O Direito Achado na Rua: nossa conquista é do tamanho da nossa luta

quinta-feira, 2 de abril de 2015

Carta do Equador, Mitad del Mundo

Quito, 30 de março de 2015.

Queridos/amigo/as:

Envio esta carta, desde la mitad del mundo, na tentativa de somá-la às demais cartas escritas e partilhadas pelos amigo/as e companheiro/as do grupo de pesquisa O Direito Achado na Rua.

Estou vivendo no Equador há dois meses. Vim para realizar o trabalho de campo da tese de doutorado que venho desenvolvendo no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra. Cheguei aqui para estudar as experiências de advocacia popular neste país, mas sobretudo, pesquisar um certo conflito territorial entre a comunidade negra La Chiquita e as empresas plantadoras do monocultivo de palma. Advogado/as e comunidade estão há 10 anos resistindo e defendendo o direito ao território ancestral desta comunidade.

O Equador é permeado por uma paisagem social e política de grande diversidade e complexidade. Como ocorre com as pesquisas sociológicas, a minha investigação se depara com essa diversidade e se combina de diversas formas com muitos outros temas. Ao mesmo tempo, é fascinante e angustiante. Estamos sozinhos na jornada de uma tese, e o tempo é sempre escasso para dar conta da pluralidade e amplitude de coisas a descobrir e compreender.

A aproximação com o caso da comunidade La Chiquita tem me levado à realidade histórica e contemporânea dos negros deste país, um tema ainda pouco enfrentado por aqui.  A população que se auto declara afroequatoriana é de apenas 7,2 %. Em contrapartida, 71,9% dos equatorianos se autodeclaram mestiços. Uma grande presença da população negra está concentrada na região norte do país, na província de Esmeraldas.

À semelhança do Brasil, a população negra do Equador enfrenta muitos problemas como preconceito, desemprego, baixos níveis de escolaridade, escasso acesso à saúde, pouca participação política. E, particularmente, as comunidades negras rurais vivem uma situação de extrema vulnerabilidade social, ameaçadas constantemente de perderem seus territórios. Uma conjuntura muito enraizada num passado colonial.

Estou de acordo com os amigos daqui quando afirmam que há muito racismo e preconceito contra os negros no Equador. Escutei por mais de uma vez que “os negros são desorganizados”, que “não se mobilizam” e que “seus direitos coletivos só foram adquiridos graças à luta dos povos indígenas”.  A comparação com os indígenas é bastante comum.

Em Quito, tem sido frequente a reação de surpresa das pessoas quando digo que estou aqui interessada em estudar as comunidades negras. O estranhamento parece derivar do fato de que não haveria muita coisa capaz de justificar o interesse de um pesquisador sobre o povo negro do Equador. “Por que não estudas os indígenas?”, me perguntaram a primeira vez que visitei a cidade.

Conheci um professor colombiano, negro, que me contou que veio morar em Quito para fazer os seus estudos de mestrado. Tão logo terminou, se mudou para Esmeraldas para dar aulas. Perguntei por que havia deixado Quito. “Muito racismo por lá”, respondeu. Um outro dia, um amigo e professor da Universidade Andina Simón Bolívar desabafou: “O movimento afro segue na pior situação de marginalidade, sempre estiveram numa situação pior que a dos indígenas”.

Parte da minha pesquisa é feita em Quito e a outra parte em San Lorenzo,  região de Esmeraldas, perto da fronteira com a Colômbia. Nas andanças entre uma e outra tenho conversado com muitas pessoas e conhecido o trabalho de alguns grupos que me fizeram acreditar que esses estigmas não se sustentam e que é equivocado qualificar um determinado grupo, impondo parâmetros de outro. Há um processo organizativo afroequatoriano em curso há muitas décadas, com toda a sua complexidade e particularidade. Existem cerca de 120 organizações negras por todo o país atuando com agendas específicas e ações politicas. Com avanços e debilidades, como qualquer processo político organizativo.

Em Esmeraldas, conheci as bravas mulheres do MoMuNE (Movimento de Mulheres Negras de Esmeraldas) e estive numa reunião com diversas organizações negras que estão discutindo formas de intervir no texto da nova Lei de Terras do país. Passei um período com a comunidade La Chiquita que, pela sua Asociación de Trabajadores Autónomos, persiste na defesa do seu território e dos direitos da natureza, a pachamama. Há ainda um grupo de acadêmicos e intelectuais ativistas, como Pablo Minda, Jhon Antón, Catherine Walsh, Juan García e Julianne Hazlewood, que tem produzido uma consistente literatura antropológica e sociológica sobre o importante aporte dos negros para o país, sua identidade étnica e cultural, suas formas organizativas na luta contra o racismo e a exclusão social.

Nesta semana, em que se retomou o julgamento no Supremo Tribunal Federal sobre a constitucionalidade do Decreto 4.887/2003 (que regulamenta a titulação de terras quilombolas) pensei muito nas comunidades do Equador, como a de La Chiquita, e em como as lutas e os contextos dos dois países se comunicam. E lembrei de um texto da Catherine Walsh, sobre as lutas (des)coloniais, em que ela pergunta se, de fato, os Estados estão conseguido confrontar o legado da colonialidade e reconhecer a dívida histórica que têm com a população negra. Uma oportuna pergunta para os poderes políticos do  Brasil.

Fico por aqui.
Um grande beijo.


Flávia Carlet

Nenhum comentário:

Postar um comentário