O Direito Achado na Rua: nossa conquista é do tamanho da nossa luta

quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

ATLAS SOBRE O DIREITO DE MORAR EM SALVADOR-Prefácio



ATLAS SOBRE O DIREITO DE MORAR EM SALVADOR
  
                                                    Prefácio
                                                                                                                                                                                                       

José Geraldo de Sousa Junior
                                      Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua
                                                       Reitor da Universidade de Brasília

                                                                      

Em seus estudos epistemológicos voltados para estabelecer as condições paradigmáticas do conhecimento pós-moderno, Boaventura de Sousa Santos se vale de diferentes procedimentos e de estratégias de representação acerca dos modos aceitáveis e convincentes de conhecer e de orientar a ação humana projetada no mundo.
Entre esses procedimentos e estratégias ele destaca a cartografia enquanto representação de espaços por meio de mapas, útil para a determinação da natureza do objeto do conhecimento de que se trate, como para aferir as consequências das ações e práticas sociais que nesses conhecimentos se fundem.
Mapas, ainda que promovam distorções da realidade, contribuem para fundamentar análises e orientar ações com razoável segurança, com a utilização de mecanismos estruturantes de sua possibilidade de precisão que são, a escala, a projeção e a simbolização. A cartografia se caracteriza, assim, por permitir acentuar relevâncias e, de algum modo, indicar a pertinência, as correspondências e as realidades que se busca conhecer ou interpretar (A Crítica da Razão Indolente. Contra o desperdício da experiência, São Paulo: Cortez Editora, 2000).
Foi desse modo, para citar um exemplo, que Maria Salete Kern Machado e Nair Heloisa Bicalho de Sousa, elaboraram no Distrito Federal, com o objetivo de identificar a existência de redes para a defesa de direitos humanos, uma cartografia das entidades e organizações da cidade-satélite de Ceilândia, originada de um programa de erradicação de invasões (Campanha de Erradicação de Invasões – CEI) e de seu potencial mobilizável para a construção e efetividade da democracia, da cidadania e dos direitos:

“A história social de Ceilândia traz em seu bojo uma trajetória de lutas e iniciativas no campo da formação para a cidadania. Vários movimentos sociais de conteúdos diversos ocorreram desde o período de sua criação. A cidade é hoje a mais populosa do Distrito Federal e apresenta certa melhoria nos serviços e bens de consumo urbano, porém, há carências urbanas significativas a merecer atenção das autoridades governamentais.
            Esta trajetória histórica, pontilhada de ações coletivas diversificadas no campo dos direitos, retrata também uma comunidade com grande potencial a ser trabalhado pela implementação de uma rede de defesa dos direitos humanos. É nesta direção que a proposta em análise ganha corpo, apontando para uma história passada, pautada na luta pela moradia que, hoje, se traduz em ações plurais onde o público e o privado tornam-se espaços mediadores do processo de efetivação da democracia e da cidadania”. (Ceilândia: Mapa da Cidadania. Em rede na defesa dos direitos humanos e na formação do novo profissional do direito, Universidade de Brasília/Faculdade de Direito, Ministério da Justiça/Secretaria de Estado dos Direitos Humanos, Brasília, 1998)
  
            A publicação deste Atlas sobre o Direito de Morar em Salvador se inscreve nesta metodologia cartográfica e, com o rigor de sua elaboração, serve ao conhecimento e à interpretação da realidade que registra com muita precisão.
            Resultado de um estudo analítico ao abrigo do Centro Interdisciplinar de Desenvolvimento e Gestão Social – CIAGS/EA/UFBA, dirigido por Tânia Maria Diederichs Fischer, com as parcerias da Secretaria Municipal de Desenvolvimento Urbano, Habitação e Meio-Ambiente – SEDHAM/PMS, Defensoria Pública do Estado da Bahia – DPE e o financiamento da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado da Bahia – FAPESB, o trabalho foi coordenado por uma equipe constituída por Maria Elizabete Pereira dos Santos, Roseli de Fátima Afonso, Luiz Cezar dos Santos Miranda, Suely Maria Ribeiro, Elba Guimarães Veiga e Valnêda Cássia Santos Carneiro, que se incumbiram também da redação, que teve ainda a participação de Fredson Oliveira Carneiro, Fernanda Alves Costa, Patrick Campos Araujo, Vinicius Álen Alves Oliveira, Victor Lopo de Almeida Costa, Gilmar Carneiro Mascarenhas, Gilberto dos Santos Cruz, Iraildes Santos de Santana e Miralva Alves Nascimento. A ficha técnica da publicação registra igualmente as contribuições gráficas, fotografia e revisão, fundamentais para a qualidade do trabalho e de sua apresentação.
            O Atlas descreve, em pormenor, 36 ocupações de áreas urbanas em Salvador, indicando localização, tipo, população estimada, tamanho médio das famílias, faixa etária, escolaridade do grupo, renda, atividades produtivas ou de subsistência, inserção no mercado de trabalho, perfil das lideranças e os vínculos dos ocupantes com os movimentos sociais. Cada levantamento vem apoiado em dados criteriosamente coletados e organizados graficamente para ilustrar seus valores, em recortes que puderam ser estabelecidos com os elementos de questionários e entrevistas. Se a descrição precisa já pode ser considerada uma oferta explicativa, parafraseando Engels, para quem, “a descrição verdadeira do objeto é, simultaneamente, a sua explicação”(Contribucion al Problema de La Vivienda, Obras Escogidas de Marx y Engels, Tomo I, Editorial Fundamentos, Madrid, 1975), a cartografia elaborada, com esses cuidados, torna possível formular as escalas, as projeções e o simbólico que circunscreve o fenômeno, dando base para interpretações e orientação para a ação no campo das políticas públicas e para a afirmação e legitimação de direitos.
            Não por outra razão, a primeira parte do trabalho tem por objetivo construir a base desses dois pressupostos. Já no capítulo primeiro os autores afirmam o ponto de partida da iniciativa de elaborar o Atlas: necessidade de aprofundar a discussão teórica sobre o direito à moradia e à cidade em um contexto contraditório e profundamente desigual, de avanço na institucionalização de gestão urbana qualificados como democráticos”. Assim, o desafio posto pela equipe é, diz ela, “contribuir para a construção de uma teoria política da cidade e da sociedade, de contribuir para a formação dos estudantes, dos futuros gestores públicos e sociais e de fundamentar a ação dos movimentos sociais”.
            O trabalho, a meu ver, se apresenta à altura do desafio proposto. Com base em categorias teóricas bem identificadas, a partir de Boaventura de Sousa Santos, não apenas focaliza a afirmação jurídica da moradia como um direito fundamental socialmente construído, como percebe a subjetividade coletiva dos movimentos sociais aptos a designá-los e afirmar as bases legitimadoras para seu reconhecimento.
            Encontro na abordagem desenvolvida no Atlas, a condição ontológica a que já me referi, no campo do direito, para responder à tarefa de instrumentalizar as organizações populares para a criação de novos direitos e de novos instrumentos jurídicos de intervenção, num quadro de pluralismo jurídico e de interpelação ao sistema de justiça para abrir-se a outros modos de consideração do Direito (Fundamentação Teórica do Direito de Moradia, Direito e Avesso. Boletim da Nova Escola Jurídica Brasileira, Editora Nair, ano I, n. 2, Brasília, 1982; Um Direito Achado na Rua: o direito de morar, Introdução Crítica ao Direito, Série O Direito Achado na Rua, vol. 1, Brasília, Editora  UnB, 1987; com Alayde Sant’Anna, O Direito à Moradia, Revista Humanidades, Ano IV, n. 15, Brasília, Editora UnB, 1987; com Alexandre Bernardino Costa, orgs., Direito à Memória e à Moradia. Realização de direitos humanos pelo protagonismo social da comunidade do Acampamento da Telebrasília, Universidade de Brasília/Faculdade de Direito, Ministério da Justiça/Secretaria de Estado de Direitos Humanos, Brasília, 1998).
            Estudei esse assunto ao procurar caracterizar o por mim denominado sujeito coletivo de direito (Direito Como Liberdade. O direito achado na rua, Sergio Antonio Fabris Editor, Porto Alegre, 2011). Encontro no Atlas a mesma constatação que já fizera naqueles estudos, vale dizer, a percepção de que o conjunto das formas de mobilização e organização das classes populares e das configurações de classes inscritas nos movimentos sociais, instaura práticas políticas novas em condições de abrir espaços sociais inéditos e de revelar novos atores na cena política capazes de criar direitos.
            Ana Amélia Silva referiu-se à “trajetória que implicou uma concepção renovada da prática de direito, tanto em termos teóricos quanto da criação de novas institucionalidades”(Cidadania, Conflitos e Agendas Sociais: das favelas urbanizadas aos fóruns internacionais, Tese de Doutorado apresentada ao Departamento de Sociologia da USP, São Paulo, 1996). Ela alude, nesse passo, a Eder Sader, quando este aponta para o protagonismo instituinte de espaços sociais instaurados pelos movimentos sociais com capacidade para constituir direitos em decorrência de processos sociais novos que passam a desenvolver (Quando Novos Personagens Entraram em Cena, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1995).
            Trata-se, ao fim e ao cabo, como afirma uma das lideranças do movimento entrevistadas para o Atlas, (Ana Vaneska) de “rever conceitos, adensar valores, refletir sobre o nosso lugar e papel no mundo, sobre a transformação das relações de trabalho, de gênero, étnico-raciais e geracionais. O desafio está em construir e multiplicar uma formação política dos sujeitos do movimento mais humana e integral. Sem isso fica muito difícil reafirmar o compromisso social de construir, com o povo, a luta popular na cidade. Afinal, os movimentos sociais devem lutar pela construção de espaços coletivos, pelo acesso à informação e pela criação de novas tecnologias para que o povo tenha condições de intervir na sua própria realidade. Temos hoje o desafio de construir uma reflexão crítica sobre a realidade, de construir uma nova simbologia, de reinventar a utopia”.
            Na perspectiva do Atlas sustentam os autores, com base na análise da prática dos movimentos sociais estudados, o que perpassa a consciência de sua ação é o poder abrir a consciência para a reivindicação da moradia como um direito e, a partir dessa representação, poder desencadear “uma forma particular de materialização do direito à cidade, que além de contemplar questões relativas ao acesso à moradia e serviços de consumo coletivos refere-se à função social da propriedade, ao acesso à justiça, a inserção produtiva, ao exercício da cidadania e à gestão democrática da cidade”.
            Marilena Chauí procura expandir o conceito de cidadania para assimilar o trânsito desencadeador dessa ação transformadora. Identifiquei isso em alguns de seus enunciados (Marilena Chauí: amor à sabedoria e solidariedade com a vida, in Maria Célia Paoli, org., Diálogos com Marilena Chauí, Discurso Editorial/Barcarolla, São Paulo, 2011): “a cidadania ativa é a que é capaz de fazer o salto do interesse ao direito, que é capaz portanto de colocar no social a existência de um sujeito novo, de um sujeito que se caracteriza pela sua autoposição como sujeito de direitos, que cria esses direitos e no movimento da criação desses direitos exige que eles sejam declarados e cuja declaração abra o reconhecimento recíproco. O espaço da cidadania  ativa, portanto, é o da criação dos direitos, da garantia desses direitos e da intervenção, da participação direta no espaço da decisão política”.
            Dentro deste campo de luta, no qual o direito à moradia ganha força, num processo de verdadeira invenção democrática, o que ocorre em Salvador, como o Atlas demonstra, se dá também em outras circunstâncias. Basta ver as já citadas Maria Salete Kern Machado e Nair Heloisa Bicalho de Sousa, mencionando o caso de Ceilândia no Distrito Federal, para registrar que as ações coletivas nos bairros resultavam em mobilizações populares dotadas de grande visibilidade, traduzindo na prática as carências por direitos e a articulação dos movimentos, permitindo um espaço de negociações que acaba levando à conquista de políticas sociais alternativas.
            Na linha do que estabelece o parágrafo segundo, do artigo 5º, da Constituição Federal de 1988, “os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”. Assim se vê, os direitos não são quantidades, são relações. Eles não foram estabelecidos uma vez para integrar uma tabela fixa, eles são continuamente inventados. Eles formam o acervo designado por Patrick Pharo de “civismo ordinário” (Le Civisme Ordinaire, Librairie des Méridiens, Réponses Sociologiques, Paris, 1985), referindo-se às formas de sociabilidades constituídas em relações de reciprocidade num cotidiano no qual são legitimados padrões sociais livremente aceitos. Tomando por base estratégias sociais para a institucionalização do direito à moradia, Ana Amélia Silva (obra citada) refere-se à formação de “agendas sociais” e de “espaços públicos” para aí inserir o que denomina “direitos de cidadania”, reivindicando outras leituras aptas a conceber “o horizonte de propostas e lutas pelos direitos de cidadania como um campo social em construção”.
            Em outro depoimento de militante de movimento recolhido no Atlas, Pedro Cardoso fala do esforço de construção de mecanismos dentro das ocupações para que as pessoas se tornem sujeitos do processo de luta e abram a consciência quanto a compreender que a luta pelo Direito à Moradia não se restrinja à necessidade de acesso à casa: “Ter acesso à casa representa apenas a primeira conquista. Depois, começa a luta para não perder essa conquista e mais, a luta pelo acesso aos serviços e equipamentos que a cidade oferece”.
Ponho em relevo no trabalho dois capítulos. O que distingue a mulher na luta pela moradia e o que analisa o acesso à justiça e segurança pelos Sem Teto. No primeiro, transparece a constatação que já pode se generalizar do sentido de empoderamento que a participação na luta pela moradia confere à mulher. Um depoimento ilustra bem isso: “Mesmo considerando que muitas mulheres entram no Movimento de Luta pela Moradia levadas apenas pela necessidade da casa, na atuação diária, elas fazem política e se percebem como sujeitos políticos”. Essa condição tem sido uma referência corrente diante do protagonismo político da mulher. Em Brasília, a partir de um curso de extensão desenvolvimento pela UnB/Faculdade de Direito para a capacitação de mulheres em gênero e direitos humanos, como “promotoras legais populares” (Introdução Crítica ao Direito das Mulheres, Série O Direito Achado na Rua, vol. 5, CEAD/UnB, Brasília, 2012), percebe-se que tratar dos direitos das mulheres é também tratar dos direitos dos homens, e dos direitos em geral, pois quando as mulheres avançam na sua pauta por libertação por conseqüência a sociedade toda em conjunto avança no horizonte da igualdade e, portanto, da justiça.
No segundo, é importante discernir, como o faz o texto, o acesso à justiça do acesso ao judiciário. Aqui, combinam-se duas aproximações cruciais, uma de ordem teórica, inserida na análise, de modo a precisar com apoio em Boaventura de Sousa Santos, o cuidado de não perder de vista que as situações de conflito não se dão apenas no plano jurídico, mas também no plano social. Portanto, o chamamento para a possibilidade de constituição de novas ordens sociais e também de novos ordenamentos jurídicos com referência à hipótese teórica do pluralismo jurídico, tão bem definido pelo sociólogo português. A segunda aproximação, de ordem política, referida à mediação formal do aparato judiciário reduzido a um legalismo estéril, que desconhece as promessas emancipatórias do Direito. É neste passo que se perde o impulso dialógico que o jurídico pode vir a conduzir, para que, lembra J. J. Gomes Canotilho (Direito Constitucional e Teoria da Constituição, Editora Almedina, Coimbra, 1998), não reste o direito “definitivamente prisioneiro de sua aridez formal e de seu conformismo político” e, deste modo, incapaz de abrir-se a outros modos de compreender as regras jurídicas e de alargar “o olhar vigilante das exigências do direito justo e amparadas num sistema de domínio político-democrático materialmente legitimado”.
Quero salientar a concordância entre a crítica formulada nessa parte do trabalho e os resultados a que chegamos, em trabalho de pesquisa e de proposta de institucionalização de um Observatório da Justiça (o Edital inicialmente lançado pelo Ministério da Justiça trazia como referência a criação de um Observatório do Judiciário), a partir de constatações semelhantes (Projeto Pensando O Direito, n. 15/2009 – versão publicação, Observatório do Judiciário, UnB/UFRJ, coordenação acadêmica: José Geraldo de Sousa Junior, Fábio Sá e Silva, Cristiano Paixão e Adriana Andrade Miranda, Secretaria de Assuntos Legislativos/Ministério da Justiça, Brasília, 2009).  Os termos em que formulamos as nossas conclusões dizem bem acerca dessas constatações: “Incluir esta dimensão societal na análise e no acompanhamento da Justiça implica dialogar com atores que muitas vezes não são reconhecidos em suas identidades (ainda não constituídos plenamente como seres humanos e cidadãos) e que buscam construir a sua cidadania por meio de um protagonismo que procura o direito no social, em um processo que antecede e sucede o procedimento legislativo e no qual, o Direito, que não se contêm apenas no espaço estatal e dos códigos é, efetivamente, achado na rua. Em outros termos, trata-se de assumir uma posição de alteridade, sem hierarquias ou opor as práticas sociais às prescrições da autoridade localizada no Estado; do Direito adjudicado por um especialista (o juiz) a partir de uma pauta restrita (o código, a lei). Esta proposta de observação da Justiça vincula-se a uma tradição muito própria do pensamento jurídico e social da América Latina: trata-se de creditar ao protagonismo social a capacidade de instituir novos modos de vida e de juridicidade, não apenas no aspecto semântico (como fonte de argumentos que ajudam a criar novas interpretações para velhas categorias), mas também no aspecto pragmático (como novos e autênticos princípios para a legítima organização social da liberdade)”.
O ATLAS SOBRE O DIREITO DE MORAR EM SALVADOR, em seu arranjo cartográfico, cumpre, exemplarmente, seu intento político e metodológico. Além disso, ele contribui para ampliar “os sentidos da democracia”, de modo a permitir, como lembra Maria Célia Paoli (Movimentos Sociais, Cidadania e Espaço Público – Anos 90, Revista Humanidades, n. 30, Editora UnB, Brasília, 1992), “recuperar os direitos de uma cidadania que, reinventando a si própria pela discordância e pela sua própria recriação, possa reinventar novos caminhos de construção democrática”.

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