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quarta-feira, 21 de julho de 2021

 

Desigualdade, Crise Sanitária e Direitos

Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito.

 

 

 

 

 

Desigualdade, Crise Sanitária e Direitos. Alexandre Bernardino Costa e Claudiane Silva Carvalho (Organizadores). Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2021, também em formato ebook (https://www.amazon.com.br/dp/B098FDSFPX/ref=cm_sw_r_wa_awdb_WNFDFWZJZ1GDG18EDXAH). Epub 1860kb

 

Este livro, dizem os Organizadores, foi escrito no ano de 2020, durante a pandemia da COVID-19, que atingiu o Brasil e o mundo. Embora seja arriscado fazer uma análise crítica da realidade enquanto estamos vivendo um momento histórico de crise mundial, ao mesmo tempo essa se torna ainda mais urgente. Tal como explicam:

 A elaboração coletiva do livro deve-se à necessidade de buscar vários pontos de vista e diversas abordagens sobre os fenômenos que estão ocorrendo. Assim, foi possível termos uma perspectiva abrangente, mas também profunda, sobre a história da epidemia e suas consequências.

A singularidade brasileira justifica análises específicas por várias razões. O Brasil se tornou um dos principais centros de proliferação da pandemia no mundo, e consequentemente foco de atenção de todos os países e da Organização Mundial da Saúde – OMS. Temos um presidente da República que está a favor do vírus, e não contra a pandemia, conforme pesquisa realizada pelo CEPEDISA – Centro de Pesquisas em Direito Sanitário, da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo – USP. Somado a isso, temos a ausência de coordenação por parte do Ministério da Saúde no enfrentamento à pandemia, o que ficou a cargo dos governadores e prefeitos.

Ademais, o presidente da República protagonizou uma disputa política com governadores, em especial com o governador de São Paulo, pela vacina, e, posteriormente, pela vacinação. Ele gerou descrédito na ciência e nas medidas eficazes de controle à pandemia.

Não houve campanha publicitária para informar a população sobre a progressão da pandemia e tampouco sobre as medidas para seu enfrentamento. Disseminou-se uma série de notícias falsas sobre um pretenso tratamento precoce a ser ministrado com hidroxicloroquina, ivermectina e azitromicina.

Também foram divulgadas notícias falsas a respeito da vacina, da própria doença e das medidas adotadas para a sua contenção. Toda essa situação descrita se assemelha aos episódios que ocorreram há mais de cem anos, durante a pandemia de gripe espanhola no Brasil.

O uso de máscaras representa um capítulo à parte, pois, o presidente e seus seguidores divulgaram que estas não eram necessárias e ainda geravam efeitos negativos para a saúde de quem as usasse. O presidente da República foi às ruas por várias vezes sem máscara, causando aglomerações e tocando nas pessoas, o que constitui uma forte propaganda contra a saúde e, por conseguinte, a favor do vírus.

O conjunto de fatos ocorridos – em um país de desigualdades abissais como o Brasil – resulta em índices de contaminação e mortes alarmantes. É necessário que sejam feitas análises acerca dos efeitos da pandemia e do desgoverno sobre a população e, consequentemente, sobre o sistema de direitos.

Também, como informam os Organizadores, as análises realizadas pelas autoras e autores, reunidos no coletivo de pesquisa liderado pelo professor Alexandre Bernardino Costa, se distribuem em três partes e respectivos capítulos que formam o Sumário do livro.

Os Organizadores oferecem na Apresentação o roteiro para a leitura:

A primeira parte traz estudos relacionados à conjuntura econômica e social do país e aos caminhos que aprofundam as desigualdades. A análise da lógica neoliberal, como a nova razão do mundo, está presente em diversos artigos como um fator que agrava as consequências e os desdobramentos da pandemia da COVID-19.

Neste sentido, Alexandre Bernardino Costa busca estabelecer a relação entre a desigualdade existente no Brasil, a política econômica neoliberal e sua conexão com a crise sanitária decorrente da pandemia da COVID-19. Em um texto estruturado em cinco partes, o autor analisa o contexto de desenvolvimento do neoliberalismo no Brasil, seus pressupostos epistemológicos, bem como a correlação entre democracia, autoritarismo e neoliberalismo. Busca demonstrar como o desenvolvimento do discurso neofascista está associado ao discurso neoliberal e apontar a relação entre neoliberalismo e saúde – como uma economia desumana – a qual foi agravada por uma pandemia e por uma sociedade profundamente desigual.

Em seguida, Claudiane Carvalho e Priscila Kavamura se propõem a analisar os reflexos das crises provocadas pela razão neoliberal e pela pandemia da COVID-19 no Brasil, concluindo que os cortes ocasionados pela Emenda do Teto de Gastos Públicos deixaram o Brasil mais vulnerável para o enfrentamento da crise sanitária provocada pelo coronavírus, pois áreas essenciais foram duramente afetadas pela referida Emenda Constitucional. Assim, a atual crise sanitária irá contribuir para o aprofundamento das desigualdades, haja vista a convergência de crises já existentes e também ao fato de a austeridade fiscal, fruto da razão neoliberal, ter sido uma das principais aliadas da COVID-19 no país.

Manuel Gándara analisa os direitos humanos e sua relação com o capitalismo a partir de uma perspectiva da economia política. O autor ressalta que os direitos humanos são vistos somente com aspectos estritamente jurídicos, ao invés de serem abordados com uma perspectiva social, política e econômica. Analisar as políticas de direitos humanos a partir das relações de poder configura uma abordagem possível e necessária para enfrentar os desafios contemporâneos.

José do Carmo Alves Siqueira e Carlos Eduardo Lemos Chaves apresentam o histórico das terras comuns e das comunidades dos fundos e fecho de pasto. Apresentam o processo de grilagem de terras públicas, ou seja, a transformação em terras privadas daquelas que eram de uso comum. Analisam também os processos mais recentes que estabeleceram marcos temporais para o reconhecimento das terras públicas, tudo isso associado à crise sanitária da atualidade.

Gladstone Leonel Júnior expõe a crise paradigmática do estado liberal frente à crítica latino-americana em tempos de crise sanitária. A pandemia trouxe à tona o esgotamento do paradigma liberal, sobretudo se pensado diante da realidade latino-americana – que passa por uma crise de proporções nunca antes vivenciadas e que afeta a economia e a organização da sociedade. Somente uma abordagem teórica a partir da América Latina possibilitará a compreensão de tamanha complexidade.

Diego Mendonça nos propõe uma discussão sobre a racionalidade neoliberal em tempos de pandemia. O artigo perpassa a formação histórica nacional com suas desigualdades e a naturalização da violência, o pós-2016 e a intensificação de práticas desconstituintes, a hegemonia de uma racionalidade neoliberal e a emergência de um vírus mortal que potencializa as ações de um governo adepto da necropolítica. Afirma o autor que a naturalização das desigualdades tem um efeito ainda maior durante a crise sanitária. A saída seria a busca do comum e o resgate da Constituição de 1988.

Pedro Pompeo Pistelli Ferreira e Gabriel Pompeo Pistelli Ferreira realizam uma pesquisa sobre a pauta e as reivindicações das elites brasileiras no momento de crise econômica, política e sanitária decorrente da pandemia da COVID-19. Ao analisarem os Diálogos pelo Brasil, gerado pela FIESP e o presidente do Supremo Tribunal Federal à época, Dias Toffoli, esclarecem os postulados neoliberais subjacentes às reivindicações dos participantes.

Por fim, Sérgio Sauer, Patrícia da Silva, Guadalupe Souza Sátiro e Cléa Anice da Mota Porto provocam uma leitura atenta e uma reflexão sobre ações, omissões, desfeitos, ilegalidades e violências do atual governo nas áreas ambiental e sociais no campo brasileiro em tempos de COVID-19. Expõem o desmantelamento das políticas sociais voltadas às populações vulnerabilizadas e o emprego da necropolítica, principalmente, na área ambiental. Revelam  que a crise sanitária tem origem estrutural e alertam para o risco de serem irreversíveis os retrocessos ocorridos em diversas áreas na gestão 2019-2022.

A segunda parte do livro tem como foco a crise sanitária e o coronavírus, trazendo artigos com análises específicas dos impactos da pandemia, principalmente no solo brasileiro.

Inicialmente, Magnus Henry da Silva Marques analisa a relação entre os entes federativos do Brasil no enfrentamento da pandemia de COVID-19 e afirma que o processo desconstituinte, iniciado mais fortemente em 2016, foi ampliado por ocasião da crise sanitária. O autor destaca que a resistência e a criação de obstáculos pelo governo federal na implementação de medidas de saúde pelos estados e municípios, constituem um federalismo conflitivo ao invés de um federalismo cooperativo, conforme disposto na Constituição Federal.

Valdirene Daufemback e João Victor Rodrigues Loureiro estabelecem uma reflexão sobre o avanço da pandemia no sistema prisional brasileiro. Segundo os autores, as prisões brasileiras não se constituem como bolhas de isolamento – como foi afirmado no início da pandemia – ao contrário, a prisão é um sistema de exclusão e estigmatização. As condições precárias e a carência do serviço de saúde no sistema penitenciário revelam acentuada desigualdade e as dificuldades para a implementação de uma política de saúde para a sociedade brasileira como um todo.

Cristina Zackseski e Julio Torrazza abordam a desigualdade no que tange à privação de liberdade – tanto para aqueles que estão no cárcere quanto para os que estão fora dele – no contexto da pandemia do COVID-19. Nossos autores desenvolvem comparações entre as pessoas privadas de liberdade por encarceramento no Brasil e na Espanha, ressaltam o confinamento que a população em geral teve que se submeter, bem como as diferenças entre as classes sociais neste confinamento. Os riscos decorrentes são o reforço da desigualdade e a naturalização do fechamento e a privação de liberdade.

Fernanda Amim Sampaio Machado aborda a relação que existe entre o direito à cidade e a crise sanitária. A pandemia revelou desigualdades estruturais nos centros urbanos brasileiros, em especial no Rio de Janeiro. Como em outros aspectos abordados pela autora, as políticas públicas implementadas por ação e omissão dos poderes públicos resultam em garantia de direitos ou em processos de exclusão nesta cidade.

Amanda de Machado Liz expõe a experiência cubana de combate à COVID-19. Nossa autora desenvolve a história do sistema de saúde pública de Cuba. O êxito no combate à pandemia decorre do alcance dos profissionais de saúde a toda a população, testagem em massa, isolamento dos infectados e permanente checagem dos sintomas. Com larga tradição em saúde pública, Cuba enfrenta a pandemia com bastante eficácia, inclusive com o desenvolvimento de pesquisas para a produção de vacinas.

Eduardo Gonçalves Rocha, Márcia Cristina Puydinger de Fazio, Amanda Inara de Brito Santana e Rozemberg Batista Dias, abordam a agricultura familiar para a garantia do direito humano a alimentação adequada em um contexto de crise sanitária. Ressaltam que o programa de aquisição de alimentos poderia ser utilizado como mecanismo de enfrentamento à crise sanitária, tanto pela questão alimentar, quanto pelo fortalecimento da agricultura familiar.

Luísa de Pinho Valle escreve com Maria André Alice dos Santos sobre a experiência agrícola lógica e o cuidado pela vida no assentamento quilombola Dandara dos Palmares, em Camamu-BA. O cenário de crise sanitária decorrente da pandemia ressaltou ainda mais a importância das práticas transformadoras realizadas pelas mulheres na comunidade. A partir de uma leitura pluriepistêmica que privilegia os ecofeminismos, a ecologia política, o pós colonialismo e a decolonialidade, apontam caminhos possíveis a serem seguidos em uma sociedade mais integrada.

Joelma Melo de Sousa e Maria Cristina P. Serafim apresentam o Ayurveda como prática integrativa, que possibilita o cuidado de si, do outro e do mundo, para que possam ser adotados cuidados básicos de saúde que tratem do corpo, das estruturas sociais, das formas de ser e existir, das comunidades e da própria terra.

A terceira e última parte aborda os direitos sob ameaça em tempos de crise sanitária, com disputas, cenários agravados pelo coronavírus e a possibilidade de responsabilização dos responsáveis pela má gestão da pandemia.

No primeiro texto dessa parte, Lauro Gurgel de Brito, oriundo de Mossoró-RN, expõe a disputa por saneamento básico em meio a pandemia e a crise sanitária. Centraliza análise na região Nordeste do país, afirmando o direito ao abastecimento de água potável e ao esgotamento sanitário. Utiliza-se de dados do Instituto Brasileiro de Geografia Estatística – IBGE, para afirmar que o agravamento da crise sanitária na região, bem como os problemas sociais dela decorrentes tem como causa a privatização e mercantilização da água e do saneamento.

Diogo Bacha e Silva e José Ribas Vieira fazem uma reflexão e análise jurídico-crítica sobre a crise sanitária a partir dos argumentos da filosofia da libertação latino-americana, com aportes teóricos da modernidade/colonialidade. Ao analisarem a atuação do Supremo Tribunal Federal na pandemia, os autores revelam os bloqueios institucionais que resultam em um totalitarismo no tecido social.

Bruno Fischgold e Larissa Benevides desenvolvem uma pesquisa acurada sobre a responsabilidade civil pelos danos causados à população brasileira pela gestão inadequada da política de saúde pública no combate a pandemia de COVID-19. A conclusão do trabalho é que, uma vez comprovado o nexo causal entre o contágio e a conduta do Governo, com os danos decorrentes, o Estado responderá pelos prejuízos causados aos cidadãos e seus familiares.

Diego Augusto Diehl, Aridiane Alves Ribeiro e Helga Maria Martins de Paula desenvolvem seu texto abordando a crise sanitária, com enfoque nos dados referentes à contaminação e morte de mulheres gestantes e puérperas. Afirmam os autores que existe, por parte do governo federal, uma necropolítica em relação a populações vulnerabilizadas e buscam identificar quais seriam as populações consideradas “descartáveis”. Identificam ainda os critérios definidos tanto pela economia política quanto por aspectos raciais que se manifestam nos índices de mortalidade de pessoas negras, incluindo o caso das gestantes.

Por fim, o trabalho de Christian Caubet e Maria Lúcia Brezinski desenvolve uma análise sobre o papel do desenvolvimento econômico na sociedade contemporânea, seus efeitos nas comunidades e na natureza, tendo como exemplo os desastres na exploração mineral da Vale do Rio Doce e os impactos dessa mentalidade na destruição do planeta terra. Os enfoques teóricos são retirados da teoria sociológica de Pierre Bourdieu.

A convite dos Organizadores, eu e minha colega Talita Tatiana Dias Rampin fizemos o Prefácio do livro, numa abordagem atenta Á orientação crítica presente na obra, que foi por nós inscrita na consigna: “Somos todos culpados”.

Inspirou-nos, não fosse essa uma produção cultivada no solo acadêmico da UnB, às vésperas do centenário de seu Darcy Ribeiro, cujas reflexões sobre os desafios que precisamos enfrentar, tendo “O Brasil como um problema”, ainda persistem.

Assim é que dissemos no Prefácio, que quando Darcy Ribeiro, na década de 1990, escreveu o texto intitulado “Somos todos culpados”, que inclusive foi reeditado em 2010, pela Fundação Darcy Ribeiro e pela Editora Universidade de Brasília, ele utilizou a primeira pessoa do plural (somos) para tratar da “nossa elite”, ou seja, da elite brasileira, e denunciar o papel por ela desempenhado na manutenção das desigualdades. Segundo ele, “A característica mais nítida da sociedade brasileira é a desigualdade social que se expressa no altíssimo grau de irresponsabilidade social das elites e na distância que separa os ricos dos pobres, com imensa barreira de indiferença dos poderosos e de pavor dos oprimidos”.

De desigualdade trata o livro e, com Darcy, pensando em uma desigualdade que tem direta relação com a ordem econômica vigente e que, segundo ele, “nada mais tem a dar ao Brasil, senão miséria e mais miséria”.

Uma desigualdade que pode – e deve – ser enfrentada e superada, mas que, por escolha política, segue moldando a sociedade e servindo ao neoliberalismo.

A atualidade dessas reflexões expressa a visualização de questões estruturais que atravessam a realidade brasileira e que, no contexto da pandemia da COVID-19, ganharam uma nova tônica, dado as dimensões que a crise sanitária adquiriu em nosso contexto. “A situação do Brasil é tão grave que só se pode caracterizar a política econômica vigente como genocida”, afirmou o autor, na década de 1990. Retirado de seu contexto original, é plenamente aplicável aos dias de hoje.

Nesta obra, “Desigualdade, crise sanitária e direitos”, os Organizadores, as autoras e os autores, em seu conjunto, promovem uma análise bastante precisa sobre os caminhos que foram sendo percorridos, no Brasil, para alcançar uma compreensão integral das crises que estamos vivenciando. No percurso, partem de uma análise da conjuntura econômica e social, para, na sequência, denunciar os diferentes aspectos das crises relacionadas à saúde e aos direitos.

A pandemia intensificou amplos processos de violações e violências que historicamente vimos serem praticados, ao ser contexto e pretexto para a implementação de políticas que não dedicaram esforços a salvar vidas ou prevenir o contágio. Em nosso país, infelizmente, ela encontrou um cenário político e econômico perfeito para viabilizar a demonstração de toda a sua força devastadora, com a intensificação do desempregado, da fome e da morte. Encontrou, retomando a expressão adotada pelas autoras Claudiane Silva Carvalho, que também organiza a obra, e Priscila Moura, a “tempestade perfeita”, “haja vista as inúmeras crises que se sucedem e se entrelaçam, causando uma situação de caos sem precedentes.” Inclusive, enquanto escrevemos este texto, quase meio milhão de brasileiras e brasileiros morreram em virtude da COVID-19.

“A crise sanitária tem origem estrutural”, alertam a organizadora e o organizador da obra. Consonante a isso, dissemos em obra que organizamos juntamente com o colega Alberto Amaral, “que em uma realidade marcada por profundas desigualdades na distribuição de renda e elitização, que permite que uma minoria detentora de capital tenha a possibilidade de se afastar de espaços de aglomeração, ainda que temporariamente – já que muitos simplesmente assim não o fizeram, seja porque possuem recursos e privilégios suficientes para acessarem meios de manterem o negacionismo científico e a desconsideração humana, que é diariamente reafirmado por discursos exaltados, infantis, pueris e tresloucados de determinados representantes estatais, que lograram êxito a partir do nada, do absurdo, do irracional -, outra integrada por grupos sociais excluídos, marginalizados, constituído pela classe trabalhadora, segue em relações profundamente marcadas pela precarização e negação da vida, subordinados que estão à obrigação de se exporem e transitarem em períodos pandêmicos para assegurar renda mínima pessoal e para sua família. Isso sem mencionar a seletividade no recorte do acesso aos novos espaços de convivência social, que ainda se apresentam distantes para as populações mais pobres, tecnológica e economicamente (cf. nosso Direitos Humanos & Covid19. Grupos Sociais Marginalizados e o Contexto da Pandemia. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2021, p. 23-24).

Esse quadro se agudiza, mostram os estudos reunidos nesta obra, num quadro de austeridade econômica que, mais que uma elegância semântica para amansar a voracidade do sistema de acumulação, alimenta “o engenho de moer gentes”, voltando a Darcy Ribeiro, que coisifica o humano e mercadoriza a vida.

Nesse contexto, até a governamentalidade que parece um placebo eficiente para ocultar a voracidade do capital no fundo, representa uma complexa combinação entre o arcaico e o moderno, tomadas essas expressões em sentido sociológico. Algo que foi bem representado por Thiago Arruda Queiroz Lima em tese defendida no programa interinstitucional de doutorado UnB/UFERSA, aliás, sob a orientação do professor Alexandre Bernardino Costa (a tese transformada em livro, intitulado “Neoliberalização da Justiça no Brasil: Modo Governamental de Subjetivação, Dispositivo Jurisdicional de Exceção e a Constituição como Custo”, publicado pela Editora Lumen Juris, em 2020).

Para o autor, “contida nas reflexões sobre penalidade e governo e sobre a relação entre as tecnologias de poder trazidas ao longo da tese, é importante e mesmo indispensável, para que não se tome a razão neoliberal como uma marcha iluminista ao progresso ou como uma produção indefinida de liberdade e liberalização. É sob uma espiral de modernização do arcaico e de arcaização do moderno que a governamentalidade se reproduz através da neoliberalização da justiça. Em outras palavras, é também multiplicando a penalidade, a exceção soberana e o autoritarismo judicial que a racionalidade neoliberal realiza seus pretensamente modernizadores cálculos de eficiência”.

No livro, na reflexão do próprio professor Alexandre Bernardino Costa, autor e co-organizador da obra, busca-se “estabelecer a relação entre a desigualdade existente no Brasil, a política econômica neoliberal e sua conexão com a crise sanitária decorrente da pandemia da COVID-19”. Ele analisa o contexto de desenvolvimento do neoliberalismo no Brasil, seus pressupostos epistemológicos, bem como a correlação entre democracia, autoritarismo e neoliberalismo, de modo a demonstrar como o desenvolvimento do discurso neofascista está associado ao discurso neoliberal e apontar a relação entre neoliberalismo e saúde – como uma economia desumana – a qual foi agravada por uma pandemia e por uma sociedade profundamente desigual.

Isso isenta a rendição conformista a esse estado de coisas?

Cremos que não, afirmamos Talita Rampin e eu no Prefácio. Identificar ou reconhecer as causas não se confunde em render-se a elas ou seus efeitos. Com as autoras e autores da obra, devemos ousar refletir sobre os problemas que assolam a população, construir alternativas políticas e econômicas para a superação do cenário atual, e questionar, ecoando Darcy Ribeiro, “que culpa temos, enquanto classe dominante, no sacrifício e no sofrimento do povo brasileiro. Somos inocentes? Quem, letrado, não tem culpa neste País dos analfabetos? Quem, rico, está isento de responsabilidades neste País da miséria? Quem, saciado e farto, é inocente neste País da fome?”.

Sob diferentes abordagens, a presente obra coletiva trata a pandemia da COVID-19 e sua desastrosa gestão no Brasil, trazendo um histórico do que está ocorrendo no país, dá subsídios para estudos futuros, haja vista que, infelizmente, o fim dessa enorme crise sanitária não parece estar próximo. Mas, sobretudo ativa uma consciência infeliz a partir do social e da exigência de responsabilidade que a todos convoca, sob pena de não podermos nos dizer inocentes no atual, diante das interpelações agudas que nos faz Darcy Ribeiro.

 

 

 

José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil,  Professor Titular, da Universidade de Brasília,  Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua.

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