Ganhará
as eleições quem for capaz de mostrar com mais clareza quais são as
escolhas e como elas se articulam num projeto de país verdadeiramente
inclusivo, justo e intercultural, apresentando com mais consistência e
credibilidade os meios para colocá-las em prática
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por Boaventura de Sousa Santos |
Em 2015, o Brasil comemora o mais longo ciclo de vida democrática da sua história: trinta anos. Isso é em si um fato importante num momento em que o Brasil emerge como uma potência mundial e em que, por isso, o que se passa no país interessa não só aos brasileiros como ao mundo no seu conjunto. São trinta anos de progressos extraordinários na construção de uma institucionalidade democrática que ousou ir para além da matriz eurocêntrica, combinando democracia representativa com democracia participativa; na configuração de um sistema judicial independente; na adoção de políticas públicas que permitiram níveis de redistribuição social nunca antes alcançados; no enfrentamento da injustiça histórica de longa duração com concessões de terras e territórios aos povos indígenas e quilombolas, e com políticas de ação afirmativa no sistema educativo e potencialmente no sistema de emprego; na tentativa de superar os limites da transição democrática pactuada no que diz respeito à injustiça histórica de mais curta duração – os crimes da ditadura militar; na criação de um sistema de educação superior e de pesquisa científica dinâmico e socialmente responsável; na configuração de uma política econômica que garantiu estabilidade e níveis elevados de crescimento; enfim, no desenho de uma postura nas relações internacionais centrada numa nova concepção dos interesses do país e da região relativamente autônoma diante dos interesses geopolíticos dos Estados Unidos na região e mesmo no mundo. O conjunto dessas políticas foi mudando a tal ponto a imagem internacional do Brasil que, enquanto em 1985, um país em processo de “brasilianização” era um país condenado, hoje seria certamente um país resgatado. Alguns dos méritos dessa transformação se devem a todos os governos desse período, outros (muitos) pertencem aos governos que se iniciaram com a eleição do presidente Lula em 2003. É um desses últimos governos que pretende reeleger-se nas eleições do próximo mês de outubro: o governo da presidente Dilma Rousseff. Em face do exposto acima seria de prever que o próximo ato eleitoral fosse a consagração fácil do atual governo. Assim parece não ser e há que se averiguar por quê. Analisemos algumas das razões principais. Devo dizer, à partida, que se fosse brasileiro votaria sem hesitações na presidente Dilma, mas não deixaria de lhe enviar alguns recados na expectativa de fortalecer a minha esperança. A síndrome da Índia Em maio, o candidato conservador Narenda Modi ganhou folgadamente as eleições na Índia, desalojando o Partido do Congresso, de centro-esquerda, que estava no poder desde 2004. O Partido do Congresso adotara uma política fortemente neoliberal, ainda que matizada pelo fato de o Estado indiano, na tradição de Nehru, ser um pesado interventor tanto na economia como na sociedade. As medidas neoliberais tiveram assim de conviver com duas condições: políticas de redistribuição de renda com as quais se criou uma nova classe média e se ampliou o mercado interno; e negociação permanente com um Estado que paulatinamente foi se rendendo aos imperativos dos grupos econômicos poderosos por via da corrução. De modo paradoxal, as duas condições convergiram na derrota do Partido do Congresso: uma nova classe média, frustrada pelo fato de seu status não corresponder à qualidade das expectativas que criara, tornou-se muito crítica das negociatas e do esbanjamento de dinheiro público de que membros do governo e políticos foram sendo denunciados. Essa convergência foi ao ponto de alguns analistas terem concluído que o partido fora derrotado nas urnas pelos grupos sociais que mais tinha beneficiado durante os dez anos de governo. Em política é muito arriscado fazer comparações. O Brasil é um país muito diferente da Índia. As políticas públicas foram muito mais significativas no Brasil que na Índia, e a eleição de Modi teve a seu favor outros fatores (por exemplo, de política étnico-cultural) que felizmente não têm vigência aqui. Ainda assim, as manifestações de junho de 2013 e o clima – ora difuso, ora organizado – de descontentamento em relação aos investimentos na Copa vieram mostrar que o governo Dilma devia prestar muita atenção a duas observações sobre o incremento das políticas sociais que um grande economista, aliás amigo do Brasil, Albert Hirschman, fez há muitos anos. Segundo ele, o incremento das políticas sociais pode criar frustração social em duas situações: quando os serviços públicos, ao massificarem-se, perdem qualidade e deixam de corresponder às expectativas de estratos sociais ansiosos por poder desfrutá-los pela primeira vez (por exemplo, compare-se a expansão dramática do ensino universitário público com o aumento muito menos significativo do real investimento financeiro no setor); e quando os serviços, por serem de produção burocrática, são culturalmente monolíticos e organizacionalmente homogêneos, não se adequando às necessidades culturais e outras de certos grupos sociais (saúde indígena, agricultura camponesa, transporte urbano e suburbano etc.). Quem está no poder? O capital, talvez hoje mais do que em qualquer período desde a Segunda Guerra Mundial, só confia em governantes que sejam eles próprios capitalistas ou extensões serventuárias do capital, ou seja, gente que veja na maximização dos lucros o objetivo central da governança pública. Ao longo de séculos, o capital habituou-se a negociar com forças por vezes muito hostis, como aconteceu no imediato pós-guerra europeu, e fê-lo sempre com muita flexibilidade. Mas sempre a contragosto, e desde a década de 1980 tem vindo a construir a economia mundial cada vez mais autônoma em relação às políticas nacionais ou regionais (caso da União Europeia), na esperança de, no momento adequado, fazê-las vergar aos seus interesses, que não são outros senão a maximização infinita dos lucros. A América Latina, nas duas últimas décadas, foi administrada por alguns governos que voltaram a impor a negociação em termos que globalmente pareciam obsoletos. O capital agiu com a habitual flexibilidade, dessa vez centrada na ideia de que a perda de poder político não significaria a perda do econômico. E como os capitalistas são mais adeptos do determinismo econômico do que alguma vez foram os marxistas, viram essa perda como muito relativa e sempre transitória. Com os governos da última década, o capital teve muitos lucros, mas só aqueles que a “monotonia das relações econômicas”, como diria Marx, permite. Ficaram por ganhar os lucros extraordinários provenientes da acumulação primitiva, das grandes privatizações e da corrupção, que, por ser tão grande e comum, se torna sinônimo de boa governança (too big to fail). É a perda desses lucros extraordinários que está por trás da virulência e da grosseria com que o capital, pela voz da sua serventuária grande mídia e da classe política de direita, ataca o governo Dilma, por exemplo, por meio de insultos de caráter quase racial ou de casta no espaço público. Fazem-lhe saber que, por mais íntima que se mostre deles ou delas, ela nunca será um deles ou delas. Numa afirmação grosseira de colonialismo interno, dizem sem o dizerem: “Mesmo que tenhamos acumulado muito dinheiro com vocês no poder, nunca aceitaremos o PT, o Lula e qualquer pessoa da sua laia!”. E o povo? Os governos dos últimos doze anos chamaram-se em vão governos populares? As classes populares não estiveram no poder. Estiveram no poder representantes e aliados seus que, no entanto, dada a natureza anacrônica e antidemocrática do sistema político brasileiro, entraram em alianças com forças políticas conservadoras que, historicamente treinadas para dominar o poder, foram sabendo extorquir cada vez mais concessões que acabaram por desfigurar ou eliminar os programas que mais potencial tinham para mudar as relações sociais de poder. Permitiram mesmo provocar retrocessos escandalosos, como foi o caso do novo Código Florestal. Foram sobretudo criando uma lógica de governança hostil à participação e à deliberação democráticas em favor de uma lógica tecnocrática, instrumentalista, nacional-desenvolvimentista. Claro que alianças contranatura acabam sempre por provocar mudanças de desigual intensidade nos seus parceiros. Na passagem do governo Lula para o Dilma foi visível a perda de acesso das classes populares aos governantes em que tinham votado. A presidente Dilma fez questão de manter uma distância em relação aos movimentos sociais e aos sindicatos que parecia orientada para estabelecer a marca da sua autonomia em relação ao lulismo, mas que foi sobretudo entendida por todos como uma mensagem de proximidade em relação às classes dominantes. Por outro lado, os instrumentos de democracia participativa que tinham sido a marca do governo popular (orçamento participativo, conselhos de políticas setoriais, conferências nacionais) foram perdendo fôlego, capacidade de renovação e, sobretudo, foram relegados a decidir cada vez mais sobre temas cada vez menos importantes. Os grandes investimentos e os grandes projetos ficaram fora do alcance da democracia participativa. A distância entre governantes e governados, e entre representantes e representados aprofundou-se, habilmente aproveitada pela grande mídia, que é o grande partido de oposição em toda a América Latina contra os governos progressistas. Estes têm levado tempo a perceber que, nas condições do continente, seus erros, por menores ou justificáveis, cobram um preço muito caro. Daí a necessidade de uma enorme vigilância política por parte dos partidos que sustentam esses governos. Acontece que a lei de ferro das oligarquias partidárias atingiu violentamente esses partidos à medida que seus melhores militantes se transformaram nos piores funcionários. Nada disso é irreversível. A reforma do sistema político vai estar na agenda, e, num lampejo de criatividade política (que teria sido mais eficaz se o governo não tivesse anteriormente mantido tanta distância em relação aos movimentos sociais), a presidente Dilma chegou a propor uma Assembleia Constituinte, tal como hoje tem sido proposta nas ruas e praças de tantos países do mundo (no Brasil, o plebiscito sobre a reforma política). A reativação da democracia participativa e da participação popular é possível, e o governo deu recentemente mostras de querer levá-la a sério para além das conveniências eleitorais. A refundação do Partido dos Trabalhadores é quiçá a tarefa mais difícil, e, se eu pudesse aconselhar o presidente Lula, dir-lhe-ia que seria nela que ele deveria investir toda a sua magnífica biografia que construiu para orgulho de brasileiros e de cidadãos de esquerda de todo o mundo. O modelo de desenvolvimento O neoliberalismo fez concessões no plano político e na perda dos lucros extraordinários, mas conseguiu em contrapartida dominar cada vez mais a lógica de governança de governos, criando uma armadilha entre a necessidade de crescimento econômico para financiar as políticas sociais e de infraestrutura e a submissão a uma lógica de acumulação dominada pelo setor mais antissocial do capital (o financeiro), centrada na exploração ecologicamente desastrosa dos recursos naturais (agronegócio, mineração e megabarragens) e criminosa no que diz respeito aos sacrifícios inomináveis que impõe a populações camponesas e ribeirinhas, povos indígenas e quilombolas, expulsando-os de suas terras e territórios, e permitindo que seus líderes sejam perseguidos e mortos. A resistência popular a essa avalanche sem precedentes (mesmo incluindo o tempo colonial) e convenções internacionais – como a Convenção 169 sobre Povos Indígenas e Tribais em Países Independentes da OIT e o direito à consulta prévia, livre e informada que ela consagra – são declaradas sumariamente obstáculos ao desenvolvimento. Esse processo acontece em todo o continente (e fora dele), e o Brasil não lhe escapa. Todas as conquistas de justiça histórica da última década estão em risco de perder-se com a orgia do extrativismo. Os povos indígenas brasileiros com quem trabalho e aos quais sou solidário estão perplexos. Sabem que as forças oligárquicas regionais estão por trás de tantos crimes impunes contra eles, mas também sofrem com a hostilidade do governo da União e escandalizam-se com o fato de governos não populares do passado terem homologado muito mais terras do que o de Dilma. Escandalizam-se ainda ao ver a quase ostentação da cumplicidade com os representantes da bancada ruralista, tendo, à frente deles, Katia Abreu. Chocam-se com a paralisação dos processos de demarcação, com a passividade ante invasões ilegais e violentas e com a criminalização dos povos oprimidos em luta pela defesa dos seus direitos. Jovens ecologistas, ativistas dos direitos humanos, movimentos camponeses e urbanos pela agroecologia e pela soberania alimentar revoltam-se contra a visão estritamente capitalista da terra como fator de capital, a qual destrói o meio ambiente e arrasa os povos e modos de vida tradicionais e a biodiversidade que eles defendem e da qual todos nós dependemos. A perplexidade aumentará com a entrada da candidata Marina Silva, conhecida militante ecológica. Participei com ela de muitas sessões do Fórum Social Mundial e partilho muitas de suas preocupações ambientais. Mas acho que está em má companhia, num partido onde têm presença os interesses do grande capital e o agronegócio em grande plano. Nada disso, porém, basta para reduzir a perplexidade se a presidente Dilma não der sinais fortes de que uma política de transição para outro modelo de desenvolvimento social e ecologicamente mais justo está em marcha e que tal política é já visível em medidas concretas. Para isso é preciso ter a coragem de relançar o debate sobre o projeto de país. Será um debate agregador, onde se criam maiorias conscientes e resilientes. Sem isso, Dilma pode ter gente suficiente que goste de vê-la reeleita, mas não terá gente suficiente para se bater ativamente por sua reeleição. O imperialismo norte-americano É uma ironia da história contemporânea brasileira que foi com os governos populares que o Brasil se transformou numa potência mundial com cara própria; afirmou um sistema de relações internacionais que não passa por Washington; ajudou a definir uma política regional que, sem deixar de ter alguns traços subimperialistas, para usar a expressão do grande sociólogo Ruy Mauro Marini, permitiu criar um espaço de solidariedades e de cumplicidades de recorte anti-imperialista e anticapitalista; e envolveu-se ativamente na rede de países emergentes (África do Sul, China, Índia e Rússia) que procuram criar um espaço de autonomia em relação ao dólar, ao FMI e ao Banco Mundial, que se traduz na recente criação do Novo Banco de Desenvolvimento. Não se pode imaginar que os Estados Unidos olhem impávidos e serenos para esses desenvolvimentos que potencialmente afetam seus interesses. A espionagem sobre a presidente Dilma é apenas a ponta do iceberg, e a Aliança do Pacífico está longe de ser um contrabalanço eficaz aos supostos desígnios regionais do Brasil. A ingerência assume hoje formas muito mais sutis que as intervenções militares do passado. Passam por atividades de aconselhamento perante acontecimentos extremos ou protestos sociais, de luta contra o terrorismo, ONGs com fins benévolos apenas na aparência. Uma coisa é certa: tal como acontece com o capitalismo financeiro nacional, também o internacional não confia na presidente Dilma e tudo fará para desacreditar seu governo aos olhos da opinião pública, para o que conta com poderosos aliados internos. Os brasileiros e as brasileiras estão postos perante escolhas que terão consequências nas próximas décadas. Ganhará as eleições quem for capaz de mostrar com mais clareza quais são essas escolhas e como elas se articulam num projeto de país verdadeiramente inclusivo, justo e intercultural, apresentando com mais consistência e credibilidade os meios para colocá-las em prática. Convém desconfiar das mensagens moralistas, vagas e traiçoeiras do tipo “Não vamos desistir do país”. Elas escondem o que há de mais abjeto e noturno no velho bloco de poder oligárquico. Com todas as limitações, que devem ser reconhecidas e superadas, o que há de novo, digno e luminoso no Brasil contemporâneo são os governos Lula-Dilma.
Boaventura de Sousa Santos
Boaventura de Sousa Santos é professor
catedrático jubilado da Faculdade de Economia da Universidade de
Coimbra, distinguished legal scholar da Faculdade de Direito da
Universidade de Wisconsin-Madison e global legal scholarda
Universidade de Warwick. É diretor do Centro de Estudos Sociais da
Universidade de Coimbra e coordenador científico do Observatório
Permanente da Justiça Portuguesa. Dirige atualmente o projeto de
investigação “Alice – Espelhos estranhos, lições imprevistas: definindo
para a Europa um novo modo de partilhar as experiências do mundo”. Seu
livro mais recente é Epistemologies of the South. Justice against
epistemicide [Epistemologias do Sul. Justiça contra o epistemicídio],
Paradigm Publishers, Boulder, 2014. |
04 de Setembro de 2014 |
Palavras chave: democracia, brasil, eleições, decisão, dilma, marina, aécio, psdb, pt, colonialismo |
O Direito Achado na Rua: nossa conquista é do tamanho da nossa luta
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