César Baldi (*)
A vaia sofrida pela Presidenta do País, ano passado na Copa das
Confederações, foi, na abertura da Copa, transmutada em típico
xingamento, o que despertou reações estranhas. De um lado, opositores
políticos, também candidatos à Presidência, entendendo como “colhendo o
que foi semeado” (um paradoxo: até no campo da disputa diretamente
política, o imaginário do agronegócio parece estar presente). Por outro,
considerações sobre machismo, sobre respeito a Chefes do Executivo, à
representação que o país está passando aos olhos de milhares de pessoas
no mundo todo. Em grande parte, os xingamentos vieram justamente da ala
VIP do estádio. No dia seguinte, Diego Costa, jogador brasileiro,
naturalizado espanhol, é chamado aos brados de “viado”. Não muito
recentemente, Daniel Alves, mais uma vez, teve comportamento racista por
parte da torcida: desta vez, ao invés do tradicional “macaco”, foi
jogada uma banana, prontamente comida. Em todas estas vezes, as
observações usuais foram: isso é sempre assim nos estádios de futebol.
A diferença- alguns sustentam- é que o público “habitual” destes
novos estádios- construídos como “arenas” de espetáculos- são de
distinta classe social, e isso seria a novidade do fenômeno. Algumas
observações poderiam ser feitas sobre estes comportamentos nestes dias
que vão transcorrendo.
Primeiro, é irônico, se não fosse trágico, que os estádios tenham se
convertido em “arenas”. Justamente porque, nestas, na Roma “antiga”, os
gladiadores, lutadores escravos treinados, lutavam para “entreter o
público”, sendo o duelo somente encerrava quando um deles morria, ficava
desarmado ou ferido sem poder combater. Neste momento, decidia-se se o
derrotado teria como destino a morte ou não. Ainda que, em princípio, a
situação estivesse mais próxima do atual MMA, o interessante é a forma
de luta, o comportamento violento tido como “natural”, a decisão como um
“duelo de vida e morte” e que, na base de tudo isso, estava a
escravidão.
Segundo, passa pelo próprio comportamento da mídia corporativa. Se a
abertura teve considerações sobre o “índio de verdade”, ao se referir ao
guarani, que estendeu uma faixa a favor da demarcação de terras, que
sequer foi mostrado na TV, por outro é um verdadeiro “campeonato” de
escolha, na plateia, das “musas” dos respectivos times. Hulk, no campo,
talvez seja a exceção que confirma a regra, mas tal cobertura
“jornalística” revela muito mais que um machismo ou sexismo por parte
dos meios de comunicação: coloca as mulheres, presentes no estádio, como
meras expectadoras, que nunca estão no mesmo patamar dos “torcedores”,
masculinos. A representação de uma não participação, de cunho
nitidamente político, dentro do estádio, é a outra face da
invisibilização, em muitos espaços, da agência feminina.
Terceiro, a homofobia latente expressa em várias frases de que
“futebol é coisa de macho”, aliás, reproduzida, em sentença, envolvendo o
jogador Richarlyson. Ou os “desmentidos” por parte de Sheik, que,
depois de dar um selinho em amigo e protestar contra o preconceito
“babaca”, tem que reforçar o estereótipo de que não era integrante do
time adversário, o são paulino, o “bambi”. Resposta da torcida: como vão
“zoar” do adversário, se um corintiano dá “um mau exemplo”? Ou seja, o
que era um ato contra a discriminação passa a ser o reforço da
homofobia. Talvez Cristiano Ronaldo seja, neste ponto, a exceção que
confirma a regra: reconhecidamente vaidoso, que se depila, passa cremes e
que não teme ser fotografado em shorts minúsculos e ser tachado de
“gay”, “metrossexual”. E nem- diga-se de passagem- de fazer críticas à
política de Israel! De toda forma, o comportamento em relação a Diego
Costa demonstra que não é somente nos âmbitos religiosos- e, portanto,
dentro de espaços tidos como “evangélicos”, que se manifesta a
discriminação contra orientação sexual. A pesquisa- mais tarde
contestada- do IPEA já revelava este comportamento de boa parte da
população brasileira.
Quarto, já passou da hora de imaginar que a questão racial não está
presente no país da “democracia” que não reconhece a existência de uma
“elite branca”, que acha demérito que existem cotas para universidades
ou mesmo para cargos públicos ( mesmo que o STF já tenha decidido pela
constitucionalidade de ações afirmativas, além daquelas expressamente
previstas na Constituição) e que estabelece distintos “apartheids”
dentro dos espaços públicos e privados, de que a dependência de
empregada e a relutância em reconhecer seus direitos trabalhistas tenha
sido apenas mais uma manifestação. Neste ponto, o fenômeno, longe de ser
brasileiro- a Europa, seguidamente, dá demonstrações de racismo e de
xenofobia as mais variadas- não tem, contudo, tido a atenção- que, em
tempos anteriores, teve- da atuação dos Poderes Públicos, em especial do
Ministérios Público.
Neste sentido, a famosa observação de Fanon de que o “negro não é
homem”, pode ser lida, por uma lado, como mostrando que a articulação do
humano está “tão plenamente racializada que nenhum homem negro pode ser
qualificado como humano”, mas, por outro, como criticando a
masculinidade, uma vez que a figura do negro é feminizada, sugerindo que
tanto a masculinidade quanto o privilégio racial reforçam a noção do
homem. Talvez o melhor exemplo ainda seja a imagem do “casal ideal
brasileiro”, o homem branco e a mulher negra, sugerindo uma associação
entre masculinidade/raça branca e construção da nação como produto de
relações heterossexuais. As representações de nacionalismo e
patriotismo- como vem destacando a teoria queer- tem um forte componente
de sexismo e heteronormatividade.
Se é verdade que os cientistas sociais e os “operadores jurídicos”
não têm prestado a devida atenção para a forma como espaço cria, recria
ou impossibilita o exercício de direitos humanos, o estádio de futebol,
neste ponto, pode servir como uma metáfora, em pleno período de Copa do
Mundo, das lutas que devem ser travadas dentro do Estado- inclusive como
novíssimo movimento social- quanto da denominada “sociedade civil”.
O estádio de futebol, neste sentido, não pode continuar sendo o
espaço-naturalizado- do sexismo, do machismo, da homofobia, do racismo e
todas as formas de discriminações. Há que se combater, cotidianamente,
nestes espaços- públicos e privados- as violações que vêm sendo feitas
aos que, sendo “diferentes”, “diversos” ou “não normativos” possam ter
seus direitos violados porque a opressão é tida como “natural”. A luta
por direitos humanos não é por tolerância, que sempre implica uma
posição colonial de superioridade e de “hybris do ponto zero”, nem
tampouco em nome de de princípios de “dignidade humana”, mas,
fundamentalmente, contra situações de “indignidade” que vêm sendo
naturalizadas e que merecem ser combatidas. A Copa do Mundo talvez seja o
momento para, metaforicamente, dar o “pontapé inicial” na
“naturalização” das discriminações que vêm persistindo e se
intensificando.
(*) César Augusto Baldi, mestre em Direito (ULBRA/RS),
doutorando Universidad Pablo Olavide (Espanha), servidor do TRF-4ª
Região desde 1989,é organizador do livro “Direitos humanos na sociedade
cosmopolita” (Ed. Renovar, 2004). César Baldi é pesquisador associado do Núcleo de Estudos para a Paz e os Direitos Humanos - NEP, CEAM/UnB e integra o coletivo Diálogos Lyrianos (www.odireitoachadonarua.blogspot.com.br)
O Direito Achado na Rua: nossa conquista é do tamanho da nossa luta
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segunda-feira, 30 de junho de 2014
Entre famas e cronópios, mediação com Warat nos leva à literatura
Ele
influenciou toda uma geração de gente aturdida à procura de um mestre.
Este lugar de oráculo, todavia, nunca foi por ele ocupado, embora muitos
assim o quisessem. Ao não aceitar guiar, apontar o caminho, foi
criticado, negado histericamente, ainda que mais tarde (quase) todos
tenham se rendido à postura manifestamente ética de Luis Alberto Warat:
apostar na capacidade de enunciação do sujeito. Teria sido mais fácil,
especialmente para os que cultivam um “narcisismo pedante”, próprio da
academia, ter fundado uma “seita jurídica” qualquer, na sua modalidade
mais contemporânea, a saber, uma “seita jurídica da salvação”. Mas não.
Sabia Warat que não há salvação concedida, completude prometida, pois
isto é empulhação imaginária. E o lugar dos salvadores sempre é o do
canalha. Restou, sempre, a aposta. A aposta no sujeito, na sua
autenticidade, carnavalizando as certezas.
Foi uma convivência intransitiva. Depois de um longo luto, enfim, começo a conseguir falar e apresentar à nova geração sua obra. Uma dívida comigo mesmo. Luis Alberto Warat se foi para ficar. Com ele era impossível não fazer o impensável. Um camaleão de sentidos que apostava no sujeito e, nos últimos tempos, na mediação. Trabalhei com Warat e Juan Carlos Vezzula, nos anos 2000. Desde então acredito na mediação. Não em qualquer mediação, mas na mediação laica.
Talvez uma das chaves para entender a proposta de Warat sobre mediação possa estar na leitura cruzada, ou seja, como metáfora, da literatura, recurso utilizado por ele diversas vezes. Por isso a invocação de Cortazar e seu fantástico livro História de Cronópios e Famas, justamente para indicar duas posições diferentes, a saber, os famas como sujeitos matemáticos, estatísticos, ordenados, loucos por protocolos de atuação. Já os cronópios, por seu turno, gente que aceita o convite da vida, do inesperado e de bom grado a surpresa da faticidade, sem querer impor um padrão de vida. A opção entre famas e cronópios, no caso da mediação, dá a dimensão do que se passa. Embora o discurso seja de aceitar o outro e a violência que ele sempre traz consigo, muitas e muitas vezes o deslizar para “consertar” o sujeito, a relação estabelecida entre os envolvidos, faz com que os famas-mediadores neguem o fundamento da mediação, alienadamente. Assim, parece, com acerto, que somente uma postura de mediador-cronópio pode promover uma mediação sem salvação transcendente, já que vivem o mundo poeticamente.
É que não se pode fazer uma leitura linear do conflito, nem o entender como uma imagem. Ele é sempre a narrativa parcial de uma realidade sustentada por um sujeito que enuncia e que precisa de uma fusão de horizontes (Gadamer) num espaço compartilhado, desprovido, ademais, de verdade verdadeira/fundante. A realidade entendida como limite simbólico, portanto, da ordem do singular, impede que a leitura da realidade única possa se estabelecer, como de regra acontece no plano do Direito. Há um para-além do dito, no qual o sentido de uma possibilidade de interlocução e responsabilização, por básico, demandam um procedimento específico para produção de verdades, sem transcendência. Uma mediação laica, assim, parece ser o desafio neste início de milênio. Essa possibilidade não implica na renúncia aos mitos fundadores de qualquer sistema, mas justamente em reconhecer que a transcendência opera no real, ou seja, em algo que somente se pode tocar pelas bordas, enfim, no qual a palavra irá fundar, por definição, mas que não se pode querer salvar ninguém.
Mais cedo ou mais tarde se percebe que o conflito e sua manutenção ocupam o lugar de um remédio imaginário contra o desalento constitutivo do sujeito, no medo que o desamparo de uma solidão aumente pelo rompimento do vínculo que um processo judicial proporciona, situação mais do que apurada no campo do Direito de Família, em que as separações, divórcios, etc. nunca terminam, justamente porque os sujeitos não podem dar cabo ao que lhes sustenta.... e a resposta estatal padrão, fundamentada na razão, é manca. Sempre. Há um para além do autos, no silêncio, no semi-dito, que condiciona o sentido do que virá depois...
No campo da mediação se constrói um conto com os materiais significantes disponíveis, sem que já se antecipe o final. Difere de uma decisão judicial que acredita ingenuamente dar a razão para alguma das partes (José Bolzan de Morais e Fabiana Spengler). Rompe-se com o padrão moderno de racionalidade, enfim, muda-se de rumo, como apontam João Salm e Rafael Mendonça. Aceita-se a parcialidade de um acontecer. Não há um projeto do que pode ser adequado para os envolvidos. Na singularidade que surgirão, por certo, a procela de significantes que serão dispostos, em algo próximo a uma “bricolage”, em que a garantia decorre da montagem conjunta dos concernidos.
Com efeito, o que se dá, de regra, são atores sociais que amam o Direito, a mediação, mas odeiam gente, contato, proximidade, como fala Luis Alberto Warat (O Ofício do Mediador). Amam as pessoas à distância, nos seus lugares, desde que os deixem em paz. A paz muitas vezes do discurso consciente contracena com o desprezo, a intolerância em relação ao outro. O encontro é similar a lógica do “amor cortês”, no sentido de evitar o encontro com a “coisa”, enfim, como no “amor cortês” é um falso amor, aqui, no caso da mediação por protocolos, é um falso respeito. Por detrás do discurso esconde-se, não raro, uma intolerância primordial. Evitar-se o encontro ao máximo, com medo do trauma que daí advém, sempre. E quando acontece o encontro, por exemplo, com a violência, o conflito, a intolerância impera soberana. Por isso que Lacan (Ética da Psicanálise), ao afirmar que o real existe, mas é impossível, refere-se ao axioma: “ama o teu próximo”, porque ele para ser amado deve permanecer a certa distância, sem encontro, porque quando isto se dá, o trauma acontece. É sobre este trauma que muitas vezes a Mediação é chamada a se manifestar. A sociedade vive numa convivência à distância, um contato sem contato, e os contatos são traumáticos por definição.
Daí o perigo dos discursos de “Paz por Paz”, alienados da dimensão humana, na esperança metafísica — e muitas vezes religiosa — de uma perenidade de humanos tornados em anjos, imaginariamente. Esse é um projeto inalcançável e que fomenta — muito de boa-fé — as atividades sociais totalitárias. Procura-se, neste pensar, uma dessubjetivação, com o apagamento da dimensão de negatividade do sujeito, de sua pulsão de morte (Freud). E os Famas de sempre procuram impor um padrão de subserviência alienada ao desejo, tornando os mediados em marionetes de um discurso opressivo e sem sentido. Procura-se, enfim, eliminar o sujeito humano que molesta.
Aceitar o sujeito é admitir que age sem o saber, movido por uma estrutura subjetiva singular, própria, embalada pelo princípio de morte, na eterna tentação de existir. Pode ser que ali, no conflito, uma tentativa de o sujeito se fazer ver, aparecer. A abordagem tradicional busca calar esta voz, não deixar o sujeito dizer de si, de suas motivações, previamente etiquetadas e formatadas. Há um sujeito no conflito. E a mediação possibilita que ele se faça ver, dando-lhe a palavra, sempre. É com a palavra, com a voz, que o sujeito pode aparecer. A violência em nome da lei, imposta, simplesmente, realimenta uma estrutura de irresignação que (re)volta, mais e mais.
Na mediação se pretende mostrar que não se pode gozar tudo, pois há um impossível a se gozar em sociedade. Busca-se, ao inverso do discurso padrão, construir laço social, e não a imposição de um respeito incondicional kantiano que, por básico, opera na lógica: não discuta, cumpra. Buscar que o sujeito enuncie seu discurso e não despeje enunciados, como diz Lebrun, ocupando um lugar e uma função. A aposta que se faz, neste contexto, pois, é a de que reconhecer o outro, a alteridade, na medida em que se descobre sujeito. Dito de outra forma, aceitar o outro sob a forma de uma relação conflituosa, para somente assim ocorre laço social. Do contrário, há intolerância. Sempre. Zizek (Arriesgar lo imposible: Conversaciones com Glyn Daly) afirma que é preciso de alguma maneira aceitar a violência, porque a tolerância à distância, própria do modelo liberal, é muito mais cínica. Enfim, arriscar o impossível: aceitar e se relacionar com o outro singular, no que a mediação, via cronópios, pode ser um sendero.
No caso de Warat, eu tinha para com ele o que Cortazar chamava de “amizade felina”, no sentido de que ele sabia quem eu era e eu sabia quem era Warat. Não há mais o que falar. Fomos amigos e tchau, cada um para o seu lado. Como hoje e a cada dia que a falta se instaura. De qualquer forma, com a sedução que ele opera, vale a descrição de Pedro Juan Gutiérrez, o qual, por certo, descreve Warat:
“Sou um sedutor. Eu sei. Assim como existem os alcoólicos irrecuperáveis, os jogadores, os viciados em cafeína, em nicotina, em maconha, os cleptomaníacos etcétera, sou um viciado em sedução. Às vezes o anjinho que tenho dentro de mim tenta me controlar e diz assim: ‘Não seja tão filho-da-p..., Luisito... Não percebe que está fazendo estas mulheres sofrerem?’. Mas aí aparece o diabinho e o contradiz: ‘Vá em frente. Elas ficam felizes assim, nem que seja só por um tempo. E você também fica feliz. Não se sinta culpado. É um vício. Sei que a sedução é um vício igual a outro qualquer. E não existe nenhum Sedutores Anônimos. Se existisse, talvez pudessem fazer algo por mim. Se bem que não tenho tanta certeza. Seguramente eu inventaria pretextos para não comparecer a suas sessões e ter de ficar lá na caradura na frente de todo o mundo, botar a mão na Bíblia e dizer serenamente: ‘Meu nome é Luis Alberto Warat. Sou um sedutor. E faz hoje vinte e sete dias que não seduzo ninguém.”
Que a Mediação seduza, famas e cronópios, mas que se adote uma postura poética do mundo, sempre. O mundo ficou menos poético sem Warat.
PS: Vale registrar que são 100 semanas da coluna Diário de Classe, na parceria de André Karam Trindade, Rafael Tomaz de Oliveira e Lenio Luiz Streck. Obrigado aos leitores e à ConJur.
Foi uma convivência intransitiva. Depois de um longo luto, enfim, começo a conseguir falar e apresentar à nova geração sua obra. Uma dívida comigo mesmo. Luis Alberto Warat se foi para ficar. Com ele era impossível não fazer o impensável. Um camaleão de sentidos que apostava no sujeito e, nos últimos tempos, na mediação. Trabalhei com Warat e Juan Carlos Vezzula, nos anos 2000. Desde então acredito na mediação. Não em qualquer mediação, mas na mediação laica.
Talvez uma das chaves para entender a proposta de Warat sobre mediação possa estar na leitura cruzada, ou seja, como metáfora, da literatura, recurso utilizado por ele diversas vezes. Por isso a invocação de Cortazar e seu fantástico livro História de Cronópios e Famas, justamente para indicar duas posições diferentes, a saber, os famas como sujeitos matemáticos, estatísticos, ordenados, loucos por protocolos de atuação. Já os cronópios, por seu turno, gente que aceita o convite da vida, do inesperado e de bom grado a surpresa da faticidade, sem querer impor um padrão de vida. A opção entre famas e cronópios, no caso da mediação, dá a dimensão do que se passa. Embora o discurso seja de aceitar o outro e a violência que ele sempre traz consigo, muitas e muitas vezes o deslizar para “consertar” o sujeito, a relação estabelecida entre os envolvidos, faz com que os famas-mediadores neguem o fundamento da mediação, alienadamente. Assim, parece, com acerto, que somente uma postura de mediador-cronópio pode promover uma mediação sem salvação transcendente, já que vivem o mundo poeticamente.
É que não se pode fazer uma leitura linear do conflito, nem o entender como uma imagem. Ele é sempre a narrativa parcial de uma realidade sustentada por um sujeito que enuncia e que precisa de uma fusão de horizontes (Gadamer) num espaço compartilhado, desprovido, ademais, de verdade verdadeira/fundante. A realidade entendida como limite simbólico, portanto, da ordem do singular, impede que a leitura da realidade única possa se estabelecer, como de regra acontece no plano do Direito. Há um para-além do dito, no qual o sentido de uma possibilidade de interlocução e responsabilização, por básico, demandam um procedimento específico para produção de verdades, sem transcendência. Uma mediação laica, assim, parece ser o desafio neste início de milênio. Essa possibilidade não implica na renúncia aos mitos fundadores de qualquer sistema, mas justamente em reconhecer que a transcendência opera no real, ou seja, em algo que somente se pode tocar pelas bordas, enfim, no qual a palavra irá fundar, por definição, mas que não se pode querer salvar ninguém.
Mais cedo ou mais tarde se percebe que o conflito e sua manutenção ocupam o lugar de um remédio imaginário contra o desalento constitutivo do sujeito, no medo que o desamparo de uma solidão aumente pelo rompimento do vínculo que um processo judicial proporciona, situação mais do que apurada no campo do Direito de Família, em que as separações, divórcios, etc. nunca terminam, justamente porque os sujeitos não podem dar cabo ao que lhes sustenta.... e a resposta estatal padrão, fundamentada na razão, é manca. Sempre. Há um para além do autos, no silêncio, no semi-dito, que condiciona o sentido do que virá depois...
No campo da mediação se constrói um conto com os materiais significantes disponíveis, sem que já se antecipe o final. Difere de uma decisão judicial que acredita ingenuamente dar a razão para alguma das partes (José Bolzan de Morais e Fabiana Spengler). Rompe-se com o padrão moderno de racionalidade, enfim, muda-se de rumo, como apontam João Salm e Rafael Mendonça. Aceita-se a parcialidade de um acontecer. Não há um projeto do que pode ser adequado para os envolvidos. Na singularidade que surgirão, por certo, a procela de significantes que serão dispostos, em algo próximo a uma “bricolage”, em que a garantia decorre da montagem conjunta dos concernidos.
Com efeito, o que se dá, de regra, são atores sociais que amam o Direito, a mediação, mas odeiam gente, contato, proximidade, como fala Luis Alberto Warat (O Ofício do Mediador). Amam as pessoas à distância, nos seus lugares, desde que os deixem em paz. A paz muitas vezes do discurso consciente contracena com o desprezo, a intolerância em relação ao outro. O encontro é similar a lógica do “amor cortês”, no sentido de evitar o encontro com a “coisa”, enfim, como no “amor cortês” é um falso amor, aqui, no caso da mediação por protocolos, é um falso respeito. Por detrás do discurso esconde-se, não raro, uma intolerância primordial. Evitar-se o encontro ao máximo, com medo do trauma que daí advém, sempre. E quando acontece o encontro, por exemplo, com a violência, o conflito, a intolerância impera soberana. Por isso que Lacan (Ética da Psicanálise), ao afirmar que o real existe, mas é impossível, refere-se ao axioma: “ama o teu próximo”, porque ele para ser amado deve permanecer a certa distância, sem encontro, porque quando isto se dá, o trauma acontece. É sobre este trauma que muitas vezes a Mediação é chamada a se manifestar. A sociedade vive numa convivência à distância, um contato sem contato, e os contatos são traumáticos por definição.
Daí o perigo dos discursos de “Paz por Paz”, alienados da dimensão humana, na esperança metafísica — e muitas vezes religiosa — de uma perenidade de humanos tornados em anjos, imaginariamente. Esse é um projeto inalcançável e que fomenta — muito de boa-fé — as atividades sociais totalitárias. Procura-se, neste pensar, uma dessubjetivação, com o apagamento da dimensão de negatividade do sujeito, de sua pulsão de morte (Freud). E os Famas de sempre procuram impor um padrão de subserviência alienada ao desejo, tornando os mediados em marionetes de um discurso opressivo e sem sentido. Procura-se, enfim, eliminar o sujeito humano que molesta.
Aceitar o sujeito é admitir que age sem o saber, movido por uma estrutura subjetiva singular, própria, embalada pelo princípio de morte, na eterna tentação de existir. Pode ser que ali, no conflito, uma tentativa de o sujeito se fazer ver, aparecer. A abordagem tradicional busca calar esta voz, não deixar o sujeito dizer de si, de suas motivações, previamente etiquetadas e formatadas. Há um sujeito no conflito. E a mediação possibilita que ele se faça ver, dando-lhe a palavra, sempre. É com a palavra, com a voz, que o sujeito pode aparecer. A violência em nome da lei, imposta, simplesmente, realimenta uma estrutura de irresignação que (re)volta, mais e mais.
Na mediação se pretende mostrar que não se pode gozar tudo, pois há um impossível a se gozar em sociedade. Busca-se, ao inverso do discurso padrão, construir laço social, e não a imposição de um respeito incondicional kantiano que, por básico, opera na lógica: não discuta, cumpra. Buscar que o sujeito enuncie seu discurso e não despeje enunciados, como diz Lebrun, ocupando um lugar e uma função. A aposta que se faz, neste contexto, pois, é a de que reconhecer o outro, a alteridade, na medida em que se descobre sujeito. Dito de outra forma, aceitar o outro sob a forma de uma relação conflituosa, para somente assim ocorre laço social. Do contrário, há intolerância. Sempre. Zizek (Arriesgar lo imposible: Conversaciones com Glyn Daly) afirma que é preciso de alguma maneira aceitar a violência, porque a tolerância à distância, própria do modelo liberal, é muito mais cínica. Enfim, arriscar o impossível: aceitar e se relacionar com o outro singular, no que a mediação, via cronópios, pode ser um sendero.
No caso de Warat, eu tinha para com ele o que Cortazar chamava de “amizade felina”, no sentido de que ele sabia quem eu era e eu sabia quem era Warat. Não há mais o que falar. Fomos amigos e tchau, cada um para o seu lado. Como hoje e a cada dia que a falta se instaura. De qualquer forma, com a sedução que ele opera, vale a descrição de Pedro Juan Gutiérrez, o qual, por certo, descreve Warat:
“Sou um sedutor. Eu sei. Assim como existem os alcoólicos irrecuperáveis, os jogadores, os viciados em cafeína, em nicotina, em maconha, os cleptomaníacos etcétera, sou um viciado em sedução. Às vezes o anjinho que tenho dentro de mim tenta me controlar e diz assim: ‘Não seja tão filho-da-p..., Luisito... Não percebe que está fazendo estas mulheres sofrerem?’. Mas aí aparece o diabinho e o contradiz: ‘Vá em frente. Elas ficam felizes assim, nem que seja só por um tempo. E você também fica feliz. Não se sinta culpado. É um vício. Sei que a sedução é um vício igual a outro qualquer. E não existe nenhum Sedutores Anônimos. Se existisse, talvez pudessem fazer algo por mim. Se bem que não tenho tanta certeza. Seguramente eu inventaria pretextos para não comparecer a suas sessões e ter de ficar lá na caradura na frente de todo o mundo, botar a mão na Bíblia e dizer serenamente: ‘Meu nome é Luis Alberto Warat. Sou um sedutor. E faz hoje vinte e sete dias que não seduzo ninguém.”
Que a Mediação seduza, famas e cronópios, mas que se adote uma postura poética do mundo, sempre. O mundo ficou menos poético sem Warat.
PS: Vale registrar que são 100 semanas da coluna Diário de Classe, na parceria de André Karam Trindade, Rafael Tomaz de Oliveira e Lenio Luiz Streck. Obrigado aos leitores e à ConJur.
terça-feira, 24 de junho de 2014
Índios são absolvidos por furto após receberem punição de chefe da aldeia
Pena autônoma
Publicado em Consultor Jurídico
22 de junho de 2014, 09:46h
O
reconhecimento de que índios podem ter juridicidade autônoma permitiu
que dois indígenas de Roraima fossem absolvidos após serem acusados de
furtar objetos da bolsa de uma médica em um posto da Fundação Nacional
de Saúde (Funasa) no município de Pacaraima. A Justiça Federal
reconheceu que eles já haviam sido punidos quando o tuxaua (espécie de
chefe) da comunidade do Contão, onde vivem, mandou que capinassem a área
do posto de saúde onde ocorreu o delito.
O episódio ocorreu em 2009. A dupla conseguiu fugir, mas contou ao tuxaua que queria furtar álcool para consumo próprio. Ambos foram denunciados no ano seguinte, porém, em 2013, o Ministério Público Federal pediu a absolvição dos réus, defendendo a possibilidade de aplicação de métodos tradicionais indígenas para a repressão de delitos, conforme o artigo 231 da Constituição. “Cabe ao Judiciário reconhecer a eficácia da punição aplicada, sob pena de realização de dupla punição”, afirmou na época o procurador da República Ígor Miranda da Silva.
Como os objetos foram devolvidos, a solicitação também se baseou no princípio da insignificância. “O produto que os réus procuraram furtar (álcool) notoriamente possui reduzido valor patrimonial, além de configurar uma relação indígena interna, pontuada pela problemática do vício alcoólico”, afirmou o procurador no pedido.
Os argumentos foram aceitos pelo juiz federal Helder Girão Barreto, da 1ª Vara Federal de Boa Vista, em sentença de oito linhas. O magistrado escreveu que, “face à preclusão lógica, o trânsito em julgado ocorrerá na data da publicação”. Com informações da Assessoria de Imprensa do MPF-RR.
Clique aqui para ler o pedido de absolvição.
Clique aqui para ler a sentença.
0005735-10.2010.4.01.4200
O episódio ocorreu em 2009. A dupla conseguiu fugir, mas contou ao tuxaua que queria furtar álcool para consumo próprio. Ambos foram denunciados no ano seguinte, porém, em 2013, o Ministério Público Federal pediu a absolvição dos réus, defendendo a possibilidade de aplicação de métodos tradicionais indígenas para a repressão de delitos, conforme o artigo 231 da Constituição. “Cabe ao Judiciário reconhecer a eficácia da punição aplicada, sob pena de realização de dupla punição”, afirmou na época o procurador da República Ígor Miranda da Silva.
Como os objetos foram devolvidos, a solicitação também se baseou no princípio da insignificância. “O produto que os réus procuraram furtar (álcool) notoriamente possui reduzido valor patrimonial, além de configurar uma relação indígena interna, pontuada pela problemática do vício alcoólico”, afirmou o procurador no pedido.
Os argumentos foram aceitos pelo juiz federal Helder Girão Barreto, da 1ª Vara Federal de Boa Vista, em sentença de oito linhas. O magistrado escreveu que, “face à preclusão lógica, o trânsito em julgado ocorrerá na data da publicação”. Com informações da Assessoria de Imprensa do MPF-RR.
Clique aqui para ler o pedido de absolvição.
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0005735-10.2010.4.01.4200
segunda-feira, 23 de junho de 2014
A aproximação do Direito e os movimentos sociais
17/06/2014 07:52
* Jéssica Ribeiro
Uma Disciplina Complementar de Graduação (DCG) do curso de Direito da UFSM conseguiu mesclar os conceitos de pesquisa, ensino e extensão. Ministrada pela professora Dra. Maria Beatriz Oliveira da Silva, a disciplina intitulada Direito Achado na Rua oferece aos alunos aulas teóricas e atividades de extensão, com o envolvimento da comunidade e de movimentos sociais.
Em outubro do ano passado, o curso de Direito promoveu uma palestra com o professor José Geraldo de Sousa Júnior, da Universidade de Brasília. O tema do encontro foi O direito achado na rua, no qual foi abordada a discussão do Direito nos espaços públicos. A palestra foi um elemento motivador para o resgate histórico do tema, e com isso surgiu a ideia de uma disciplina voltada ao assunto. A proposta de Maria Beatriz era trabalhar com o ensino, para tanto, foi criada a DCG. No entanto, com o objetivo de cumprir o propósito da universidade federal, uniu o ensino, a pesquisa e a extensão.
Através de aulas teóricas, oficinas e palestras, a disciplina resgata a história do movimento Direito achado na rua, e promove vínculos com outros movimentos sociais. Beatriz destaca que para instrumentalizar teoricamente o aluno, a disciplina aborda a apropriação e atualização teórica desse movimento e novas metodologias no Direito, como pesquisa em fontes orais e pesquisa de campo.
A disciplina está na sua primeira turma, a qual pôde acompanhar pelo menos três oficinas, envolvendo temas sociais. O direito à moradia foi um dos temas abordados, na atividade realizada no Barracão da Associação Comunitária Estação dos Ventos do Km 3. A ocasião contou com as presenças da liderança comunitária da região e de um defensor público, onde os alunos puderam acompanhar de perto a realidade da localidade e ouvir os relatos dos moradores.
O direito achado no lixo foi o tema de uma oficina que contou com a participação de Alex Cardoso – representante gaúcho do Movimento Nacional dos Catadores de Materiais Recicláveis e Ângela Costa – assessora técnica do FLD (Fundação Luterana de Diaconia). Também foi ofertada aos alunos a oficina “O Direito achado na rua dialoga com o direito alternativo” com o professor Salo de Carvalho, do Centro Universitário La Salle.
Além da aproximação com a comunidade através dessas atividades, a intenção é preparar teoricamente os alunos para atuação no NIJUC (Núcleo de Interação Jurídica Comunitária), conta Beatriz. A avaliação desta primeira turma é positiva, Beatriz destaca que houve grande interesse e sensibilização dos alunos.
No segundo semestre deste ano, o objetivo do projeto é ir até a Vila Santa Marta e conhecer a história e a organização da região. Para Beatriz, o projeto tende a continuar, pelo objetivo proposto e pela perspectiva e potencialidade do que ainda pode ser construído a partir dele.
* Acadêmica de Jornalismo, bolsista da Coordenadoria de Comunicação Social da UFSM
sexta-feira, 20 de junho de 2014
Ex-reitor da UnB: Partidos estão contra decreto de Dilma, porque querem preservar privilégios e favores(*)
publicado em 20 de junho de 2014 às 13:28
por Conceição Lemes
Em 23 de maio de 2014, a presidenta Dilma Rousseff assinou o decreto nº 8.243/2014, que institui a Política Nacional de Participação Social.
Uma iniciativa histórica, que regulamenta o que já previa a Constituição Federal desde 1988.
Na prática, o decreto 8.243/2014 cria mecanismos concretos de participação social na administração pública por conselhos consultivos populares. Contribui, assim, para a ampliação da cidadania de todos os atores sociais.
“O resultado foi uma histeria geral da direita nos seus meios de comunicação e no parlamento”, observa João Pedro Stedile, líder MST. “O próprio PMDB e os demais partidos conservadores, mesmo sendo base do governo, ameaçam derrubar o decreto federal e boicotar outras votações. Uma vergonha.”
Os partidos contrários alegam que o conteúdo representaria “uma invasão à esfera de competência do Parlamento brasileiro e uma afronta à ordem constitucional do país”.
Intelectuais e movimentos sociais brasileiros reagiram.
Elaboraram um manifesto (na íntegra, abaixo) de apoio ao decreto de Dilma e de repúdio a posições atrasadas de alguns partidos políticos e de outros setores conservadores da sociedade, incluindo Judiciário e mídia:
...o decreto não viola nem
usurpa as atribuições do Poder Legislativo mas tão somente organiza as
instâncias de participação social já existentes no Governo Federal e
estabelece diretrizes para o seu funcionamento…
…o decreto representa um avanço para a
democracia brasileira por estimular os órgãos e entidades da
administração pública federal direta e indireta…
…o decreto não possui inspiração
antidemocrática, pois não submete as instâncias de participação, os
movimentos sociais ou o cidadão a qualquer forma de controle por parte
do Estado Brasileiro…
A participação popular é uma conquista de
toda a sociedade brasileira, consagrada na Constituição Federal. Quanto
mais participação, mais qualificadas e próximas dos anseios da
população serão as políticas públicas. Não há democracia sem povo.
O manifesto será entregue em 1º de julho aos presidentes do Senado,
Renan Calheiros (PMDB-Alagoas) e da Câmara, deputado
federal Henrique Alves (PMDB-RN).Entre os muitos signatários, os juristas e professores Fábio Konder Comparato, Celso Antônio Bandeira de Mello, Dalmo Dallari e José Geraldo de Sousa Júnior, além do próprio Stedile.
O professor José Geraldo é um dos grandes juristas da atualidade. Em 2008, foi eleito reitor da Universidade de Brasília (UnB) por voto direto paritário de professores, estudantes e funcionários da instituição.
Atualmente, integra a Comissão de Educação Jurídica do Conselho Federal da OAB e é membro da Comissão Justiça e Paz da Arquidiocese de Brasília.
Segue a entrevista que eu, Conceição Lemes, e Patrick Mariano, da Rede Nacional de Advogados e Advogadas Populares (Renap), fizemos com o professor José Geraldo sobre o decreto nº 8.243/2014.
Viomundo — O que o decreto de Dilma representa para a democracia do país?
José Geraldo de Sousa– Enquanto diretriz que orienta a administração, ele realiza o que está previsto na Constituição Federal. Traduz a conquista da sociedade, no processo de transição da ditadura para a democracia, de institucionalizar um sistema de participação e de exercício direto da democracia.
Por isso, a Constituição de 1988 foi denominada de “cidadã”. Acrescentou ao modelo liberal-burguês representativo a forma atual de exercício direito do poder popular.
É uma realidade que deriva do amadurecimento protagonista de nosso povo – veja a sua presença reivindicadora nas ruas – e qualifica ainda mais a democracia. Sem essa participação, a democracia é contida e abre espaço a jogos de gabinete, formais e, sobretudo, burocráticos.
A democracia é viva e afluente, sempre se expande. Ela é a possibilidade de criação permanente de direitos.
Viomundo — O que muda em relação ao que temos hoje em dia?
José Geraldo de Sousa — A partir do decreto, uma melhor sistematização, no âmbito do executivo, do que já vem sendo realizado de vários modos. Basta ver que vários desses instrumentos estão previstos na própria Constituição, alguns, inclusive, nomeados.
É importante salientar que as figuras colecionadas no decreto – conselhos, comissões, ouvidorias, mesas de diálogo, fóruns de interconselhos, audiências públicas, consultas públicas, ambiente virtual de participação social — já eram objeto de institucionalização gestora há muito tempo.
Algumas formas, aliás, experimentadas desde muito antes da Constituição e por diferentes governos. Por exemplo, as práticas de orçamentos participativos e as conferências, convocadas estrategicamente como modo de construir políticas públicas e seus planos diretivos.
É o caso das conferências de saúde, combinando a participação de sociedade, governo e especialistas. A 8ª Conferência desenhou todo o sistema SUS depois incluído na Constituição de 1988.
O Legislativo igualmente contribuiu para a implementação do modelo participativo, mantendo o sistema de audiências públicas e as comissões deliberativas, incluindo as comissões de legislação participativa.
O mesmo acontecendo com o Judiciário, que também instituiu sistemas de audiências públicas, o amicus curiae e, finalmente, a instalação do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) para controle do sistema com participação da cidadania.
Viomundo – O que lucra a sociedade?
José Geraldo de Sousa — A sociedade ganha porque se corresponsabiliza pela gestão, exerce o controle social e encontra mecanismos para fazer valer suas demandas de modo institucionalizado. Senão o que lhe restará, numa modernidade com muitos recursos de mobilização, é ir para as ruas e agir com espontaneidade e força, não necessariamente de forma organizada e com mediações negociadoras.
Assistimos a isso desde as jornadas de junho de 2013 e nas mobilizações diante da Copa do Mundo. Sem essas mediações, o processo fica caótico e abre ensejo para excessos, que colocam no mesmo plano desde a criminalidade ao fascismo social.
Viomundo — A quem caberá implementar o plano?
José Geraldo de Sousa — Embora o decreto estabeleça várias interfaces, ele não impõe nenhuma obrigatoriedade e procura estimular os gestores a desenvolvê-las a partir de suas especificidades e do grau de intercomunicação que mantém com a sociedade.
No âmbito do Judiciário, por exemplo, todos os anos são publicados catálogos de “boas práticas” da democratização do acesso à Justiça e incentivadas formas de participação acolhidas pela estrutura do sistema, entre elas os modelos de mediação e de Justiça comunitária. Não há mistério nisso.
Viomundo – Por que o PMDB e alguns partidos conservadores, mesmo da base do governo, estão contra o decreto?
José Geraldo de Sousa — Porque representam a resistência oligárquica que está acostumada a subtrair do processo de elaboração legislativa o sentido de realização democrática dos direitos e, assim, preservar uma prática negociada de privilégios e de favores.
Victor Nunes Leal mostrou esse processo muito bem em seu livro “Coronelismo, Enxada e Voto” e Raymundo Faoro em sua obra “Os Donos do Poder”.
Sem a participação popular, nos modos e pelos instrumentos indicados na Constituição, a representação mantém aquele modelo que já Getúlio Vargas denunciava com a sua frase lapidar: “para os amigos tudo, para os inimigos a lei”.
Manter-se resistente aos avanços democráticos, que inspiraram outras democracias no mundo depois da Constituinte brasileira, é preservar os vícios que caracterizam esses grupos: clientelismo, nepotismo, prebentismo, filhotismo, apadrinhamento. Em suma: a política de favor, impedindo a Política de Direitos.
Viomundo — Como desmontar os argumentos contra o decreto nº 8.243/2014?
José Geraldo de Sousa — Em parte abrindo a esfera pública de formação de opinião, como está sendo feito, com inúmeros comentários sobre a correção da proposta.
Requerer do Congresso que use seus instrumentos de participação – audiências públicas com convites para depoimentos que abram o debate sobre as intenções declaradas e subentendidas que estão na base das manifestações pró contra a medida.
Em resumo: informar o quanto já se avançou nesse campo no Brasil e no mundo.
Viomundo — Embora apenas partidos políticos tenham se manifestado contra o decreto nº 8.243/2014, setores conservadores do Judiciário e a própria mídia vão posicionar contra.
José Geraldo de Sousa — Sem dúvida. Mas isso também faz parte do processo democrático e, no fundo, trata-se de uma disputa interpretativa sobre o conhecimento da Constituição e seu modo de realização.
O importante é participar desse debate porque ele permite caracterizar o lugar dos protagonistas quando tomam posição. Certos setores são mais refratários porque acumularam mais privilégios e usam seu discurso “competente” para disfarçar o lado em que se encontram.
É possível um Judiciário conservador numa sociedade democrática que continue atribuindo à lei democrática o caráter de promessa vazia?
E os meios de comunicação continuarão sem controle social quanto às concessões e ao modo como cumprem a sua função constitucional?
Como se dará a implementação das cláusulas de proteção dos destinatários da comunicação – direito de resposta, cláusula de consciência, ouvidorias, carta de leitor?
Veja que o embate tem também uma agenda oculta. No fundo, é o que se procura proteger por trás de um biombo diversionista e falacioso dos setores conservadores.
Viomundo — Na prática, eles querem manter intacta a força dessas mesmas elites?
José Geraldo de Sousa — É evidente. E tanto mais aguerridamente quanto interesses corporativos e ideológicos são trazidos para a agenda de um debate aberto e com muitas vozes — propriedade fundiária, corporativismos, faccionismos religiosos ou de qualquer tipo.
Até quando assumem discursos reformistas o fazem ao estilo gatopardista (para lembrar Lampedusa e sua obra O Leopardo): se for o caso, entregar anéis para preservar dedos, ou, como posto pelo autor italiano na boca do Princípe Tancredi (que coincidência), “reformar para conservar”.
Viomundo — Por que eles são contra a participação popular?
José Geraldo de Sousa– Porque para eles povo não é realidade, mas, sim, tema.
Só existe no discurso, mas não é reconhecido na política. São chamados de “classe perigosa” (como mostrou Alberto Passos Guimarães em seu livro homônimo), para as quais, como no programa de um antigo presidente da república (Washington Luís, também ex-prefeito de São Paulo), “a questão social é questão de polícia”. Quando a política se apresenta como ação popular o primeiro impulso é criminalizar.
Viomundo — Esse plano poderia diminuir a pressão de lobistas econômicos sobre o Congresso?
José Geraldo de Sousa — Acho que pode qualificar essa pressão, até mesmo modificar o entendimento sobre a função do lobby. E, assim, impor aos congressistas formas mais qualificadas também para o trabalho parlamentar, que considero muito importante e muito mais amplo do que o momento deliberativo em comissões ou no plenário. Aproximará mais os parlamentares da sociedade organizada e ensejará disposição mais republicana à política.
Viomundo — Como nós, enquanto sociedade, podemos contribuir para que esse plano seja aprovado?
José Geraldo de Sousa — Eu acabo de assinar um manifesto bem fundamentado de juristas em defesa do projeto.
Como professor e como membro de organizações da sociedade civil (OAB, Comissão Justiça e Paz), vou levar a discussão para os espaços em que atuo.
Esta entrevista é outra maneira de contribuir para a formação de opinião. Cada um, em seu âmbito de atuação, comunitária, corporativa, social ou política deve procurar também formar opinião e tomar posição.
De minha parte procuro assumir minha atitude de cidadania responsável, política e teoricamente. Nesse duplo aspecto, fortaleço a minha prática acadêmica e social. Por isso, no meu âmbito de atuação, que é o Direito, procuro não perder de vista o entendimento da fonte social que o fundamenta.
Durkheim dizia que o direito é a dimensão visível da solidariedade. Cuida-se de saber, entretanto, qual o direito. E, aqui, relembro Roberto Lyra Filho para acentuar que as normas em si não constituem o direito, mas esse surge da sociedade e é por ela realizado como regra material do agir, traduzindo o que aquele notável professor denominava O Direito Achado na Rua, vale dizer, a enunciação dos princípios de legítima organização social da liberdade.
Não é a esse direito que a lei de introdução às normas do direito brasileiro alude, quando afirma em seu texto que a sua validade decorre da concretização dos fins sociais a que se destina?
E que essa validade é aferível não só nas normas em que o direito procura se manifestar mas também por meio de princípios que os designem?
Por isso que se reivindica, atento à sua questão, às condições de concretização da solidariedade, operando, pelo direito a desconcentração da propriedade, em nome da distribuição equitativa e não da acumulação egoísta, do interesse e da função social que os bens devem realizar, ou do alcance ético do próprio desenvolvimento.
De resto, essa é a lição que nos trouxe o grande constitucionalista português J. J. Gomes Canotilho. Fazendo alusão a O Direito Achado na Rua, ele lembra a necessidade de o jurista se abrir a outros modos de consideração da norma do direito. Por meio do olhar atento às exigências do justo, ele precisa levar em conta as teorias da Justiça, mas também teorias da Sociedade.
(*) Publicada originalmente no Blog Viomundo
domingo, 15 de junho de 2014
Política para Além das Eleições: Cenários, Desafios e Impactos Éticos para Brasília e o País.
A Comissão Justiça e Paz, em mais
uma conversa, traz para diálogo com as pastorais, movimentos e serviços da
Arquidiocese, mas também com a sociedade brasiliense, um tema que vai
desencadear uma série de reflexões de grande relevância: Política para Além das Eleições: Cenários, Desafios e Impactos
Éticos para Brasília e o País.
Nessa série de conversas sobre
justiça e paz, convidamos para conosco refletir, experimentados analistas da
conjuntura política, que se destacam em seus campos de atuação respectivos por
interpretações consistentes sobre o processo político, embora não sejam
militantes da ação partidária. São eles o jornalista
Beto Almeida, Diretor da TV Comunidade e da Telesur, a também jornalista e escritora Dad Squarisi,
editora de opinião do Jornal Correio Braziliense e o professor da Universidade de Brasília Elimar Pinheiro do Nascimento.
Para a CJP esse debate se faz tanto
mais necessário quanto ele representa atender à exortação feita pelo Papa
Francisco para balizar o diálogo entre o Estado e a sociedade, porque como ele
diz, “ao fazê-lo, sempre se pode propor
com clareza os valores fundamentais da existência humana, para transmitir
convicções que possam traduzir-se em ações políticas” (Exortação Evangelii Gaudium, 241).
As Conversas de Justiça e Paz
acontecem toda primeira segunda-feira
de cada mês, no Auditório Dom José Freire Falcão, Cúria Metropolitana de Brasília,
Esplanada dos Ministérios, junto à Catedral, às 19h. Desta vez, o encontro será no dia 07 de julho próximo.
sexta-feira, 13 de junho de 2014
No perímetro da FIFA não há cidadania
Karoline Martins(*)
O que seria uma caminhada para a Fifa Fan Fest e um ato pacífico e lúdico se converteu em um festival de atrocidades e violência policial - por iniciativa dos próprios militares. Na abertura da copa do mundo, a polícia do DF mostrou a que veio e, claro, não foi para garantir o direito de manifestação, nem o direito de ir e vir dos cidadãos (apenas de alguns).
Centenas de pessoas com faixas, tambores, bandeiras do Brasil e autofalantes saíram hoje da Praça do Relógio, em Taguatinga-DF, em direção à Fifa Fan Fest. Todo o tempo, a faixa da esquerda da pista foi deixada livre, para que os carros pudessem passar livremente. Em nenhum momento, a manifestação impediu o direito de ir e vir dos cidadãos, que, assim como os manifestantes, também queriam assistir o jogo. Em nenhum momento também, houve depredação ao patrimônio público ou qualquer ato de violência por parte dos manifestantes.
Ironicamente, quem “obstruiu a via” (como eles gostam de dizer) e violou o direito constitucional e fundamental de ir e vir dos cidadãos foi a Polícia Militar. Antes do acesso à entrada da Fifa Fan Fest, um cordão policial fechava, de uma lateral à outra, a avenida.
Logo atrás deles, a cavalaria estava a postos, pronta para avançar sobre os” inimigos da Fifa” e, por conseguinte, da polícia e do Estado brasileiro.
Quando a manifestação alcançou o cordão policial, instransponível (pelo menos não sem violência, sangue e arbitrariedades de todo o tipo), trava-se esse diálogo entre um dos integrantes do Comitê Popular da Copa, Tiago, e o coronel Nevilton, da PM:
“Tiago: nossa manifestação é pacífica, nós queremos entrar na Fifa Fan Fest e assistir ao jogo!
Coronel: até aqui, a manifestação de vocês é legal, daqui pra frente não. Aqui é perímetro da Fifa, daqui ninguém passa.
"Tiago: E se nós encerrarmos a manifestação agora, entregamos as faixas e cartazes à PM e seguimos para assistir ao jogo?
Coronel: Também não vão passar.
Tiago: Mas por que?
Coronel: Por que não. Vocês não vão passar. Voltem para a Praça do relógio e encerrem a manifestação lá. Daqui ninguém passa.”
Tiago tentou argumentar que eles estavam violando o direito de manifestação, que quem estava violando o direito de ir e vir eram eles, que eles queriam entrar na Fifa fan Fest e assistir o jogo, mas nada disso adiantou.
“Quer dizer então, que deixamos de ser cidadãos? Não somos mais cidadãos”, concluiu Tiago, ao reportar o diálogo para os demais manifestantes, pelo autofalante, que gritavam : “nós também pagamos impostos!”, “nós também queremos assistir o jogo!”.
Não podemos transitar livremente no espaço público. Veja que a discussão já ultrapassou o direito de manifestação, que já foi enterrado faz tempo, no país. Apenas transitar, sem manifestar, até isso nos tiraram.
Mas os manifestantes permaneceram lá, e a polícia “teve que tomar providências”. Vi policiais avançando contra os manifestantes, quietos e pacíficos, e atingindo-os com spray de pimenta. Eu também fui atingida.
A polícia avançou contra manifestantes que seguravam uma faixa e entraram em confronto com eles, tomaram e rasgaram a faixa. Um novo tipo penal tinha sido criado: porte ilegal de faixas e cartazes no perímetro da FIFA, assim como o porte de vinagre no ano passado.
Ouvi isso da boca do coronel Nevilton, que disse com todas as letras a uma amiga: “aqui você não pode ficar, porque está portando cartazes e faixas, isso é proibido no perímetro da FIFA”.
Um jovem que estava de costas para o cordão de isolamento feito pelos policiais, e não estava cometendo absolutamente nenhum ilícito foi puxado, detido pela polícia e levado para a delegacia. Sob qual alegação? Os policiais não sabiam dizer. Iam “descobrir” os crimes lá. Talvez resistência, perturbação à ordem pública ou até mesmo incitação a crime (!). Outro manifestante também foi preso, jogado no camburão e levado para a delegacia, também sem acusação definida.
Mas não acabou por aqui. Érika Medeiros, advogada da AJUP Roberto Lyra Filho, que viu essa abordagem policial e tentou acompanhar a prisão foi impedida de exercer sua profissão pelo próprio coronel da PM. Foi agredida pela polícia com empurrões, puxões pelo braço e uma chave de pescoço. Até que conseguiu se identificar como advogada, para acompanhar o jovem detido.
Não tinha outro jeito, a manifestação recuou e voltou para a Praça do Relógio. Minutos depois, grupos de pessoas com bandeiras e camisas do Brasil passavam pela barreira policial, tranquilamente.
Qual a diferença entre os manifestantes e eles? São todos cidadãos, pagam impostos, trabalham, querem assistir o jogo pacificamente. Mas os manifestantes discordavam da maneira com a qual o mundial foi organizado, com violações a direitos humanos, remoções forçadas, estádios bilionários e arbitrariedades de todos os tipos.
A FIFA, com a anuência do Estado brasileiro, decide quem é cidadão e quem não é. Quem pode transitar livremente nos espaços públicos e quem não pode. Quem pode comercializar mercadorias e quem não pode. Quem pode manifestar livremente sua opinião e quem não pode. Quem discorda dos métodos da FIFA, não é mais cidadão.
Um Estado que se diz democrático não pode agredir manifestantes, tomar seus cartazes, calar suas vozes, impedir advogados/as de exercer sua profissão, vender seu povo, suas leis e sua soberania a organismos internacionais privados; criar um Estado de Exceção, dentro do Estado de Direito.
Se hoje alguém rasgou a Constituição Federal, violou direitos e cometeu crimes, esse alguém - não tenho dúvida - foi o Estado e seu braço mais repressor, a Polícia Militar.
Esse será o tom da copa do mundo no Brasil: mais violência contra quem ousar denunciar as violências, mais repressão contra quem ousar questionar as arbitrariedades. Não se engane, a democracia e a liberdade precisam ser construídas todos os dias. Por mim, por nós, por você. Por isso, as manifestações não vão parar.
(*) Advogada da Assessoria Jurídica Universitária Popular – AJUP - Roberto Lyra Filho.
Mestranda em Direito pela UnB na linha Direito Achado na Rua e Pluralismo Jurídico.
quinta-feira, 12 de junho de 2014
Um xeque contra a cidadania
Quem trabalha ou estuda gestão pública no Brasil deve estar acostumado a ser procurado por estrangeiros que tentam entender melhor as importantes inovações levadas a efeito no país, especialmente a partir da Constituição de 1988, no sentido de criar meios e oportunidades para permitir a participação direta dos cidadãos nos processos de política pública.
Dos pioneiros Orçamentos Participativos de Porto Alegre, que hoje são realidade em muitas cidades da Europa e até mesmo nos Estados Unidos – a partir do exemplo de Vallejo, na Califórnia – às consultas públicas que subsidiaram iniciativas legislativas de grande envergadura, como o Marco Civil da Internet, essas interfaces socioestatais se tornaram parte da gramática política contemporânea e, para usar uma expressão que está na ordem do dia, um dos principais legados do Brasil para a teoria e a práxis democrática do limiar do século XXI.
Curiosamente, aliás, isso sequer tem se dado exclusivamente no contexto de governos ou de projetos de esquerda. Ao contrário, instituições como o Banco Mundial também cumpriram um papel central na difusão da ideia de participação, no que enxergavam ser um elemento para a “boa governança” dos países que, ao longo dos anos 1990, experimentavam processos de abertura econômica, integração à economia global e adesão ao Estado de Direito.
Foi completamente inesperado, portanto, o Editorial com o qual o Estadão saudou a edição, pela Presidenta Dilma, do Decreto n. 8.243/2014, que “Institui a Política Nacional de Participação Social – PNPS e o Sistema Nacional de Participação Social – SNPS, e dá outras providências”.
No texto, o jornal acusa o Decreto “criar” estruturas para dar “acesso privilegiado” a certos atores (os “movimentos sociais”, diz a publicação, assim, entre aspas) em “todos os órgãos e entidades da administração pública federal direta e indireta”.
Essa medida, conclui o Editor, traduz uma visão de que “o Poder Legislativo é dispensável”, pois ignora que “a participação social, numa democracia representativa, se dá através dos seus representantes no Congresso, legitimamente eleitos”, buscando “por decreto, instituir outra fonte de poder”.
O que era, porém, apenas uma cobertura desinformada – no início por obra do Estadão, mas que depois se propagou por veículos como a Veja e a Folha –, acabou dando combustível para disputas políticas de mais grosso calibre. Pouco depois da edição do Decreto, os Deputados Mendonça Filho e Ronaldo Caiado, do DEM, submeteram Projeto de Decreto Legislativo (PDC n. 1.491/2014) buscando sustar a medida tomada por Dilma. Para justificar a iniciativa, disseram os Deputados proponentes que enxergam como “absolutamente clara a intenção da Presidente da República: implodir o regime de democracia representativa (...) mediante a transferência do debate institucional para segmentos eventualmente cooptados pelo próprio Governo”.
No final desta terça-feira, 10, o conflito escalou e integrantes da própria base passaram a ameaçar Dilma a revogar o Decreto n. 8.243/2014, sob pena de que o PDC de Mendonça Filho e Caiado seja colocado em votação e, garantem os autores das ameaças, derrubado pelo Congresso. “Se até amanhã o governo não atender, nós vamos votar a favor da derrubada”, disse o presidente da Câmara, Henrique Eduardo Alves (PMDB-RN).
Há motivos, porém, para tamanha controvérsia?
Se houver, ao que parece, eles não se relacionam ao Decreto. Afinal, a leitura atenta desse texto indica que apenas e tão somente:
Art. 5º Os órgãos e entidades da administração pública federal direta e indireta deverão, respeitadas as especificidades de cada caso, considerar as instâncias e os mecanismos de participação social, previstos neste Decreto, para a formulação, a execução, o monitoramento e a avaliação de seus programas e políticas públicas.
Ou seja:
Art. 6º (...): I – conselho de políticas públicas; II – comissão de políticas públicas; III – conferência nacional; IV – ouvidoria pública federal; V – mesa de diálogo; VI – fórum interconselhos; VII – audiência pública; VIII–- consulta pública; e IX – ambiente virtual de participação social.
Fica evidente, portanto, que o texto do Decreto não estabelece a obrigatoriedade de criação de quaisquer interfaces em quaisquer órgãos ou entidades: apenas prevê que estes devem considerá-las, conforme “as especificidades de cada caso”.
E nem poderia ser de outro jeito, pois cada política pública pode comportar diferentes formas de interface com a sociedade, as quais devem ser escolhidos e instituídos caso a caso. O Decreto, porém, se limita a relacionar as principais interfaces já existentes e a estimular os gestores a incorporá-las em suas práticas cotidianas.
Além disso, o texto circunscreve bem o âmbito de incidência dessas interfaces: os programas e políticas a cargo dos órgãos e entidades da administração. Programas e políticas que estão sujeitos, como sempre estiveram, a diversos controles do parlamento: desde o do TCU, o qual tem por objeto conformidade dos atos dos gestores com leis ou regulamentos, até o controle mais propriamente político, o qual pode ser exercido pela convocação de responsáveis para dar esclarecimentos ou mesmo pelo restrição de recursos, quando da apreciação da lei orçamentária.
O que o Decreto faz, por outro lado, é criar uma série de balizas para a operação das ditas interfaces, estabelecendo parâmetros iniciais para orientar-lhes o funcionamento, bem como atribuindo à Secretaria-Geral da Presidência a competência para acompanhá-las, orientá-las e avaliá-las frente ao conjunto das experiências de participação em curso na máquina pública.
Mas isso também tem boas razões de ser. Afinal, o Decreto ganha forma em um quadro no qual, mesmo entre os entusiastas das interfaces socioestatais, subsistem motivos para acreditar que elas sempre podem prometer mais do que consegue entregar.
Da parte do governo, não é incomum que elas venham a servir de veículos para a mera de legitimação de opções prévias dos gestores – e não como mecanismo de escuta e construção de arranjos ou soluções inovadores. Da parte da sociedade civil, não é incomum que elas venham a ser capturadas por grupos específicos que, apenas por serem mais organizados, conseguem se sobressair frente aos demais que compõem a totalidade desse segmento.
É digno de nota, assim, que o Decreto preveja requisitos como a “garantia da diversidade” (art. 10, III) e a “rotatividade dos representantes da sociedade civil” (art. 10, V), para os Conselhos, ou a “sistematização das contribuições recebidas” (arts. 16, III e 17, III), a “publicidade, com ampla divulgação de seus resultados e a “disponibilização do conteúdo dos debates” (arts. 16, IV e 17, IV) e o “compromisso de resposta às propostas recebidas (arts. 16, V e 17, V) para as audiências e consultas públicas. Tais previsões mostram que há, na verdade, uma preocupação com que não haja cooptação – ao contrário do que, maldosamente, supõem Mendonça Filho e Caiado.
O Decreto, em suma, apenas cria meios para que a administração pública federal possa gerir melhor as interfaces entre o Estado e a sociedade civil nas políticas públicas. É um ato que disciplina e organiza relações já em curso, sem obrigar nenhum órgão à adoção de nenhum mecanismo de participação e, muito menos, desvalorizar função representativa do Congresso Nacional. Ao ameaçar derrubá-lo, porém, não é apenas um texto que os congressistas colocam em xeque: é a cidadania brasileira, cujo acúmulo e maturidade, como se vê, estão muito à frente do que alguns seus intérpretes ou mandatários parecem capazes de enxergar.
(*) FABIO DE SÁ E SILVA é PhD em Direito, Política e Sociedade pela Northeastern University e professor substituto de Teoria Geral do Direito na Universidade de Brasília (UnB). As opiniões contidas neste artigo são de caráter estritamente pessoal. Fábio participa também do coletivo Diálogos Lyrianos (O Direito Achado na Rua). Este texto foi originalmente publicado no site Carta Maior, na coluna Princípios Fundamentais do qual o autor é o editor.
quarta-feira, 11 de junho de 2014
UMA BREVE EXPOSIÇÃO ACERCA DE UMA CONSTRUÇÃO SOCIAL DA JUSTIÇA: A VINCULAÇÃO ENTRE DIREITO E SOCIEDADE NA CONTEMPORANEIDADE (*)
Pedro Henrique M. de Farias
Graduando
em Direito pela Universidade de Brasília
Pensar as reivindicações sociais,
nutridas de todo o seu valor potencial, nos remete à noção da capacidade da
demanda a qual detém o corpo social vis-à-vis o âmbito da política e do
direito. Isso quer dizer que a sociedade, enquanto administrada, detém,
sobretudo, no contexto democrático e representativo, a força de estabelecer
demandas ao escopo de seus administradores, ou os seus representantes.
Nessa
medida, recorrendo-se, neste breve trabalho, à história social e política do
Brasil, podem ser mencionados alguns dos principais acontecimentos, a exemplo
da Inconfidência Mineira, esta havendo sido ponderada enquanto um movimento
elitista, todavia que, para sua época, fora marcada por demandas sociais contra
a ordem política vigente, a Conjuração Baiana, as insurgências do período
regencial, bem como, a Marcha da Família com Deus pela Liberdade, os Caras
Pintadas e, mais recentemente, os protestos radicados em junho de 2013 por todo
o território nacional.
Todas
as formas de reivindicação mencionadas, por mais diferentes, em termos de
demandas, que elas tenham sido, concretizam o fato de que a história do Brasil
fora marcada, desde longa data, pela atuação e demanda social em maior ou menor
grau. Conforme observado pelas ideias de Boaventura de Sousa Santos (1980, p.
116), é como se cada célula, cada indivíduo fosse imbuído, dentro de seu
macrocosmo social, a um “centro de produção de juridicidade”,dotado de
soberania. Conforme providencialmente ele pondera, “no momento, porém, em que
os conflitos sugem, o choque não é meramente entre reivindicações fáticas ou
normas jurídicas isoladas, é antes entre duas ordens jurídicas, duas pretensões
globais de juridicidade ou ainda entre duas vocações contraditórias (mutuamente
exclusivas) de universalização jurídica.”. Assim, percebemos o grau de mudança
do contexto positivista de uma neutralidade científica, que tolhia da égide
jurídica, a inserção de valores, princípios e ações que visassem à produção
normativa. A neutralidade, vale dizer estaria na desvinculação entre política e
direito, num ato político de vontade discricionária do operador jurídico,
conforme preconizado por autores positivistas como Hans Kelsen.
Em
sentido similar, António Manuel Hespanha (2007, pp. 55-56), de forma perspicaz
aponta para o saber jurídico enquanto inserido no âmbito social. Isso é mister
à noção da participação e do poder decisório que se amarra à sociedade, pois,
conforme ele salienta, o ato de reger “a interpretação, a integração, os
conflitos de leis – não podem ser decididas autoritariamente pelo legislador”.
Isso quer dizer que haveria um deslocamento do centro de produção e demanda normativa
que não estaria mais na hierarquia do Estado, mas sim no potencial da
sociedade, abarcando o pluralismo jurídico: “nomeadamente quando eles
(pluralistas) negam o monopólio estatal da criação de direito e admitem que a
comunidade, constituída por uma pluralidade de grupos autônomos, pode criar o
seu próprio direito plural, correspondendo a essa multiplicidade de interesses
organizados, mas não hierarquizados ou harmônicos entre si, que coexistem no
seu seio.”. Isso, de mais a mais, seria
o que corresponderia ao agir, ao participar social enquanto programador de
demandas e consolidador da democracia: “o sentido democrático exige que todas
as vozes do povo se possam fazer ouvir” (ibidem, p. 129).
Participando
do pano de fundo teórico para tal tema, pode ser interessante pôr em voga o
debate que correspondeu ao entrelaçamento entre as noções de direito, política,
liberdade e participação social. Numa mister linha de pesquisa que abrange, com
propriedade, essa urdidura está o Direito Achado na Rua. Esse campo
contemporâneo de estudo está consistentemente vinculado à proposta e a reflexão
sobre os principais desafios, problemas e a necessidade de voz que a população
depende na consolidação da ideia de justiça e de liberdade social.
Para
essa discussão, com efeito, faz-se mister a menção de um dos estudiosos mais
proeminentes nessa área: Roberto Lyra Filho. Lyra Filho publica, no início dos
anos 1980, no Brasil, o que ficou conhecido como uma obra concisa e, ao mesmo
tempo, densa sobre temas pertencentes à grande área das ciências humanas e
sociais, no que tange ao entrelaçamento entre direito e sociedade, ou o
pensamento acerca da chamada sociologia geral e jurídica, radicada na
perspectiva da dialética jurídica, entre a justiça e a ordem, vinculando um real
fato social (SOUSA JÚNIOR, 2002).
Conforme
propõe o autor, deve-se prezar pelo Direito não como de um âmbito excludente, top
down, de cima para baixo, que venha a tolher a participação social. Isso
quer dizer que, em sentido contrário, bottom up, as lutas e demandas
sociais comportam o que seria um dos fundamentos do pensamento socialista, de
que o direito não deveria ser estatal. As normas, também, denotariam o sentido
para além do mero controle social. Isso, para justificar a noção de crítica ao
positivismo em seu “mito da 'neutralidade'”, conforme apontado, o qual era
desvelado pela ótica dominadores versus dominados, ou seja, os
formuladores da lei em prejuízo dos destinatários ou o povo.
A
lógica socialista far-se-ia nessa dinâmica espoliadores/espoliados. Aqui entra,
ademais, a noção fundamental da Sociologia Jurídica, enquanto a consideração
premente da cientificidade dos fatos sociais, ou o que Lyra Filho mitiga na
crítica à metafísica do social. Quer dizer, a dialética “não tolera aquela antinomia
(contradição insolúvel de direito positivo e natural, tomados como unidades
isoladas, estanques e desligadas da totalidade jurídica, na totalidade maior,
histórico-social.” (LYRA FILHO, 1982, p. 29). Sendo assim, o deslocamento do
protagonismo do Estado registra a sua qualificação secundária, submetida ao
protagonismo primário da sociedade, dentro da dialética do Direito, sob a
Sociologia Jurídica. Conclui ele, “aplicando-se ao Direito uma abordagem
sociológica será então possível esquematizar os pontos de integração do
fenômeno jurídico na vida social, bem como perceber a sua peculiaridade
distintiva, a sua “essência verdadeira”” (ibidem, p. 33).
Com
efeito, devemos pensar, pelo legado de Lyra Filho, na sociedade enquanto
protagonista de direitos, enquanto dinâmica e de onde parte o núcleo do Direito
e da sua capilarização, dialeticamente vinculando um viés centrípeto, de fora
para dentro, de coesão, e de um norte centrífugo, de dentro para fora,
ensejando um não engessamento social e da dinâmica jurídica. Isso sedimentaria
a noção de direito/antidireito.
Com
efeito, podemos concluir que o termo, conforme ficara conhecido de Direito
Achado na Rua, corresponde a essa intersecção entre direito e sociedade; entre
a crítica do direito e da sociedade em prejuízo do cientificismo e do
positivismo. A noção de liberdade, de participação e de autonomia é o que nutre
o âmbito social dialeticamente ao Direito, pois “o direito, em resumo, se
apresenta como positivação da liberdade conscientizada e conquistada nas lutas
sociais e formula os princípios supremos da Justiça Social que nelas se
desvenda” (ibidem, p. 57). Assim, a justiça e o direito não são
metafísicos, mas sim sedimentados e legitimados pelo fato social. O ensino
jurídico, nessa tessitura, é partícipe do legado que constituiria a
contribuição ensejada pelo Direito Achado na Rua e por outros autores como
Evandro Lins e Silva. Na medida em que a dogmática jurídica fosse minada strictu
sensu, ou seja, no distanciamento para com o cientificismo positivista, em
aproximação para com o estudo da Sociologia Geral e Jurídica, bem como de uma
Filosofia Jurídica, incorporar-se-ia, assim, o norte da discussão de uma
construção dialética do direito.
Como
perspectivas atuais, podemos dizer que o estudo de Lyra Filho correspondeu à
ideia de que a sociedade assenta dialeticamente a relação com o direito. O
acesso à justiça, conforme previsto pela futura Carta de 1988, citando o Art.
1°, parágrafo único, de que “todo poder emana do povo, que o exerce por meio de
representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição” (BRASIL,
1988, p. 11), bem como o Art. 5°, incisos LXXIII, que formula que “qualquer
cidadão é parte legítima para propor ação popular que vise a anular ato lesivo
ao patrimônio público ou de entidade de que o Estado participe, à moralidade
administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico-cultural, ficando o
autor, salvo comprovada má-fé, isento de custas judiciais e do ônus de
sucumbência” (ibidem). Por fim, há o Art. 134, que diz que “a Defensoria
Pública é instituição essencial à função jurisdicional do Estado, incumbido-lhe
a orientação jurídica e a defesa, em todos os graus, dos necessitados, na forma
do art. 5°, LXXIV” (ibidem, p. 41).
Abordando-se
os acontecimentos de junho de 2013, chegamos, assim, à noção de que a liberdade
de expressão, bem como a necessidade de expressar as demandas, observando-se a
sua amplitude em caráter nacional, mostrou que a situação jurídica e política
do país se concatenara a um entrelaçamento para com a sociedade. A democracia
preza, assim, pela conferência de voz e de discurso ao, bem como pela
consideração ao povo. Com efeito, o impacto registrado por essas demandas
registra o fato da importância da contribuição de estudiosos como Lyra Filho,
pois ele, mesmo anos antes da atual Carta Magna, já observava e dotava de
fundamental importância a égide do fato social e da necessidade de vinculação
do direito à sociedade, com o desiderato da Sociologia Jurídica.
Referências Bibliográficas
BRASIL.
Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil.
Brasília, DF, Senado, 2012.
HESPANHA, António Manuel. O caleidoscópio do
direito: o direito e a justiça nos dias e no mundo de hoje. Coimbra:
Edições Almedina, 2007.
LYRA FILHO, Roberto. O que é direito?.
São Paulo: Brasiliense.
SANTOS,
Boaventura de Sousa. “Notas sobre a história jurídico-social de Pasárgada”. In:
SOUTO, C.; FALCÃO, J. (Org.). Sociologia e direito: textos básicos de
sociologia jurídica. 1. ed. São Paulo: Pioneira, 1980, p. 109-117.
SOUSA JR., José Geraldo de. Sociologia
Jurídica: Condições e Possibilidades Teóricas. Sergio Antonio Fabris
Editor: Porto Alegre, 2002, pp. 11-51.
(*) Texto preparado para a disciplina Sociologia Jurídica, Faculdade de Direito da UnB, 1º semestre de 2014
segunda-feira, 9 de junho de 2014
O silenciamento das vozes que vêm da rua: sobre as manifestações, a ideologia de segurança e a criminalização dos movimentos sociais.
Helena Rosal Silva (*)
O Direito Achado na Rua, expressão cunhada por
Roberto Lyra Filho, representa uma concepção de direito que emerge dos espaços
públicos – da rua-, nos quais os o povo – titular do poder - atua em conjunto,
em um protagonismo coletivo. Essa experiência insurge como transformadora e
emancipadora para os atores sociais que se constituem nos novos sujeitos de
direito. A rua é
vista, nessa perspectiva, como espaço de comunicação, lugar de protesto, de um
protagonismo transformador. Ela é arena de luta pela liberdade e reivindicação
social.
E foi nesse lócus
específico que, em Junho de 2013, emergiu um conjunto de manifestações de
grupos insatisfeitos com a conjuntura brasileira, marcada pela corrupção dos
políticos, a falta de respeito aos direitos das minorias, os excessivos gastos
com megaeventos, além da forte repressão policial e criminalização dos
movimentos sociais.
Segundo
sociólogo Manuel Castells, no livro Redes
de indignação e esperança, essas manifestações civis são face de um
movimento democrático de reconhecimento dos sujeitos, de constituição de um
espaço crítico instituinte e da materialização de direitos através de uma
cidadania ativa.
A
normatividade estatal, puramente legalista, revela-se incompatível com as formas cada vez mais fluídas da esfera social.
O pluralismo jurídico apresenta-se, assim, como um caminho a se seguir, marcado
pela relativização do institucional e pelo deslocamento do processo de
elaboração normativa para o social. Essa concepção das redes em formas horizontais
e descentralizadas representa uma nova forma de se encarar o Direito.
Diante de tudo isso, conclui-se que a criação de direitos
depende da vivência concreta da democracia política, da abertura do campo
social, de modo que os sujeitos possam se organizar para questionar criticamente
a realidade, expondo publicamente os seus problemas e reivindicando as soluções
necessárias. É desse modo que os movimentos sociais são acolhidos pelo Direito,
de forma a tornar juridicamente válida – e, portanto, legítima – a sua
manifestação e o seu inconformismo.
Nessa lógica, a criminalização dos movimentos sociais,
apoiada por uma estrutura repressiva, revela-se incompatível com a democracia.
Esses movimentos, quando se mobilizam em atos políticos para lutar por
direitos, não estão contrários à lei. Ao contrário, têm o direito ao protesto
protegido e garantido constitucionalmente pela inter-relação de três outros direitos,
tidos como garantias fundamentais, elencados no rol de incisos do artigo 5º da
Constituição Federal: a liberdade de expressão, liberdade de reunião e
liberdade de associação.
No entanto, apesar de ser garantido constitucionalmente, existe
uma lacuna jurídica no que diz respeito à proteção do direito de protesto. A inexistência
de legislação específica para o uso das forças policiais no contexto das
manifestações sociais no Brasil afeta a liberdade de expressão, uma vez que alarga
a margem de discricionariedade para que o Estado se utilize de seu poder de
coação de forma desproporcional e arbitrária contra os manifestantes.
Essa ausência de lei que regulamente a utilização das forças
policiais nos protestos cria um ambiente de insegurança jurídica, na medida em
que permite a aplicação das mais diversas leis para as situações particulares
que ocorrem durante os protestos. No Brasil, sobretudo após a intensificação
dos protestos a partir de junho de 2013, tal quadro levou ao tratamento das
manifestações através da polícia, da repressão e do direito penal.
Em uma tentativa de
regulamentação, vários projetos de lei foram elaborados com o objetivo de
repelir e gerar receio naqueles que queiram ocupar os espaços públicos para
apresentar as suas demandas. Um deles, o
Projeto de Lei 499/13, define o crime de terrorismo no Brasil, caracterizando-o
como “provocar ou infundir terror ou pânico generalizado mediante ofensa ou
tentativa de ofensa à vida, à integridade física ou à saúde ou à privação de
liberdade”. Ressalta-se que a textura aberta e indefinida de tal definição
possibilita generalizações, podendo ser instrumentalizada para enquadrar
manifestantes como terroristas durante os protestos no Brasil, levando à
criminalização dos movimentos sociais.
A atuação das Polícias na repressão às manifestações
pautou-se pela violência, pelo cometimento de abusos e arbitrariedades, indo
contra a ordem Constitucional e o Estado Democrático de Direito. É necessário
garantir que elas atuem não meramente como aparato repressivo, mas sim na
proteção e garantia das liberdades democráticas. A ação policial durante os
protestos deve ter como paradigma os princípios da não violência, da garantia
dos direitos humanos e do diálogo.
A criminalização dos movimentos sociais e a repressão
violenta demonstram uma resistência ao cumprimento da ordem jurídica
constitucional, a qual tem como base os direitos humanos e preceitos do direito
social. Essas tentativas de restringir e penalizar a
atuação política dos manifestantes se apresentam como um obstáculo à
consolidação das instituições democráticas e uma ameaça aos direitos e
garantias conquistados no período pós-ditadura, dentre os quais se encontram a
liberdade de expressão e manifestação. A possibilidade de contestação da ordem
vigente é premissa fundamental de uma sociedade democrática e instrumento
central para a concretização de outros direitos.
Por conseguinte, para que as mudanças
requeridas nas ruas sejam efetivadas, faz-se necessária a superação da noção retrógrada
de que a questão social constitui um “caso de polícia”. Movimentos de resistência e de criação e ampliação
de direitos se proliferam por meio de estatutos inovadores de organização. Desse
modo, na conjuntura atual, o Estado e o Direito são chamados a reconhecer e
assegurar as condições de mediação institucional para o acolhimento desse
protagonismo social coletivo que se move para realizar direitos, sendo
colocados diante da necessidade de se reformularem, buscando uma participação
mais (cri)ativa e em um contexto novo.
Referências Bibliográficas:
CASTELLS, Manuel. A sociedade em rede. Tradução
por Roneide Venâncio Majer. São Paulo: Paz e Terra, 1999.
LYRA FILHO, Roberto. O que é Direito. Brasília: Braziliense,
1992.
Protestos
no Brasil 2013. Artigo 19 Brasil. Disponível em: <http://artigo19.org/protestos/Protestos_no_Brasil_2013.pdf>.
Acesso em: 2 de junho 2014.
(*) Aluna do 2º semestre. Texto preparado para a disciplina Sociologia Jurídica, Curso de Direito, da Faculdade de Direito da UnB, 1º semestre de 2014.
sábado, 7 de junho de 2014
Brasil, aqui violamos os Direitos Humanos!
Alisson Bernardi de Barros (*)
No Brasil, a consolidação dos direitos humanos encontra-se ainda em
lenta fase de desenvolvimento. Aqui, as principais violações aos direitos
humanos devem-se à miséria e à pobreza que o nosso país apresenta devido a uma
herança histórica escravizadora, que originou uma forma de pensar indiferente à
desigualdade, à violência e à exclusão.
Frente a essa realidade da sociedade brasileira, e levando em
consideração que a sociologia se define
por ser a área das ciências humanas voltada justamente para estudos e análises
da sociedade como um todo, buscando compreende não somente o comportamento
humano como também se dedica a pensar os grupos, diversos são os
questionamentos plausíveis que podemos abordar para tentar entender minimamente
qual o motivo que leva nosso país a violar tanto os direitos humanos. Hoje
vemos que o desenvolvimento dos conceitos de direitos humanos tem ganhado
amplitude nos movimentos sociais em busca da democratização de nossa sociedade.
Segundo a afirmação do Professor Doutor Solon Eduardo Annes Viola,
em seu livro Direitos humanos e democracia no Brasil, “Os movimentos
sociais, especialmente aqueles ligados aos direitos humanos, cumpriram um papel
primordial na redemocratização política, desde as primeiras resistências ao
estado autoritário no combate as violações da privacidade e da cidadania”.
Assim vemos que os movimentos sociais foram e são uma ferramenta de controle no
que tange à consolidação dos direitos humanos no seio de qualquer
sociedade.
Mesmo com essas mudanças apresentadas, aqui muitos ainda agem como
se fosse natural o convívio entre a riqueza e a pobreza ou que as regalias e
privilégios de poucos coexistam normalmente com a supressão dos direitos da
maioria. Não é por menos que aqui temos a sensação de que “tudo acaba em pizza”
e que as discrepâncias sociais advém das condições individuais de cada um em
relação ao seu próprio destino enquanto inserido numa sociedade.
Antes de qualquer coisa sobre consolidação de direitos humanos,
surge um primeiro questionamento: “O trabalho realmente enobrece o homem”? Esta
falácia tão largamente enaltecida salienta a capacidade que o conceito de
trabalho tem de engrandecer os trabalhadores em muitos de seus mais latentes
valores. Tenta-se mostrar, de todas as formas possíveis, que o trabalho garante
as condições mínimas materiais de subsistência. Esse falso conceito contempla
também a sensação de dignidade do trabalhador, e se converte num verdadeiro
presente por ele desfrutado, uma espécie de dádiva entregue pelos “deuses” que
transforma a natureza e gera riquezas para os homens, pelo menos para alguns poucos
isso é verdade.
Esta é a falsa lógica da dignidade do trabalho. Ela é, para
Bertrand Russell, uma mera ilusão convenientemente engendrada e empregada para
enganar os trabalhadores ao longo de várias gerações. Uma espécie de ilusão
patrocinada pelas burguesias modernas. É um fato, o trabalho enobrece, mas os
nobres não trabalham, pelo menos não como os operários que trabalham no chão
das fábricas.
Assim começamos nosso pequeno discurso, ao abordar o tema violações dos direitos humanos, nada melhor que
iniciar os trabalhos apresentando nossa violação aos direitos humanos
institucionalmente constitucionalizada e diretamente relacionada com a
dignidade do trabalho, o salário mínimo.
De acordo com a renomada Declaração Universal dos Direitos
Humanos, toda pessoa tem direito ao trabalho, à livre escolha de emprego, a
condições justas e favoráveis de trabalho e à proteção contra o desemprego. A
Declaração continua, toda pessoa, sem qualquer distinção, tem direito a igual
remuneração por igual trabalho e tem direito também a uma remuneração justa e
satisfatória, que lhe assegure, assim como à sua família, uma existência
compatível com a dignidade humana. Em tese, a Declaração Universal dos Direitos
Humanos é perfeita.
Porém, no Brasil, nós brasileiros possuímos um salário mínimo tão
ridiculamente baixo que atenta tanto contra os princípios universais de
direitos humanos – que pregam a dignidade como um dos valores absolutos do
homem – como contra a própria Constituição da República Federativa do Brasil. Pois,
de acordo com a Carta Magna vigente em nosso país, o salário mínimo, fixado em
lei, nacionalmente unificado, deve ser capaz de atender as necessidades vitais
básicas dos trabalhadores e às de sua família com moradia, alimentação,
educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social.
É claro, sabemos que nosso salário mínimo, nem de longe, é capaz
de cumprir seu dever constitucional. Frente a isso, o que fazemos? Como agimos?
O que pensamos? São perguntas complexas demais para uma resposta pronta e
imediata. Só temos a certeza de que com o salário mínimo que se ganha hoje no
país não se dá para adquirir, na quase total maioria dos casos, os bens mínimos
essenciais à vida humana e que permitam combater a fome em uma família de trabalhadores
desse país.
Uma tentativa de suplantar esses
problemas encontra-se nas manifestações sociais. Como exemplo, 7ª Marcha das
Centrais Sindicais e dos Movimentos Sociais, que foi realizada no dia 06 de
março, em Brasília, intitulada “Marcha da Classe Trabalhadora por
Cidadania, Desenvolvimento e Valorização do Trabalho”, teve como objetivo
precípuo demonstrar a capacidade de articulação do movimento social sindical
brasileiro na luta por avanços na política de valorização do salário mínimo e
outras conquistas para os trabalhadores.
Nos muitos casos de descaso com a sociedade, hoje geradores de
diversos movimentos sociais, o problema se apresenta a nível estrutural e, em
grande parte, advém em sua maior parte da má gerência e falta de compromisso
dos representantes eleitos. Como exemplo, devido às ingerências Estaduais,
muitas áreas urbanas no país tornam-se centro de imigração de cidadãos advindos
de outros Estados em busca de trabalho digno para sustentar suas famílias.
Assim, essa área urbana, pela chegada massiva e constante de pessoas, acaba não
conseguindo assimilar tanta mão-de-obra, mesmo que barata.
Com isso, dá-se origem a uma enorme taxa de desemprego e miséria.
Por não encontrarem emprego, consequentemente sustento, aquelas pessoas
tornam-se marginalizadas e passam a concentrar-se nas regiões mais pobres das
cidades. Com isso surgem as tão degradantes favelas brasileiras, formando-se
zonas de pobreza absoluta às margens de cidades industrializadas, como São
Paulo e Rio de Janeiro, por exemplo. Aqui o pensamento é imediato, toda essa
situação fere ou não fere preceitos universais do direito a uma vida digna? A
resposta também é imediata. Sim, fere. Porém, no Brasil a consciência coletiva
ainda não consegue entender que ser pobre no Brasil não é pecado. Mas, ser
pobre no Brasil é desumano.
Deixando um pouco de lado tanto o salário mínimo e as favelas,
vamos toca no assunto: penitenciárias brasileiras. No Brasil, as condições das
penitenciárias são as piores a nível mundial! No quesito penitenciaria somos os
melhores! Violamos como ninguém os direitos humanos! Nossas prisões
encontram-se sempre abarrotadas, sem as mínimas condições dignas de vida para o
detento.
No Brasil as penitenciárias nunca cumpriram seu papel de
ressocializar o apenado. Pelo contrário, nossas penitenciárias contribuem
largamente para desenvolvimento e aprimoramento do caráter violento do
indivíduo e seu repúdio à sociedade que naquela condição o colocou. É cultural
e massivamente difundido em nosso país o pensamento de que toda pessoa, a
partir do delito, se torna um indivíduo à parte na sociedade, e que seu
isolamento dentro de uma prisão é necessário e significa a perda de toda a sua
dignidade humana devendo, por isso, ser esquecido enquanto pessoa humana.
Ignoramos que os direitos humanos valem para todos, sejam criminosos ou
não. Infelizmente, no Brasil, o
preconceito social é latente o bastante para caracterizar a vida de pessoas
pobres ou criminosas como tendo menos valor que outras vidas.
Em qualquer circunstância, os direitos humanos devem ser
respeitados e é hipocrisia social quem entende que lutar por direitos humanos
de detentos de precárias penitenciarias equivale a defender bandido. As
condições de detenção e prisão no sistema penitenciário brasileiro violam
grotescamente os direitos humanos, provocando uma situação de constantes
rebeliões, mortes e violência gratuita, onde em muitos casos o Estado reage com
descaso, excessiva violência e descontrole.
Não podíamos terminar nosso trabalho sem apresentar talvez a pior
violação aos direitos humanos que permeia nossa sociedade desde os tempos mais
remotos da humanidade, o trabalho escravo. No Brasil, o trabalho escravo com
viés moderno baseia-se nos mesmos moldes do Brasil enquanto Colônia de
Portugal. Destacam-se as práticas de violência relacionadas à supressão do
direito de ir e vir, à violência advinda de coação física e moral, às
agressões, às torturas, à ameaça de morte. Nada mais “normal” relacionado com
práticas atentatórias aos direitos humanos quando se tratar de trabalho
escravo.
Frente a todas essas situações e muitas outras, no Brasil, o
processo de consolidação dos direitos humanos têm ganhado força nos movimentos
sociais em busca da democratização de nossa sociedade. Essa nova forma de
abordar a consolidação dos valores relacionados com os direitos humanos propõe
a construção de uma cultura de participação popular ativa capaz de criar um
novo momento histórico para o país.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ASSIS, Rafael Damaceno de. A Realidade Atual do Sistema Penitenciário
Brasileiro. Disponível em:
<www.cjf.jus.br/revista/numero39/artigo09. pd>. Acesso em: 30 de maio de 2014.
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do
Brasil. Brasília, DF, Senado, 1998.
PIOVESAN, Flávia. Trabalho escravo e
degradante como forma de violação dos direitos humanos in Trabalho Escravo Contemporâneo: o
desafio de superar a negação, NOCCHI, Andrea Saint Pastous; VELLOSO, Gabriel
Napoleão; FAVA, Marcos Neves coord., 2. ed., São Paulo: LTr, 2011.
DELGADO, Gabriela Neves. Direito fundamental ao
trabalho digno, São Paulo: Ltr, 2006, trechos.
ONU. Declaração Universal dos direitos do Homem. Disponível em:
<http://portal.mj.gov.br/sedh/ct/legis_intern/ddh_bib_inter_universal.htm>.
Acesso em: 29 de maio de 2014.
(*) Aluno
do 2ª semestre, turma de Sociologia Jurídica, da Faculdade de Direito da UnB