Quito, 30 de março de 2015.
Queridos/amigo/as:
Envio esta carta, desde la mitad del mundo,
na tentativa de somá-la às demais cartas escritas e partilhadas pelos amigo/as
e companheiro/as do grupo de pesquisa O Direito
Achado na Rua.
Estou vivendo no Equador há dois meses. Vim
para realizar o trabalho de campo da tese de doutorado que venho desenvolvendo no
Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra. Cheguei aqui para estudar
as experiências de advocacia popular neste país, mas sobretudo, pesquisar um certo
conflito territorial entre a comunidade negra La Chiquita e as empresas plantadoras do monocultivo de palma.
Advogado/as e comunidade estão há 10 anos resistindo e defendendo o direito ao
território ancestral desta comunidade.
O Equador é permeado por uma paisagem social
e política de grande diversidade e complexidade. Como ocorre com as pesquisas
sociológicas, a minha investigação se depara com essa diversidade e se combina
de diversas formas com muitos outros temas. Ao mesmo tempo, é fascinante e
angustiante. Estamos sozinhos na jornada de uma tese, e o tempo é sempre escasso
para dar conta da pluralidade e amplitude de coisas a descobrir e compreender.
A aproximação com o caso da comunidade La Chiquita tem me levado à realidade
histórica e contemporânea dos negros deste país, um tema ainda pouco enfrentado
por aqui. A população que se auto declara
afroequatoriana é de apenas 7,2 %. Em contrapartida, 71,9% dos equatorianos se
autodeclaram mestiços. Uma grande presença da população negra está concentrada
na região norte do país, na província de Esmeraldas.
À semelhança do Brasil, a população negra do
Equador enfrenta muitos problemas como preconceito, desemprego, baixos níveis
de escolaridade, escasso acesso à saúde, pouca participação política. E, particularmente, as comunidades
negras rurais vivem uma situação de extrema vulnerabilidade social, ameaçadas
constantemente de perderem seus territórios. Uma
conjuntura muito enraizada num passado colonial.
Estou de acordo com os amigos daqui quando afirmam
que há muito racismo e preconceito contra os negros no Equador. Escutei por
mais de uma vez que “os negros são desorganizados”, que “não se mobilizam” e que
“seus direitos coletivos só foram adquiridos graças à luta dos povos indígenas”.
A comparação com os indígenas é bastante
comum.
Em Quito, tem sido frequente a reação de
surpresa das pessoas quando digo que estou aqui interessada em estudar as
comunidades negras. O estranhamento parece derivar do fato de que não haveria
muita coisa capaz de justificar o interesse de um pesquisador sobre o povo
negro do Equador. “Por que não estudas os indígenas?”, me perguntaram a
primeira vez que visitei a cidade.
Conheci um professor colombiano, negro, que
me contou que veio morar em Quito para fazer os seus estudos de mestrado. Tão
logo terminou, se mudou para Esmeraldas para dar aulas. Perguntei por que havia
deixado Quito. “Muito racismo por lá”, respondeu. Um outro dia, um amigo e
professor da Universidade Andina Simón Bolívar desabafou: “O movimento afro
segue na pior situação de marginalidade, sempre estiveram numa situação pior
que a dos indígenas”.
Parte da minha pesquisa é feita em Quito e a
outra parte em San Lorenzo, região de
Esmeraldas, perto da fronteira com a Colômbia. Nas andanças entre uma e outra tenho
conversado com muitas pessoas e conhecido o trabalho de alguns grupos que me
fizeram acreditar que esses estigmas não se sustentam e que é equivocado
qualificar um determinado grupo, impondo parâmetros de outro. Há um processo
organizativo afroequatoriano em curso há muitas décadas, com toda a sua complexidade
e particularidade. Existem cerca de 120 organizações negras por todo o país
atuando com agendas específicas e ações politicas. Com avanços e debilidades,
como qualquer processo político organizativo.
Em Esmeraldas, conheci as bravas mulheres do
MoMuNE (Movimento de Mulheres Negras de Esmeraldas) e estive numa reunião com
diversas organizações negras que estão discutindo formas de intervir no texto
da nova Lei de Terras do país. Passei um período com a comunidade La Chiquita que, pela sua Asociación de Trabajadores Autónomos, persiste
na defesa do seu território e dos direitos da natureza, a pachamama. Há ainda um grupo de acadêmicos e intelectuais ativistas,
como Pablo Minda, Jhon Antón, Catherine Walsh, Juan García e Julianne Hazlewood,
que tem produzido uma consistente literatura antropológica e sociológica sobre o
importante aporte dos negros para o país, sua identidade étnica e cultural, suas
formas organizativas na luta contra o racismo e a exclusão social.
Nesta semana, em que se retomou o julgamento no Supremo Tribunal Federal
sobre a constitucionalidade do Decreto 4.887/2003 (que regulamenta a titulação
de terras quilombolas) pensei muito nas comunidades do Equador, como a de La Chiquita, e em como as lutas e os
contextos dos dois países se comunicam. E lembrei de um texto da Catherine
Walsh, sobre as lutas (des)coloniais, em que ela pergunta se, de fato, os
Estados estão conseguido confrontar o legado da colonialidade e reconhecer a
dívida histórica que têm com a população negra. Uma oportuna pergunta para os
poderes políticos do Brasil.
Fico por aqui.
Um grande beijo.
Flávia Carlet
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