Helena Rosal Silva (*)
O Direito Achado na Rua, expressão cunhada por
Roberto Lyra Filho, representa uma concepção de direito que emerge dos espaços
públicos – da rua-, nos quais os o povo – titular do poder - atua em conjunto,
em um protagonismo coletivo. Essa experiência insurge como transformadora e
emancipadora para os atores sociais que se constituem nos novos sujeitos de
direito. A rua é
vista, nessa perspectiva, como espaço de comunicação, lugar de protesto, de um
protagonismo transformador. Ela é arena de luta pela liberdade e reivindicação
social.
E foi nesse lócus
específico que, em Junho de 2013, emergiu um conjunto de manifestações de
grupos insatisfeitos com a conjuntura brasileira, marcada pela corrupção dos
políticos, a falta de respeito aos direitos das minorias, os excessivos gastos
com megaeventos, além da forte repressão policial e criminalização dos
movimentos sociais.
Segundo
sociólogo Manuel Castells, no livro Redes
de indignação e esperança, essas manifestações civis são face de um
movimento democrático de reconhecimento dos sujeitos, de constituição de um
espaço crítico instituinte e da materialização de direitos através de uma
cidadania ativa.
A
normatividade estatal, puramente legalista, revela-se incompatível com as formas cada vez mais fluídas da esfera social.
O pluralismo jurídico apresenta-se, assim, como um caminho a se seguir, marcado
pela relativização do institucional e pelo deslocamento do processo de
elaboração normativa para o social. Essa concepção das redes em formas horizontais
e descentralizadas representa uma nova forma de se encarar o Direito.
Diante de tudo isso, conclui-se que a criação de direitos
depende da vivência concreta da democracia política, da abertura do campo
social, de modo que os sujeitos possam se organizar para questionar criticamente
a realidade, expondo publicamente os seus problemas e reivindicando as soluções
necessárias. É desse modo que os movimentos sociais são acolhidos pelo Direito,
de forma a tornar juridicamente válida – e, portanto, legítima – a sua
manifestação e o seu inconformismo.
Nessa lógica, a criminalização dos movimentos sociais,
apoiada por uma estrutura repressiva, revela-se incompatível com a democracia.
Esses movimentos, quando se mobilizam em atos políticos para lutar por
direitos, não estão contrários à lei. Ao contrário, têm o direito ao protesto
protegido e garantido constitucionalmente pela inter-relação de três outros direitos,
tidos como garantias fundamentais, elencados no rol de incisos do artigo 5º da
Constituição Federal: a liberdade de expressão, liberdade de reunião e
liberdade de associação.
No entanto, apesar de ser garantido constitucionalmente, existe
uma lacuna jurídica no que diz respeito à proteção do direito de protesto. A inexistência
de legislação específica para o uso das forças policiais no contexto das
manifestações sociais no Brasil afeta a liberdade de expressão, uma vez que alarga
a margem de discricionariedade para que o Estado se utilize de seu poder de
coação de forma desproporcional e arbitrária contra os manifestantes.
Essa ausência de lei que regulamente a utilização das forças
policiais nos protestos cria um ambiente de insegurança jurídica, na medida em
que permite a aplicação das mais diversas leis para as situações particulares
que ocorrem durante os protestos. No Brasil, sobretudo após a intensificação
dos protestos a partir de junho de 2013, tal quadro levou ao tratamento das
manifestações através da polícia, da repressão e do direito penal.
Em uma tentativa de
regulamentação, vários projetos de lei foram elaborados com o objetivo de
repelir e gerar receio naqueles que queiram ocupar os espaços públicos para
apresentar as suas demandas. Um deles, o
Projeto de Lei 499/13, define o crime de terrorismo no Brasil, caracterizando-o
como “provocar ou infundir terror ou pânico generalizado mediante ofensa ou
tentativa de ofensa à vida, à integridade física ou à saúde ou à privação de
liberdade”. Ressalta-se que a textura aberta e indefinida de tal definição
possibilita generalizações, podendo ser instrumentalizada para enquadrar
manifestantes como terroristas durante os protestos no Brasil, levando à
criminalização dos movimentos sociais.
A atuação das Polícias na repressão às manifestações
pautou-se pela violência, pelo cometimento de abusos e arbitrariedades, indo
contra a ordem Constitucional e o Estado Democrático de Direito. É necessário
garantir que elas atuem não meramente como aparato repressivo, mas sim na
proteção e garantia das liberdades democráticas. A ação policial durante os
protestos deve ter como paradigma os princípios da não violência, da garantia
dos direitos humanos e do diálogo.
A criminalização dos movimentos sociais e a repressão
violenta demonstram uma resistência ao cumprimento da ordem jurídica
constitucional, a qual tem como base os direitos humanos e preceitos do direito
social. Essas tentativas de restringir e penalizar a
atuação política dos manifestantes se apresentam como um obstáculo à
consolidação das instituições democráticas e uma ameaça aos direitos e
garantias conquistados no período pós-ditadura, dentre os quais se encontram a
liberdade de expressão e manifestação. A possibilidade de contestação da ordem
vigente é premissa fundamental de uma sociedade democrática e instrumento
central para a concretização de outros direitos.
Por conseguinte, para que as mudanças
requeridas nas ruas sejam efetivadas, faz-se necessária a superação da noção retrógrada
de que a questão social constitui um “caso de polícia”. Movimentos de resistência e de criação e ampliação
de direitos se proliferam por meio de estatutos inovadores de organização. Desse
modo, na conjuntura atual, o Estado e o Direito são chamados a reconhecer e
assegurar as condições de mediação institucional para o acolhimento desse
protagonismo social coletivo que se move para realizar direitos, sendo
colocados diante da necessidade de se reformularem, buscando uma participação
mais (cri)ativa e em um contexto novo.
Referências Bibliográficas:
CASTELLS, Manuel. A sociedade em rede. Tradução
por Roneide Venâncio Majer. São Paulo: Paz e Terra, 1999.
LYRA FILHO, Roberto. O que é Direito. Brasília: Braziliense,
1992.
Protestos
no Brasil 2013. Artigo 19 Brasil. Disponível em: <http://artigo19.org/protestos/Protestos_no_Brasil_2013.pdf>.
Acesso em: 2 de junho 2014.
(*) Aluna do 2º semestre. Texto preparado para a disciplina Sociologia Jurídica, Curso de Direito, da Faculdade de Direito da UnB, 1º semestre de 2014.
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