O Direito Achado na Rua: nossa conquista é do tamanho da nossa luta

domingo, 8 de outubro de 2017

Para um debate teórico-conceitual e político sobre os direitos humanos (Resenha)




ESCRIVÃO FILHO, Antonio; SOUSA JUNIOR, José Geraldo de. Para um debate teórico-conceitual e político sobre os direitos humanos. 1. ed. Belo Horizonte: D’Plácido, 2016. Coleção Direito e Justiça. 256 p.

                                                                         Marina Araújo Teixeira[1]



            Obra fundamental para a compreensão da complexidade em torno à temática dos direitos humanos, o debate nela proposto visa a determinar a importância das lutas sociais na conquista e efetivação desses direitos através da superação da concepção formalista e redutora do positivismo moderno, ainda muito evidente nos campos teórico e prático do Direito. Os autores, influentes juristas contemporâneos, aproximam as leituras de Roberto Lyra Filho no contexto doutrinário de O Direito Achado na Rua à elaboração de direitos para a emancipação e liberdade dos excluídos da organização de poder hegemonicamente colonizadora, branca e masculina. Nesse sentido, Antonio Escrivão Filho imprime nas páginas sua vasta experiência enquanto advogado popular, ativista pela organização Terra de Direitos e a Articulação Justiça e Direitos Humanos - JusDH, pesquisador e docente, principalmente em relação a sua atuação em meio aos movimentos sociais de luta pela terra e pela democratização do acesso à justiça, sendo fundamental sua análise quanto à importância da identificação e da superação da herança colonialista e da grande propriedade rural como determinante para a estrutura institucional brasileira, com especial atenção ao Judiciário, de caráter evidentemente elitista e tecnocrata. A coautoria de José Geraldo de Sousa Junior engrandece ainda mais a publicação editorial. Membro da Nova Escola Jurídica Brasileira, foi o reitor – gestão do período de 2008 a 2012 - responsável pela revitalização da Universidade de Brasília e fundador do projeto político-teórico de O Direito Achado na Rua, inovadora epistemologia reconhecida e certificada pela Plataforma Lattes de Grupos de Pesquisa do CNPq como linha de pesquisa, que permite pensar uma nova práxis do Direito, visto como liberdade e possibilidade de transformação dos espaços públicos. Dentre as inúmeras contribuições de Sousa Junior ao texto, destaca-se, além da construção de uma noção de Direitos Humanos Achados na Rua como base fundamentadora analítica precípua, a tradução de sua experiência enquanto um dos maiores incentivadores da implementação da extensão nos cursos jurídicos no Brasil, pela criação dos Núcleos de Assessoria Jurídica Popular Universitária - Najups, os quais prestam assistência e assessoria gratuita a indivíduos hipossuficientes e movimentos sociais, como uma das formas de colaborar para o aumento e a expansão do acesso à justiça pelas minorias oprimidas pela violência real e simbólica ainda presente nos regimes de enunciado democrático.
            O livro importa um projeto idealizado pelos autores inicialmente destinado à elaboração de um plano de curso introdutório para a Especialização em Gestão de Políticas Públicas de Direitos Humanos da Escola Nacional de Administração Pública – ENAP/MPOG, ministrado entre 2013 e 2015, na cidade de Brasília, e tendo como público alvo “agentes públicos federais do sistema de promoção e proteção dos direitos humanos” (ESCRIVÃO FILHO; SOUSA JUNIOR, 2016, p. 9). A interlocução desse modo estabelecida foi mantida até a publicação oficial então analisada, tendo sido colocada ao debate público, ainda, no Seminário Nacional “Os Direitos Humanos como um projeto de sociedade: desafios para as dimensões política, socioeconômica, ética, cultural, jurídica e socioambiental”, organizado pela Faculdade de Direito da Escola Superior Dom Helder Câmara, no ano de 2013, em Belo Horizonte, bem como nas disciplinas “O Direito Achado na Rua” e “Direitos Humanos: Fundamentos Teóricos”, ministradas paras os Programas de Pós-Graduação em Direito e em Direitos Humanos e Cidadania, respectivamente, da Faculdade de Direito e do Centro de Estudos Avançados Multidisciplinares – CEAM – da Universidade de Brasília. Destarte, os conceitos e categorias colocados no corpo do texto, em um primeiro momento, são produtos de debates no âmbito da sala de aula, realizados por meio de metodologias ativas de ensino, que incitavam a participação dos discentes, o que explica a clara construção interdisciplinar, manifesta pela presença de noções advindas do Direito, da Sociologia, da Filosofia, da Ciência Política, da História, da Antropologia, da Administração Pública, da Pedagogia, entre outras áreas de conhecimento. Nesse sentido, a construção da obra permite uma superação do modo de operar o conhecimento concebido pela ciência clássica, que postula a ordem, a separabilidade, a redução e a lógica identificada à razão. Percebe-se no trabalho uma preocupação pela reorganização e a valorização de saberes invisibilizados pela colonialidade do pensamento científico moderno. Há uma clara aplicação do que Edgar Morin (2003, p. 89), em sua obra A cabeça bem feita, coloca como um jogo dialético entre as áreas do conhecimento, que substitui “o pensamento que isola e separa por um pensamento que distingue e une (...) um pensamento disjuntivo e redutor, por um pensamento complexo, no sentido originário do termo complexus: o que é tecido junto”.
            Longe de uma leitura usualmente realizada de clara inspiração eurocêntrica dos direitos humanos, que se preocupa muito mais com seus aspectos civis e políticos do que com suas perspectivas econômica, social e cultural, Escrivão Filho e Sousa Junior buscam tecer uma narrativa decolonial latino-americana, concentrando-se na luta por emancipação de indivíduos e grupos subjugados na velha estrutura oligárquica, agrária e colonialista dessas sociedades. Assim, combatem uma visão puramente abstrata desses direitos, que teria sido fomentada e difundida a partir dos reducionismos da modernidade, que identificam o conhecimento com a ciência, subsomem a política ao Estado e limitam o Direito à lei. Seguindo a lógica lyriana, procuram perquirir o que não configura o Direito, fugindo das categorizações baseadas em ideologias, universalismos e pré-compreensões, tão difundidas pelas concepções juspositivistas e jusnaturalistas. O monismo jurídico que aprisiona o Direito na estrutura hierarquizada das normas postas é substituído pela visão pluralista e sua abertura a outras dimensões do social, de forma a não atribuir a produção jurídica apenas ao Estado e seus tecnocratas habituais ou a uma tradicional elite institucionalizada, mas tornando-a viável aos segmentos étnicos e sociais inferiorizados e excluídos.
            Outro ponto fundamental da análise dos conceitos e categorias concernentes à compreensão dos direitos humanos é a investigação relativa ao próprio elemento da humanidade. Tanto em Estados autoritários, quanto naqueles de enunciado democrático, observa-se a utilização de redutores culturais afetos à noção de igualdade formal, utilizados como meios de negação existencial do outro e da diferença. Interessante notar que, no âmbito da filosofia, a moderna anulação da alteridade já teria sido identificada pelo lituano Emmanuel Lévinas, para quem, principalmente a partir do idealismo hegeliano e da ontologia heideggeriana, o Outro teria sido totalizado em uma condição de mesmidade, sendo sua existência suprimida no movimento de retorno à consciência do Eu, para quem seria mero objeto. A violência implícita à centralidade do Eu e da consciência na filosofia teria dado lugar à desumanização e à anulação do agir ético, perceptíveis em fenômenos como o Holocausto e o apagamento dos povos indígenas e quilombolas nos conflitos territoriais gerados para efetivação do ideal desenvolvimentista nacional. Nesse mesmo sentido, conforme leciona o professor argentino Luis Alberto Warat, o racionalismo arraigado na estrutura do Estado Moderno produz efeitos tóxicos, como uma crença normativista que blinda o Direito a qualquer reflexividade filosófica, impedindo que se o interprete enquanto instrumento de proteção aos anseios do outro, do indivíduo fragilizado e de menor poderio econômico-social. Ainda pelo entendimento do jurista latino-americano, um dos fatores que contribuem para a desconsideração do outro no discurso jurídico é a ausência de uma teoria da argumentação que se paute pela alteridade, aumentando, então, os abismos sociais. Em suas palavras:
A tutela constitucional das garantias dos direitos fundamentais pressupõe que os garantidos sejam cidadãos e não excluídos, postos socialmente em uma situação de permanente exceção. A cidadania não existe se o outro da alteridade é excluído. (...) Falar de cidadania em circunstâncias de exclusão é garantir a permanência de estados de exclusão, que são o lado diabólico das nossas sociedades. (WARAT, 2010, p. 82)
            Os direitos humanos, para que sejam exercidos de forma ética e atribuídos, de fato, a todas as pessoas, devem ser vistos pela perspectiva da diversidade, efetivados em nome da diferença e não de categorias universais e abstratas definidas pela atividade intelectual e espiritual do homem branco, empoderado política, econômica e socialmente, e visto como único sujeito detentor do saber. O universalismo, como criticado por Boaventura de Sousa Santos, carrega em si uma ideia de superioridade que impõe um processo histórico de imposição cultural, política e econômica, traduzida em uma violência aniquiladora transvestida de programa educacional e civilizatório, chamada por Enrique Dussel de mito da modernidade (ESCRIVÃO FILHO; SOUSA JUNIOR, 2016).
            A categoria dos direitos humanos deve ser percebida em sua dimensão histórica e social, não sendo limitada àquelas garantias positivamente estabelecidas. Os pesquisadores apontam a necessidade de ir além do seu reconhecimento em nível legal, constitucional ou internacional, pois, do contrário, incorre-se no risco da adesão a teorias abstratas, cujos efeitos ilusório, imobilizante e de ordem geram a exclusão dos direitos que não estão consignados na ordem jurídico-legal e a criminalização das lutas pela sua conquista, impedindo a reivindicação dos sujeitos coletivos de direito que não são alcançados pelos princípios e normas jurídicas. Ao desvincular os direitos humanos de seus processos sócio-históricos de constituição e significação, despolitizando-os, há uma fragilização do exercício do poder popular, como informa Sánchez Rubio (ESCRIVÃO FILHO; SOUSA JUNIOR, 2016). Bem demonstram os autores, então, a necessidade, já indicada pelas escolas do Novo Constitucionalismo Latino-Americano e do Constitucionalismo Achado na Rua, de um poder constituinte emancipador, libertador e popular, que imprima na Constituição a realidade plural da sociedade, de forma a garantir a eficácia das lutas emancipatórias e pela dignidade de determinados grupos sociais. É importante, entretanto, que esse poder não seja absorvido pelo Texto aprovado, mas se mantenha ao longo de sua vigência, como constante fiscalizador e garantidor da prática de direitos, não somente por instrumentos jurídicos, mas também políticos, econômicos, culturais e sociais.
            Escrivão Filho e Sousa Junior ainda demonstram a necessidade de romper com o pensamento linear que divide os direitos humanos em categorias analíticas de dimensões ou gerações, compatíveis com a história política e social da Europa Ocidental imposta ao sul-global, cujos processos de separação e fusão não lineares seriam mais afeitos à realidade em razão da constante necessidade de expansão, cumulação e fortalecimento das garantias desses direitos. Esse doutrinamento eurocêntrico e colonialista impossibilita, conforme as leituras do filósofo e historiador argentino Arturo Andrés Roig (2004), o exercício pleno ou legítimo do a priori antropológico dos grupos sociais dominados, que passam a sofrer um estado de consciência de inferioridade e ter a necessidade de buscar suas próprias identidades culturais. Para essa busca de especificidades relativamente aos direitos humanos, no contexto latino-americano deve-se observar as constantes construções e desconstruções que permeiam seu desenvolvimento econômico, político e social, com especial atenção às características históricas individuais das comunidades. Os direitos humanos seriam formados, portanto, em seu histórico de lutas sociais pela dignidade e orientariam politicamente projetos de sociedade aptos a ensejar a efetivação da dignidade material da cidadania, pelo acesso igualitário e não hierarquizado aos bens, através da democracia participativa. Nesse sentido definidos, os direitos humanos comporiam o próprio Direito Achado na Rua enquanto projeto de libertação dos oprimidos e espoliados de seu lugar na história e no poder. Trata-se de um Direito verdadeiramente dignificante, que respeita as diferenças encontradas no espaço público e não as unifica por meio de um processo violento.
            Os direitos humanos formados através das lutas sociais por emancipação e dignidade figuram no plano internacional como política e práxis contra-hegemônica dos movimentos sociais, não sendo reduzidos às cartas, às declarações e aos tratados que os positivam. A adesão a esses textos por parte dos Estados, entretanto, permite o reconhecimento de seu caráter supraestatal e das funções de fiscalização e proteção de organismos internacionais, com o rompimento às rígidas fronteiras da soberania (ESCRIVÃO FILHO; SOUSA JUNIOR, 2016). A baixa densidade normativa com que são explorados internacionalmente, porém, os caracteriza como soft law, os vinculando ao atendimento de interesses econômicos e políticos dos Estados nacionais. Isto faz com que os órgãos internacionais, que em tese efetuariam a exigibilidade e a justiciabilidade desses direitos, tenham decisões não vinculantes, mas meramente recomendatórias e declaratórias, não podendo impor efetivas sanções aos Estados nacionais, ainda tão influenciados pela cultura de negação e violação desses direitos. Apesar disso, são importantes mecanismos para promover a visibilidade dos casos de patente descumprimento pelas instituições estatais.
            Seguindo a leitura a partir de perspectivas contra-hegemônicas, Escrivão Filho e Sousa Junior optam por descrever a história dos direitos humanos no Brasil tendo em vista as parcelas populacionais subvalorizadas desde o colonialismo, o domínio político e econômico feito pelos portugueses, até a instauração da colonialidade ainda perceptível, que expande a exploração para outros campos, como as áreas do saber e da cultura. Tem-se a observância do processo dialético, não-linear, diverso e invisibilizado das lutas para reconhecimento e concretização dos direitos humanos, no processo de busca por uma sociedade livre e solidária. Mais que a história recontada pela memória oficial, busca-se a reconstrução das lutas dos esquecidos, principalmente daqueles violentados pelo regime autoritário instaurado após o golpe militar de 1964. A tortura enquanto política de manutenção estatal, aliada à legalidade autoritária, permitiram a manutenção da ordem econômica para as classes privilegiadas desde o colonialismo, das quais se destaca a dos latifundiários. A repressão passou a ser utilizada disciplinarmente nos espaços público e privado, nos meios urbano e rural. A justiça de transição, que teve lugar a partir da pressão social e de novos sujeitos coletivos de direito mobilizados já na década de 1980, não cumpriu com toda sua potencialidade de reparação, alcance da verdade, regularização da justiça e reformas institucionais para o fim das violações aos direitos humanos, já que seu controle ainda recaía nas forças militares e oligárquicas que continuavam no poder durante o período de lento retorno à democracia.
            O reestabelecimento do regime estatal de enunciado democrático, não apenas no Brasil, mas na América do Sul como um todo, tendo em vista a onda autoritária que se abateu sobre o continente, é o cenário ideal para a criação de novos direitos, em razão do maior espaço dado à luta social pela liberdade e pela dignidade. A democracia permite a abertura da disputa pelos espaços de poder e participação às distintas dimensões da vida social, reorganizando-se os sujeitos políticos em torno de movimentos sociais, aos quais é atribuída legitimidade política. A luta social se concentra no combate ao colonialismo, ao racismo e ao patriarcado e na busca pela reconstrução da memória e da verdade. Nesse sentido, é observada a ascendência do neoconstitucionalismo, com suas Constituições Dirigentes, que veem a necessidade de transformação da realidade injusta, trazendo um conteúdo programático forte em seus textos; e do Novo Constitucionalismo Latino-Americano, resposta ao neoliberalismo e à colonialidade que afastam a soberania popular do exercício dos direitos e do poder.
            Apesar desse novo contexto ser propício ao projeto neodesenvolvimentista latino-americano, abrindo espaço para a reprimarização da economia e proporcionando a execução de políticas compensatórias de redistribuição de excedentes sociais, ainda são percebidas velhas formas de exploração do trabalho e violações dos direitos de povos tradicionais indígenas e comunidades quilombolas que sofrem o impacto das obras de renovação da infraestrutura nacional, sendo vistos como obstáculos para a expansão da exploração agrícola e minerária. A luta desses setores transcende o mero aspecto econômico-proprietário, tratando-se, em suma, de uma luta pela manutenção de suas identidades, tão vinculadas à forma de uso da terra, e pela emancipação da velha submissão política, cultural, social, educacional e econômica. A fundação dos regimes de enunciado democrático observada na maioria dos países do sul-global, inclusive no Brasil, ainda se apoia em uma estrutura de desigualdade social e monoculturalismo cidadão. A democracia, ainda que comporte a noção de soberania popular e o ideal do autogoverno coletivo, não é aberta a real participação de todos, reproduzindo uma igualdade meramente formal.
            Nesse diapasão, os autores propõem a efetivação de um Novo Constitucionalismo Achado nas Ruas, já consignado nas experiências inovadoras do Equador e da Bolívia, que visam ao plurinacionalismo, com respeito às diferenças étnico-culturais dos distintos grupos que convivem em um mesmo território. Através dessa solução não é realizada apenas a ampliação de direitos, mas também a efetiva participação constituinte das diversas identidades, com a incorporação de seus valores no desenho institucional e na organização de poder. A preocupação não deve se resumir à parte dogmática da Constituição, a sua declaração de direitos, mas também, nos termos de Gargarella (2014), deve-se atentar especialmente ao funcionamento do poder, componente da parte orgânica da Constituição, que abriga sua sala de máquinas. Nesse sentido, abre-se espaço para a assunção do Outro ao papel de sujeito político legítimo, capaz de instituir e interpretar a nova ordem constitucional de caráter plurinacional e descolonial. O Constitucionalismo Achado na Rua permite que o Direito enuncie princípios, conforme Lyra Filho (1982, p. 124), para uma “legítima organização social da liberdade”, além de atribuir uma verdadeira função social ao Texto Constitucional, reconhecendo a luta estabelecida nas ruas como expressão do poder constituinte e da soberania popular, não meramente na forma histórico-institucional de uma Assembleia Constituinte ou no ato de promulgação da Carta, mas durante toda a vigência desta.
            Solucionam, ademais, um antigo paradoxo da democracia liberal apontado por Santiago Nino (2005): o de que, ao incorporar novos direitos sociais, se estaria transferindo poderes adicionais ao Judiciário, poder mais distante do controle popular. Ora, há uma visão pessimista da politização da Justiça, pautada em uma ideia desnaturalizada que o direito e o corpo judicial devem ser independentes relativamente às pressões sociais, elaborados de maneira técnica e formal por aplicadores instruídos nas Ciências Jurídicas e visando apenas ao estrito cumprimento das normas positivadas. Essa visão, entretanto, coloca o direito a serviço da dominação social. A função judicial é parte da organização político-institucional do Estado, devendo sim perpassar pelas questões políticas trazidas pelos sujeitos coletivos de direitos, estando à disposição da meta de empoderamento político dos movimentos e grupos sociais invisibilizados na cultura da colonialidade. Não deve ser neutro, mas sim não-arbitrário, cabendo-lhe a análise de problemas sociais e violações de direitos humanos. É preciso desverticalizar a estrutura interna do Judiciário, tornando transparente à sociedade sua gestão político-administrativa e seu caráter disciplinar. O necessário alargamento democrático do Judiciário, essencial para a efetivação dos direitos humanos reivindicados no espaço público pelos indivíduos excluídos e marginalizados, perpassa pela criação de mecanismos políticos e técnicas jurídicas que são idealizadas no contexto das organizações não-governamentais, dos movimentos sociais, das assessorias jurídicas, da advocacia popular e dos cursos de Direito, estes através da implementação de novas técnicas de ensino, pesquisa e extensão que aproxime os alunos da comunidade.
            O Direito Achado na Rua e a obra de Escrivão Filho e Sousa Junior não poderiam ser mais propícios à análise da atual conjuntura brasileira, pois envolvem “uma interlocução entre a sociologia jurídica, a teoria crítica do direito e o pluralismo jurídico” (ESCRIVÃO FILHO; SOUSA JUNIOR, p. 220). Nosso país passa por uma crise institucional que relembra os atribulados anos de 1963-1964, quando o governo progressista de João Goulart foi impedido de exercer sua legitimidade democrática, diante das pressões das elites militares, patriarcais, conservadoras e oligarcas pela não realização de reformas que iriam beneficiar os oprimidos e subvalorizados. Os programas de redistribuição que beneficiavam as camadas mais pobres da população e ajudaram a retirar milhares de brasileiros da miséria são finalizados. As verbas para educação, saúde e programas de moradia são cortadas, enquanto benefícios ao empresariado, ao agronegócio, aos operadores do sistema financeiro e aos empreiteiros são concedidos. A rua torna-se lugar de perseguições e jatos d’água para aqueles que não tem abrigo em nenhuma categoria social, sendo anulados em sua existência. O Direito Achado na Rua é uma solução que se apresenta a tal crise, pois é através dele que o Estado constitucional pode garantir a luta social por dignidade, alcançando direitos humanos e uma verdadeira democracia, não confundida com a pura violência da vontade ilimitada da maioria, mas sim pelo verdadeiro reconhecimento da diferença, concretizando o projeto emancipatório do Direito, apto a realizar mudanças sociais e garantir a expressão de novos sujeitos de direito.



Referências Bibliográficas

ESCRIVÃO FILHO, Antonio; SOUSA JUNIOR, José Geraldo de. Para um debate teórico-conceitual e político sobre os direitos humanos. 1. ed. Belo Horizonte: D’Plácido, 2016. Coleção Direito e Justiça.

GARGARELLA, Roberto. La sala de máquinas de la Constitución: Dos siglos de constitucionalismo en América Latina (1810-2010). Buenos Aires: Katz Editores, 2014.

LÉVINAS, Emmanuel. Totalidade e Infinito. Tradução de José Pinto Ribeiro. Lisboa: Edições 70, 1980.

LYRA FILHO, Roberto. O que é direito. Coleção primeiros passos. Brasília: Ed. Brasiliense, 1982 e 1984.

MORIN, Edgar. A cabeça bem-feita: repensar a reforma, reformar o pensamento. Tradução de Eloá Jacobina. 8. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003.

NINO, Carlos Santiago. Fundamentos de derecho constitucional. Análisis filosófico, jurídico y politológico de la práctica constitucional. 3ª reimpresión. Buenos Aires: Editorial Astrea de Alfredo y Ricardo Depalma, 2005.

ROIG, Arturo Andrés. Teoria y critica del pensamiento latino-americano. México: Fundo de Cultura Econômica, 2004.

WARAT, Luis Alberto. A rua grita Dionísio! Direitos humanos da alteridade, surrealismo e cartografia. Tradução de Vívian Alves de Assis, Júlio Cesar Marcellino Jr. e Alexandre Morais da Rosa. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2010.




[1] Graduada em Direito pela Universidade Federal de Juiz de Fora. Mestranda pelo Programa de Pós-Graduação em Direito, Estado e Constituição pela Universidade de Brasília. Pesquisadora do NEA – Núcleo de Estudos Agostinianos, cadastrado no CNPq e na UFJF, e participante do grupo de pesquisa Constituição e Ontologia do Departamento de Pós-Graduação em Direito da UnB.

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