Nair Heloisa Bicalho de Sousa e José Geraldo de Sousa Junior (**)
I
Para nós, que atuamos num núcleo
acadêmico de estudos e pesquisas para a paz e os direitos humanos e no qual
desenvolvemos, há 30 anos, um programa de educação para os direitos e para a
cidadania, denominado O Direito Achado na
Rua, é muito importante participar de um encontro que tem como eixo “os direitos humanos em movimento: as
organizações, as instituições e a rua”, como este promovido pela
Universidade Popular dos Movimentos Sociais.
O que dizer para companheiras e companheiros que se
encontram para esse objetivo e que partilham os pressupostos inscritos nos
fundamentos da convocatória assinada pelos dirigentes do projeto ALICE. Antes
de mais nada, oferecer um esclarecimento. Para nós, a rua, carrega uma dimensão simbólica a partir de sua representação
constante no imaginário sociológico e poético brasileiro, ao captar o espaço de
mais intensa comunicação como o lugar do protesto, semente de um protagonismo
transformador. Veja-se, em
Castro Alves (O povo ao
poder), celebrando a rua como a arena de luta pela liberdade; ou em Cassiano Ricardo (Sala de espera), reivindicado o
acontecimento para instalar a rua republicana, lugar da reivindicação social.
Por isso é que, atento a um tremendo movimento de repensar o jurídico, tendo
como referência a realização de direitos humanos, se pode representá-lo como achado na rua (Roberto Lyra Filho),
conceituado como a expressão de legítima
organização social da liberdade (ver José Geraldo de Sousa Junior, O Direito Achado na Rua. O direito como
liberdade, Sergio Antonio Fabris Editor, Porto Alegre, 2011).
Mas, a rua,
nesse simbolismo, traz em sua representação literária, um alcance quase universal,
de luta por direitos e, em última análise, de espaço instituinte de direitos
humanos. No seu livro Tudo que é sólido
desmancha no ar, o escritor Marshall Berman utiliza a metáfora da rua para caracterizá-la como a esfera
pública na qual, em seus encontros e desencontros, reivindicando a cidadania e
os direitos, a multidão transeunte se transforma em povo.
As revoltas que se espalharam pelo
mundo a partir do norte da África (Tunísia e Egito) desdobrando-se em
diferentes países árabes e europeus, além dos EUA e da América Latina,
inclusive o Brasil, mostraram a dimensão global da indignação com as medidas
neoliberais implementadas ao longo das últimas décadas.
Acionadas a partir das redes sociais,
em geral comandadas por jovens, se traduziram em marchas, ocupações e
manifestações populares movidas por profundo sentimento de indignação diante de
governos autoritários ou democracias representativas, onde os dirigentes
utilizaram recursos públicos para socorrer instituições financeiras
endividadas, deixando à deriva as políticas sociais capazes de garantir o bem
estar da população e os direitos sociais tradicionalmente respeitados.
Especialmente nos países centrais.
Diferentes autores internacionais (Slavoj
Zizek, Mike Davis, David Harvey, Immanuel Wallerstein dentre outros) e
nacionais (Alexandre Peschanski, Emir Sader, Edson Teles, Giovanni Alves,
Wladimir Safatle, Ermínia Maricato, Raquel Rolnik, Venício Lima e outros)
trataram dos novíssimos movimentos sociais de protesto no Brasil e no mundo nos
livros Occupy e Cidades rebeldes. Maria da Glória Gohn no livro Sociologia dos movimentos sociais
enriquece o horizonte das interpretações das marchas, ocupações e manifestações
recentes.
Caracterizados pela diversidade social
complexa, com autoorganização horizontal e participativa, utilizando redes
sociais e forte capacidade de mobilização pacífica garantiram um movimento
democrático de base popular e massiva, crítico das mazelas do capitalismo
financeiro difundido sob forma de globalização hegemônica.
Trata-se, para o sociólogo Manuel Castells, conforme
ele destaca em seu mais novo livro Redes
de indignação e esperança, de perceber a realidade dessa espontaneidade de
manifestações coletivas, movidas pela indignação e pelo protesto, que são a
face de um movimento democrático muito real, sem intermediação ou representação
institucional, repolitizando o pleito de respeito e reconhecimento aos sujeitos
de direitos. Bastaria, para seguir imaginativamente, estar atento ao que sugere
Boaventura de Sousa Santos (Escrita INKZ,
Anti-Manifesto para uma arte incapaz): “Os pés e os passos/ Nas ruas agitadas
de fim de tarde/ Dizem tudo o que há a saber sobre a cidade:/ Bastaria que os
políticos e cientistas sociais/ Trabalhassem no chão/”.
Para Castells, tudo se resume a uma
demanda espontânea de direito à cidade, com a novidade de que as cidadãs e os
cidadãos têm agora um instrumento próprio de informação, auto-organização e
automobilização, independentemente de convocação institucional, partidos ou
sindicatos, e que materializa um espaço crítico instituinte por impulso de uma
cidadania ativa, profundamente democrática, capaz de designar, representar e
materializar direitos.
No Brasil, essas mobilizações civis de
cidadãos indignados com a corrupção dos políticos, a falta de respeito aos
direitos das minorias, os excessivos gastos com megaeventos versus o orçamento social insuficiente,
somadas à forte repressão policial e os deslocamentos forçados para higienizar
os espaços urbanos, desencadearam a retomada da esfera pública para garantir o
direito à cidade e à cidadania (ver Nair Bicalho e José Geraldo de Sousa
Junior, Cidadania achada na rua, Correio
Braziliense, Seção Opinião, 20/06/2013, pág. 15).
A rua, especialmente aqui no Brasil,
transforma-se em ponto de encontro de indivíduos, grupos (especialmente jovens)
e movimentos sociais de diversos matizes, dispostos a pressionar o Estado para
ouvir e se manifestar em prol dos ideais democráticos reconquistados em 1985 e
traduzi-los em políticas públicas centradas nos interesses populares e no
reconhecimento de direitos humanos histórica e socialmente determináveis e
exigíveis (ver Nair Bicalho e José Geraldo de Sousa Junior, O governo Cristovam e as manifestações
populares, Correio Braziliense, Seção Opinião, 09/04/1995, pág. 15).
II
A experiência constituinte que se viveu
no Brasil recentemente é um aprendizado difícil para orientar a transição ainda
incompleta da reconstrução democrática de nosso país. Mas há nessa experiência
uma lição fundamental para a passagem ao novo tempo social e político: saber
reconhecer a legitimidade política e jurídica do protesto e de ser capaz de
gerar institucionalidades participativas (conferências, consultas e audiências
públicas, mesas de negociação, fóruns) para o diálogo entre a sociedade e o
Estado, como condição de reeducação da estrutura democrática.
O pré-requisito desse aprendizado é
dispor de instâncias de mediação institucional, como o Judiciário e o Ministério
Público, que aprendam também a se abrir a uma pedagogia da cidadania. Ao recusar
a criminalização incompetente do protesto social para, em seu lugar, proceder
ao chamamento e ao exercício identitário (estudantes, mulheres,
afrodescendentes, indígenas, grupos LGBT, articulações ad hoc de pautas plurais atualizadas por eventos de conjuntura como
a copa ou o aumento de tarifas de transporte público, segmentos excluídos e
grupos marginalizados dentre outros), autônomo e consciente dos diferentes
grupos sociais que reivindicam um espaço público não contaminado para o resgate
da política e para a construção permanente de direitos.
Já tivemos a oportunidade, em pesquisa
formal (Observatório do Judiciário,
Série Pensando o Direito n. 15/2009, UnB, UFRJ, PNUD, MJ), de identificar no
âmbito de institucionalização de um observatório da justiça brasileira,
obstáculos a confrontar e superar, e assim, abrir canais para a concretização
da cidadania e dos direitos humanos:
- resistência
a trabalhar com o direito da rua: o que significa compreender outras formas
de regulação social que não a do direito positivo, com o reconhecimento de
mecanismos jurídicos não positivados, mas de ampla aceitação por grupos sociais,
de modo a evitar que a recusa do pluralismo faça com que práticas sociais que
garantem justiça sejam mantidas invisíveis.
- baixa
sensibilidade para as demandas da comunidade: vencer a pouca
disponibilidade dos operadores do sistema judicial e do ministério público para
travar relações horizontais e abrir espaços para o reconhecimento e o respeito
ao protagonismo dos interessados na composição de soluções para as demandas
comunitárias e para as suas decisões.
- limites
culturais para a percepção de sujeitos e demandas inscritas nos conflitos
sociais: superar a cultura legal da formação jurídica dos operadores do
sistema judicial, que impede o reconhecimento de situações de conflitos sociais
como demandas por justiça ou acesso à justiça, seja por sua configuração
coletiva, seja pelo seu estágio pré-legislativo ao se expressarem enquanto
conteúdo de direitos humanos, social mas não legalmente positivados.
- corpo
funcional com formação técnica desvinculada das experiências do mundo da vida:
relativamente às limitações da formação técnica oferecida pelos cursos jurídicos,
excessivamente livresca, que não prepara para lidar com as complexidades do
mundo da vida em permanente mutação, levando à constante rebelião dos fatos em
face dos textos, principalmente os codificados.
- postura
institucional burocrática: vencer as dificuldades impostas pelos
procedimentos traduzidos em emaranhado burocrático de regras processuais e de
linguajar que limitam e desencorajam o exercício de grupos sociais para a
efetivação dos direitos de cidadania.
Precisamos agora, os companheiros e
companheiras que se encontram na rua, por em causa dois desafios. O primeiro é
a necessidade de assumir um programa de educação para a cidadania e para os
direitos humanos que, no plano real da ação dos movimentos sociais, está se
esboçando no projeto da Universidade Popular dos Movimentos Sociais – UPMS.
Trata-se de radicalizar e expandir esse projeto.
Não negligenciemos, todavia, os esforços comuns,
travados por governos e sociedade civil, no âmbito de elaboração de políticas
públicas, nesse campo, em
nosso País (ver Nair Heloisa Bicalho de Sousa, Educação em direitos humanos e emancipação, in Direitos
Humanos. Percepções da opinião pública, Gustavo Venturini (org), Secretaria
de Direitos Humanos da Presidência da República, Brasília, 2010). Ao adotar, em
1996, o Programa Nacional de Direitos Humanos, o Brasil foi um dos primeiros
países do mundo a seguir a recomendação da Conferência Mundial de Direitos
Humanos (Viena, 1993), de atribuir aos direitos humanos a condição de política
pública governamental.
Desde então, importantes debates tem
ocorrido por meio de uma interlocução construtiva entre governo, parlamento e
sociedade civil, cujo instrumento eficiente é a série de Conferências Nacionais
de Direitos Humanos. Uma das mais significativas atualizações, incorporada ao
PNDH II implementado a partir de 2002, foi a inclusão dos direitos econômicos,
sociais e culturais, de forma coerente com o princípio de indivisibilidade e
interdependência de todos os direitos humanos (Viena, 1993).
Aspecto muito importante do avanço do processo
de institucionalização do Programa Nacional foi a elaboração do Plano Nacional
de Educação em
Direitos Humanos (PNEDH), iniciado em 2003, com a formação do
Comitê Nacional de Educação em Direitos Humanos (CNEDH) que trouxe para o lugar
de política pública a dimensão pedagógica do tema e chamou para o campo de ação
(educação básica, superior e não-formal; mídia e profissionais de segurança e
justiça), o comprometimento com a cultura de respeito e promoção dos direitos
humanos.
Foi lançado em 2009 mais uma atualização denominada
PNDH-3, com uma rara continuidade institucional em sua implementação e
monitoramento, que atravessa governos de diferentes orientações e mobiliza
setores sociais e políticos ideologicamente distintos, alvo de polêmica por
parte de setores conservadores da mídia, das elites agrárias e lideranças
religiosas.
Elaborado por 14 000 representantes do poder público e
da sociedade civil, o PNDH-3 que consolidou as conquistas democráticas e
cidadãs da sociedade civil organizada desde a resistência à ditadura
civil-militar até as lutas por direitos implementadas até a data de seu
lançamento, propõe uma política de direitos humanos para o país em 6 eixos
temáticos: interação democrática entre Estado e sociedade civil; modelo de
desenvolvimento sustentável, inclusivo e participativo; universalização de
direitos em contexto de desigualdades; segurança pública, acesso à justiça e
combate à violência; educação e cultura e direito à memória e à verdade.
O eixo educação e cultura em direitos humanos reforça
a implementação do PNEDH e estabelece princípios para fortalecer uma cultura
democrática de direitos por meio da educação básica e superior.Quanto à última,
a inclusão do tema nas Diretrizes Curriculares Nacionais dos cursos de
graduação, a criação de cursos de pós-graduação , pesquisas e projetos de
extensão nesta área, enriquece o debate universitário e garante a participação
efetiva do ensino superior no avanço democrático do país.
Apesar disso, mas sem surpresa, deve-se registrar a
forte reação a esse rico processo, a partir do momento do decreto de sua
aprovação. Primeiro, a reação interna ao próprio governo, como por exemplo, em
relação à proposta da instalação de uma Comissão Nacional da Verdade, com poder
para apurar violações dos direitos humanos, especialmente torturas, mortes e
desaparecimentos, de acordo com resolução da OEA (2006).
Por
esta razão, o PNDH-3 se volta para a busca de um outro tipo de racionalidade
orientada por uma versão crítica e emancipatória dos direitos humanos, segundo
uma pauta jurídica, ética, social e pedagógica.
Ao contrário do que se tem argumentado de forma mais
restrita (Ignez Martins Tollini, Educação
e decreto dos direitos humanos, CB, 15/01/10, pág. 15), as diretrizes para
a educação contidas no PNDH-3, seja quanto ao monitoramento da escolha de
livros didáticos, seja quanto às interpelações dirigidas às universidades (ver
de José Geraldo de Sousa Junior, Educação
em direitos humanos: desafios às universidades, Revista Direitos Humanos nº
02, SEDH, Brasília, 2009, págs. 35-40), seja como resgate da memória como
referêrencia ética para educar pela história (ver de José Geraldo de Sousa
Junior, Memória e Verdade como direitos humanos. In:
Idéias para a cidadania e para a justiça, Sergio Antonio Fabris Editor, Porto
Alegre, 2008) fundam, de fato, um projeto educativo emancipatório e abrem desafios à educação, em todos
os níveis, visando a nova base
epistemológica da formação, sobretudo nas escolas e universidades, alargando o
âmbito das pautas pedagógicas para a cidadania em seus diferentes espaços.
III
O outro desafio está em qualificar as alianças que se fazem
urgentes e que interpelam os protagonismos que se movem, atualmente, no social.
Os novíssimos movimentos de protesto somados aos “velhos” movimentos sociais
rurais ( Movimento Sem Terra, Via Campesina, movimento sindical rural dentre
outros) e urbanos (movimentos de moradores de periferia, movimento sindical
urbano e outros ) com suas reivindicações econômicas e sociais e aos novos
movimentos sociais (mulheres, indígenas, afrodescentes, LGBT, ecologistas etc.)
pautados em demandas de natureza sócio-cultural constituem uma frente política
fundamental e uma aliança necessária para alcançar “ um outro mundo possível”.
Neste sentido, algumas questões estão colocadas no horizonte
político de médio e longo prazo desta aliança :
1.
Qual a sua
capacidade de continuar reinventando a política a partir da rua?
2.
Quais as
perspectivas para propor a complementariedade entre democracia representativa e
participativa?
3.
Que
potencialidades pode desenvolver para constituir contrapoderes sociais capazes
de fazer frente aos poderes instituídos?
4.
Como lidar com as
assimetrias existentes entre os diferentes movimentos sociais via tradução das
demandas presentes em suas agendas específicas?
5.
Qual o
aprendizado necessário para ponderar politicamente e não de forma
criminalizadora as assimetrias que se manifestam entre as diferentes formas de
radicalismos e as demandas originárias dos diversos movimentos, algumas
indistintas em relação às suas motivações?
6.
Que consistência
tem para elaborar uma pauta permanente de demandas no sentido de constituir uma
agenda política nacional sempre renovada?
7.
Como garantir que
a luta por direitos humanos e novos direitos permeie a pauta das demandas
apresentadas?
8.
Qual a capacidade
efetiva de negociação das demandas com os poderes instituídos?
9.
Qual o impacto de
suas demandas junto ao exercício do Poder Executivo, Legislativo e Judiciário?
10.
Qual a força real
que dispõe para manter o Poder Executivo, Legislativo e Judiciário sob
permanente pressão?
11.
Qual a capacidade
real para fiscalizar os atos do Poder Executivo, Legislativo e Judiciário?
12.
Que oportunidades podem ser criadas para
evitar a cooptação política e transformar as demandas em políticas públicas
efetivas?
Brasília, 28 de outubro de 2013.
(*) A carta fez parte da metodologia de reflexão da Oficina 2013 da UPMS (Universidade Popular dos Movimentos Sociais), instalada em Brasília de 1 a 4/11/2013. Os participantes, relacionados como representantes de movimentos sociais, ativistas e intelectuais assumiram como ponto de partida para o debate temático que assumiram, cartas endereçadas a diferentes destinatários em tom e conteúdos por eles próprios estabelecidos. Esta é a carta dos Professores Nair Heloisa Bicalho de Sousa e José Geraldo de Sousa Junior, do Núcleo de Estudos para a Paz e os Direitos Humanos, da Universidade de Brasília (UnB).
(**) Nair Heloisa Bicalho de Sousa e José Geraldo de Sousa
Junior
Membros do Núcleo de
Estudos para a Paz e os Direitos Humanos e do Programa Pós-Graduação em Direitos Humanos
e Cidadania (PPGDH) da Universidade de Brasília e do Projeto de Ensino,
Pesquisa e Extensão Universitárias da UnB O
Direito Achado na Rua (www.odireitoachadonarua.blogspot.com.br;
www.ppgdh.unb.br | ppgdh@unb.br )
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