Patrick Mariano**
Por pura
coincidência, sentei para escrever essa carta quase no exato momento em que, há
duas semanas atrás, embarcava sob as primeiras e desejadas gotas de chuva de
Brasília. As águas que escorriam pelo lado de fora da janela do avião eram,
também, as minhas naquele momento a escorrer pelos olhos e as que, nos últimos
dias, havia compartilhado com amigos e amigas que tanto me fizeram melhorar em
um contato sempre alegre e afetuoso.
Ainda sem saber ao
certo o que encontraria pela frente ficava, durante as horas de viagem, a
relembrar os instantâneos dos momentos com cada um e cada uma que amava. E eram
tantos que pouco me sobrava para prestar atenção na refeição que o serviço de
avião oferecia.
O mapa com o avião
em rota é a primeira coisa que olhamos. O visor mostrava a Ilha de Lanzarote e
Casablanca. O primeiro, lugar de Saramago. Casablanca, um dos filmes mais
lindos que já assisti. Como não associar a cena final do avião partindo, com a
minha atual? Começava a entender que, em uma viagem como essa, desbravamos o
lugar e, nesse ato, terminamos por nos desbravar.
A chegada cheia de
malas, o trem, a estação e o medo do desconhecido. Me confundi na parada e tive
que descer em Mealhada, uma pequena aldeia naquele vasto mundo que agora
passava a me pertencer. Desconfiado, como todo interiorano, pedi informações
para uma senhora e, de cara já percebi ser suficiente um sorriso e delicadeza
para se conseguir as coisas em qualquer lugar do planeta.
A cidade de Coimbra
é cheia de encantos e histórias. Também, são séculos e séculos em cada pedra,
ladeira e beco. Interessante descobri-la aos poucos e sem pressa. O tempo é uma
das coisas que mais me chamou atenção. De repente, tive tempo para caminhar,
tomar um café e conversar. Talvez uma das coisas mais ricas de se estudar fora
é retomar o próprio tempo. A vida no Brasil, tão corrida e cheia de estresse no
serviço público aos poucos dava lugar à uma nova contagem de tempo.
Temos que
reaprender a gerir o tempo e criar uma rotina de estudos disciplinada. É
impressionante como as leituras rendem e o tanto que temos ainda a ler.
Come-se bem em
Portugal. Para quem gosta de doce é uma festa. Esses dias, em uma feira de
doces medievais experimentei um, não porque seja lá fã de doces, mas porque a
receita era de 1519. Como resistir a um trabalho manual de cinco séculos?
Os pratos são uma
perdição. O leitão é o mais famoso, mas há também a alheira, um defumado que os
judeus faziam com carne de ave para despistar a inquisição, misturando-se com
os locais que devotam a carne de porco. Há, também, a chanfana, um delicioso
prato de cabra ao vinho. Para alguém que viveu por entre os interiores de Minas
Gerais, São Paulo e Paraná como eu, não poderia ter acertado mais em cheio o
lugar de se doutorar.
Pode se contar
parte da história do próprio país pela Universidade de Coimbra, uma das mais
antigas do mundo. Estudantes de 90 países desfilam por suas escadas e ladeiras.
Aliás, ladeiras e escadas é o que não nos falta. Até elaboramos uma frase
adaptada: no fim sempre tem uma ladeira
ou escada, se não tem uma ladeira ou escada é porque ainda não se chegou ao fim.
Justamente esse
movimento frenético de estudantes a subir e descer as escadas é que faz com que
Coimbra seja um espaço privilegiado de contato para entender as mudanças e
transformações pelas quais passa a Europa.
Andar pelas
repúblicas da Sé Velha é um passeio interessantíssimo. Há as feministas,
anarquistas, comunistas e socialistas, muitas com mais de 50 anos de história.
Caminhando por entre elas se chega, sem perceber, à casa do grande Zeca Afonso,
um dos maiores da música de intervenção, nossa música de protesto.
Essa vida acadêmica
que pulsa, também é vista nas capas pretas da Praxe, ideal mais tradicional e
formalista do ensino e que inspirou Harry Poter. Nas repúblicas mais contestadoras,
não é raro ver enforcamentos simbólicos desses trajes tradicionais nas fachadas
das casas. Seja no calor ou no frio, lá estão essas capas a caminhar pelas
subidas e descidas de Coimbra.
O continente está
em crise. Principalmente os países do sul, Espanha, Portugal, Grécia são as
maiores vítimas da aceitação da cartilha neoliberal levada à risca pelos donos da
Comunidade Europeia. E, como sempre nesses casos, quem paga a conta é o povo.
Pela primeira vez os novos portugueses herdarão um país pior que receberam dos
seus pais. Cortes nos direitos sociais adquiridos faz com que se rasgue a
Constituição da República Portuguesa - um dos textos constitucionais mais belos
da história.
É de lá que vem,
logo de início:
ARTIGO 1º Portugal é uma República soberana, baseada na
dignidade da pessoa humana e na vontade popular e empenhada na sua
transformação numa sociedade sem classes.
As políticas
neoliberais estão a atacar a Constituição da República Portuguesa e os direitos
dos portugueses. Perguntei a um fotógrafo o porque de não haver revoltas quanto
a esse estado de coisas. Me disse que aqui as coisas viram de uma vez, como na
revolução de Abril e que a ideia de que está ruim, mas poderia ser pior, acaba
por impedir maiores gritos do povo contra esse desmonte do estado de bem-estar
social.
As aulas se dão às
sextas e sábados e a turma é formada por portugueses e brasileiros. Há uma
riqueza nessa troca em razão das diferenças conjunturais e de como o direito
tem suas nuances próprias em cada continente.
Os portugueses
sabem dar nome às coisas. A rua das flores, rua dos gatos, rua da saudade,
pátio do portão de ferro e os arcos do jardim expressam a poesia que se
encontra caminhando por entre as pedras portuguesas da cidade, aliviando as
subidas e escadas.
Por sinal, esses
dias, ao explicar para o vendedor de móveis usados o lugar em que morava - a
fim de receber a escrivaninha que havia adquirido – disse, sem perceber ou
elaborar com mais tempo, uma frase que depois virou um
bom resumo ou metáfora desses parágrafos anteriores todos:
Venha pela avenida
dos arcos do jardim e dobre a segunda à esquerda, certo? Eu moro na rua do
Penedo da Saudade.
*As “cartas” têm sido publicadas neste Blog como
impressões/reflexões de viagens para intercâmbio e estudos de
pós-graduação de membros dos vários coletivos que se encontram nos
Diálogos Lyrianos. Assim, estão aqui colecionadas as Cartas de Nagoya
(Diego Nardi), as Cartas da Áustria, Finlândia, Alemanha e
agora da China (Layla Jorge Teixeira Cesar), as Cartas do Gotemburgo
(Ana Luiza Almeida e Silva), as Cartas da
Indochina (Luiza Valladares). Agora começam a chegar as Cartas do Mondego, de Patrick Mariano (quem sabe, pelo talento [**] e pelo estilo ele se inspire em Saramago e seu belíssimo "Viagem a Portugal" e em Eduardo Lourenço e sua "Mitologia da Saudade") e, em breve de Lívia Gimenes. Os dois estão em Coimbra para
seguir programas de pós-graduação.
**Patrick Mariano é advogado da RENAP (Rede Nacional de Advogados Populares) e está em Coimbra em Programa de Doutoramento. Ele integra o coletivo Diálogos Lyrianos e é autor do livro 11 Retratos por 20 Contos.
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