O Direito Achado na Rua: nossa conquista é do tamanho da nossa luta

quinta-feira, 26 de outubro de 2017

Tribunal da inquisição na modernidade: racismo religioso e inconstitucionalidade do Termo de Ajuste de Conduta do Ministério Público Federa

                                        Luciana de Souza Ramos (1)

        É comum escutarmos sobre as mazelas da escravidão e dos processos violentos e opressivos da colonização como fatos passados. Pensando-os como passado cria-se um conforto social, para os não negros e para o estado, de que já não vivenciamos os infortúnios de sermos negros escravizados na contemporaneidade.
É importante, de início, construir um marco epistemológico distinto sobre o “tempo”, pois o tempo ocidental e moderno é completamente distinto e violento do tempo dos povos diaspóricos, assim, passado para nós não encerra a construção social racista e discriminatória vivenciada há mais de 500 anos. Passado e presente são a expressão real da desumanização e classificação racial do nosso povo e de um racismo travestido de democracia.
Não esperem, portanto, que este texto, seja um conforto social para as opressões e racismo que vivenciamos principalmente por um Judiciário, ou por uma (in)Justiça, que tem sido instrumento e sujeito para manutenção de um estado racista.
No último dia 24 de outubro, o Conselho Nacional do Ministério Público realizou uma sessão para discussão e votação de um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) para “regularizar” os limites sonoros durante os cultos e liturgias das religiões de matriz africana em Santa Luzia (MG).
De acordo com o TAC e informe do Centro Nacional de Africanidade e Resistência Afro-brasileira (CENARAB) “a casa poderia executar as atividades somente nas quartas-feiras e em único sábado do mês, utilizando apenas um atabaque”.
Ademais, o referido TAC impõe uma multa diária pelo descumprimento de R$ 100,00 (cem reais), inclusive com punição para práticas de culto silenciosas fora dos dias estipulados no referido Termo.
Temos vivenciado um acirramento nos últimos tempos de perseguições, sejam físicas, seja político-judiciárias, às religiões de matriz africana no Brasil. Muitos debates têm girado em torno de dois grandes pontos. O primeiro ponto é sobre a laicidade do estado, ou seja, um país que declara constitucionalmente ser um Estado sem um vínculo confessional com qualquer religião, na prática tem se revelado como um Estado confessional cristão.
Segundo, pela presença de segmentos evangélicos extremistas, particularmente, os neopentecostais, nos espaços políticos do estado, a dizer, dentro dos poderes legislativo, executivo e judiciário, que vomitam nas suas práticas públicas, dogmas religiosos e alianças econômicas, constituindo-se em verdadeiros Tribunais Inquisitoriais e Cruzadas contra as religiões afro.
Neste texto privilegiarei o primeiro ponto, pois não é objetivo deste texto, trabalhar o papel dos neopentecostais, embora central para nossa discussão, mas importante para mim é refletir o papel do Judiciário, dentro do Estado Democrático de direito, na construção e manutenção do racismo religioso e manutenção de um estado confessional católico.
Assim, fundamental perguntar sobre até que ponto, embora não acredite na neutralidade, o Judiciário que se diz e se camufla como um espaço neutro tem sido um espaço de proteção aos direitos fundamentais constitucionais? Em que medida, a “neutralidade” não está imbuída de dogma religioso, por uma cultura religiosa cristã? Em que medida, para manutenção do estado democrático de Direito, o Judiciário tem sido o capitão do mato na captura e regularização cosmológica dos “selvagens”?
Alguns fatos podem nos ajudar a refletir sobre os questionamentos acima.
Recentemente, o Supremo Tribunal Federal (STF) realizou julgamento sobre Ensino religioso nas escolas. O referido julgamento é uma expressão importante na compreensão da “neutralidade”  do Judiciário e sua impregnação dentro de uma cultura cristã. A maioria dos Ministros afirmou que o ensino confessional nas escolas deve existir. Num país onde a cristandade é forte como cultura e como estrutura estatal desde o tempo colônia, a decisão reflete verdadeira inconstitucionalidade:

Segundo Gilmar, neutralidade não é o mesmo que indiferença, e a religião é importante para a formação da sociedade. “Nem preciso dizer que a outra proposta retira o sentido da própria norma constante do texto constitucional. Ensino religioso passa a ser filosofia, passa a ser sociologia das religiões, deixa de representar o ensino religioso.
Dias Toffoli também acompanhou a divergência e disse que não há uma separação total entre Estado e religião. Lewandowski também votou pela possibilidade de professores pregarem a religião em sala de aula, mas ressalvou que não deve haver qualquer tipo de discriminação com alunos de outras crenças.”[2]

Outro caso importante foi da Justiça Federal no Rio de Janeiro emitiu uma sentença que considera que os cultos afro-brasileiros não fazem parte de uma religião. O juiz Eugênio Rosa de Araújo, da 17ª Vara Federal do Rio de Janeiro, entende que há a necessidade de um texto base - uma Bíblia Sagrada, Torá ou Alcorão, por exemplo -, e que deve existir uma estrutura hierárquica, com um deus a ser venerado, para que se constitua uma religião.
Importante destacar parte da Sentença:

Em relação à retirada dos vídeos, bem como o fornecimento do IP dos divulgadores, indefiro a antecipação da tutela, com base nos seguintes argumentos. Com efeito, a retirada dos vídeos referentes a opiniões da igreja Universal sobre a crença afro-brasileira envolve a concorrência não a colidência entre alguns direitos fundamentais, dentre os quais destaco: Liberdade de opinião;  Liberdade de reunião;  Liberdade de religião. Começo por delimitar o campo semântico de liberdade, o qual se insere no espaço de atuação livre de intervenção estatal e de terceiros. No caso, ambas manifestações de religiosidade não contêm os traços necessários de uma religião a saber, um texto base (corão, bíblia etc) ausência de estrutura hierárquica e ausência de um Deus a ser venerado. Não se vai entrar, neste momento, no pantanoso campo do que venha a ser religião, apenas, para ao exame da tutela, não se apresenta malferimento de um sistema de fé. As manifestações religiosas afro-brasileiras não se constituem em religiões, muito menos os vídeos contidos no Google refletem um sistema de crença  são de mau gosto, mas são manifestações de livre expressão de opinião.[3]

Alguns podem estar me questionando que nada tem a ver tribunais de inquisição ou tribunais do santo ofício com os espaços de perseguição e violência contra as religiões de matriz africana na contemporaneidade. Não é verdade? Recordemos a tempo e a história.
O Tribunal do Santo Oficio criado nos fins da Idade Média, tinha por função combater qualquer tipo de manifestação que representasse uma ameaça contra a hegemonia dogmática católica e a hegemonia colonial.[4] Os Tribunais da Inquisição foram um importante aliado colonial e estruturalmente desenvolvido para opressão dos ditos “selvagens”, e, principalmente, para retirá-los de seus territórios e enfraquecê-los enquanto pessoas. Aprisioná-los e açoitá-los pela diferença. Verdadeiros capitães do mato.
O que temos vivenciado nos últimos dias, com o TAC e com o julgamento, por exemplo, pelo STF do ensino religioso nas escolas, permite-nos influir que o Judiciário tem sido um Tribunal da inquisição contemporâneo, que embora não declare sentenças de morte e de penas físicas, assevera entendimentos racistas e confessionais cristãos, que fortalecem práticas racistas de violência e discriminação.
O referido TAC e a discussão na última terça-feira reflete justamente esse lugar de perseguição religiosa às religiões de matriz africana. O desconhecimento da teologia afro, oral, da magia, da ancestralidade, da coletividade, do respeito aos mais velhos, da relação do ser com a natureza – que inclusive não cabe na categorização “sujeito de direito” – constituindo o ser Muntu vem assinalado na proibição do uso dos atabaques, na limitação dos dias para nossos atos espirituais e de fé e pelo nosso silêncio.
A retórica da neutralidade e justiça são racistas!
A neutralidade a favor da barbárie. A neutralidade travestida de justiça. A neutralidade que persegue. A neutralidade que é incapaz de enxergar seus privilégios. A neutralidade que evidencia inconstitucionalidades em prol de um grupo cristão. Neutralidade que tem sido fundamental para manutenção e reforço do racismo contra religiões de matriz africana.
Temos um Judiciário cada dia mais colonizado, branco, ocidental, liberal e lócus de injustiças contra a população negra no Brasil, por ser incapaz de refletir os privilégios que sempre construiu em prol do racismo e da opressão.
Judiciário que reflete Themis e não Xangô!!!!





[1] Advogada popular. Membro do Instituto fará Imorá odé. Doutoranda em Direito pela UNB.
[2]Disponívelem:https://www.em.com.br/app/noticia/politica/2017/09/22/interna_politica,902589/virada-no-stf-e-a-favor-de-ensino-religioso-confessional-nas-escolas.shtml
[3] Disponível em: http://odia.ig.com.br/noticia/brasil/2014-05-16/justica-federal-define-que-cultos-afro-brasileiros-nao-sao-religiao.html

[4] Seria ingênuo pensar que Igreja Católica na sua missão clerical e de fé tinha na salvação apenas a dimensão espiritual de sanar da ignorância e trazer para o reino de Deus “os selvagens”.

sexta-feira, 13 de outubro de 2017

Cartas de Oviedo. Ou seriam cartas de Catalunha? O referendo da discórdia.



Por Patricia Becker*

Manda o bom senso que quando não se sabe alguma coisa o melhor remédio é dizer simplesmente “não sei”. Escrevo esta carta para dizer que não sei e não entendo o que ocorre atualmente em Catalunha.

Desconheço as causas do independentismo Catalão assim como desconheço o processo histórico de formação territorial do Estado espanhol, que remonta um sem fim de disputas, rebeliões, reinados, guerras, conquistas e reconquistas ao longo de séculos e mais séculos de história. Me impressionou muito, portanto, a emergência de tantos especialistas nas minhas redes sociais durante os conflitos envolvendo o referendo 1-O. Entre minhas ignorâncias, tenho apenas algumas desconfianças: comparar o independentismo nacionalista Catalão com o processo de independência de Portugal é anacrônico. Me parece que comparar acontecimentos históricos de um período em que ainda não existia uma ideia de nação com um independentismo nacionalista contemporâneo, não seja uma leitura razoável. Ainda que existam acontecimentos que se cruzam em uma história remota.

Dentre os argumentos a favor da independência catalã, o que mais simpatizo é aquele que visa combater a monarquia. Entretanto, estou certa de que os espanhóis republicanos que desejam uma transformação política profunda não moram somente na Catalunha. Tive o prazer de conhecer muitos deles por todas as partes. Seria a independência Catalã uma solução para os problemas da coroa, da democracia espanhola, ou da crise pós 2008? Tenho algumas dúvidas.

Mas como não sou especialista no assunto, me dou o direito de palpitar assim como faria qualquer pessoa sentada em um bar. E como se diz aqui em Espanha, “voy directo al grano”: meu problema com o tema é que não gosto de nacionalismos. Nem espanhóis, nem catalãs, nem brasileiros. Tenho certa dificuldade de simpatizar com sentimentos nacionais, mas tento sempre me perguntar “de onde vem” o dito nacionalismo: vem de cima ou vem de baixo? Nesse sentido, estou plenamente consciente que um nacionalismo vindo dos Estados Unidos não possui o mesmo poder e nuance política de um nacionalismo vindo da Bolívia, por exemplo. Contextualizar é preciso, logicamente. Entretanto, no que diz respeito à Catalunha, continuo sem entender: afinal de contas, vem de cima ou vem de baixo? Ou ainda, seria possível que um nacionalismo venha realmente de baixo?

Sem tanta fama, o movimento “O Sul é meu país” realizou um plebiscito informal no Rio Grande do Sul em 07 de outubro de 2017 para saber se a população quer se separar do Brasil. Parece piada pronta, mas não é. O movimento se baseia em razões históricas que remontam rebeliões do período imperial, bem como a formação étnica e cultural da região. Entre um dos argumentos, está a tributação: segundo militantes da causa, o sul do país “dá mais do que recebe”, devendo sustentar regiões mais pobres do país. Este nacionalismo vem de cima.

Queria poder ver a questão da Catalunha com a mesma nitidez com que vejo o separatismo do sul do Brasil. Mas não é assim tão fácil. Na Catalunha existem movimentos independentistas consistentemente de esquerda e de direita. Os de esquerda, costumam amparar-se no direito à “autodeterminação dos povos”, na luta contra a monarquia, na preservação da cultura. Já os de direita costumam utilizar argumentos econômicos, além dos culturais, visto que Catalunha é uma das regiões mais ricas da Espanha que constantemente afirma estar sofrendo injustiças políticas e tributárias. Alguns especialistas apontam que o problema consiste no fato de que Catalunha possui um grande poder econômico, mas não consegue ter um poder político equivalente a nível nacional. Haveria então, sugerem, que equilibrar essa balança. Parece que na lógica da política atual quem tem mais dinheiro deveria mandar mais.

Sobre as problemáticas culturais, tenho também outras desconfianças. Possuir um idioma comum e, supostamente, uma cultura comum dá o direito ou cria a necessidade de formar um Estado? O conceito clássico de nação - um povo com origens étnicas, culturais e linguísticas em comum que compartilham um território - ainda tem validez nos tempos atuais? Barcelona, capital catalã, é um exemplo emblemático do caldeirão cultural, linguístico, migrante, extra-europeu, que abunda Europa. Europa continua sendo europeia? Ou vivemos hoje em Estados multi-transculturais, de alta circulação de pessoas e culturas?  Qual é a voz dos imigrantes no novo país catalão?

Apenas perguntas. Apenas especulações. A questão é tão complexa que chego a ter medo de manifestar qualquer pensamento sobre ela, e o clima por aqui não é de grande estímulo ao debate. Existem muitas nuances. A falta de diálogo do governo do PP, o agravamento da crise diante da violência da Polícia Nacional, as evidentes violações de direitos, incluindo os de liberdade de expressão e de organização. A previsão legal de um referendo consultivo versus a proibição constitucional de fragmentação do território. A legalidade do referendo versus o direito de desobediência civil. O estatuto das Autonomias em Espanha. Etc.

Entre o independentismo de Catalunha e a unidade espanhola, eu fico com a luta imigrante. Ao menos essa eu tenho certeza que vem de baixo.

*Patrícia Vilanova Becker, integra o Grupo de Pesquisa O Direito Achado na Rua; mestranda em Direito pela UnB, mestre pelo Master´s Degree in Women's and Gender Studies (Gemma) pela Universidade de Bolonha e Universidade de Oviedo. Doutoranda em Género y Diversidad pela Universidad de Oviedo.

domingo, 8 de outubro de 2017

Para um debate teórico-conceitual e político sobre os direitos humanos (Resenha)




ESCRIVÃO FILHO, Antonio; SOUSA JUNIOR, José Geraldo de. Para um debate teórico-conceitual e político sobre os direitos humanos. 1. ed. Belo Horizonte: D’Plácido, 2016. Coleção Direito e Justiça. 256 p.

                                                                         Marina Araújo Teixeira[1]



            Obra fundamental para a compreensão da complexidade em torno à temática dos direitos humanos, o debate nela proposto visa a determinar a importância das lutas sociais na conquista e efetivação desses direitos através da superação da concepção formalista e redutora do positivismo moderno, ainda muito evidente nos campos teórico e prático do Direito. Os autores, influentes juristas contemporâneos, aproximam as leituras de Roberto Lyra Filho no contexto doutrinário de O Direito Achado na Rua à elaboração de direitos para a emancipação e liberdade dos excluídos da organização de poder hegemonicamente colonizadora, branca e masculina. Nesse sentido, Antonio Escrivão Filho imprime nas páginas sua vasta experiência enquanto advogado popular, ativista pela organização Terra de Direitos e a Articulação Justiça e Direitos Humanos - JusDH, pesquisador e docente, principalmente em relação a sua atuação em meio aos movimentos sociais de luta pela terra e pela democratização do acesso à justiça, sendo fundamental sua análise quanto à importância da identificação e da superação da herança colonialista e da grande propriedade rural como determinante para a estrutura institucional brasileira, com especial atenção ao Judiciário, de caráter evidentemente elitista e tecnocrata. A coautoria de José Geraldo de Sousa Junior engrandece ainda mais a publicação editorial. Membro da Nova Escola Jurídica Brasileira, foi o reitor – gestão do período de 2008 a 2012 - responsável pela revitalização da Universidade de Brasília e fundador do projeto político-teórico de O Direito Achado na Rua, inovadora epistemologia reconhecida e certificada pela Plataforma Lattes de Grupos de Pesquisa do CNPq como linha de pesquisa, que permite pensar uma nova práxis do Direito, visto como liberdade e possibilidade de transformação dos espaços públicos. Dentre as inúmeras contribuições de Sousa Junior ao texto, destaca-se, além da construção de uma noção de Direitos Humanos Achados na Rua como base fundamentadora analítica precípua, a tradução de sua experiência enquanto um dos maiores incentivadores da implementação da extensão nos cursos jurídicos no Brasil, pela criação dos Núcleos de Assessoria Jurídica Popular Universitária - Najups, os quais prestam assistência e assessoria gratuita a indivíduos hipossuficientes e movimentos sociais, como uma das formas de colaborar para o aumento e a expansão do acesso à justiça pelas minorias oprimidas pela violência real e simbólica ainda presente nos regimes de enunciado democrático.
            O livro importa um projeto idealizado pelos autores inicialmente destinado à elaboração de um plano de curso introdutório para a Especialização em Gestão de Políticas Públicas de Direitos Humanos da Escola Nacional de Administração Pública – ENAP/MPOG, ministrado entre 2013 e 2015, na cidade de Brasília, e tendo como público alvo “agentes públicos federais do sistema de promoção e proteção dos direitos humanos” (ESCRIVÃO FILHO; SOUSA JUNIOR, 2016, p. 9). A interlocução desse modo estabelecida foi mantida até a publicação oficial então analisada, tendo sido colocada ao debate público, ainda, no Seminário Nacional “Os Direitos Humanos como um projeto de sociedade: desafios para as dimensões política, socioeconômica, ética, cultural, jurídica e socioambiental”, organizado pela Faculdade de Direito da Escola Superior Dom Helder Câmara, no ano de 2013, em Belo Horizonte, bem como nas disciplinas “O Direito Achado na Rua” e “Direitos Humanos: Fundamentos Teóricos”, ministradas paras os Programas de Pós-Graduação em Direito e em Direitos Humanos e Cidadania, respectivamente, da Faculdade de Direito e do Centro de Estudos Avançados Multidisciplinares – CEAM – da Universidade de Brasília. Destarte, os conceitos e categorias colocados no corpo do texto, em um primeiro momento, são produtos de debates no âmbito da sala de aula, realizados por meio de metodologias ativas de ensino, que incitavam a participação dos discentes, o que explica a clara construção interdisciplinar, manifesta pela presença de noções advindas do Direito, da Sociologia, da Filosofia, da Ciência Política, da História, da Antropologia, da Administração Pública, da Pedagogia, entre outras áreas de conhecimento. Nesse sentido, a construção da obra permite uma superação do modo de operar o conhecimento concebido pela ciência clássica, que postula a ordem, a separabilidade, a redução e a lógica identificada à razão. Percebe-se no trabalho uma preocupação pela reorganização e a valorização de saberes invisibilizados pela colonialidade do pensamento científico moderno. Há uma clara aplicação do que Edgar Morin (2003, p. 89), em sua obra A cabeça bem feita, coloca como um jogo dialético entre as áreas do conhecimento, que substitui “o pensamento que isola e separa por um pensamento que distingue e une (...) um pensamento disjuntivo e redutor, por um pensamento complexo, no sentido originário do termo complexus: o que é tecido junto”.
            Longe de uma leitura usualmente realizada de clara inspiração eurocêntrica dos direitos humanos, que se preocupa muito mais com seus aspectos civis e políticos do que com suas perspectivas econômica, social e cultural, Escrivão Filho e Sousa Junior buscam tecer uma narrativa decolonial latino-americana, concentrando-se na luta por emancipação de indivíduos e grupos subjugados na velha estrutura oligárquica, agrária e colonialista dessas sociedades. Assim, combatem uma visão puramente abstrata desses direitos, que teria sido fomentada e difundida a partir dos reducionismos da modernidade, que identificam o conhecimento com a ciência, subsomem a política ao Estado e limitam o Direito à lei. Seguindo a lógica lyriana, procuram perquirir o que não configura o Direito, fugindo das categorizações baseadas em ideologias, universalismos e pré-compreensões, tão difundidas pelas concepções juspositivistas e jusnaturalistas. O monismo jurídico que aprisiona o Direito na estrutura hierarquizada das normas postas é substituído pela visão pluralista e sua abertura a outras dimensões do social, de forma a não atribuir a produção jurídica apenas ao Estado e seus tecnocratas habituais ou a uma tradicional elite institucionalizada, mas tornando-a viável aos segmentos étnicos e sociais inferiorizados e excluídos.
            Outro ponto fundamental da análise dos conceitos e categorias concernentes à compreensão dos direitos humanos é a investigação relativa ao próprio elemento da humanidade. Tanto em Estados autoritários, quanto naqueles de enunciado democrático, observa-se a utilização de redutores culturais afetos à noção de igualdade formal, utilizados como meios de negação existencial do outro e da diferença. Interessante notar que, no âmbito da filosofia, a moderna anulação da alteridade já teria sido identificada pelo lituano Emmanuel Lévinas, para quem, principalmente a partir do idealismo hegeliano e da ontologia heideggeriana, o Outro teria sido totalizado em uma condição de mesmidade, sendo sua existência suprimida no movimento de retorno à consciência do Eu, para quem seria mero objeto. A violência implícita à centralidade do Eu e da consciência na filosofia teria dado lugar à desumanização e à anulação do agir ético, perceptíveis em fenômenos como o Holocausto e o apagamento dos povos indígenas e quilombolas nos conflitos territoriais gerados para efetivação do ideal desenvolvimentista nacional. Nesse mesmo sentido, conforme leciona o professor argentino Luis Alberto Warat, o racionalismo arraigado na estrutura do Estado Moderno produz efeitos tóxicos, como uma crença normativista que blinda o Direito a qualquer reflexividade filosófica, impedindo que se o interprete enquanto instrumento de proteção aos anseios do outro, do indivíduo fragilizado e de menor poderio econômico-social. Ainda pelo entendimento do jurista latino-americano, um dos fatores que contribuem para a desconsideração do outro no discurso jurídico é a ausência de uma teoria da argumentação que se paute pela alteridade, aumentando, então, os abismos sociais. Em suas palavras:
A tutela constitucional das garantias dos direitos fundamentais pressupõe que os garantidos sejam cidadãos e não excluídos, postos socialmente em uma situação de permanente exceção. A cidadania não existe se o outro da alteridade é excluído. (...) Falar de cidadania em circunstâncias de exclusão é garantir a permanência de estados de exclusão, que são o lado diabólico das nossas sociedades. (WARAT, 2010, p. 82)
            Os direitos humanos, para que sejam exercidos de forma ética e atribuídos, de fato, a todas as pessoas, devem ser vistos pela perspectiva da diversidade, efetivados em nome da diferença e não de categorias universais e abstratas definidas pela atividade intelectual e espiritual do homem branco, empoderado política, econômica e socialmente, e visto como único sujeito detentor do saber. O universalismo, como criticado por Boaventura de Sousa Santos, carrega em si uma ideia de superioridade que impõe um processo histórico de imposição cultural, política e econômica, traduzida em uma violência aniquiladora transvestida de programa educacional e civilizatório, chamada por Enrique Dussel de mito da modernidade (ESCRIVÃO FILHO; SOUSA JUNIOR, 2016).
            A categoria dos direitos humanos deve ser percebida em sua dimensão histórica e social, não sendo limitada àquelas garantias positivamente estabelecidas. Os pesquisadores apontam a necessidade de ir além do seu reconhecimento em nível legal, constitucional ou internacional, pois, do contrário, incorre-se no risco da adesão a teorias abstratas, cujos efeitos ilusório, imobilizante e de ordem geram a exclusão dos direitos que não estão consignados na ordem jurídico-legal e a criminalização das lutas pela sua conquista, impedindo a reivindicação dos sujeitos coletivos de direito que não são alcançados pelos princípios e normas jurídicas. Ao desvincular os direitos humanos de seus processos sócio-históricos de constituição e significação, despolitizando-os, há uma fragilização do exercício do poder popular, como informa Sánchez Rubio (ESCRIVÃO FILHO; SOUSA JUNIOR, 2016). Bem demonstram os autores, então, a necessidade, já indicada pelas escolas do Novo Constitucionalismo Latino-Americano e do Constitucionalismo Achado na Rua, de um poder constituinte emancipador, libertador e popular, que imprima na Constituição a realidade plural da sociedade, de forma a garantir a eficácia das lutas emancipatórias e pela dignidade de determinados grupos sociais. É importante, entretanto, que esse poder não seja absorvido pelo Texto aprovado, mas se mantenha ao longo de sua vigência, como constante fiscalizador e garantidor da prática de direitos, não somente por instrumentos jurídicos, mas também políticos, econômicos, culturais e sociais.
            Escrivão Filho e Sousa Junior ainda demonstram a necessidade de romper com o pensamento linear que divide os direitos humanos em categorias analíticas de dimensões ou gerações, compatíveis com a história política e social da Europa Ocidental imposta ao sul-global, cujos processos de separação e fusão não lineares seriam mais afeitos à realidade em razão da constante necessidade de expansão, cumulação e fortalecimento das garantias desses direitos. Esse doutrinamento eurocêntrico e colonialista impossibilita, conforme as leituras do filósofo e historiador argentino Arturo Andrés Roig (2004), o exercício pleno ou legítimo do a priori antropológico dos grupos sociais dominados, que passam a sofrer um estado de consciência de inferioridade e ter a necessidade de buscar suas próprias identidades culturais. Para essa busca de especificidades relativamente aos direitos humanos, no contexto latino-americano deve-se observar as constantes construções e desconstruções que permeiam seu desenvolvimento econômico, político e social, com especial atenção às características históricas individuais das comunidades. Os direitos humanos seriam formados, portanto, em seu histórico de lutas sociais pela dignidade e orientariam politicamente projetos de sociedade aptos a ensejar a efetivação da dignidade material da cidadania, pelo acesso igualitário e não hierarquizado aos bens, através da democracia participativa. Nesse sentido definidos, os direitos humanos comporiam o próprio Direito Achado na Rua enquanto projeto de libertação dos oprimidos e espoliados de seu lugar na história e no poder. Trata-se de um Direito verdadeiramente dignificante, que respeita as diferenças encontradas no espaço público e não as unifica por meio de um processo violento.
            Os direitos humanos formados através das lutas sociais por emancipação e dignidade figuram no plano internacional como política e práxis contra-hegemônica dos movimentos sociais, não sendo reduzidos às cartas, às declarações e aos tratados que os positivam. A adesão a esses textos por parte dos Estados, entretanto, permite o reconhecimento de seu caráter supraestatal e das funções de fiscalização e proteção de organismos internacionais, com o rompimento às rígidas fronteiras da soberania (ESCRIVÃO FILHO; SOUSA JUNIOR, 2016). A baixa densidade normativa com que são explorados internacionalmente, porém, os caracteriza como soft law, os vinculando ao atendimento de interesses econômicos e políticos dos Estados nacionais. Isto faz com que os órgãos internacionais, que em tese efetuariam a exigibilidade e a justiciabilidade desses direitos, tenham decisões não vinculantes, mas meramente recomendatórias e declaratórias, não podendo impor efetivas sanções aos Estados nacionais, ainda tão influenciados pela cultura de negação e violação desses direitos. Apesar disso, são importantes mecanismos para promover a visibilidade dos casos de patente descumprimento pelas instituições estatais.
            Seguindo a leitura a partir de perspectivas contra-hegemônicas, Escrivão Filho e Sousa Junior optam por descrever a história dos direitos humanos no Brasil tendo em vista as parcelas populacionais subvalorizadas desde o colonialismo, o domínio político e econômico feito pelos portugueses, até a instauração da colonialidade ainda perceptível, que expande a exploração para outros campos, como as áreas do saber e da cultura. Tem-se a observância do processo dialético, não-linear, diverso e invisibilizado das lutas para reconhecimento e concretização dos direitos humanos, no processo de busca por uma sociedade livre e solidária. Mais que a história recontada pela memória oficial, busca-se a reconstrução das lutas dos esquecidos, principalmente daqueles violentados pelo regime autoritário instaurado após o golpe militar de 1964. A tortura enquanto política de manutenção estatal, aliada à legalidade autoritária, permitiram a manutenção da ordem econômica para as classes privilegiadas desde o colonialismo, das quais se destaca a dos latifundiários. A repressão passou a ser utilizada disciplinarmente nos espaços público e privado, nos meios urbano e rural. A justiça de transição, que teve lugar a partir da pressão social e de novos sujeitos coletivos de direito mobilizados já na década de 1980, não cumpriu com toda sua potencialidade de reparação, alcance da verdade, regularização da justiça e reformas institucionais para o fim das violações aos direitos humanos, já que seu controle ainda recaía nas forças militares e oligárquicas que continuavam no poder durante o período de lento retorno à democracia.
            O reestabelecimento do regime estatal de enunciado democrático, não apenas no Brasil, mas na América do Sul como um todo, tendo em vista a onda autoritária que se abateu sobre o continente, é o cenário ideal para a criação de novos direitos, em razão do maior espaço dado à luta social pela liberdade e pela dignidade. A democracia permite a abertura da disputa pelos espaços de poder e participação às distintas dimensões da vida social, reorganizando-se os sujeitos políticos em torno de movimentos sociais, aos quais é atribuída legitimidade política. A luta social se concentra no combate ao colonialismo, ao racismo e ao patriarcado e na busca pela reconstrução da memória e da verdade. Nesse sentido, é observada a ascendência do neoconstitucionalismo, com suas Constituições Dirigentes, que veem a necessidade de transformação da realidade injusta, trazendo um conteúdo programático forte em seus textos; e do Novo Constitucionalismo Latino-Americano, resposta ao neoliberalismo e à colonialidade que afastam a soberania popular do exercício dos direitos e do poder.
            Apesar desse novo contexto ser propício ao projeto neodesenvolvimentista latino-americano, abrindo espaço para a reprimarização da economia e proporcionando a execução de políticas compensatórias de redistribuição de excedentes sociais, ainda são percebidas velhas formas de exploração do trabalho e violações dos direitos de povos tradicionais indígenas e comunidades quilombolas que sofrem o impacto das obras de renovação da infraestrutura nacional, sendo vistos como obstáculos para a expansão da exploração agrícola e minerária. A luta desses setores transcende o mero aspecto econômico-proprietário, tratando-se, em suma, de uma luta pela manutenção de suas identidades, tão vinculadas à forma de uso da terra, e pela emancipação da velha submissão política, cultural, social, educacional e econômica. A fundação dos regimes de enunciado democrático observada na maioria dos países do sul-global, inclusive no Brasil, ainda se apoia em uma estrutura de desigualdade social e monoculturalismo cidadão. A democracia, ainda que comporte a noção de soberania popular e o ideal do autogoverno coletivo, não é aberta a real participação de todos, reproduzindo uma igualdade meramente formal.
            Nesse diapasão, os autores propõem a efetivação de um Novo Constitucionalismo Achado nas Ruas, já consignado nas experiências inovadoras do Equador e da Bolívia, que visam ao plurinacionalismo, com respeito às diferenças étnico-culturais dos distintos grupos que convivem em um mesmo território. Através dessa solução não é realizada apenas a ampliação de direitos, mas também a efetiva participação constituinte das diversas identidades, com a incorporação de seus valores no desenho institucional e na organização de poder. A preocupação não deve se resumir à parte dogmática da Constituição, a sua declaração de direitos, mas também, nos termos de Gargarella (2014), deve-se atentar especialmente ao funcionamento do poder, componente da parte orgânica da Constituição, que abriga sua sala de máquinas. Nesse sentido, abre-se espaço para a assunção do Outro ao papel de sujeito político legítimo, capaz de instituir e interpretar a nova ordem constitucional de caráter plurinacional e descolonial. O Constitucionalismo Achado na Rua permite que o Direito enuncie princípios, conforme Lyra Filho (1982, p. 124), para uma “legítima organização social da liberdade”, além de atribuir uma verdadeira função social ao Texto Constitucional, reconhecendo a luta estabelecida nas ruas como expressão do poder constituinte e da soberania popular, não meramente na forma histórico-institucional de uma Assembleia Constituinte ou no ato de promulgação da Carta, mas durante toda a vigência desta.
            Solucionam, ademais, um antigo paradoxo da democracia liberal apontado por Santiago Nino (2005): o de que, ao incorporar novos direitos sociais, se estaria transferindo poderes adicionais ao Judiciário, poder mais distante do controle popular. Ora, há uma visão pessimista da politização da Justiça, pautada em uma ideia desnaturalizada que o direito e o corpo judicial devem ser independentes relativamente às pressões sociais, elaborados de maneira técnica e formal por aplicadores instruídos nas Ciências Jurídicas e visando apenas ao estrito cumprimento das normas positivadas. Essa visão, entretanto, coloca o direito a serviço da dominação social. A função judicial é parte da organização político-institucional do Estado, devendo sim perpassar pelas questões políticas trazidas pelos sujeitos coletivos de direitos, estando à disposição da meta de empoderamento político dos movimentos e grupos sociais invisibilizados na cultura da colonialidade. Não deve ser neutro, mas sim não-arbitrário, cabendo-lhe a análise de problemas sociais e violações de direitos humanos. É preciso desverticalizar a estrutura interna do Judiciário, tornando transparente à sociedade sua gestão político-administrativa e seu caráter disciplinar. O necessário alargamento democrático do Judiciário, essencial para a efetivação dos direitos humanos reivindicados no espaço público pelos indivíduos excluídos e marginalizados, perpassa pela criação de mecanismos políticos e técnicas jurídicas que são idealizadas no contexto das organizações não-governamentais, dos movimentos sociais, das assessorias jurídicas, da advocacia popular e dos cursos de Direito, estes através da implementação de novas técnicas de ensino, pesquisa e extensão que aproxime os alunos da comunidade.
            O Direito Achado na Rua e a obra de Escrivão Filho e Sousa Junior não poderiam ser mais propícios à análise da atual conjuntura brasileira, pois envolvem “uma interlocução entre a sociologia jurídica, a teoria crítica do direito e o pluralismo jurídico” (ESCRIVÃO FILHO; SOUSA JUNIOR, p. 220). Nosso país passa por uma crise institucional que relembra os atribulados anos de 1963-1964, quando o governo progressista de João Goulart foi impedido de exercer sua legitimidade democrática, diante das pressões das elites militares, patriarcais, conservadoras e oligarcas pela não realização de reformas que iriam beneficiar os oprimidos e subvalorizados. Os programas de redistribuição que beneficiavam as camadas mais pobres da população e ajudaram a retirar milhares de brasileiros da miséria são finalizados. As verbas para educação, saúde e programas de moradia são cortadas, enquanto benefícios ao empresariado, ao agronegócio, aos operadores do sistema financeiro e aos empreiteiros são concedidos. A rua torna-se lugar de perseguições e jatos d’água para aqueles que não tem abrigo em nenhuma categoria social, sendo anulados em sua existência. O Direito Achado na Rua é uma solução que se apresenta a tal crise, pois é através dele que o Estado constitucional pode garantir a luta social por dignidade, alcançando direitos humanos e uma verdadeira democracia, não confundida com a pura violência da vontade ilimitada da maioria, mas sim pelo verdadeiro reconhecimento da diferença, concretizando o projeto emancipatório do Direito, apto a realizar mudanças sociais e garantir a expressão de novos sujeitos de direito.



Referências Bibliográficas

ESCRIVÃO FILHO, Antonio; SOUSA JUNIOR, José Geraldo de. Para um debate teórico-conceitual e político sobre os direitos humanos. 1. ed. Belo Horizonte: D’Plácido, 2016. Coleção Direito e Justiça.

GARGARELLA, Roberto. La sala de máquinas de la Constitución: Dos siglos de constitucionalismo en América Latina (1810-2010). Buenos Aires: Katz Editores, 2014.

LÉVINAS, Emmanuel. Totalidade e Infinito. Tradução de José Pinto Ribeiro. Lisboa: Edições 70, 1980.

LYRA FILHO, Roberto. O que é direito. Coleção primeiros passos. Brasília: Ed. Brasiliense, 1982 e 1984.

MORIN, Edgar. A cabeça bem-feita: repensar a reforma, reformar o pensamento. Tradução de Eloá Jacobina. 8. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003.

NINO, Carlos Santiago. Fundamentos de derecho constitucional. Análisis filosófico, jurídico y politológico de la práctica constitucional. 3ª reimpresión. Buenos Aires: Editorial Astrea de Alfredo y Ricardo Depalma, 2005.

ROIG, Arturo Andrés. Teoria y critica del pensamiento latino-americano. México: Fundo de Cultura Econômica, 2004.

WARAT, Luis Alberto. A rua grita Dionísio! Direitos humanos da alteridade, surrealismo e cartografia. Tradução de Vívian Alves de Assis, Júlio Cesar Marcellino Jr. e Alexandre Morais da Rosa. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2010.




[1] Graduada em Direito pela Universidade Federal de Juiz de Fora. Mestranda pelo Programa de Pós-Graduação em Direito, Estado e Constituição pela Universidade de Brasília. Pesquisadora do NEA – Núcleo de Estudos Agostinianos, cadastrado no CNPq e na UFJF, e participante do grupo de pesquisa Constituição e Ontologia do Departamento de Pós-Graduação em Direito da UnB.

quarta-feira, 4 de outubro de 2017

Quando o Tribunal de Justiça encontra o Direito Achado na Rua

“As pessoas têm direito de falar. As pessoas querem debater seus direitos, querem expor as ideias que são construídas, encontradas em seus coletivos, em seus espaços e relações cotidianas. Querem defender seus direitos achados na rua, entendendo rua como evidente metáfora de espaço público, onde mora o acontecimento, como afirma o jurista, professor da Universidade de Brasília, José Geraldo de Sousa Júnior”.

Eis a colocação que atravessou a monotonia desta tarde de 4ªf (04/10) no TJDFT, realizada pela advogada Ísis Táboas na sustentação oral junto à apelação em que o deputado ruralista Valdir Colatto processa por dano moral Fábio dos Santos, um integrante da “Campanha Permanente Contra Agrotóxicos e Pela Vida”, por ocasião da sua fala como convidado em uma audiência pública na Câmara dos Deputados.

A ação judicial do ruralista tem evidente caráter de criminalização e censura, cerceando a liberdade de expressão dos movimentos sociais no ambiente institucional de debate político, e de quebra utilizando o judiciário para perseguir e bloquear as ideias e a luta política por direitos em face das multinacionais que controlam o agronegócio.

Não vingou. O deputado perdeu em primeira instância e agora novamente na apelação, com destaque para o fato de que todos os desembargadores presentes à sessão pediram a palavra para não apenas majorar os honorários de sucumbência em razão da erudição e eloquência da sustentação – não é todo dia que veem os seus processos associados ao poeta Carlos Drummond e ao professor José Geraldo – mas sobretudo ressaltar a sua reverência ao professor José Geraldo e ao Direito Achado na Rua, ao passo em que, enquanto o Presidente da Turma citava Lyra Filho, para enturmar, o Relator emendou: “uma das minhas tristezas por não ter estudado na UnB é não ter sido aluno do famoso professor José Geraldo de Sousa Júnior!”




terça-feira, 3 de outubro de 2017

Resenha do livro “Para um debate teórico-conceitual e político sobre os Direitos Humanos”

RENATA CAROLINA CORRÊA VIEIRA
Graduada em Direito pela Universidade Federal do Pará - UFPA
Especialista em Direito Ambiental - Universidade da Amazônia
Especialista em Relações Internacionais - UNB
Atualmente é Oficial de Gabinete na Seção Judicária do DF - 16a Vara Federal

A obra “Para um debate teórico-conceitual e político sobre direitos humanos”, escrita por José Geraldo Sousa Júnior e Antônio Escrivão Filho, possui um diferencial inovador no campo teórico sobre o tema no sentido de que ultrapassa as barreiras dos direitos humanos em sua dimensão abstrata para abordar uma análise crítica da teoria dos direitos humanos, em sua concepção teórica, social, jurídica e política. Os autores, ao propor um debate teórico-conceitual e político sobre o tema, permitem aos seus leitores o alargamento de sua visão no campo epistemológico dos direitos humanos sob a perspectiva de O Direito Achado na Rua.
Os autores partem da abordagem dos conceitos e categorias dos direitos humanos, questionando-se sobre o que seria “direito” e o que seria “humano”. Estabelecendo uma crítica ao monismo jurídico, que segundo o qual direitos seriam apenas aqueles frutos das leis (civil law) ou da tradição institucionalizada (common law), os autores observam que tais definições reducionistas do direito geram incompreensões, que por sua vez jamais reconhecerão as normatividades constituídas em outros contextos sociais, ou seja, fora ou até mesmo contra os direitos estabelecidos pelo Direito Moderno, definidos como científico, pós-estatal e burocrático-legal.
Destaca-se a crítica feita pelos autores em relação ao próprio conceito de “humano”, quando em 1980, citam um julgamento de habeas corpus do Tribunal Federal de Recursos, em que se debateu acerca da condição de humanidade ou não do cacique Xavante Mário Juruna, além de ressaltar a condição jurídico-constitucional de semi-humanidade dos indígenas, traduzida na expressão “relativamente incapaz” na legislação que imperava na época da ditadura.
Assim, os autores demonstram que a definição do conceito de direitos humanos transborda os limites acadêmicos, as classificações em gerações ou as declarações internacionais supostamente universais, sendo sua concepção filosófica, política e jurídica, na medida em que “a legislação se coloca frequentemente em oposição aos valores dos Direitos Humanos, sobretudo em relação a vários segmentos étnicos e sociais subalternizados e excluídos” (ESCRIVÃO FILHO, SOUSA JUNIOR, 2016, p. 17).
Para os autores essa relação de não-humanidade de determinadas categorias da sociedade atual não difere daquela estabelecida no período em que os colonizadores chegarem nas Américas, quando ao se referirem aos povos originários aqui encontrados, os chamaram de “monstros” e “feras” em seus diários denominados como “bestiários”.
Questões como demarcação de terra e reconhecimento da identidade indígena continuam hoje sendo tratadas de forma não diversa da que eram tratadas quando os colonizadores empreenderam a conquista das Américas. Nesse contexto, destaca-se o recente debate acerca da adoção do marco-temporal como forma de demarcação de terra indígena, dentro de um sistema colonialista que persiste em negar os direitos dos povos originários a partir de uma concepção de semi-humanidade e de inferioridade racial desses povos.
A dificuldade, portanto, não recai apenas na definição do que é direito, não menos difícil é o dilema do que é definir o que é ser humano, de onde os autores apresentam a dificuldade de um consenso do que seja “direitos humanos”.
Assim é que os autores reconhecem um ponto de partida para a compreensão dos direitos humanos a partir da noção de processos históricos de lutas por direitos. Os autores descolam-se das teorias abstratas dos direitos humanos, sejam elas liberais, universalistas e normativas, eis que concebidas como algo essencialmente alheio à ação humana e, portanto, dissociada da dinâmica social e da história, para fundamentar os direitos humanos como sendo os direitos conquistados, como resultado de uma disputa social contra-hegemônica – conceito que se entrelaça às bases epistemológicas do Direito Achado na Rua.
Chega-se, portanto, a dimensão política dos direitos humanos, como fruto de combates travados pelos movimentos sociais na luta pelos seus direitos em face de contextos de dominação, exploração e discriminação. Utilizando-se de teóricos como Boaventura de Sousa Santos, Lyra Filho e Joaquín Herrera Flores, os autores apresentam uma concepção contra-hegemônica dos direitos humanos, cujo fundamento não recai mais sobre “mecanismos racionais, imanentes, místicos ou legais” (ESCRIVÃO FILHO, SOUSA JUNIOR, 2016, p. 30), mas em práticas sociais emancipatórias, fruto de uma condição eminentemente histórica e cultural, como “processos de combate às violações e luta pela efetivação de direitos ora previstos porém sonegados, ora já negados ante à sua própria possibilidade de previsão” (ESCRIVÃO FILHO, SOUSA JUNIOR, 2016, p. 30).
Os autores abordam o tema da universalidade dos direitos humanos sob uma perspectiva crítica, amparada no mito da modernidade teorizado por Dussel, segundo o qual por meio de uma violência educadora, aniquila-se a diferença étnica, racial e geracional. Com a finalidade de superar a tensão entre o universal e o fundacional, os autores apresentam o conceito de interculturalidade, que permite o diálogo equânime entre as diversas culturas.
A concepção dos direitos humanos como fruto de lutas sociais pela efetivação dos direitos, é retomada no segundo capítulo do livro, agora sob a ótica do cenário internacional. Para os autores, os direitos institucionalizados por meio das declarações e convenções internacionais não são isolados da dialética social, mas sim fruto de uma classe particular que reivindicou os direitos postos como universais. Os direitos humanos não são aqueles que estão encartados em declarações universais ou simbolizados em monumentos históricos, mas aqueles que foram fruto da luta entre os Estados e agentes internacionais.
Os autores apontam que, da mesma forma como ocorre no plano interno, os direitos humanos também sofrem os efeitos de ilusão e de ordem no plano internacional ao assumir um viés universal, que acaba justificando um modelo hegemônico neo-expansionista. Nesse contexto, os tratados que codificam os direitos são assinados por Estados-partes que aderem ao acordo, cada qual com seu respectivo interesse, sendo os direitos institucionalizados aqueles que refletem os interesses políticos, sociais e econômicos daquele Estado em particular, que possui, não raras as vezes, o poder hegemônico.
Por outro lado, os autores reconhecem que a partir da internacionalização dos direitos humanos se inaugura um novo cenário internacional, com o reconhecimento de indivíduos como titulares de direitos, que permite a ampliação da interlocução com movimentos sociais e organizações não governamentais, que além de superar a soberania estatal, inserem na agenda internacional novos debates como globalização e desenvolvimento.
Os autores abordam ainda a questão da exigibilidade e da justiciabilidade como uma dupla face política dos direitos humanos, ressaltando a importância de se fazer uma integração dialética dessas duas estratégias, “de um lado alargando os horizontes da agenda política de exigibilidade para finalmente alcançar as instituições do sistema de justiça, e de outro expandindo o conceito de justiciabilidade a fim de superar uma cultura judicial essencialmente engessada na via jurisdicional” (ESCRIVÃO FILHO, SOUSA JUNIOR, 2016, p.66).
No terceiro capítulo os autores tratam da evolução histórica dos direitos humanos no Brasil. Utilizando a teoria da sociologia das ausências de Boaventura, os autores demonstram o processo de negação do outro na formação econômica, social, política e cultural do Brasil, fruto de um colonialismo, que se manifestava em diversas dimensões da sociedade brasileira, estruturada sob o manto do patrimonialismo, patriarcado e racismo.
O projeto de direitos humanos chega ao Brasil de forma abstrata, normativa e tradicional. A partir de uma visão eurocêntrica do que é direitos humanos e marcada por traços de colonialidade, no conceito de Aníbal Quijano, a sociedade brasileira, tal qual na América Latina, teve sua histórica construída por um padrão de dominação europeu, que deixaram heranças latentes e trações essenciais nas instituições políticas e brasileiras até a atualidade.
Para os autores, justamente esse contexto de dominação é o marco para a história dos Direitos Humanos no Brasil, que encontra “nas dimensões e consequências da sociedade colonial não um trunfo, mas a sua própria condição emblemática que dá ensejo às lutas por libertação e dignidade que caracterizam os direitos humanos” (ESCRIVÃO FILHO, SOUSA JUNIOR, 2016, p. 75).
No mesmo capítulo, os autores retratam os contornos da justiça de transição inaugurada após o processo anti-democrático que ocorreu no Brasil no período da ditadura como uma conquista dos movimentos sociais e diversos setores da sociedade na luta pela redemocratização do país. O golpe militar é tratado, pelos autores, como uma reinvenção do colonialismo e uma potencialização da colonialidade para garantir a retomada do controle histórico sobre o poder político e social – tal qual ocorre nos atuais dias onde se tem um governo ilegítimo e marcado pela ruptura com direitos humanos já anteriormente conquistados.
No capítulo quarto, os autores retratam o cenário atual dos direitos humanos e o papel dos movimentos sociais no processo de redemocratização do país. Escrito antes do golpe que interrompeu o mandato da Presidenta Dilma Roussef, o livro não aborda o retrocesso atual do governo peemedebista na construção histórica dos direitos humanos . Abordando o contexto de redemocratização do país, pós-golpe militar, o livro aborda a conquista do regime enunciado democrático a partir de novos sujeitos de direitos que reconquistam a cena política, traduzindo-a em novos direitos ignorados pelo regime militar.
Os autores destacam nesse contexto a disputa dos novos sujeitos com as forças conservadoras “que ora cedem, ora avançam rumo à reconstrução da hegemonia de seu poder, em um movimento histórico e dialético de avanço e retrocessos na construção da democracia” (ESCRIVÃO FILHO, SOUSA JUNIOR, 2016, p. 100). A importância dos movimentos sociais para a criação e criatividade constitutiva de direitos advindos de outras esferas sociais e representativos da diversidade étnico-racial, cultural, geracional, de gênero e sexualidade, é destacada pelos autores, considerando que estes “emergem como uma potência de solidariedade ético-política na luta contra-hegemônica pelos direitos humanos” (ESCRIVÃO FILHO, SOUSA JUNIOR, 2016, p. 103).
No quinto capítulo, os autores problematizam os direitos humanos na América Latina, que apesar de apresentar um novo cenário com governos progressistas (muitos já foram destituídos e estão sendo fortemente ameaçados, vide caso do Brasil e Venezuela) ainda se deparam com projetos de desenvolvimento que impactam as comunidades locais violando a integridade dos direitos econômicos, sociais e culturais ainda em disputa, o que os autores chamam de modelo neo-desenvolvimentista que impera na América Latina.
Assim, o projeto de emancipação da América Latina, é marcado por uma dominação do capital industrial, fortemente pelo agronegócio, que desenvolve a sua estratégia política de dominação e expansão das fronteiras agrícolas e de mineração, criminalizando os movimentos sociais que resistem na luta pela terra e pelos seus direitos, que sofrem toda sorte de violências físicas e institucionais.
Para os autores, o estudo do constitucionalismo na América Latina deve ser retomado a partir das teses de Florestan Fernandes, acerca da teoria da dependência, na medida em que as elites que figuram o papel neo-imperialista se hegemonizam em sujeitos constituintes “de ordens fundadas sobre preceitos liberais de cidadania e conservadores no que diz respeito à organização institucional do poder” (ESCRIVÃO FILHO, SOUSA JUNIOR, 2016, p. 138). Os preceitos constitucionais insculpidos por essa elite marcada pela herança colonial e de capitalismo dependente, viria apenas legitimar, política e juridicamente, as desigualdades sociais.
No entanto, um novo constitucionalismo latino-americano inaugura-se nesse cenário de disputa e reivindicação pelos seus direitos, aos que os autores aproximam à ideia de um constitucionalismo Achado na Rua, cuja base dialoga com cinco importantes eixos do pensamento crítico latino-americano: i) a Ruptura Epistêmica Descolonial, ii) a Filosofia da Libertação; iii) o Pluralismo Jurídico; iv) a Teoria Crítica dos Direitos Humanos; e v) o Direito Achado na Rua (ESCRIVÃO FILHO, SOUSA JUNIOR, 2016, p. 145).
No capítulo seis, os autores abordam a questão da expansão da justiça na temática sociopolítica. Para os autores, seria necessário percorrer o caminho proposto por Lyra Filho, de “desentranhamento dos princípios e da condição eminentemente política que a função judicial assume nos marcos do desenho institucional do Estado Moderno” (ESCRIVÃO FILHO, SOUSA JUNIOR, 2016, p. 152). O alargamento político das funções do Judiciário na solução de conflitos sociais de alta intensidade política desperta o alerta e sérias preocupações acerca da sua legitimidade e capacidade institucional para lidar com tais demandas.
Partindo do conceito teórico de neutralização política da Justiça, formulado por Tércio Sampaio, os autores estabelecem a diferença entre neutralidade e neutralização, concluindo que tal relação entre autonomia e independência do judiciário pode assumir contornos paradoxais, na medida em que tal instituição não escapa à forma patrimonialista a qual foi estruturada a nossa cultura político-institucional, o que pode gerar um estado de alienação do judiciário ou até mesmo favorecendo setores conservadores da magistratura, que bloqueiam as demandas sociais por transparência e compromisso com os direitos humanos.
Por outro lado, os autores defendem a importância do papel das organizações de direitos humanos e da assessoria jurídica e advocacia popular no espaço de disputa de direitos que vem ser exercida por meio da judicialização dos direitos humanos. Muito embora reconheçam os avanços no acesso à justiça no Brasil – sobretudo, na consolidação da Defensoria Pública e justiça comunitária – os autores defendem uma concepção alargada de acesso à justiça, como a sustentada no âmbito do Direito Achado na Rua, em que, primeiramente, deve-se reconhecer o direito para além da norma estatal, como fruto de lutas sociais por liberdade e dignidade, dando-se voz aos sujeitos coletivos como agentes de criação e criatividade do Direito e de experiências da justiça, além de ser necessário desenvolver uma práxis de participação e controle social da justiça, a ser inserida dentro de uma reforma do Judiciário.
No sétimo capítulo, os autores retratam a situação do ensino jurídico no país que deságua na própria dificuldade do acesso à justiça, tema aqui trabalhado sob a ótica da educação jurídica, em que ainda impera uma homogeneidade de visão de mundo constitutiva de um pensamento hegemônico estruturado de modo abstrato e legalista de pensar o direito, com resistência à reflexão para compreensão de novas realidades sociais e políticas. Os autores destacam a importância da necessidade de uma reforma jurídica a partir de uma concepção teórica e prática – sobretudo dos núcleos de práticas jurídicas dos cursos de Direito – que conceba a promoção de ações que venham estabelecer caminhos para a formação cidadão dos estudantes, orientada pelos Direitos Humanos (ESCRIVÃO FILHO, SOUSA JUNIOR, 2016, p. 197).
Os autores finalizam a obra com um apanhado histórico e dos pressupostos do Direito Achado na Rua e a Teoria Crítica dos Direitos Humanos, situando o contexto em que nasce o pensar jurídico crítico no Brasil, na década de 60, em similitude com o “uso alternativo do direito”, “direito insurgente”, que promove uma reinserção do direito na política, a partir de uma crítica marxista e uma atitude militante. O novo pensar jurídico formulado pelo jurista e professor da Universidade de Brasília, Roberto Lyra Filho, reverbera no atual programa teórico, jurídico, sociológico, pedagógico e político que se transformou o Direito Achado na Rua, sob a liderança do professor José Geraldo de Sousa Júnior, co-autor da obra ora em comento, que encontra na linha de pesquisa de pós graduação na UNB, nas suas diversas publicações teóricas e na práxis, promovida pela atuação de assessorias jurídicas popular junto aos movimentos sociais, um novo e singular paradigma dentro do modo de pensar e viver o direito, como expressão do direito de liberdade, que “nasce na rua, no clamor dos espoliados e oprimidos” (ESCRIVÃO FILHO, SOUSA JUNIOR, 2016, p. 230).