos Tribunais nas sociedades.
Por outro lado, ressalvava o sociólogo, este tipo de atuação traria riscos de politização (e, portanto, descrédito) da Justiça, em especial porque suscita casos em que “parte da classe política, não podendo resolver a luta pelo poder pelos mecanismos habituais de distribuição dos recursos do sistema político, transfere para os tribunais os seus conflitos internos através de denúncias cruzadas, quase sempre através da comunicação social, esperando que a exposição judicial do adversário, qualquer que seja o desenlace, o enfraqueça ou mesmo o liquide politicamente”.
As advertências de Santos ganham especial relevo no Brasil dos fins de 2014, quando, em meio às mais acirradas eleições presidenciais desde a redemocratização, o eleitorado se vê às voltas com vazamentos seletivos de textos e áudios coligidos no âmbito de medidas judiciais ou administrativas decorrentes da operação Lava Jato, a qual culminou com a prisão e a delação premiada do ex-diretor da Petrobras, Paulo Roberto Costa.
Aqui, como no texto de Santos, o dilema está em se colocar como um Poder que ajuda a esclarecer autores e beneficiários de desvios, servindo, neste caso, como agente de promoção da democracia; ou como Poder que ajuda a instrumentalizar a fragilização de candidaturas, subvertendo a livre formação de opinião do eleitorado, servindo, neste caso, como agente de negação da democracia e, no limite, da viabilização de pretensões golpistas.
No caso da operação Lava Jato, a sequência de eventos demonstra, até agora, uma Justiça pouco hábil para dar conta deste desafio.
Primeiro – e pouco antes do primeiro turno das eleições –, houve divulgação, por revista de grande circulação, de informações supostamente obtidas do depoimento de Costa no âmbito de sua delação premiada.
A delação, a rigor, deveria permanecer sob sigilo absoluto, tendo inclusive sido criptografada para envio ao STF e obtenção de homologação. Diante da inusitada divulgação, políticos e partidos pediram acesso à íntegra depoimento.
O pedido, como se sabe, foi negado em diversas instâncias e oportunidades, sob o argumento de que o material é protegido por sigilo.
Mas enquanto adotava essa posição, a Justiça não repudiava o que havia sido divulgado pela revista (nem mesmo para defender a segurança de seus procedimentos de sigilo); tampouco abria qualquer procedimento interno para investigar as origens do vazamento.
Depois – e logo no início da campanha do segundo turno –, houve divulgação dos áudios dos depoimentos de Costa e do doleiro Alberto Youssef, em ação penal conexa com a delação.
Desta vez, como ganhou destaque, o Juiz da causa afirmou não ver problema na circulação, que considerou um “consectário normal do interesse público e do princípio da publicidade dos atos processuais”, especialmente em um processo que “não corre sob segredo de justiça”.
No entanto, os áudios não foram disponibilizados na íntegra e de maneira oficial pelo Tribunal, e o eleitor permanece tendo que formar sua opinião sobre a cronologia, a natureza e a organização social da corrupção na estatal a partir dos diversos fragmentos que a grande mídia, mais uma vez seletivamente, resolve disseminar.
Se houver, como se diz que há, referências a origens mais remotas do esquema, alcançando inclusive governos do PSDB, isso não é algo que o eleitor será capaz de saber. E uma coisa é contar a história de um esquema ocorrido no governo Dilma. A outra é contar a história de um esquema de décadas que foi descoberto e estancado exatamente no governo Dilma.
Afirmar que a delação é sigilosa, mas calar-se diante de reportagem que se diz baseada na delação, é permitir que se crie ampla e fundada suspeita sobre a consistência de seus procedimentos.
Por que não emitir nota negando o teor de reportagens quando extraídas, supostamente, de delação protegida por sigilo?
Por que não apurar se houve ou não vazamento, frente à divulgação pela revista?
Manter a delação sigilosa, mas liberar o acesso aos áudios de processo crime derivado da delação, é permitir que os cidadãos (assim como os sujeitos envolvidos) conheçam as descrições de condutas tidas como criminosas, ao mesmo tempo em que se lhes é negado o acesso ao quadro geral em que tais descrições estão sendo deduzidas.
Por que não decretar, como alternativa, sigilo em todos os procedimentos correlatos à delação – ou ao menos suspendê-los até que todas as questões relacionadas à delação estejam resolvidas?
Dizer que os depoimentos do processo crime derivado da delação são “públicos”, mas permitir que sejam divulgados de maneira fragmentada, pela imprensa, é usar o princípio da “publicidade” para render homenagem à opacidade.
Se é para ir por aí, por que não colocar a íntegra dos áudios disponível na página do Tribunal?
A atomização das decisões e a ausência de qualquer política judiciária a guiar suas implementações, enfim, indicam faltar o senso de responsabilidade de que, em momentos e casos difíceis como o atual, devem dispor Juízes e Promotores.
Seus danos, por sua vez, tampouco recairão apenas sobre o processo eleitoral ou a candidatura de Dilma. Se elevar atos que depois se descubra inconsistentes à condição de diferenciais para o resultado de pleito tão significativo na história recente do Brasil, a Justiça está correndo o risco de contribuir para sua própria deslegitimação.
Querem os seus integrantes, em quem Tocqueville já enxergou a aristocracia natural da república, seguir adiante?
(*) Graduado (USP ‘02) e Mestre (UnB ‘07) em Direito; PhD em Direito, Política e Sociedade (Northeastern University, EUA, ‘13) . Integra o coletivo "Diálogos Lyrianos".
domingo, 12 de outubro de 2014
Moro na rua do Penedo da Saudade (Cartas do Mondego)*
Patrick Mariano**
Por pura
coincidência, sentei para escrever essa carta quase no exato momento em que, há
duas semanas atrás, embarcava sob as primeiras e desejadas gotas de chuva de
Brasília. As águas que escorriam pelo lado de fora da janela do avião eram,
também, as minhas naquele momento a escorrer pelos olhos e as que, nos últimos
dias, havia compartilhado com amigos e amigas que tanto me fizeram melhorar em
um contato sempre alegre e afetuoso.
Ainda sem saber ao
certo o que encontraria pela frente ficava, durante as horas de viagem, a
relembrar os instantâneos dos momentos com cada um e cada uma que amava. E eram
tantos que pouco me sobrava para prestar atenção na refeição que o serviço de
avião oferecia.
O mapa com o avião
em rota é a primeira coisa que olhamos. O visor mostrava a Ilha de Lanzarote e
Casablanca. O primeiro, lugar de Saramago. Casablanca, um dos filmes mais
lindos que já assisti. Como não associar a cena final do avião partindo, com a
minha atual? Começava a entender que, em uma viagem como essa, desbravamos o
lugar e, nesse ato, terminamos por nos desbravar.
A chegada cheia de
malas, o trem, a estação e o medo do desconhecido. Me confundi na parada e tive
que descer em Mealhada, uma pequena aldeia naquele vasto mundo que agora
passava a me pertencer. Desconfiado, como todo interiorano, pedi informações
para uma senhora e, de cara já percebi ser suficiente um sorriso e delicadeza
para se conseguir as coisas em qualquer lugar do planeta.
A cidade de Coimbra
é cheia de encantos e histórias. Também, são séculos e séculos em cada pedra,
ladeira e beco. Interessante descobri-la aos poucos e sem pressa. O tempo é uma
das coisas que mais me chamou atenção. De repente, tive tempo para caminhar,
tomar um café e conversar. Talvez uma das coisas mais ricas de se estudar fora
é retomar o próprio tempo. A vida no Brasil, tão corrida e cheia de estresse no
serviço público aos poucos dava lugar à uma nova contagem de tempo.
Temos que
reaprender a gerir o tempo e criar uma rotina de estudos disciplinada. É
impressionante como as leituras rendem e o tanto que temos ainda a ler.
Come-se bem em
Portugal. Para quem gosta de doce é uma festa. Esses dias, em uma feira de
doces medievais experimentei um, não porque seja lá fã de doces, mas porque a
receita era de 1519. Como resistir a um trabalho manual de cinco séculos?
Os pratos são uma
perdição. O leitão é o mais famoso, mas há também a alheira, um defumado que os
judeus faziam com carne de ave para despistar a inquisição, misturando-se com
os locais que devotam a carne de porco. Há, também, a chanfana, um delicioso
prato de cabra ao vinho. Para alguém que viveu por entre os interiores de Minas
Gerais, São Paulo e Paraná como eu, não poderia ter acertado mais em cheio o
lugar de se doutorar.
Pode se contar
parte da história do próprio país pela Universidade de Coimbra, uma das mais
antigas do mundo. Estudantes de 90 países desfilam por suas escadas e ladeiras.
Aliás, ladeiras e escadas é o que não nos falta. Até elaboramos uma frase
adaptada: no fim sempre tem uma ladeira
ou escada, se não tem uma ladeira ou escada é porque ainda não se chegou ao fim.
Justamente esse
movimento frenético de estudantes a subir e descer as escadas é que faz com que
Coimbra seja um espaço privilegiado de contato para entender as mudanças e
transformações pelas quais passa a Europa.
Andar pelas
repúblicas da Sé Velha é um passeio interessantíssimo. Há as feministas,
anarquistas, comunistas e socialistas, muitas com mais de 50 anos de história.
Caminhando por entre elas se chega, sem perceber, à casa do grande Zeca Afonso,
um dos maiores da música de intervenção, nossa música de protesto.
Essa vida acadêmica
que pulsa, também é vista nas capas pretas da Praxe, ideal mais tradicional e
formalista do ensino e que inspirou Harry Poter. Nas repúblicas mais contestadoras,
não é raro ver enforcamentos simbólicos desses trajes tradicionais nas fachadas
das casas. Seja no calor ou no frio, lá estão essas capas a caminhar pelas
subidas e descidas de Coimbra.
O continente está
em crise. Principalmente os países do sul, Espanha, Portugal, Grécia são as
maiores vítimas da aceitação da cartilha neoliberal levada à risca pelos donos da
Comunidade Europeia. E, como sempre nesses casos, quem paga a conta é o povo.
Pela primeira vez os novos portugueses herdarão um país pior que receberam dos
seus pais. Cortes nos direitos sociais adquiridos faz com que se rasgue a
Constituição da República Portuguesa - um dos textos constitucionais mais belos
da história.
É de lá que vem,
logo de início:
ARTIGO 1º Portugal é uma República soberana, baseada na
dignidade da pessoa humana e na vontade popular e empenhada na sua
transformação numa sociedade sem classes.
As políticas
neoliberais estão a atacar a Constituição da República Portuguesa e os direitos
dos portugueses. Perguntei a um fotógrafo o porque de não haver revoltas quanto
a esse estado de coisas. Me disse que aqui as coisas viram de uma vez, como na
revolução de Abril e que a ideia de que está ruim, mas poderia ser pior, acaba
por impedir maiores gritos do povo contra esse desmonte do estado de bem-estar
social.
As aulas se dão às
sextas e sábados e a turma é formada por portugueses e brasileiros. Há uma
riqueza nessa troca em razão das diferenças conjunturais e de como o direito
tem suas nuances próprias em cada continente.
Os portugueses
sabem dar nome às coisas. A rua das flores, rua dos gatos, rua da saudade,
pátio do portão de ferro e os arcos do jardim expressam a poesia que se
encontra caminhando por entre as pedras portuguesas da cidade, aliviando as
subidas e escadas.
Por sinal, esses
dias, ao explicar para o vendedor de móveis usados o lugar em que morava - a
fim de receber a escrivaninha que havia adquirido – disse, sem perceber ou
elaborar com mais tempo, uma frase que depois virou um
bom resumo ou metáfora desses parágrafos anteriores todos:
Venha pela avenida
dos arcos do jardim e dobre a segunda à esquerda, certo? Eu moro na rua do
Penedo da Saudade.
*As “cartas” têm sido publicadas neste Blog como
impressões/reflexões de viagens para intercâmbio e estudos de
pós-graduação de membros dos vários coletivos que se encontram nos
Diálogos Lyrianos. Assim, estão aqui colecionadas as Cartas de Nagoya
(Diego Nardi), as Cartas da Áustria, Finlândia, Alemanha e
agora da China (Layla Jorge Teixeira Cesar), as Cartas do Gotemburgo
(Ana Luiza Almeida e Silva), as Cartas da
Indochina (Luiza Valladares). Agora começam a chegar as Cartas do Mondego, de Patrick Mariano (quem sabe, pelo talento [**] e pelo estilo ele se inspire em Saramago e seu belíssimo "Viagem a Portugal" e em Eduardo Lourenço e sua "Mitologia da Saudade") e, em breve de Lívia Gimenes. Os dois estão em Coimbra para
seguir programas de pós-graduação.
**Patrick Mariano é advogado da RENAP (Rede Nacional de Advogados Populares) e está em Coimbra em Programa de Doutoramento. Ele integra o coletivo Diálogos Lyrianos e é autor do livro 11 Retratos por 20 Contos.
sexta-feira, 3 de outubro de 2014
O NPJ DA FACULDADE DE DIREITO E O DIREITO ACHADO NA RUA
Secom UnB
Mariana Costa/UnB Agência |
Núcleo de Práticas Jurídicas é referência em Ceilândia
Órgão da Faculdade de Direito presta assessoria jurídica gratuita aos moradores da região administrativa mais populosa do DF
Ádlia Tavares - Da Secretaria de Comunicação da UnB
Ádlia Tavares - Da Secretaria de Comunicação da UnB
O Núcleo
de Práticas Jurídicas (NPJ) da Universidade de Brasília está instalado
no centro de Ceilândia, a região administrativa mais populosa do DF. O
espaço, fundado em 1997 pelo reitor Lauro Morty, abriga aulas da
disciplina de Estágio Supervisionado II, da graduação em Direito, e
projetos de extensão universitária multidisciplinares, que prestam
assessoria jurídica gratuita à comunidade da cidade.
Para
a professora do curso de Direito e orientadora da disciplina de
estágio, Talita Rampin, a inserção do núcleo em uma área na qual existe a
demanda por esses serviços é um diferencial da UnB. “O deslocamento do
Plano Piloto para a Ceilândia também diz muito sobre o projeto de Darcy
Ribeiro, que defendia a universidade necessária e a inserção na
comunidade”, aponta a professora.
“O núcleo é uma
porta de acesso à Justiça para a população de Ceilândia”, avalia.
Somente os estudantes da disciplina de Estágio Supervisionado II
realizam entre 40 e 100 atendimentos por mês.
A
equipe, de 110 alunos, atende indivíduos e grupos familiares carentes -
que recebem até três salários mínimos – em questões do direito civil.
“São contratos, relações de consumo, questões envolvendo família,
sucessão”, exemplifica a professora orientadora da disciplina de
estágio.
Mariana Costa/UnB Agência |
Professora Talita Rampin |
O
NPJ também abriga três projetos de extensão: o curso de Promotoras
Legais Populares, que capacita mulheres em noções de direito, gênero e
cidadania; o projeto Maria da Penha, que dá atenção jurídica e
psicológica a mulheres em situação de violência doméstica; e a
Assessoria Jurídica Universitária Popular Roberto Lyra Filho (Ajup), que
atua com enfoque em movimentos sociais.
As
atividades realizadas no NPJ receberam destaque na recente avaliação dos
cursos de graduação em Direito Diurno e Noturno realizada por
consultores do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas (Inep/MEC). Os cursos obtiveram 5, a nota máxima.
Todos os textos e fotos podem ser utilizados e reproduzidos desde que a fonte seja citada. Textos: UnB Agência. Fotos: nome do fotógrafo/UnB Agência.
quarta-feira, 1 de outubro de 2014
O BRASIL NA HORA DAS ELEIÇÕES*
Ganhará
as eleições quem for capaz de mostrar com mais clareza quais são as
escolhas e como elas se articulam num projeto de país verdadeiramente
inclusivo, justo e intercultural, apresentando com mais consistência e
credibilidade os meios para colocá-las em prática
|
por Boaventura de Sousa Santos |
Em 2015, o Brasil comemora o mais longo ciclo de vida democrática da sua história: trinta anos. Isso é em si um fato importante num momento em que o Brasil emerge como uma potência mundial e em que, por isso, o que se passa no país interessa não só aos brasileiros como ao mundo no seu conjunto. São trinta anos de progressos extraordinários na construção de uma institucionalidade democrática que ousou ir para além da matriz eurocêntrica, combinando democracia representativa com democracia participativa; na configuração de um sistema judicial independente; na adoção de políticas públicas que permitiram níveis de redistribuição social nunca antes alcançados; no enfrentamento da injustiça histórica de longa duração com concessões de terras e territórios aos povos indígenas e quilombolas, e com políticas de ação afirmativa no sistema educativo e potencialmente no sistema de emprego; na tentativa de superar os limites da transição democrática pactuada no que diz respeito à injustiça histórica de mais curta duração – os crimes da ditadura militar; na criação de um sistema de educação superior e de pesquisa científica dinâmico e socialmente responsável; na configuração de uma política econômica que garantiu estabilidade e níveis elevados de crescimento; enfim, no desenho de uma postura nas relações internacionais centrada numa nova concepção dos interesses do país e da região relativamente autônoma diante dos interesses geopolíticos dos Estados Unidos na região e mesmo no mundo. O conjunto dessas políticas foi mudando a tal ponto a imagem internacional do Brasil que, enquanto em 1985, um país em processo de “brasilianização” era um país condenado, hoje seria certamente um país resgatado. Alguns dos méritos dessa transformação se devem a todos os governos desse período, outros (muitos) pertencem aos governos que se iniciaram com a eleição do presidente Lula em 2003. É um desses últimos governos que pretende reeleger-se nas eleições do próximo mês de outubro: o governo da presidente Dilma Rousseff. Em face do exposto acima seria de prever que o próximo ato eleitoral fosse a consagração fácil do atual governo. Assim parece não ser e há que se averiguar por quê. Analisemos algumas das razões principais. Devo dizer, à partida, que se fosse brasileiro votaria sem hesitações na presidente Dilma, mas não deixaria de lhe enviar alguns recados na expectativa de fortalecer a minha esperança. A síndrome da Índia Em maio, o candidato conservador Narenda Modi ganhou folgadamente as eleições na Índia, desalojando o Partido do Congresso, de centro-esquerda, que estava no poder desde 2004. O Partido do Congresso adotara uma política fortemente neoliberal, ainda que matizada pelo fato de o Estado indiano, na tradição de Nehru, ser um pesado interventor tanto na economia como na sociedade. As medidas neoliberais tiveram assim de conviver com duas condições: políticas de redistribuição de renda com as quais se criou uma nova classe média e se ampliou o mercado interno; e negociação permanente com um Estado que paulatinamente foi se rendendo aos imperativos dos grupos econômicos poderosos por via da corrução. De modo paradoxal, as duas condições convergiram na derrota do Partido do Congresso: uma nova classe média, frustrada pelo fato de seu status não corresponder à qualidade das expectativas que criara, tornou-se muito crítica das negociatas e do esbanjamento de dinheiro público de que membros do governo e políticos foram sendo denunciados. Essa convergência foi ao ponto de alguns analistas terem concluído que o partido fora derrotado nas urnas pelos grupos sociais que mais tinha beneficiado durante os dez anos de governo. Em política é muito arriscado fazer comparações. O Brasil é um país muito diferente da Índia. As políticas públicas foram muito mais significativas no Brasil que na Índia, e a eleição de Modi teve a seu favor outros fatores (por exemplo, de política étnico-cultural) que felizmente não têm vigência aqui. Ainda assim, as manifestações de junho de 2013 e o clima – ora difuso, ora organizado – de descontentamento em relação aos investimentos na Copa vieram mostrar que o governo Dilma devia prestar muita atenção a duas observações sobre o incremento das políticas sociais que um grande economista, aliás amigo do Brasil, Albert Hirschman, fez há muitos anos. Segundo ele, o incremento das políticas sociais pode criar frustração social em duas situações: quando os serviços públicos, ao massificarem-se, perdem qualidade e deixam de corresponder às expectativas de estratos sociais ansiosos por poder desfrutá-los pela primeira vez (por exemplo, compare-se a expansão dramática do ensino universitário público com o aumento muito menos significativo do real investimento financeiro no setor); e quando os serviços, por serem de produção burocrática, são culturalmente monolíticos e organizacionalmente homogêneos, não se adequando às necessidades culturais e outras de certos grupos sociais (saúde indígena, agricultura camponesa, transporte urbano e suburbano etc.). Quem está no poder? O capital, talvez hoje mais do que em qualquer período desde a Segunda Guerra Mundial, só confia em governantes que sejam eles próprios capitalistas ou extensões serventuárias do capital, ou seja, gente que veja na maximização dos lucros o objetivo central da governança pública. Ao longo de séculos, o capital habituou-se a negociar com forças por vezes muito hostis, como aconteceu no imediato pós-guerra europeu, e fê-lo sempre com muita flexibilidade. Mas sempre a contragosto, e desde a década de 1980 tem vindo a construir a economia mundial cada vez mais autônoma em relação às políticas nacionais ou regionais (caso da União Europeia), na esperança de, no momento adequado, fazê-las vergar aos seus interesses, que não são outros senão a maximização infinita dos lucros. A América Latina, nas duas últimas décadas, foi administrada por alguns governos que voltaram a impor a negociação em termos que globalmente pareciam obsoletos. O capital agiu com a habitual flexibilidade, dessa vez centrada na ideia de que a perda de poder político não significaria a perda do econômico. E como os capitalistas são mais adeptos do determinismo econômico do que alguma vez foram os marxistas, viram essa perda como muito relativa e sempre transitória. Com os governos da última década, o capital teve muitos lucros, mas só aqueles que a “monotonia das relações econômicas”, como diria Marx, permite. Ficaram por ganhar os lucros extraordinários provenientes da acumulação primitiva, das grandes privatizações e da corrupção, que, por ser tão grande e comum, se torna sinônimo de boa governança (too big to fail). É a perda desses lucros extraordinários que está por trás da virulência e da grosseria com que o capital, pela voz da sua serventuária grande mídia e da classe política de direita, ataca o governo Dilma, por exemplo, por meio de insultos de caráter quase racial ou de casta no espaço público. Fazem-lhe saber que, por mais íntima que se mostre deles ou delas, ela nunca será um deles ou delas. Numa afirmação grosseira de colonialismo interno, dizem sem o dizerem: “Mesmo que tenhamos acumulado muito dinheiro com vocês no poder, nunca aceitaremos o PT, o Lula e qualquer pessoa da sua laia!”. E o povo? Os governos dos últimos doze anos chamaram-se em vão governos populares? As classes populares não estiveram no poder. Estiveram no poder representantes e aliados seus que, no entanto, dada a natureza anacrônica e antidemocrática do sistema político brasileiro, entraram em alianças com forças políticas conservadoras que, historicamente treinadas para dominar o poder, foram sabendo extorquir cada vez mais concessões que acabaram por desfigurar ou eliminar os programas que mais potencial tinham para mudar as relações sociais de poder. Permitiram mesmo provocar retrocessos escandalosos, como foi o caso do novo Código Florestal. Foram sobretudo criando uma lógica de governança hostil à participação e à deliberação democráticas em favor de uma lógica tecnocrática, instrumentalista, nacional-desenvolvimentista. Claro que alianças contranatura acabam sempre por provocar mudanças de desigual intensidade nos seus parceiros. Na passagem do governo Lula para o Dilma foi visível a perda de acesso das classes populares aos governantes em que tinham votado. A presidente Dilma fez questão de manter uma distância em relação aos movimentos sociais e aos sindicatos que parecia orientada para estabelecer a marca da sua autonomia em relação ao lulismo, mas que foi sobretudo entendida por todos como uma mensagem de proximidade em relação às classes dominantes. Por outro lado, os instrumentos de democracia participativa que tinham sido a marca do governo popular (orçamento participativo, conselhos de políticas setoriais, conferências nacionais) foram perdendo fôlego, capacidade de renovação e, sobretudo, foram relegados a decidir cada vez mais sobre temas cada vez menos importantes. Os grandes investimentos e os grandes projetos ficaram fora do alcance da democracia participativa. A distância entre governantes e governados, e entre representantes e representados aprofundou-se, habilmente aproveitada pela grande mídia, que é o grande partido de oposição em toda a América Latina contra os governos progressistas. Estes têm levado tempo a perceber que, nas condições do continente, seus erros, por menores ou justificáveis, cobram um preço muito caro. Daí a necessidade de uma enorme vigilância política por parte dos partidos que sustentam esses governos. Acontece que a lei de ferro das oligarquias partidárias atingiu violentamente esses partidos à medida que seus melhores militantes se transformaram nos piores funcionários. Nada disso é irreversível. A reforma do sistema político vai estar na agenda, e, num lampejo de criatividade política (que teria sido mais eficaz se o governo não tivesse anteriormente mantido tanta distância em relação aos movimentos sociais), a presidente Dilma chegou a propor uma Assembleia Constituinte, tal como hoje tem sido proposta nas ruas e praças de tantos países do mundo (no Brasil, o plebiscito sobre a reforma política). A reativação da democracia participativa e da participação popular é possível, e o governo deu recentemente mostras de querer levá-la a sério para além das conveniências eleitorais. A refundação do Partido dos Trabalhadores é quiçá a tarefa mais difícil, e, se eu pudesse aconselhar o presidente Lula, dir-lhe-ia que seria nela que ele deveria investir toda a sua magnífica biografia que construiu para orgulho de brasileiros e de cidadãos de esquerda de todo o mundo. O modelo de desenvolvimento O neoliberalismo fez concessões no plano político e na perda dos lucros extraordinários, mas conseguiu em contrapartida dominar cada vez mais a lógica de governança de governos, criando uma armadilha entre a necessidade de crescimento econômico para financiar as políticas sociais e de infraestrutura e a submissão a uma lógica de acumulação dominada pelo setor mais antissocial do capital (o financeiro), centrada na exploração ecologicamente desastrosa dos recursos naturais (agronegócio, mineração e megabarragens) e criminosa no que diz respeito aos sacrifícios inomináveis que impõe a populações camponesas e ribeirinhas, povos indígenas e quilombolas, expulsando-os de suas terras e territórios, e permitindo que seus líderes sejam perseguidos e mortos. A resistência popular a essa avalanche sem precedentes (mesmo incluindo o tempo colonial) e convenções internacionais – como a Convenção 169 sobre Povos Indígenas e Tribais em Países Independentes da OIT e o direito à consulta prévia, livre e informada que ela consagra – são declaradas sumariamente obstáculos ao desenvolvimento. Esse processo acontece em todo o continente (e fora dele), e o Brasil não lhe escapa. Todas as conquistas de justiça histórica da última década estão em risco de perder-se com a orgia do extrativismo. Os povos indígenas brasileiros com quem trabalho e aos quais sou solidário estão perplexos. Sabem que as forças oligárquicas regionais estão por trás de tantos crimes impunes contra eles, mas também sofrem com a hostilidade do governo da União e escandalizam-se com o fato de governos não populares do passado terem homologado muito mais terras do que o de Dilma. Escandalizam-se ainda ao ver a quase ostentação da cumplicidade com os representantes da bancada ruralista, tendo, à frente deles, Katia Abreu. Chocam-se com a paralisação dos processos de demarcação, com a passividade ante invasões ilegais e violentas e com a criminalização dos povos oprimidos em luta pela defesa dos seus direitos. Jovens ecologistas, ativistas dos direitos humanos, movimentos camponeses e urbanos pela agroecologia e pela soberania alimentar revoltam-se contra a visão estritamente capitalista da terra como fator de capital, a qual destrói o meio ambiente e arrasa os povos e modos de vida tradicionais e a biodiversidade que eles defendem e da qual todos nós dependemos. A perplexidade aumentará com a entrada da candidata Marina Silva, conhecida militante ecológica. Participei com ela de muitas sessões do Fórum Social Mundial e partilho muitas de suas preocupações ambientais. Mas acho que está em má companhia, num partido onde têm presença os interesses do grande capital e o agronegócio em grande plano. Nada disso, porém, basta para reduzir a perplexidade se a presidente Dilma não der sinais fortes de que uma política de transição para outro modelo de desenvolvimento social e ecologicamente mais justo está em marcha e que tal política é já visível em medidas concretas. Para isso é preciso ter a coragem de relançar o debate sobre o projeto de país. Será um debate agregador, onde se criam maiorias conscientes e resilientes. Sem isso, Dilma pode ter gente suficiente que goste de vê-la reeleita, mas não terá gente suficiente para se bater ativamente por sua reeleição. O imperialismo norte-americano É uma ironia da história contemporânea brasileira que foi com os governos populares que o Brasil se transformou numa potência mundial com cara própria; afirmou um sistema de relações internacionais que não passa por Washington; ajudou a definir uma política regional que, sem deixar de ter alguns traços subimperialistas, para usar a expressão do grande sociólogo Ruy Mauro Marini, permitiu criar um espaço de solidariedades e de cumplicidades de recorte anti-imperialista e anticapitalista; e envolveu-se ativamente na rede de países emergentes (África do Sul, China, Índia e Rússia) que procuram criar um espaço de autonomia em relação ao dólar, ao FMI e ao Banco Mundial, que se traduz na recente criação do Novo Banco de Desenvolvimento. Não se pode imaginar que os Estados Unidos olhem impávidos e serenos para esses desenvolvimentos que potencialmente afetam seus interesses. A espionagem sobre a presidente Dilma é apenas a ponta do iceberg, e a Aliança do Pacífico está longe de ser um contrabalanço eficaz aos supostos desígnios regionais do Brasil. A ingerência assume hoje formas muito mais sutis que as intervenções militares do passado. Passam por atividades de aconselhamento perante acontecimentos extremos ou protestos sociais, de luta contra o terrorismo, ONGs com fins benévolos apenas na aparência. Uma coisa é certa: tal como acontece com o capitalismo financeiro nacional, também o internacional não confia na presidente Dilma e tudo fará para desacreditar seu governo aos olhos da opinião pública, para o que conta com poderosos aliados internos. Os brasileiros e as brasileiras estão postos perante escolhas que terão consequências nas próximas décadas. Ganhará as eleições quem for capaz de mostrar com mais clareza quais são essas escolhas e como elas se articulam num projeto de país verdadeiramente inclusivo, justo e intercultural, apresentando com mais consistência e credibilidade os meios para colocá-las em prática. Convém desconfiar das mensagens moralistas, vagas e traiçoeiras do tipo “Não vamos desistir do país”. Elas escondem o que há de mais abjeto e noturno no velho bloco de poder oligárquico. Com todas as limitações, que devem ser reconhecidas e superadas, o que há de novo, digno e luminoso no Brasil contemporâneo são os governos Lula-Dilma.
Boaventura de Sousa Santos
Boaventura de Sousa Santos é professor
catedrático jubilado da Faculdade de Economia da Universidade de
Coimbra, distinguished legal scholar da Faculdade de Direito da
Universidade de Wisconsin-Madison e global legal scholarda
Universidade de Warwick. É diretor do Centro de Estudos Sociais da
Universidade de Coimbra e coordenador científico do Observatório
Permanente da Justiça Portuguesa. Dirige atualmente o projeto de
investigação “Alice – Espelhos estranhos, lições imprevistas: definindo
para a Europa um novo modo de partilhar as experiências do mundo”. Seu
livro mais recente é Epistemologies of the South. Justice against
epistemicide [Epistemologias do Sul. Justiça contra o epistemicídio],
Paradigm Publishers, Boulder, 2014. |
04 de Setembro de 2014 |
Palavras chave: democracia, brasil, eleições, decisão, dilma, marina, aécio, psdb, pt, colonialismo |
Um espectro ronda a Escócia, a Catalunha e o Brasil: Plebiscitos e lutas por Constituintes como horizonte transformador.*
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a realização de plebiscitos e a consequente luta por um novo regimento
constitucional marcam a atualidade de Escócia, Catalunha e Brasil
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por Gladstone Leonel da Silva Júnior | ||
O mês de setembro do ano 2014 pode marcar o destino de 02 países e 01 região em partes distintas do mundo. As situações de cada um desses atores envolvem inúmeras diferenças, sejam históricas ou até mesmo de direcionamento político. Contudo, a realização de plebiscitos e a consequente luta por um novo regimento constitucional marcam a atualidade de Escócia, Catalunha e Brasil. Dia 18 de setembro ocorre o plebiscito que decidirá a independência da Escócia frente ao Reino Unido. No dia 11 de Setembro uma manifestação massiva tomou conta da Catalunha, pautando o referendo popular, não reconhecido pelo governo Espanhol, que ocorrerá no dia 09 de novembro acerca da independência ou não da região. Já no Brasil, do dia 01 a 07 de setembro, ocorreu o plebiscito popular para uma Constituinte Exclusiva e Soberana que modifique o sistema político do país. Metaforicamente ao que disse Marx e Engels no Manifesto do Partido Comunista, na realidade desses países e dessa região, um espectro os ronda e está relacionado à possibilidade de transformações políticas. Mudanças que são majoritariamente puxadas por setores populares nessas localidades e que, a partir de uma Constituinte, podem consolidar os avanços políticos e jurídicos desses pleitos históricos e conjunturais. Entender as situações específicas nos faz verificar até que ponto a realização de plebiscitos e Assembleias Constituintes representam ou não a possibilidade de avançar nos pleitos populares atuais. No caso da Escócia, as raízes históricas do debate independentista são profundas e as diferenças marcam a relação que possui com a Inglaterra. Isso tem origem ainda no Império Romano, quando no ano de 55 e 54 a.C. Júlio César conquista terras na Britânia. Anos depois os romanos fundam Londres e expulsam os celtas daquela região. Contudo, não ocupam a parte norte do território, onde está situada hoje a Escócia, aquela época conhecido como Caledônia, ainda habitada pelo povo Celta. Assim, a Inglaterra desenvolve-se em decorrência da influência romana, diferentemente da Escócia. Em 1707, os Parlamentos de Escócia e Inglaterra criam o Reino Unido da Grã-Bretanha. O plebiscito que ocorre no dia 18 de setembro de 2014 também é fruto de todo o embate histórico entre esses povos e abre a possibilidade para que a Escócia consiga a independência política do Reino Unido, não mais se subordinando à Coroa Britânica. Mais do que um questão nacionalista, surge a possibilidade de intervenção concreta do povo escocês para contribuírem com a construção da sociedade que pertencem. Um a priori democrático que não ocorre na atualidade. Assim pensam, figuras como o fundador do partido Left Unity[2], Ken Loach e o ativista paquistanês Tariq Ali[3]. Certamente, os interesses econômicos como o petróleo no mar do Norte, as dívidas públicas do Reino Unido falam alto nesse momento, mas as vozes da sociedade incidem cada vez mais no debate. O plebiscito oficial poderá dar novos rumos à Escócia, que historicamente se colocou sempre à esquerda nas decisões junto ao Reino Unido (na atualidade, dentre os 59 deputados escoceses no Parlamento de Westminster, só 01 é conservador). A partir desse resultado, caso favorável à independência, abre-se a possibilidade de uma Constituinte para reestruturar o funcionamento do Estado e da sociedade, já que o país se verá desvinculado do ordenamento jurídico do Reino Unido. Já o debate Catalão requer a análise de outros elementos. Dia 11 de setembro, remetendo a guerra de Sucessão Espanhola, celebra-se o dia da Catalunha. Região localizada ao nordeste da Espanha, que tem Barcelona como sua principal cidade. As diferenças culturais dos catalães para os espanhóis atravessam a construção histórica e permanecem no cotidiano de uma região que tem o catalão como principal língua e não o castelhano. Os anseios independentistas ecoam em toda sociedade espanhola e é mal recebido pelo governo central que o considera inconstitucional. Um dos motivos desse rechaço é a vultuosa arrecadação econômica que a Espanha tem com essa região e, obviamente, a eventual perda de poder político e territorial. Mesmo diante de uma unidade ampla, os setores progressistas da região tem defendido a bandeira da formação de um Estado, para uns completamente independente e para outros com mais autonomia perante a Espanha. A pauta ganha força na sociedade e uma eventual ruptura também ensejaria a convocação de uma Assembleia Constituinte pelo povo Catalão, algo já requerido em manifestos[4] e uma das bandeiras de luta. O caso brasileiro não envolve uma demanda independentista, mas também utiliza-se de um plebiscito (aqui um plebiscito popular) para modificar um sistema político falho e refém do poder econômico. Tudo isso, a partir de uma Constituinte. O que está em jogo é a necessidade de uma real construção de um poder popular com uma maior radicalidade democrática. Os problemas atuais apresentam um cenário de sub-representatividade de setores formadores da sociedade brasileira, como mulheres, jovens, indígenas e negros; a ingerência cada vez maior do poder econômico nos pleitos eleitorais; limitações de participação popular restringidas basicamente à democracia representativa; entre outros. Uma Constituinte exclusiva poderá avançar diante desses temas e aprofundar os mecanismos plenamente democráticos do país. A reflexão aqui trazida não ousa prever as consequências políticas dessas iniciativas. A disputa está aberta e as forças políticas organizam-se para isso. Apenas constata que as demandas por participação popular crescem, e diversos setores utilizam cada vez mais os plebiscitos (populares ou não) e a convocação de uma Constituinte, como um instrumento central de luta política ao tratar da relação com o Estado. Dentre as chamadas das respectivas campanhas se encontra desde uma frase imperativa, como “Yes, Scotland” ou aquela que passa a mensagem completa, “Para mudar o sistema político. Constituinte Já!” ou até mesmo ressaltam a importância do momento histórico, “Ara és l'hora”. Parece que a sociedade civil elencou seus instrumentos para reformular a construção estatal e social. Seja na Escócia, Catalunha ou Brasil, respeitando os processos históricos distintos, a realização de plebiscitos e a luta popular por Constituintes apresentam-se, cada vez mais, como reais possibilidades de alteração do status quo e modificação de algumas estruturas de poder.
Gladstone Leonel da Silva Júnior
Gladstone Leonel da Silva Júnior é Doutorando em Direito,
Estado e Constituição pela Universidade de Brasília (UnB). Realiza
estágio doutoral (doutorado-sanduíche) na Universidade de Valencia,
Espanha, com bolsa da CAPES. No mês de julho desse ano esteve em Glasgow
(Escócia), vive em Brasília e escreve de Barcelona (Catalunha). Integra o coletivo Díalogos Lyrianos (O Direito Achado na Rua). |
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17 de Setembro de 2014 *O presente texto foi originalmente publicado no Le Monde Diplomatique. | ||
Palavras chave: Escócia, Catalunha, Espanha, Brasil, plebiscito, reforma política, debate, independência |