(Publicado no
Livro Memorial Darcy Ribeiro BEIJÓDROMO, Editora UnB/Fundação Darcy Ribeiro,
Brasília, 2012)
José Geraldo de Sousa Junior
Reitor da UnB
Em seu último
discurso na UnB, quando recebeu o título de Doutor Honoris Causa e a homenagem de ter seu nome atribuído ao campus, Darcy Ribeiro nos convocou para
olhar o futuro. Entre nostálgico de si mesmo e dos velhos tempos de fundação da
Universidade de Brasília, o ainda bravo guerreiro de “muitas batalhas”, mais uma vez exortou a todos: “o que peço é que voltem ao Campus
Universitário Darcy Ribeiro aquela convivência alegre, aquele espírito
fraternal, aquela devoção profunda ao domínio do saber e a sua aplicação
frutífera”.
Nos últimos meses,
de minha janela no terceiro andar da Reitoria, incorporei o hábito de
acompanhar o cotidiano da edificação do Memorial Darcy Ribeiro, a bela peça
arquitetônica projetada por João Filgueiras Lima, o Lelé, para realizar o
último legado de Darcy para a sua amada UnB. De meu ponto de visão,
descortinando um recanto da Praça Maior em ângulo com a extremidade sul do ICC,
o edifício símbolo da própria Universidade, pude seguir a cada dia, como quem
vira as páginas de um álbum, as mudanças perceptíveis do projeto em execução.
Primeiro
a demarcação da área, com o trabalho de terraplenagem e de sondagens realizado
pelas equipes técnicas da UnB. Logo, os tapumes configurando o canteiro, e nas
suas lâminas, jóias do pensamento do fundador: “A vocação da UnB é ser uma universidade completa”; “A UnB deve reger-se
a si própria, livre e responsavelmente”. As frases, como que a assinalar um
destino, reavivaram a utopia da universidade necessária, conquanto aspire ainda
a se constituir como uma universidade emancipatória. Aqui, onde o conhecimento
haure de seu acumulado universal, o seu máximo alcance civilizatório, a
universidade moderna da cidade modernista, quer afirmar o seu compromisso social
como condição para incluir os novos sujeitos que emergem das lutas democráticas
para aspirar justiça e liberdade.
E a obra em
processo foi, aos poucos, materializando o esboço projetado da própria mente de
seu criador, ao conceber a universidade que agora a acolhe: “A verdadeira Universidade de Brasília é a
utopia concreta que subsiste calada entre seus muros no espírito dos estudantes
e dos professores que guardam fidelidade ao seu espírito; mas é, também, a
universidade exclausurada, que vive onde sobrevivem os que a conceberam; e é,
sobretudo, a que ressurgirá em quantos, amanhã, hão de reencarná-la em
liberdade e dignidade” (Carta 14, 1995).
A cada dia,
equipes bem organizadas, apetrechadas, com plano bem definido e segura direção
do Instituto Brasileiro de
Tecnologia do Habitat (IBTH), presidido pelo próprio Lelé e tendo
no canteiro a presença coordenadora da arquiteta Adriana Filgueiras, começaram
a dar forma à edificação, muito assemelhada ao desenho descrito na carta de
Lelé para Darcy: “Lembra um pouco um
disco voador ou uma mistura de maloca dos Xavantes com a dos Kamayanás, que
você tanto admira”. Tal qual formigas, ou abelhas, em seus uniformes azuis,
usando capacetes, botas, cintos, luvas, óculos, os trabalhadores se distribuíam
pela estrutura, sobre a cúpula, de dia e de noite, azafamadamente, fazendo
surgir a construção, conforme desenhada no projeto e em respeito, como se disse
na audiência pública em que ele foi apresentado à sociedade e à comunidade
universitária, com a preocupação de “não
só manter a harmonia urbanística no local como preservar o ambiente
paisagístico”. Como lembrou na ocasião o arquiteto Alberto Faria, da UnB, “um único ipê será transplantado”.
Quase
sem querer, a cada cena do processo, evoquei as imagens celebradas de Charles
C. Ebbets e seu sensível registro do cotidiano de trabalhadores que
participaram na construção de arranha-céus nova-iorquinos entre 1920 e 1935. Se
bem suas insuperáveis fotos servissem para denunciar a inexistência de medidas
de segurança, bastando recordar a sequência de 1932, no 69º andar do edifício
GE do Rockefeller Center, não deixam de transmitir uma rara delicadeza plástica
de momentos de harmonia entre o impulso genial que concebe um projeto e a
mediação humana que lhe dá forma no instante da execução.
Eles
são como os operários de Brecht, construtores de Tebas, das Muralhas da China,
dos Palácios da Babilônia, dos arcos de triunfo de Roma. São eles que não
apenas assentam tijolos ou esquadrias de metal, mas que constroem catedrais e,
neste momento, revendo fotos do jovem fotógrafo da Secretaria de Comunicação da
UnB Luiz Filipe Barcelos, em seu belo ensaio para a Revista Darcy, eu diria que eles estão construindo uma
universidade, sintetizada no Memorial Darcy Ribeiro.
Essa
disposição aparece na carta de 1996 do amigo Lelé, apresentando a Darcy o
projeto: “Foi assim que concebi uma ‘casa
digna’ para guardar seus livros, seu ‘beijódromo’e tudo o mais que você
imaginar”. E foi assim também, em carta dirigida ao reitor da UnB, em março
de 1996, que Darcy Ribeiro lavrou os termos de seu legado a UnB:
“Os
estatutos da FUNDAR de que estou mandando cópia, determinam que seu Presidente
elegerá a Universidade que virá a acolher, a qual receberá e porá em uso
público a biblioteca de trinta mil volumes e o arquivo documental, bem como os
objetos de arte de Darcy Ribeiro e de Berta Gleizer Ribeiro, nela funcionará a
direção superior da Fundação, que regerá a republicação das obras de ambos,
cujos direitos foram transferidos a FUNDAR.
O instituidor da FUNDAR espera da
Universidade que destine, mediante cessão de uso, uma área para construção da
Biblioteca Darcy Ribeiro e seus órgãos colaterais. Espera ainda que a
Universidade ajude na edificação da referida Biblioteca e que destaque de seus
quadros alguns servidores para manutenção e uso da biblioteca.
Meu desejo Senhor Reitor é que seja a Universidade de Brasília, a que estou
fortemente vinculado, que acolha a FUNDAR.
Mas este
caminho não foi facilmente percorrido. Nem em linha muito contínua. Até que se
retomasse recentemente aqueles compromissos de 1996, e agora em 2010, se
pudesse celebrar o termo de permissão de uso para destinar a área de instalação
do Memorial e liberar os procedimentos necessários à implementação do projeto
sonhado, um pouco de amargo desapontamento deixou em sobressalto o próprio
sonho.
Vera Brant,
conselheira da FUNDAR e amiga dileta de Darcy, faz, em seu livro Darcy (Editora Paz e Terra, São Paulo, 2002,
páginas 111 a
113), o registro ressentido do que ela chamou de grande insensibilidade.
“O Cristovam Buarque, governador de Brasília
e do PT, tentou ajudar. Foi ao reitor,
falou da tristeza do Darcy, que não era justo ele ter essa decepção. Nadinha.
Nunca vi tanta insensibilidade na minha vida.
Eu dizia ao Darcy:
- Desista dessa idéia da campus, meu filho. A gente consegue um
terreno a caminho da Universidade. Quem for para lá terá que passar por você.
Não havia argumento que o vencesse: a UnB
era a sua filha e teria que ser lá.
No domingo, achei-o tão triste e desanimado
que liguei para a casa do reitor e disse-lhe:
- Você está perdendo uma bela chance de ser
lembrado no futuro. Nós colocaríamos uma placa informando que você ajudou na
realização do Memorial Darcy Ribeiro.
Três dias antes do Darcy morrer, num sábado,
à tarde, o Cristovam ligou para o Hospital Sarah e disse-lhe que teríamos uma
reunião na terça-feira para resolver, de uma vez por todas o problema. Eu sabia
que não era verdade. Mas deixei o Darcy ficar feliz, assim mesmo.
Logo em seguida, o Oscar ligou. O Darcy
disse:
- Meu irmão, eu estou morrendo.
- Não está não, Darcy. Você ainda vai viver
dez anos e vamos morrer, juntos.
- Eu não me importo de morrer, não. O que eu
não quero é deixar este planeta. Sabe, Oscar, a construção do prédio da
Fundação na UnB vai dar certo. O Cristovam acabou de me dizer.
Fiquei emocionada. E não tive coragem de
dizer a ele que eu tinha certeza de que não aconteceria nada, como não
aconteceu. O Cristovam também já não tinha esperanças. Ele deve ter falado isso
para consolar o Darcy.
Foi preciso o
Presidente operário para se fazer acessível ao compromisso de reconhecimento. O
mesmo Presidente, aliás, o único Presidente que durante todos os anos de seu
mandato, reuniu para diálogo todos os Reitores federais brasileiros e com eles
concertou o maior programa de investimentos já realizado para o desenvolvimento
das universidades públicas, para que elas se expandam, ampliem vagas,
democratizem o acesso e se re-estruturem em direção à atualização de seus fins
institucionais, de oferecer educação superior de qualidade como um bem público
e social.
Este
Presidente operário, atento ao papel transformador da educação, é ainda o Mecenas
sensível, convencido de que se “a
história de um país é expressa pela
trajetória do povo que o construiu, por sua luta pela sobrevivência e autonomia”,
este percurso “e o conjunto de suas
conquistas faz-se representar também pelas idéias e mãos de seus artistas”.
A passagem
transcrita consta da mensagem que abre o catálogo e a exposição Entre Séculos/Acervos Públicos do Distrito
Federal, mostra realizada no Museu da República, em Brasília, em novembro
de 2009, por ele inspirada e realizada para “contribuir
para o acesso público a este patrimônio cultural e influir diretamente para a
informação e formação daqueles que não têm como conhecê-la em seu dia a dia”.
A exposição reuniu, com essa orientação, os acervos públicos do Museu Nacional
Cultural da República, do Museu de Arte de Brasília, do Memorial dos Povos
Indígenas, da Caixa Econômica Federal, do Banco Central e da Universidade de
Brasília.
E
é ainda este mesmo Presidente, cuidadoso do dever de consideração, que se move
em tributo de reconhecimento para homenagear o grande brasileiro Darcy Ribeiro,
antropólogo, educador, escritor, político, semeador de esperanças. Ele orienta
o seu Ministro da Cultura no sentido de criar as condições de materialização de
seu derradeiro sonho que é instalar na UnB, o seu Memorial.
Mas,
como resumi antes, um Memorial que seja fiel à vivacidade instigante do homenageado,
que seja projetado para olhar o futuro. E que se incruste, definitivamente, no
território de sua filha querida, ali naquela “faixa de terras na qual
conquistara um bom pedaço do planeta Terra para nele edificar a Casa do
Espírito, enquanto saber, cultura, ciências: a Universidade de Brasília, nossa
UnB”.
Nesta Universidade
de Brasília, repete o seu fundador, que “Existe,
para entender o Brasil com toda a profundidade, - e cuja primeira tarefa
para - o exercício dessa missão é ter a
coragem de lavar os olhos para ver nossa realidade, é perscrutá-la, é
examiná-la, é analisá-la – porque, ao fim e ao cabo – o Brasil, entendido como seu povo e seu destino, é nosso tema e nosso
problema (Universidade Para Quê? Série UnB, Editora Universidade de Brasília,
Brasília, 1986, p. 14).
Sim,
nesta Universidade de Brasília, registra o Ministro Juca Ferreira em seu
discurso lido na abertura do Seminário Encontro
de Saberes realizado em setembro de 2010, que não deixe perder-se “a sua função de razão crítica, de entidade
processadora de sínteses e renovadora de conceitos, a Universidade (que) hoje
abre as portas para formas de sentir, de criar, de pensar e de fazer que a
sociedade produziu para si mesma”.
Um lugar, enfim,
adequado para abrigar o legado de Darcy, realizando, talvez, um de seus últimos
desejos, e, como próprio de Darcy, embrulhado de inexcedível afeto. Num artigo
de Oscar Niemeyer (“A Importância da Fundação Darcy Ribeiro”), o velho amigo
rememora trechos de uma conversa (“Três
ou quatro dias antes do seu aniversário, fui ver o meu amigo Darcy Ribeiro no
apartamento em que mora em
Copacabana. E lá estava esse meu irmão a escrever como
sempre, sentado na sua poltrona preferida... E a conversa continuou, mas foi ao
falarmos da Fundação Darcy Ribeiro, que ela se esticou, como se impunha”).
Essa
memória-testemunho, reafirma a intenção e as razões do legado. Lembra Oscar: “A Fundação Darcy Ribeiro vai ser construída
na Universidade de Brasília, que Darcy criou”. E esta obra, para o grande
arquiteto, tem a maior importância, é indispensável e precisa ser construída,
porque “representa a vida de um
brasileiro que honra, com seu talento, coragem e idealismo, o nosso país”.
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