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quarta-feira, 9 de agosto de 2023

 

Narradores não confiáveis: o discurso do exército brasileiro sobre memória, verdade e justiça encontrado nos relatórios periódicos mensais

Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito.

 

Barbara Guilherme Lopes. Narradores não confiáveis: o discurso do Exército Brasileiro sobre memória, verdade e justiça encontrado nos Relatórios Periódicos Mensais (RPMS) entre 1989 e 1991. Dissertação de Mestrado apresentada Programa de Pós-graduação em Direito da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (UnB), 2023, 108 fls.

 

Uma alegria compartilhar a Banca Examinadora formada pela Professora Eneá de Stutz e Almeida (Orientadora – Faculdade de Direito UnB); pelo Professor Lucas Pedretti Lima (Examinador externo titular) e por mim Professor (Examinador interno titular – Faculdade de Direito UnB), responsável por validar esta singular dissertação, dado o seu enfoque e o interlocutor político que põe em causa.

Veja-se o seu resumo:

Esta pesquisa remete a uma disputa narrativa histórica: o discurso sobre a ditadura civil-militar no Brasil. De um lado, o lançamento do livro Brasil: Nunca Mais, em 1985, que denuncia as violações aos direitos humanos durante a ditadura e, como resposta, o Projeto Orvil, encabeçado pelo Centro de Informações do Exército (CIE), com a intenção de contar a versão dos militares da história. O Orvil não foi autorizado para publicação, mas continuou a circular nas Forças Armadas como narrativa de variadas formas. Em 2021, foram divulgados os Relatórios Periódicos Mensais (RPMs), informativos elaborados pelo CIE pelo menos de 1989 a 1991, que perpetua o discurso do Orvil como política no sistema de informações do Exército para doutrinação de militares. Damos a isso o nome de discurso Orviliano e questionamos: qual o discurso do Exército sobre memória, verdade e justiça da ditadura civil-militar? Para isso, partimos da hipótese de que há um discurso Orviliano sobre memória, verdade e justiça no Exército Brasileiro que obstaculiza a justiça de transição. É proposta uma análise de discurso, de acordo com Orlandi (2000), nos Relatórios Periódicos Mensais, que são capazes de fornecer uma delimitação temporal que representa a redemocratização, em um período pós promulgação da Constituição Federal de 1988. Dessa forma, codificamos os textos presentes nos Relatórios através da análise de conteúdo categorial, elaborado a partir da revisão de literatura sobre o pensamento político dos militares, que demonstra a centralidade da Doutrina de Segurança Nacional como fundamento. Foi possível compreender que o discurso dos RPMs traz os elementos argumentativos fundamentais do Orvil, sendo assim, foi caracterizado como um discurso Orviliano sobre memória, verdade e justiça. Sendo estes os pilares da justiça de transição, um discurso atravessado sobre a ditadura civil-militar, que apresenta uma narrativa que inverte heróis e vilões, criando inimigos, é um entrave para sua concretização. A tarefa da justiça de transição, portanto, é trabalhar os usos políticos do passado no presente a fim de se posicionar sobrea memória a ser construída

 

Transcrevo o Sumário do trabalho para a percepção da distribuição analítica dos temas correlacionados pela Autora do trabalho:

1INTRODUÇÃO

2 PENSAMENTO POLÍTICO DOS MILITARES: DOUTRINA DE SEGURANÇA NACIONAL E A VERDADE VIRADA DO AVESSO

2.1 Doutrina de Segurança Nacional e as relações civis-militares no Brasil: ordem e progresso

2.2 Guerra nas colinas: a narrativa militar sobre a ditadura 

2.3 O avesso do avesso do avesso: o CIE, o Orvil e o Orvilianismo

3 “COMANDANTE, MANTENHA SEUS HOMENS BEM-INFORMADOS!”:

 UMA ANÁLISE DE CONTEÚDO DOS RELATÓRIOS PERIÓDICOS MENSAIS ELABORADOS PELO CENTRO DE INFORMAÇÕES DO EXÉRCITO ENTRE 1989 E 1991 

3.1 Método e metodologia de pesquisa: como analisar o que eles dizem?

3.2 Os Relatórios Periódicos Mensais (RPMs) e o Centro de Informações do Exército (CIE)

3.3 O que diz o Exército Brasileiro? Uma análise de discurso dos Relatórios Periódicos Mensais (1989 – 1991) 

4 O PASSADO É UM PAÍS ESTRANGEIRO: O CAMINHO DA JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO PELA HISTÓRIA E OS PERCALÇOS DA MEMÓRIA 

4.1 Inventário da Justiça de Transição: Considerações sobre memória, verdade e história 

4.2 “E que me esqueçam!”: Tempo e usos do passado, entre memória e esquecimento 

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

6 REFERÊNCIAS 

7 FONTES PRIMÁRIAS

Já pelo resumo e pelo sumário, mas ao longo de todo o trabalho, são muitas as siglas – algumas logo identificadas na extensão de seu significado, outras entretanto, mesmo que assim designadas, muitas vezes aparecem distante de seu primeiro descritivo o que dificulta saber o que designam. Assim, já que a Autora abriu uma página para uma Lista de Imagens, sugiro que abra uma também para uma Lista de Siglas. Do mesmo modo, adotando um processo quase arqueológico de termos e expressões muito significativos para a compreensão do discurso militar, talvez fosse conveniente compor um Tesauro ou Thesaurus ou ao menos uma lista de palavras, termos e expressões com significados muito próprios, dentro do domínio específico, quase restrito, de denotações desse campo, v. g.: orvil, pensamento orviliano, relatórios periódicos mensais (RPMs), Plano Cohen, livros filo-orvilianos, revanchismo, anos de chumbo, distenção e abertura política lenta e gradual, Agência Pública, análise de conteúdo categorial, justiça de transição reversa, perdão, poder terapêutico da verdade etc.

Essas são as indicações formais que faço ao trabalho, de resto, muito bem escrito, por meio de um discurso elegante, harmonioso, entremeado de epígrafes e sonoridades, às vezes musicais outras poéticas. O que já se inicia com as partes pré-textuais, incluindo os agradecimentos e as dedicatórias. A autora tem estilo e seu texto desliza. Pressentir, mais que analisar, se as palavras, tal como diz John Steinbeck sobre o seu ofício, se deixam escorrer e se arrastar para o texto, como que movidas por sua própria vontade. Para ele (A Rua das Ilusões Perdidas, Rio de Janeiro: BestBolso, 2019), talvez essa seja a maneira de escrever certos livros, abrir a página e deixar que as palavras fluam, livres, espontaneamente, transferindo-as para o texto, no arranjo da própria narrativa.

Claro que logo me acudiu a metáfora da narração como modo peculiar de construir uma memória que realize uma perspectiva convincente e credível de uma realidade com versões em disputa incluindo a sua própria existência. Assim, lembrei do filme Narradores de Javé. Produção de Eliane Caffé. Riofilme, 2003. DVD (100min), widescreen, color.  Conforme Alexandra Gomes dos Santos Matos (https://www.nucleodoconhecimento.com.br/lei/memoria-e-direito), “busca da memória como meio científico de se fazer história, o processo de construção da identidade de um povo e a indiferença da classe dominante aos anseios dos povos desfavorecidos econômica e socialmente. Desse modo, a relevância de preservar a tradição de uma sociedade ágrafa depara-se com um pormenor: a viabilidade da modernização que não considera os interesses do homem sertanejo, morador de Javé”.

Narradores de Javé, ela diz, “pode ser representativo de um clamor das classes marginalizadas socialmente, o que possibilita a reflexão sobre assuntos urgentes que nem sempre são pautas de discussão em uma sociedade capitalista. Javé se submete ao progresso, ao avanço tecnológico, à escrita, ao poder de uma elite minoritária, preocupada com seus interesses individuais”. 

Ainda sob essa perspectiva, antagônica aquela que será tomada como referente na Dissertação, penso nas narrativas de Pedro Tierra (aliás, Hamilton Pereira), em  Pesadelo. Narrativas dos Anos de Chumbo. São Paulo: Autonomia Literária: Fundação Perseu Abramo, 2019, que deixam marcas da memória, sobretudo quando a mentira política (Hanna Arendt), produzindo deliberadamente o ocultamento, tripudia sobre o pesadelo que se vivencia nos instantes em que o perigo relampeja, e volta a assombrar à custa de uma perversa ação de usurpação cultural da memória e da história.

Aqui um pretexto para encontrar um fio duplamente dilacerante, de memória da memória (conforme Santo Agostinho, em Confissões), ao fim e ao caboum caleidoscópio que embalam o que o que se viveu e que não pode deixar de contar, ou ao menos do modo como, se não viveu propriamente, é como lembra para contar (Garcia Marquez, Viver para Contar: “A vida não é o que a gente viveu, e sim a que a gente recorda, e como recorda para contá-la”). Um processo que se aproxima da perspectiva formulada por François Ost, tomado como referência pela Autora, nos termos dos paradoxos que organizam os entendimentos de reinterpretação coletiva, seja no sentido de política de memória, ou no sentido de política de esquecimento, distinções fortes na fundamentação da Autora da Dissertação e de sua orientadora (p. 93).

 Lembramos eu e Nair Heloisa Bicalho de Sousa, em nosso texto de apresentação ao volume 7, da Série O Direito Achado na Rua (Justiça de transição: direito à memória e à verdade, bastante referido pela Autora da Dissertação), “um esforço para vencer a tendência a deixar no esquecimento os fatos reveladores das práticas políticas do regime autoritário. Vê-se, assim, com Pollack (1989), que memória e esquecimento são eixos fundamentais da esfera do poder, disputando o modo como a memória coletiva constrói-se em cada sociedade”. Em outro texto (Direito à memória e à verdade, Observatório da Constituição e da Democracia. Brasília: Faculdade de Direito da UnB, n. 17, outubro e novembro de 2007), avançamos esse ponto para reafirmar que há “uma memória coletiva em processo de construção necessitando que as diferentes gerações tenham conhecimento da verdade. É tempo de reivindicar a verdade. É tempo de reivindicar a verdade e de resgatar a memória, como referências éticas para conter a mentira na política, pois, como lembra Hanna Arendt, ‘uma das lições que podem ser apreendidas das experiências totalitárias é a assustadora confiança de seus dirigentes no poder da mentira e na capacidade de reescreverem a história para a adaptar a uma linha política’”.

Bárbara faz a defesa de sua dissertação no momento em que o Comitê de Direitos Humanos das Nações Unidas divulga o relatório resultado da primeira revisão periódica do Brasil em 10 anos, realizada nos dias 26 e 27 de junho em Genebra, apontando uma série de recomendações ao Brasil com o objetivo de promover a igualdade, justiça e proteção dos direitos humanos. 

Dentre as principais recomendações, destaca-se o pedido de revisão da Lei da Anistia, do período da ditadura militar, com o intuito de assegurar a responsabilização por violações de direitos humanos e proporcionar a devida reparação às vítimas. O comitê da Organização das Nações Unidas (ONU) expressou preocupação com a falta de implementação das recomendações da Comissão da Verdade nesse contexto.

O Trabalho de Bárbara Guilherme Lopes é, pois singular porque, desenvolvido nesse contexto de problematização de discursos sobre um tema difícil, é uma tentativa de decifrar a motivação orviliana – “não confiável” – do “discurso do exército brasileiro sobre memória, verdade e justiça” e por ele produzido “nos relatórios periódicos mensais (RPMS) entre 1989 e 1991”.

É singular porque se debruça analiticamente sobre a discursividade produzida, independente da realidade dos fatos a que se refere. É diferente, por exemplo, da representação desses fatos na descrição de sua ocorrência, em situações concretas e não só enunciadas. Menciono o livro BORBOLETAS E LOBISOMENS: Vidas Sonhos e Mortes dos Guerrilheiros do Araguaia, de Hugo Studart. Rio de Janeiro: Editora Francisco Alves, 2018, que inclusive prefaciei e a propósito publiquei uma recensão (http://estadodedireito.com.br/21677-2/).

O livro de Hugo Studart colabora para por em relevo a exigência de memória e verdade como um caminho a ser necessariamente percorrido na senda de construção e de reconstrução democrática. Ele levanta, com seu trabalho artesão, de pesquisador diligente, fragmentos de registros, na maior parte pessoais e voluntários de um enorme baú de ossadas. Contudo, os arquivos oficiais da repressão, a despeito dos esforços da Comissão de Memória e de Verdade (mas não de Justiça) ainda permanecem restritos à sociedade civil, em parte por se manterem deliberadamente ocultados e em parte pela objeção sonegadora de agentes ainda resistentes e insubordinados ao comando legal e das autoridades constituídas e isso retrata, de certa maneira, uma tendência a deixar no esquecimento os fatos reveladores das práticas políticas do regime autoritário. Vê-se, assim, que memória e esquecimento são eixos fundamentais da esfera do poder, disputando o modo como a memória coletiva se constrói em cada sociedade.

Essa é a contribuição deste livro que vem precedido de um de natureza acadêmica. Antes da tese, Studart desenvolveu também como resultante de um trabalho de mestrado –  o livro A Lei da Selva com foco no mesmo tema – a Guerrilha do Araguaia – (Geração Editorial, São Paulo, 2006), um estudo inédito, na medida em que se debruçou, como antes ainda não havia sido feito, sobre as “estratégias, imaginário e discurso dos militares sobre a guerrilha do Araguaia”. A experiência deu prumo à capacidade narrativa e mais que isso, permitiu um mergulho prospectivo sobre esse episódio sensível, permitindo cartografar o ambiente geo-político do “teatro de operações”e mergulhar nos caracteres dos personagens, num ensaio que lembrou a mesma disposição sociológica (Euclides) e literária (Vargas Llosa), para desvendar mais uma “guerra do fim do mundo”. Com a circunstância de que se valeu de documentos, depoimentos e interpretações oferecidas pelos próprios agentes de segurança e de militares que participaram das expedições.

Terá sido possível apelar para a verdade, conforme a diretriz do pensamento da grande filósofa Hannah Arendt, e assim recuperar um “hiato de credibilidade” para resgatar a verdade como dimensão da política, em condições de estabelecer base para a confiança desejada entre governo e cidadãos. Atende-se à questão posta por Walter Benjamin, – o historiador referência da Autora para a fundamentação teórica de seu trabalho – para designar o processo da memória histórica que segundo ele, implica articular historicamente o passado sem que isso signifique conhecê-lo “como ele de fato foi”, mas antes, apropriar-se de uma reminiscência, tal como ela relampeja no momento de um perigo?

A imagem elaborada por Benjamin, serviu a sua interpretação da realidade de um tempo de paroxismo totalitário, ao qual ele próprio sucumbiu, e que marcou o mundo por uma referência de brutal irracionalidade, e assim, “reconstruir memórias que permitam ressignificar as experiências de outros sujeitos do passado e, com eles, estabelecer um diálogo no tempo presente”.

Benjamin não explica como a história humana pode dar o que o homem não tem. O objeto da memória não é um passado morto, mas uma linha tênue cujo desenrolar pode provocar novos emaranhados. O que não se tem hoje ao seu alcance de nosso discernimento ativo a história animada por esse passado pode ter”.

Tomando o texto de Bárbara e seu tremendo esforço de desemaranhar o novelo narrativo, a partir do que designa como discurso orviliano, é um enredamento numa espécie de “globo da morte” dos antigos espetáculos circenses, com os malabaristas condenados a rodar todo o tempo no interior de um espaço do qual não têm como sair e dentro do qual podem a qualquer momento sucumbir.

Podem mudar os personagens mas ainda são, no Brasil, opostos que se completam, tal como no último ciclo geracional de uma militarização politizada, com Lentz, que situa, de um lado, os moderados, castelistas ou grupo da Sorbonne (ala ligada ao presidente Castelo Branco e que via o regime como um processo de transição relativamente rápido e pretendiam o retorno à democracia, incluindo eleições diretas para presidente já em 1966) e, de outro, o grupo linha-dura, que temia o retorno ao governo dos quadros políticos civis pré-golpe militar de 1964 e que defendiam, assim, a prorrogação do regime militar, enquanto a função “salvadora” da “revolução” não tivesse sido completamente realizada.

Todos golpistas, ainda que aparentemente divididos em duas correntes político-ideológicas: aquela sob a orientação do general Golbery do Couto e Silva, que achavam necessário combater o “comunismo”, o PTB e as esquerdas pela repressão, e ao mesmo tempo desenvolver um projeto modernizador da economia à custa do capital estrangeiro, mesmo apostando que, com a estabilidade de volta, o regime devesse voltar aos civis. 2-grupo linha-dura, liderado pelo general Artur da Costa e Silva, voltado para o combate ao comunismo e aos subversivos – como ficaram conhecidos os que se colocaram contra a ditadura – deveria ser mais duro, pregando a continuidade dos militares no poder – numa espécie de “revolução permanente”.

E que no suceder-se das “ondas de estudos sobre a dominação política dos militares”, como classifica Lentz, em esquema seguido pela Autora, estamos agora longe do que se pode chamar em algum momento de alguma “expressão de um movimento político-militar brasileiro para afirmar reivindicações modernizadoras como a exigência do voto secreto, a defesa do ensino público e a obrigatoriedade do ensino secundário para toda a população, além de acabar com a miséria e a injustiça social no Brasil”, jamais entreguista ou canibalizador do orçamento público, conforme eu próprio já sugeri, distinguindo algumas biografias notáveis antes do declínio apequenador que parece caracterizar o estamento ou a casta em que se encrustam (https://www.brasilpopular.com/morrer-se-necessario-for-matar-nunca/). 

 Por isso, é tão urgente institucionalizar um sistema de transparência sobre os arquivos e as informações dessa conjuntura histórica. Não se trata apenas de resgatar a memória e a verdade, mas de completar a transição, sair do “globo da morte” e abrir-se à experiência plena da democracia, da cidadania, da justiça e da paz e de procurar realizar confiança nas relações de governança. Alcançar uma forma de conceber o passado vivo e prenhe de possibilidades, para chegar, conforme Benjamin, a um tempo, que ele chama de tempo pleno, tempo democrático eu diria. 

A Autora tem absoluta clareza sobre as incidências, subjetivas e objetivas, que recaem sobre seu trabalho, tal como ressalva nas conclusões:

esta pesquisa também é um convite para que os estudos da memória sejam colocados no debate científico atual, para pensar justiça de transição de forma continuada, como política pública e para estabelecer de forma concreta as narrativas da história que baseiam decisões políticas. Pois, se mais narradores estiverem comprometidos com memória, verdade e justiça, menos confiáveis se tornam os Orvis: os que já existiram e os que ainda estão por vir. É um convite para repensar as Forças Armadas, a militarização da política institucional, a memória militar sobre a ditadura e as relações civis-militares. É um convite para a justiça de transição: construir a memória politicamente, promover justiça das vítimas, e reformar instituições que preservam o pensamento de segurança nacional. É um convite para repensar segurança e nação. 

Em Comblin (Joseph), conforme o seu Ideologia de Segurança Nacional Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979) – lembrando que essa forma de interpretar valeu sua expulsão do Brasil até que a redemocratização pós-85 permitisse seu reingresso no país -, na onda atrelada a essa concepção, os militares ficaram reduzidos a um papel tão somente instrumental para o atendimento do interesse do capital internacional norte-americano, valendo-se sobretudo das escolas militares para difundir uma perspectiva sobre o mundo político, na qual caberia às Forças Armadas uma função de proeminência. 

Será possível a partir desse papel secundário, e do rebaixamento institucional provocado pela adesão a um projeto de assalto ao orçamento público (ao preço de concessões, comissionamentos funcionais e adereços burocráticos a exemplo do artificialismo de investir-se em atividades “pedagógicas” em um sistema educacional “militarizado”, conceber-se qualquer papel confiável das Forças Armadas por seus quadros, investidos de atribuições políticas institucionais? A pesquisa Ipec que avalia confiança social com 20 instituições, divulgada neste mês de julho, ainda mantem as Forças Armadas, na mediana de confiabilidade social, mas superadas pelo Corpo de Bombeiros em primeiro lugar e atrás da Polícia Federal, das Igrejas e, felizmente, das Escolas Públicas. A participação canhestra de muitos de seus agentes nos acontecimentos antidemocráticos recentes (8 de janeiro), não podem ser um indicador do encolhimento de confiança? Que sua narrativa, incredível, continue à sombra, como orvil, em seu próprio lado da colina? (aqui valendo-me da expressão que Bárbara escavou por significar, no vocabulário dos militares, o seu intento de disputar pela memória, a sua versão dos fatos).

Essa sucessão de procedimentos direta ou indiretamente atribuídos às Forças Armadas, estariam a se revelar tal como diz a Autora, “um modo de operar por meio de engodos que já justificam práticas percebidas como impedimentos a consolidação da democracia levando ao questionamento das forças armadas no país?

Surpreende a orientação da pesquisa, com todo o cuidado de estabelecer parâmetros qualificados para a análise de discurso, que o exame do seu corpus (RPMs editados entre 1989 e 1991), encontrem ativa e operante uma concepção de segurança nacional estruturada para conter inimigos internos em face de uma disposição de defender as funções constitucionais militares numa projeção insinuante que extrapola o âmbito secreto da informação e da interpretação de diretrizes militares por meio de uma circulação não restrita ao interior da instituição e que projete informações (e desinformações) para consumo de terceiros de acordo com o interesse do Exército (p. 53) isso mesmo depois do advento da Constituição de 1988 e de implantação de um regime civil de enunciado democrático? A quem serve esse Exército e a que interesses ele responde?

Há acúmulo para se abrir uma agenda para esses questionamentos e tornar possível instituir finalmente políticas de Memória, Verdade e Justiça aplicáveis a condutas das Forças Armadas ou pelos menos de seus membros, incluindo os mais proeminentes, já “não confiáveis” como pressupõe e ratifica a Autora em seu trabalho? Há horizonte para se completar a transição, abrindo-se conforme as condicionantes presentes no trabalho que coincidem em boa parte com aquelas que eu próprio menciono (SOUSA JUNIOR, José Geraldo de. Anistia, compromisso da liberdade. In Revista Humanidades, nº 13, Editora UnB, 1987; SOUSA JUNIOR, José Geraldo de. Memória e Verdade como Direitos Humanos. In SOUSA JUNIOR, José Geraldo de. Idéias para a Cidadania e para a Justiça. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor/Sindjus – Sindicato dos Trabalhadores do Poder Judiciário do Ministério Público da União do DF, 2008, pp. 99-100)? 

Num texto recentíssimo (https://www.meer.com/pt/74590-a-divisao-social-do-sofrimento) Boaventura de Sousa Santos insere questões interpelantes e traumáticas, entre elas as que se revestem de violência política, que resultam em escalas ao limite do insuportável, de sofrimento. Daí que, para ele, “de um ponto de vista da teoria crítica, a questão principal é a de saber que tipos de sociedade tendem a produzir que tipos de sofrimento e que impacto isso tem na produção do conhecimento e na transformação progressista da sociedade”. Nessa escala ele demarca:

O sofrimento tem de ser integrado numa teoria mais ampla de realidade. Dizia Adorno que a separação entre as disciplinas constitui o grande obstáculo para ver as relações entre o sofrimento individual e o sofrimento colectivo. Este último é concebido como uma patologia social ou como uma experiência social negativa, muitas vezes invisibilizada, competindo à teoria crítica dar-lhe visibilidade e indicar caminhos para o minimizar. Mas reconhece-se que este esforço analítico pode redundar em reproduzir o silenciamento. Talvez por isso, Bourdieu salientou, num livro fundamental sobre o sofrimento do mundo, que o seu papel era o de ser, acima de tudo, um porta-voz.

 São questões que o texto de Bárbara suscita. Dito poeticamente, já que ela abriu seu trabalho com Walt Whitman – “eu confesso que o incitei a ir em frente comigo e que ainda o incito sem a mínima ideia de qual venha a ser o nosso destino ou se vamos sair vitoriosos ou totalmente sufocados e vencidos” – eu termino a minha arguição com Milan Kundera, para o homenagear, há poucos dias de seu falecimento (11/07): “Para liquidar os povos, começa-se por lhes tirar a memória. Destroem-se seus livros, sua cultura, sua história. E uma outra pessoa lhes escreve outros livros, lhes dá outra cultura e lhes inventa uma outra história” (O Livro do Riso e do Esquecimento, 1978).

 

 

 

José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil,  Professor Titular, da Universidade de Brasília,  Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua.

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