Desbolsonarizar a
democracia, desmorizar a justiça
Boaventura
de Sousa Santos
Nas
sociedades contemporâneas a fabricação da actualidade política é tão intensa
quanto evanescente, tão dramática quanto efémera. Como não aceita mais que um
tópico no topo da actualidade, não permite fazer relações entre diferentes
temas, nem estabelecer hierarquia entre eles. Neste momento, a actualidade
política brasileira é a iminente queda de Bolsonaro e a equação que ela oferece
é óbvia: Bolsonaro cai, salva-se a democracia.
Esta
equação é tão simples quanto traiçoeira. Oculta mais perguntas do que aquelas a
que responde. O que cai quando cai Bolsonaro? Bolsonaro cai no abismo ou na
almofada do “sector privado” (como Sérgio Moro)? Cai Bolsonaro ou o
bolsonarismo? Cai o indivíduo Jair Bolsonaro ou o clã Bolsonaro? Que democracia
se salva com a queda de Bolsonaro? Em que estado se encontra? Sofreu alguma
incapacidade permanente? Pode ser desbolsonarizada? Há vacinas eficazes contra
o bolsonarismo? Quais as variantes deste vírus? Vai o Brasil estar sujeito a
bolsonarites sazonais? Neste contexto, a tarefa dos democratas é fazer uma
sociologia das questões ausentes da actualidade – questões omitidas, presentes
sob disfarce, ou apresentadas como pertencendo ao “novo ciclo”. Entre muitas
outras possíveis, refiro duas.
Bolsonaro
ou Moro? A primeira pode formular-se assim: Bolsonaro é a causa da crise
actual? Ou a consequência de quem a quis provocar para outros objectivos? Não
tenho dúvidas em afirmar que Bolsonaro é mais consequência do que causa e que,
nessa medida, a sua queda, apesar de ser urgente, não deve deixar os democratas
descansados.
Ao
longo dos últimos setenta anos, os EUA lançaram quatro guerras globais, cada
uma delas considerada permanente contra inimigos da democracia. Por ordem
cronológica: a guerra contra o comunismo, a guerra contra as drogas, a guerra
contra o terrorismo, a guerra contra a corrupção. Com excepção da primeira,
estas guerras foram declaradas contra inimigos aparentemente não ideológicos
contra os quais é fácil obter consensos alargados. Todas estas guerras foram
eficazes, mas para atingirem outros objectivos que não os publicitados. Nem o
comunismo, nem as drogas, nem o terrorismo, nem a corrupção foram eliminados,
nem era esse o objetivo. O objectivo era, e continua a ser, o de submeter os
países aos interesses geopolíticos e económicos dos EUA.
Desde
2014, o Brasil tem vindo a ser objecto de uma das interferências mais invasivas
por parte dos EUA no sentido de obrigar um país ao alinhamento incondicional.
Muito está em causa: os BRICS, a influência da China, a concorrência das
grandes empresas brasileiras, o controlo dos hidrocarbonetos, a Amazônia. Como sabemos,
a arma privilegiada foi o sistema judicial e a lawfare.
A
lawfare tem sido usada ao longo da história, e os povos indígenas e
afrodescendentes conhecem isso muito bem. A versão usada agora no Brasil teve
traços específicos devido à colaboração dos grandes media e ao protagonismo
político de Sérgio Moro. Pode mesmo falar-se de um tipo especial de justiça
manipulada, a justiça morizada. A luta contra a corrupção é um serviço precioso
à democracia quando não é politicamente selectiva e actua no marco da lei. Nada
disto é possível no caso da justiça morizada.
Do
ponto de vista dos interesses dos EUA, a operação Lava-jato foi um enorme
sucesso e o seu autor foi Moro. Daí que ele seja o seu homem de confiança ou
candidato nos próximos anos. Por Moro estar transitoriamente desmascarado,
é-lhe oferecido um exílio dourado, e é-lhe concedido desde já o privilégio de
ser um especialista da Amazônia em reuniões promovidas pela embaixada
norte-americana.
Os
EUA sabem que, no caso do Brasil, não há democracia bolsonarizada sem justiça
morizada. Se alguém tiver de cair, que seja Bolsonaro, não Moro. Explica-se
assim o interesse da direita nacional e internacional em continuar a
propagandear Moro como o grande campeão da luta contra a corrupção. Enquanto
Moro não for criminalizado pelas graves ilegalidades cometidas e se mantiver
activo na política, os democratas brasileiros não podem estar descansados. Não
será preocupante que os argumentos jurídicos apresentados no STF em 2016 só
tenham tido resposta adequada em 2021?
O
novo ciclo? O neoliberalismo desertificou a política ao privá-la de
alternativas reais. Tanto a direita como a esquerda foram duramente afectadas.
Às direitas foi exigido que promovessem exclusivamente os interesses do capital
nacional e/ou estrangeiro, enquanto às esquerdas foi exigido que mantivessem as
maiorias empobrecidas sob controle, fazendo, se necessário, concessões, desde
que não significassem prejuízos maiores para os interesses do capital. Quando
as esquerdas desobedeceram, foram consideradas radicais e inimigas da
democracia. Logicamente, as esquerdas foram as primeiras a aperceber-se da
armadilha em que tinham caído, e daí que novas lideranças tenham vindo a
emergir, talvez não menos pragmáticas, mas certamente menos inocentes. As direitas
foram de tal modo devastadas que a certa altura o capitalismo deixou de confiar
nos políticos profissionais e procurou entregar o poder aos empresários, fossem
eles Donald Trump ou Maurício Macri.
No
caso do Brasil, enquanto as elites brasileiras continuarem a mandar
incontestadas, não haverá novos ciclos. Haverá apenas reciclagens. A devastação
da política de direita é de tal ordem que é preciso inventar empresários
(Sérgio Moro) ou ir buscar líderes à esquerda. De modo algo patético, Fernando
Henrique Cardoso, ansioso por recuperar o seu lugar (qual? eis a questão) na
história do Brasil que julgou ameaçado por Lula da Silva, deu a mão ao
concorrente que foi vítima da justiça morizada para o neutralizar duplamente.
Primeiro, para lhe dizer que ele afinal nem é de esquerda, ou seja, que é um
filho adoptivo das elites; depois, para lhe dizer que, nessa qualidade, deve
obedecer ao que elas exigem dele neste momento: que não seja candidato.
As
direitas sabem que o Brasil vive um momento de polarização criado pelo seu
próprio desvario. Como a polarização é inevitável, querem privá-la de quem
melhor pode beneficiar dela, Lula da Silva. Como Lula, segundo ele próprio diz,
aprendeu muito durante os dezoito meses que esteve preso, é de confiar que
esteja plenamente consciente da armadilha.
Boaventura de Sousa
Santos é sociólogo e poeta. É professor Catedrático Jubilado da Faculdade de
Economia da Universidade de Coimbra e Distinguished Legal Scholar da Faculdade
de Direito da Universidade de Wisconsin-Madison e Global Legal Scholar da
Universidade de Warwick. É Diretor Emérito do Centro de Estudos Sociais da
Universidade de Coimbra e Coordenador Científico do Observatório Permanente da
Justiça. Tem trabalhos publicados sobre globalização, sociologia do direito,
epistemologia, democracia e direitos humanos.
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