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quarta-feira, 14 de julho de 2021

 

O Direito entre a Ética e a Política: Uma Crítica com Lévinas e Marx

Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito.

 

 

 

 

 

 

JOSÉ RICARDO CUNHA. O Direito entre a Ética e a Política: Uma Crítica com Lévinas e Marx. Tese submetida à Banca Examinadora como requisito parcial para promoção funcional à Categoria de Professor Titular da Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: UERJ, 2021, 283 p.

 

            Compareci, com satisfação e enorme aproveitamento, ao processo público, constituído por defesa de Memorial e de Tese, requisito para a progressão funcional ao mais elevado posto acadêmico, a categoria de Professor Titular, do Professor José Ricardo Cunha.

            Assim, tive a honra de integrar na qualidade de membro externo avaliador, a Banca formada pelos insignes membros: Professor Dr. Nilo Batista – UERJ – Presidente; Professora Dra. Maria Celina Bodin de Moraes – UERJ; Professor Dr. Antonio Carlos Wolkmer – UNILASALLE, aposentado na UFSC; Professora Dra. Ana Lucia Sabadell – UFRJ.

            Para quem preferir acompanhar a arguição, nas esplêndidas arguições dos membros da banca, anoto aqui o endereço do Canal Youtube de O Direito Achado na Rua: https://www.youtube.com/watch?v=QtJS7lYaD_8 .

            Forte no oferecimento de uma densa tese, o memorial se configura em si, uma peça valiosa, na sua forma de animar um percurso vitae que não se secundarize entre os requisitos da avaliação.

            Tal como eu próprio em meu tempo, e tenho lembrado em participações em bancas, aprecio sobremaneira a habilitação à titulação por meio de memoriais. O modelo favorece realizar em primeira pessoa a evocação do percurso acadêmico e carregá-lo de subjetividade, realmando o itinerário, no que Boaventura de Sousa Santos, que abona esse método, denomina de entidade mista, combinando ensaio autobiográfico sobre a história científica pessoal e a análise epistemológica das questões abordadas numa articulação entre memória (reconstrução subjetiva dos elementos que a constituem, memória da memória, diz Santo Agostinho, em Confissões) e a invenção, dimensão explicativa do texto (SANTOS, Boaventura de. Sociologia na Primeira Pessoa: Fazendo Pesquisa nas Favelas do Rio de Janeiro. OAB Revista da Ordem dos Advogados do Brasil. São Paulo: Editora Brasiliense.  Nº 49, p. 39-79, Primavera/1988).

A opção está perfeitamente legitimada, afinada com uma opção metodológica que tem as melhores recomendações. Na sua intenção, com perfeito assento epistemológico, o Memorial é simultaneamente, seguindo Boaventura de Sousa Santos, autobiografia (aquilo que fiz) e auto-retrato (aquilo que sou e como penso), algo que reflete, em preocupação comum, a justificativa oferecida por Descartes, em sua obra mais célebre: “o meu desígnio não é ensinar aqui o método que cada qual deve seguir para bem conduzir sua razão, mas apenas mostrar de que maneira me esforcei por conduzir a minha”.

No Memorial do candidato é muito forte, no que faz e no que pensa, a veemência de sua atuação, no ensino, na extensão, na pesquisa e na gestão universitárias e e na criação e na manutenção de espaços para a organização e a difusão de conhecimento crítico no campo de direito, relevo para a fundação e a edição da Revista Direito e Práxis, experiência que o próprio candidato distingue, com razão, muito “trabalhosa e, ao mesmo tempo, gratificante”, que alcançou no período de pouco mais de uma década o reconhecimento como “uma das mais importantes revistas da área e uma referência no mundo editorial, tornando-se desde 2020 o periódico da área do direito no topo do ranking H5 (índice bibliométrico disponibilizado pelo Google Scholar) do Brasil”, ao mesmo indexada na classificação A1, a mais elevada no sistema Qualis Capes. Muitos de nós temos valorizado nossos currículos na Plataforma Lattes, ao publicar nesse prestigiado periódico.

Uma Nota do Memorial me é evocativa. Trata-se de seu protagonismo na implantação do curso jurídico da FGV no Rio de Janeiro. É que, vice-presidente por dezoito anos da Comissão de Ensino Jurídico do Conselho Federal da OAB, avaliei, na substantiva apresentação do estimado Joaquim Falcão, a inovadora proposta desse projeto pedagógico. E, para mim, é digno de atenção identificar em sua implementação, a contribuição do professor José Ricardo Cunha, experiência muito bem sucedida que agora vem enriquecer o seu currículo.

Não consta do Memorial, salvo por nota de referência, remetendo a publicação do candidato – CUNHA, José Ricardo (Org.). Direitos humanos, poder judiciário e sociedade. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2011. A nota singela, não dá a medida do impacto do conteúdo do trabalho realizado pelo Autor e seus associados no empreendimento de educação. É preciso acompanhar os avanços da pesquisa nesse campo para encontrar, por exemplo, em Mapa Territorial, Temático e Instrumental da Assessoria Jurídica e Advocacia Popular no Brasil / José Antônio P. Gediel, Leandro Gorsdorf, Antonio Escrivão Filho, Hugo Belarmino, Marcos J. F. Oliveira Lima, Eduardo F. de Araújo, Yuri Campagnaro, Andréa Guimarães, João T. N. de Medeiros Filho, Tchenna Maso, Kamila B. A. Pessoa, Igor Benício, Virnélia Lopes, André Barreto – Curitiba/PR – Brasília/DF – João Pessoa/PB, a importância dos achados do pesquisador citado dando lastro a obra de relevante circulação:

“Vale ressaltar, neste ponto, no que tange à incorporação dos tratados internacionais de direitos humanos à cultura jurisdicional da magistratura enquanto elemento de análise sobre o estágio de consolidação da justiciabilidde dos direitos humanos no Brasil, que em oposição ao índice de utilização dos tratados e vias internacionais revelados na prática da advocacia popular, pesquisa recente realizada na comarca da cidade do Rio de Janeiro, sob a coordenação do professor José Ricardo Cunha (FGV-Direito), demonstrou que “40% dos juízes [entrevistados pela pesquisa] nunca estudaram direitos humanos, e apenas 16% sabem como funcionam os sistemas de proteção internacional dos direitos humanos da ONU e OEA […]” (CUNHA (org.), 2011, p. 48)”.

De onde, aliás, Boaventura de Sousa Santos vai retirar a referência com a qual sustenta afirmação contundente feita em conferência na Universidade de Brasília (proferida no âmbito das comemorações dos 30 anos de O Direito Achado na Rua, no dia 26 de outubro de 2019), e agora publicada no mais recente volume da Série O Direito Achado na Rua (SANTOS, Boaventura de Sousa. Da Expansão Judicial à Decadência de um Modelo de Justiça, in SOUSA JUNIOR, José Geraldo de at al (orgs).O Direito Achado na Rua vol. 10: Introdução Crítica ao Direito como Liberdade|. Brasília: Editora da OAB/Editora UnB, 2021): “a Dignitatis mostra que quarenta por cento dos juízes nunca foram exposta ao ensino dos direitos humanos” (Mapa Territorial…).

Chamo a atenção sobretudo para a data da conferência e para trecho trazido à publicação agora em 2021:

“O Brasil tem, neste momento, o caso mais famoso do mundo, o caso do preso político mais famoso do mundo. Nós sabemos muito bem que foram cometidas uma série de irregularidades. Violou-se o princípio da parcimónia, nas conduções coercitivas, que não era necessário, fizeram-se escutas ilegais, ignorou-se prova favorável aos réus, houve contactos informais com autoridades estrangeiras. Estas ilegalidades configuram a necessidade de uma disciplina, de uma punição disciplinar, e, eventualmente, até criminal. Portanto, eu penso que a credibilidade do Sistema Judiciário não se recupera enquanto o Sérgio Moro e Deltan Dallagnol não forem punidos exemplarmente”.

            Notem, que a afirmação duríssima foi feita em outubro de 2019 quando o juiz a força tarefa de Curitiba estavam no auge da idolatria ufana da usurpação da legítima governança que vigia no Brasil, e a voz profética de Boaventura soava junto às poucas advertências que a boa crítica proferia, solenemente ocultada ou desconsiderada no país. Somente muito recentemente a consciência política e o discernimento jurídico começou a se dar conta daquele engodo malicioso e venal, finalmente enquadrado pelo Supremo Tribunal Federal ao sumular a descarada suspeição que se prestou adrede para a consumação de um verdadeiro golpe contra a democracia, a constituição, os trabalhadores e soberania popular e aos interesses do país e da sociedade.

            Tudo isso se projeta para a tese proposta pelo candidato, ao figurar o direito entre a ética e a política.

Para o Autor da tese, em resumo, o direito moderno expressa as conquistas e contradições da modernidade. De um ponto de vista histórico, se afirma como direito liberal-burguês que consagra os direitos individuais como seu principal fundamento. Não obstante, isso não impede que o direito positivo de diferentes países absorva certas conquistas específicas que revelam a resistência de grupos explorados e oprimidos. De um ponto de vista epistemológico, o direito moderno postula independência científica e neutralidade em relação às disputas morais existentes na sociedade. A presente tese faz uma crítica ao direito moderno em algumas de suas pretensões mais profundas, especialmente a de pretender caminhar alheio aos processos de exploração, opressão e exclusão do sujeito da injustiça social.

Com argumentos extraídos de duas tradições: da ética de Emmanuel Lévinas e da crítica da economia política de Karl Marx, sustenta que é preciso romper com o individualismo e egocentrismo típicos da modernidade, o que pode ser feito por meio de uma ética da alteridade. Por outro lado, preconiza que a radical consideração pelo outro, em especial pelo sujeito da injustiça social, conduz aos ideais de libertação e autoemancipação da tradição marxista. Com isso, pretende uma crítica ao direito em nome da justiça, sem que isso implique renunciar a certas conquistas modernas, como o estado de direito.

A tese recupera o cuidadoso percurso que a pesquisa do Autor vem realizando, em esforço para designar a relação entre Direito e Ética da Alteridade e a questão do sujeito da injustiça social.

Para incentivar a leitura desse rico tema ou para iniciar novos leitores, transcrevo o sumário da tese:

Introdução.

Capítulo 1) Ética da Alteridade, Crítica do Direito e o Sistema da Injustiça Social.

1.1. A Ética Levinasiana e a Crítica Radical Da Ontologia

1.2. Limites e Possibilidades Para se Pensar o Direito Outramentre

1.3. Ética da Alteridade e o Sujeito da Injustiça Social

Capítulo 2) Modernidade, Pós-Modernidade e Emancipação em Diálogo com a Ética da Alteridade.

 2.1. O Discurso Forte Da Modernidade

2.2. Crítica e Crise da Modernidade

2.3. Pós-Modernidade

2.4. Pós-Modernidade, Comunidade e Ética

2.5. Ética da Alteridade e o Desafio da Emancipação

Capítulo 3) Ética da Alteridade como Fundamento Extramoral para a Política em Tempos de Ódio

3.1. Do Fortalecimento do Eu ao Repúdio do Outro

3.2. Do Egocentrismo no Debate Democrático à Consideração do Outro Como Adversário e Não Inimigo

3.3.  Da Ética da Alteridade Como um Fundamento para a Ação Política

Capítulo 4) Interlúdio – de Lévinas a Marx: Ética e Política entre Transcendência e Revolução

4.1. Crítica do Idealismo

4.2. Insubmissão Diante da Totalidade

4.3. Sociedade, Justiça E Profecia

4.4. Transcendência e Revolução

Capítulo 5) A Crítica do Direito no Pensamento Marxiano: É Possível uma Emancipação pelo Direito?

 5.1. Acumulação Capitalista, Trabalho Estranhado e Sua Relação com o Direito.

5.2. Crítica ao Direito Burguês, Luta por Direitos e Acumulação Primitiva

5.3. O Plano Econômico, o Plano Político e as Lutas por Emancipação

Capítulo 6) Revolução e Forma Jurídica: Estado de Direito em Contextos Pós-Revolucionários e Desafios ao Processo Revolucionário

6.1. O Estado de Direito e Seus Limites

6.2. A Revolução e Seus Limites

6.3. Devir Revolucionário e Estado de Direito

Considerações Finais

Referências Bibliográficas.

Tal como descreve o Candidato em seu portfólio de pesquisa:

“a literatura mais usual da teoria do direito, de influência positivista, costuma situar o direito como sendo heterônomo e a moral como autônoma, o direito como sendo objetivo e a moral subjetiva. Isso produz conclusões relativamente superficiais que colocam a experiência jurídica e o sentimento moral em campos opostos. Entretanto, essa forma de classificação sobre direito e moral foi substancialmente renovado em função do debate oriundo da filosofia política e da filosofia moral sobre a teoria da justiça. Para uma abordagem mais empírica ou fenomenológica do sujeito é preciso compreendê-lo em sua experiência vivencial real. Mas quando se pensa uma teoria da justiça, não basta que se tenha em mente cidadãos livres e iguais, como ponto de partida da teoria. É necessário que se considere o sujeito real da injustiça. Contudo, a experiência da injustiça pode ser um tanto individual e, por isso, relativa. Cada pessoa pode reagir de uma forma diante de algo que lhe cause sofrimento pessoal e a isso atribua uma qualificação de injustiça sofrida. Porém, por outro lado, há na sociedade uma espécie de injustiça objetiva, reconhecida e, até, quantificada por estatísticas, estudos e pesquisas. Trata-se da injustiça social que pode ser resultado da opressão decorrente das privações impostas pelo empobrecimento resultante do sistema econômico vigente, ou, então, da opressão decorrente de preconceitos e discriminações que resulta em desigualdades injustas e imerecidas. Quem vive uma das duas situações ou ambas, é o sujeito da injustiça social.

Enquanto na gramática da filosofia moral e política há algum esforço em produzir conhecimento acerca do sujeito da injustiça e de sua relação tanto com os sistemas morais quanto com as instituições morais políticas, o campo da filosofia do direito ainda não alcançou um acúmulo considerável sobre o problema deste sujeito da injustiça. São poucas as iniciativas voltadas para este estudo. Porém, mais escassos são os trabalhos sobre o problema do sujeito da injustiça no campo da teoria do direito. A presente pesquisa pretende fortalecer uma área pouco trabalhada, embora recorrente nas práticas concretas do sistema de justiça”.

Com alguma proximidade, embora com distinções próprias, compartilho as mesmas preocupações apresentadas pelo Autor. Em texto que ofereci à recente edição crítica ao livro de Roberto Armando Ramos de Aguiar originalmente publicado em 1987 (AGUIAR, Roberto A. R. de Aguiar. O Que É Justiça. Uma Abordagem Dialética. Brasília: Senado Federal/ Edições do Senado Federal 279, 2020), logro compreender que Aguiar, se apresenta como um construtor da Justiça em relação à alteridade. Essa é a questão – eu digo lá – que Roberto Aguiar propõe em uma de suas últimas leituras de atualização temas centrais de sua reflexão. Trazendo a questão da alteridade para poder compreender o direito, Aguiar reivindica extrair das interações das subjetividades o modo de sua designação, porque para ele as relações jurídicas são sempre móveis, constituindo-se em processos permanentes de variações e transformações, sem determinações rígidas e com direcionamento variável, onde nada é linear, nem expresso por consequências necessárias de causas anteriores. Daí que, sob a perspectiva de uma juridicidade que se mova por uma normatividade emanada do nós, ele se disponha, com Lévinas, trabalhar questões candentes, teóricas e políticas que repercutam no acervo das conceituações nos campos filosófico e jurídico: quem é o outro? Como construir relações com os diferentes, os distintos? Quais as simetrias e assimetrias entre um e outro? Como a história do direito entendeu o outro? E, recuperando o fio condutor desde suas reflexões constantes de seus primeiros trabalhos: como pensar a justiça em relação à alteridade?

 É, diz Roberto A. R. de Aguiar, “nessa procura incerta e dura, é nesse vislumbrar tateante que procuraremos alcançar a libertação do homem de sua situação infra-humana e participar dessa caminhada conflitiva rumo à plenitude humana”. Para Aguiar, dá-se o mesmo que em Castoriadis, para quem “Uma sociedade justa não é uma sociedade que adotou, de uma vez para sempre, as leis justas. Uma sociedade justa é uma sociedade onde a questão da Justiça permanece constantemente aberta”.

Na conjuntura conturbada que atravessamos, entre angústias e esperanças, a Justiça, lembra Aguiar em sua bela metáfora, tomada como epígrafe do livro (p. 11) é “essa bailarina que emerge (e)que não será de todos e de ninguém, não se porá acima dos circundantes, mas entrará na dança de mãos dadas com os que não podem dançar e, amante da maioria, tomará o baile na luta e na invasão, pois essa justiça é irmã e filha da contestação”(AGUIAR, O que é Justiça, 1987, p. 13-14; nesta edição, p. 216).

E para tomá-la nos braços e com ela evoluir no baile, há que arrostar o risco mencionado por Roberto Lyra Filho, em enunciado preservado graças ao zelo leal de Hildo Honório do Couto (O que é português brasileiro. São Paulo: Editora Brasiliense, Coleção Primeiros Passos, nº 164, 1ª edição, 1986), que guarda a autoria, Lyra morto (1986) e sem registro da afirmação, o que poderia ensejar sua indébita apropriação: “Num sistema injusto, se quisermos ser sérios temos que ser marginais”.

Tal como afirmo em meu texto, por instigação ainda mais interpelante, no atual, da leitura de O que é Justiça. Uma abordagem dialética, é a urgência de convocar a Justiça para o centro de preocupações tanto teóricas quanto políticas, é a necessidade de abertura desse objeto para interpelações que já não se enquadram nas formas típicas de uma cultura jurídico-filosófica que funcionaliza o institucional e tecniciza as aproximações analíticas, é o permitir impunimente que ela seja instrumentalizada em razão e em benefício dos autoritarismos de todos os matizes.

Essa é a questão que Roberto Aguiar propõe em uma de suas últimas leituras de atualização dos temas centrais de sua reflexão[27].  Trazendo a questão da alteridade para poder compreender o direito, Aguiar reivindica extrair das interações das subjetividades o modo de sua designação, porque para ele as relações jurídicas são sempre móveis, constituindo-se em processos permanentes de variações e transformações, sem determinações rígidas e com direcionamento variável, onde nada é linear, nem expresso por consequências necessárias de causas anteriores. É o reino da probabilidade e da bifurcação (AGUIAR, 2017: 8). Daí que, sob a perspectiva de uma juridicidade que se mova por uma normatividade emanada do nós, ele se disponha, com Lévinas, trabalhar questões candentes, teóricas e políticas que repercutam no acervo das conceituações nos campos filosófico e jurídico: quem é o outro? Como construir relações com os diferentes, os distintos? Quais as simetrias e assimetrias entre um e outro? Como a história do direito entendeu o outro? E, recuperando o fio condutor desde suas reflexões constantes de seus primeiros trabalhos: como pensar a justiça em relação à alteridade? (AGUIAR, 2017: 8).

Nesse texto, ainda com Lévinas, Roberto Aguiar (2017: 11) convicto da impossibilidade do eu se constituir eticamente sem o outro, pensa nas disposições intersubjetivas que se organizam em redes complexas de relacionamentos emancipatórios que são a potencialização da alteridade, a aceitação do outro, a admissão de que o outro está dentro do mesmo e que ele é prévio para nossa construção atitudinal e ética, o que implica a transformação dos modelos explicativos do sistema jurídico e mostra a possibilidade de construção normativa que privilegie o outro como origem e destino do direito, no interior de uma democracia cosmopolita em constante construção, mutação e reavaliação reticular (AGUIAR, 2017: 43).

É um processo que se realiza no movimento da História. Tal como em relação aos direitos humanos, que para Roberto Aguiar (2006: 12-14) têm que ser vivenciados, se fazerem fundamentais porque conquistas históricas[28], olhar a Justiça é surpreender esse movimento dialético, uma imagem de bailado cambiante que, todavia, segue uma nítida coreografia.

 Em sua tese de doutorado defendida na Faculdade de Direito da UnB, Talita Rampin parte de um mapa conceitual no qual, de modo completo, cabal, enquadra o acervo teórico e de ideias da Justiça, localiza como uma de suas fontes de leitura a concepção dialética de Roberto Aguiar, inscrita em seu livro de 1984[29].

No capítulo Olhares sobre as Justiças: teorias e ideias sobre justiça, Rampin recupera a metáfora da bailarina exibida por Roberto Aguiar (1982: 13)[30], para interpretar que na reflexão filosófica por ele proposta, o baile social é a realidade vivida no sistema capitalista. Ao personificar a ideia de justiça na figura da bailarina Aguiar remete à imagem de alguém que assume a dança como ofício e que se move conforme a música (RAMPIN, 2018: 64).

 Para Rampin,

Enquanto fenômeno social, algo que se experimenta no mundo dos fatos, na realidade social, a justiça é multifacetada, plurívoca. Enquanto ideia, a justiça pode expressar valores ou interesses derivados da correlação de forças de poder existentes em uma determinada sociedade. Enquanto teoria explicativa, a justiça pode auxiliar para a compreensão das relações de poder em um determinado contexto. Trata-se, portanto, de uma chave de análise que comporta uma variedade de significados. E é aí que Aguiar enxerga que junto ao tema (justiça) se apresenta um problema: ‘A justiça é o dever-ser da ordem para os dirigentes, o dever-ser da esperança para os oprimidos. Podendo também ser o dever-ser da forma para o conhecimento oficial, enquanto é o dever-ser da contestação para o saber crítico’(AGUIAR, 1984, p. 15).

 Atenta ao enfoque proposto por Roberto Aguiar, Rampin identifica em sua enunciação do que é justiça, a sua implicação com as práticas sociais, pois, registra Rampin, ele considera que não é possível desenvolvermos uma concepção dialética da história, do conhecimento e do homem e continuarmos a encarar a justiça como um princípio ou conjunto de princípios que pairam no absoluto de topos uranon, destacando, ainda de Aguiar, a alternativa que apresenta, vale dizer, tal como ela destaca no seu mapa das teorias (RAMPIN, 2018: 54), a da dialética social da justiça, Citando Roberto Aguiar (1984: XII), a dialética social da justiça significa tomar partido ao lado dos dominados, dos oprimidos, dos reprimidos e das minorias ou seja, passar pela mudança social, pela derrubada de poderes discricionários e pela transformação da economia em favor dos dominados.

De Roberto Aguiar, portanto, Rampin extrai o entendimento, sobre configurar a dialética social da justiça, que ela expressa nesses termos (2018: 65):

Se as justiças – e aqui flexiono o termo no plural para tornar mais evidente a pluralidade de denotações que comporta – estão em disputa, a saída dialética social é uma alternativa para desvelar a sua práxis. De fato, do campo das ciências sociais extraio mais de significado de justiça, o que dá indícios de que as teorias, os conceitos, as interpretações e os olhares sobre a justiça têm sido diversificados. Há, no mínimo, uma abertura conceitual sobre o que é justiça, fissura esta através da qual infiltram ideologias, valores interesses e usos. Oscilando entre discursos e ideias de bem estar, igualdade, propriedade, virtude, liberdade, participação e emancipação, como exemplos, o significado da justiça varia enquanto é mantido o interesse em colocá-la no horizonte interpretativo dos diversos campos das ciências e práticas sociais.

Com Aguiar, a autora participa do entendimento de que não há consenso sobre o que é justiça, sendo, contemporaneamente, um tema que desafia conhecimento e posicionamento, política e epistemologicamente, vale dizer, as atenções correntes:

A justiça está em disputa: interessa ao mercado, que a incorpora como fator incidente sobre a segurança jurídica dos contratos e a livre circulação de mercadorias; interessa ao Estado de direito, que a incorpora como vetor de orientação política, materializada em garantias para a realização da cidadania, e como instrumento de resolução de conflitos e reconhecimento de direitos e interesses, tais como o acesso aos bens jurídicos considerados essenciais para a manutenção da vida; e interessa, entre outros, às ciências, que a incorporam como objeto de investigação e buscam explicar o fenômeno desde diferentes perspectivas, metodologias e áreas de conhecimento (RAMPIN, 2018: 65).

 Assim como Talita Rampin, na sequência da dialeticidade a que remonta Roberto Aguiar, participo do entendimento de que a justiça representa a síntese de múltiplas polarizações. Com Antônio Escrivão Filho salientei que essa é uma síntese histórica entre as estratégias de luta social e a opacidade da institucionalidade de justiça, sobretudo em relação às violações e à agenda política de direitos carregada e instituída na práxis dos movimentos sociais populares (ESCRIVÃO FILHO; SOUSA JUNIOR, 2016: 151-175) Por via de consequência, é pela aspiração a uma dimensão de justiça e pela pela instituição de procedimentos de reconhecimento e acesso à  essa justiça a que se busca acesso, que direitos que ainda não tiveram força, política e social para emergir ante um sistema de opressão em determinada sociedade, e dessa forma ainda estejam situados do lado de fora de determinada ordem legal, passam a ser também acessíveis às demandas de novos sujeitos sociais. Em outras palavras, afirmamos eu próprio, Ludmila Cerqueira Correia e Antônio Escrivão Filho, trata-se de realizar as condições teóricas e políticas sobre o acesso à justiça, não a partir do que dizem as instituições e os profissionais da justiça usualmente eleitos como referencia de análise, mas a partir do que diz a rua em sua dimensão de criação e de realização política do direito e da Justiça, inspirada no programa teórico e prático de O Direito Achado na Rua (2016: 89-90).

 Ao limite, a partir de Boaventura de Sousa Santos, e com ele, cuida-se de ampliar o conceito de acesso ã justiça, considerando-a o plano mais amplo que se poderia conceber, e pensando um procedimento de tradução, ou seja, como uma estratégia de mediação capaz de criar uma inteligibilidade mútua entre experiências possíveis e disponíveis para o reconhecimento de saberes, de culturas e de práticas sociais que formam as identidades dos sujeitos que buscam superar os seus conflitos e realizar direitos, criando condições para emancipações sociais concretas de grupos sociais concretos num presente cuja injustiça é legitimada com base num maciço desperdício de experiência (SANTOS, 2004: 813-814; SANTOS, 2011, passim; SOUSA JUNIOR, 2017: 23-24)[32].

Aguiar desvela esse processo, não só no global teórico e politico quando  estuda o jurídico em suas dimensões lógicas, sintáticas e semióticas e o associa ao fenômeno da ideologia, mas igualmente no local quando, por exemplo, estudando  os problemas das incapacidades e seus fundamentos no campo do direito positivo, constata que a chave da incapacitação (e aí ele alude a todos os que são atingidos por referência a essa categoria , as pessoas físicas, crianças, idosos, mulheres, índios e loucos; como as pessoas jurídicas e, ao fim e ao cabo, trabalhadores civis e minorias) é ela não ser de tal forma estigmatizadora que retire qualquer ilusão de participação, qualquer sensação de esperança do incapacitado (AGUIAR, 1988: 6 e 110)[33]

Se Boaventura de Sousa Santos, insere essas condições numa direção que de minha parte chamo de ampliação, de alargamento e ele, de revolucionária, é nessa última acepção que Luis Alberto Warat assimila o sentido desse processo para atender as necessidades de práticas educadoras populares y callejeras, porque buscam organizar desde abajo mejores formas de convivencia que van transformando (revolucionando) todo[34]. Em projeto que preparou para assessorar a Mesa Nacional Contra o Crime e a Violência, um organismo da Sub-Comissão de Administração da Justiça (Assembléia Nacional da República Bolivariana da Venezuela), oferecendo uma proposta que denominou abreviadamente Justicia Barrio Adentro, Warat fala de uma multi-necessidadde de revolucionar, conjuntamente la educación, la política, el Derecho y los saberes institucionalmente controladores de las subjetidades, para generar otro lugar desde donde abordar la necesidad de promover políticas creadoras que potencien las energías populares y callejeras hacia nuevos horizontes de emancipación.

O que se verifica em face dessas formas instigantes de convocar a Justiça para o centro de preocupações tanto teóricas quanto políticas, é a necessidade de abertura desse objeto para interpelações que já não se enquadram nas formas típicas de uma cultura jurídico-filosófica que funcionaliza o institucional e tecniciza as aproximações analíticas. E, diz Roberto A. R. de Aguiar, nessa procura incerta e dura, mesmo assim, vislumbrar tateante procurar alcançar a libertação humana (como tarefa, porque não nascemos humanos, nos constituímos na experiência, na história, conforme Hegel) de sua situação infra-humana e participar dessa caminhada conflitiva rumo à plenitude humana.

O Autor diz na Introdução da sua tese, não pretender apontar uma solução para que o direito deixe de ser instrumento das classes dominantes, mas sim realizar um esforço para retirar o pensamento jurídico da esfera do conformismo.

Todavia, a crítica ao direito, quando feita de forma profunda, não se limita ao próprio direito. Ela extrapola o objeto para levar em conta problemas que estão conectados de forma sistêmica. Daí a ideia de totalidade que é tão cara para Lévinas e Marx. Nesse sentido parece adequado dizer que a mudança da mentalidade jurídica ocorre junto com uma mudança mais ampla de formas de viver e formas de pensar. Por isso mesmo, as referências teóricas adotadas para a crítica aqui apresentada foram aquelas que decorrem da ética levinasiana e da crítica marxista, ambas para além do direito.

O ponto de partida para a crítica foi o lugar daquelas pessoas reais que sofrem diferentes formas de privações, degradações e desigualdades imerecidas em função do lugar social que a elas foi destinado. São os sujeitos da injustiça social, que sofrem injustiças objetivas, para além do sentimento que cada um deles possa ter a esse respeito. Estas injustiças são consistentes com situações de exploração, opressão e exclusão que são estruturalmente definidas. Importante notar que não obstante constituam um setor da população mundial e nacional que seja maioria numérica, o sujeito da injustiça social é sistematicamente ocultado no âmbito da totalidade ou, então, é responsabilizado pela própria injustiça que sofre. De uma forma ou outra, esse sujeito é o fora do padrão, a diferença negada e aviltada pela ontologia alérgica à alteridade.

Diante disso, ele diz, o que se pretendeu ao logo do trabalho foi mobilizar aquelas categorias da ética e da política que são importantes para denunciar como as formas de pensar e as formas de viver que são egocêntricas e opressivas se manifestam de forma estrutural nas instituições jurídicas e políticas. Isso não significa renunciar ao direito, mas sim tomá-lo criticamente, por uma dupla razão: i) para que se possa denunciar aquilo que reproduz a totalidade no âmbito das relações jurídicas; e ii) para promover aquilo eventualmente ocorre no âmbito das relações jurídicas e que pode, ainda que pontualmente, contribuir com formas de autoemancipação do sujeito da injustiça social.

Com efeito, no debate com Roberto Lyra Filho, já referido, enquanto esse autor procurava imprimir à sua reflexão uma perspectiva dialética que permitisse romper a aporia antinômica dos pares ideológicos – jusnaturalismo e juspositivismo; e idealismo e materialismo, numa releitura do próprio Marx (LYRA FILHO, Roberto. Karl, Meu Amigo. Dialogo com Marx sobre o Direito. Porto Alegre: Sergio Fabris Editor, 1983) –, foi Marilena Chauí, certamente, a referência filosófica para a superação do obstáculo epistemológico:

Penso que o livro de Roberto Lyra Filho trabalha no sentido de superar uma antinomia paralisante: a oposição abstrata entre o positivismo jurídico e o idealismo jusnaturalista”, afirmando que: “Se o Direito diz respeito à liberdade garantida e confirmada pela lei justa, não há como esquivar-se às questões sociais e políticas onde, entre lutas e concórdias, os homens formulam concretamente as condições nas quais o Direito, como expressão histórica do justo, pode ou não realizar-se (CHAUÍ, Marilena, Roberto Lyra Filho ou da Dignidade Política do Direito”. Revista Direito e Avesso, nº 2, Brasília, 1982. Também publicado em Desordem e Processo – Estudos Jurídicos em Homenagem a Roberto Lyra Filho, Sérgio Antônio Fabris Editor, Porto Alegre, 1986)”.

Neste aspecto, aliás, os trabalhos de Marilena Chauí estabeleceram um norte seguro para a interpretação dessa ação transformadora, conduzida pela mediação do Direito, enquanto processo dentro do processo histórico.

Com efeito, é a partir da constatação derivada dos estudos acerca dos chamados novos movimentos sociais, desenvolveu-se a percepção, primeiramente elaborada pela literatura sociológica, de que o conjunto das formas de mobilização e organização das classes populares e das configurações de classes constituídas nesses movimentos, instauravam, efetivamente, práticas políticas novas, em condições de abrir espaços sociais inéditos e de revelar novos atores na cena política capazes de criar direitos (conforme SOUSA JUNIOR, José Geraldo de. Marilena Chauí: Amor à Sabedoria e Solidariedade com a Vida in PAOLI, Maria Célia (Organizadora). Diálogos com Marilena Chauí. São Paulo: Editora Barcarolla, 2011, p. 15-28).

Nessa perspectiva, assumo com o Autor da tese, que a justiça se realiza na experiência de humanização como emancipação do humano o que nos leva à necessidade de rever nossa concepção do ser humano, reavaliar seu papel, desvelar o universo de sua interioridade e recuperar a sua dignidade, uma vez que, cito Aguiar (SOUSA JUNIOR, 2011: 27), a liberdade é uma construção, uma possibilidade de ser.

 De certo modo, isso traduz aquela diretriz encontrada em Amós 5, 24: “Quero ver o direito brotar como água e correr a justiça qual riacho que não seca”. Por isso que ao proferir  a exortação de abertura de Seminário sobre Ética, Justiça e Direito, organizado pela CNBB (Conferência Nacional dos Bispos Brasileiros), em 1996, o padre Henrique Cláudio de Lima Vaz recuperou política e filosoficamente o tempo-eixo civilizatório do agir humano, acentuando as implicações que o movimento da consciência desse agir percorre, seja do ponto de vista da consciência moral subjetiva ou individual, seja do ponto de vista da consciência moral intersubjetiva ou comunitária, e que leva a estruturar  o universo ético e político-jurídico[24].

De fato, eu diria com o Autor da tese ora examinada, que tal como constata o Pe. Vaz também, é real a percepção da incompletude histórica do humano e da condição ética do agir com Justiça para emancipar-se e se realizar como projeto de si e social, projeto que não é linear e tem sobressaltos, avanços e regressos, que não é dom, é tarefa. Para o padre Vaz:

“O mundo ético não é uma dádiva da natureza. É uma dura conquista da civilização. Como também tem sido uma conquista longa e difícil o estabelecimento e a vigência do Estado Democrático de Direito. Trata-se de conquistas permanentes, sempre recomeçadas e sempre ameaçadas pela queda no amoralismo, no despotismo e na anomia. E é, sem dúvida, no campo da educação que se travam, a cada geração, as batalhas decisivas dessa luta. É aí, afinal, que as sociedades são chamadas a optar em face da alternativa onde se joga o seu destino: … a de serem sociedades da liberdade que floresce em paz ao sol do Bem e da Justiça (VAZ, 1996: 40)”.

Então, enquanto tarefa, enquanto conquista longa e difícil, aqui e agora entre nós, nesse mergulho profundo a que nos obriga o obscurantismo e o esvaziamento autoritário do espaço da política, à luz das suas categorias, qual é o horizonte de Construção da Democracia e da Justiça em Relação a Alteridade (estamos com um Fórum Social Mundial Justiça e Democracia em processo), como diriam, Lyra Filho, Aguiar, Lévinas, qual a possibilidade de emergência desse “sujeito da injustiça social ainda mais sistematicamente ocultado no âmbito da totalidade, vulnerabilizado,  responsabilizado pela própria injustiça que sofre, fora do padrão” de que trata o Candidato, ou, como diz Marilena Chauí movido para apreender o direito no campo das relações sociais e políticas entre classes, grupos e Estados diferentes e para melhor perceber as contradições entre as leis e a justiça e abrir a consciência tanto quanto a prática para a superação dessas contradições. O que nessas condições significa abrir o Direito para a História e, nessa ação, para a política transformadora? Penso que a tese de José Ricardo Cunha oferece um bom repertório de enunciados para respostas a essas questões.

 

José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil,  Professor Titular, da Universidade de Brasília,  Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua

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